Queridos amigos,
É do melhor que eu tenho lido, e maior é a satisfação por ele ser um de nós, na confraria.
Alberto Branquinho diz que a cambança é uma passagem para um outro lado de um rio. Por vezes uma fuga ou uma mudança. Pode ser uma partida ou um regresso. Cambança é uma memória, uma viagem que ele capta primorosamente nos seus contos. Ainda bem que aqueles lugares aparecem descontextualizados, como o rio Galola, o novo quartel de Cufia, ou a outra margem do rio Chalarol. Assim, tudo ganha em universalidade naquele mundo pequeno, concentracionário, dentro do arame farpado.
Estamos todos lá. Leio e releio, esta cambança é de um grande mestre.
Vou esperar por mais, pelo menos deste altíssimo nível.
Obrigado pelo teu talento, Alberto Branquinho.
Um abraço do
Mário
Cambança Final, contos de Alberto Branquinho
Beja Santos
![](http://3.bp.blogspot.com/-WFoY9bwCZ5s/Und4t1rhHII/AAAAAAAAxng/6kfaRmbzWso/s1600/Alberto+Branquinho-2.jpg)
![](http://3.bp.blogspot.com/-MjJvvXjnalQ/Und4nn7eMEI/AAAAAAAAxnY/ADYXZN7sdh0/s320/Camban%C3%A7a+Final_ABranquinho.jpg)
Mata virgem e lama, água e o céu estrelado, chuvas diluvianas, frases em crioulo e a propósito, a linguagem de caserna na justa conta, o caminhar noturno, a solidão mesmo quando temos muita gente à volta. E uma enorme capacidade de trazer a pilhéria e o tom zombeteiro que obriga a uma boa gargalhada. Por exemplo: “Ao fim da tarde, quando retiraram para o quartel, ao passarem próximo do poilão situado no entroncamento, alguns soldados notaram a existência de um cartão pendurado no tronco, batido pelo sol poente. Um furriel tentou aproximar-se do poilão. – Cuidado. Pode estar armadilhado. Estacou. De longe, a coberto da vegetação, tentou apurar a visão baixando com a mão esquerda a pala do quico, tapando o sol. Então leu: PESSOAL TURRA CUNVIDA CAPTÃO DE CUTOL PA BIBE 1 UISQUE NA MATA”.
Não é para todos esta capacidade de relevar o pícaro quando se marcha a arrastar o corpo, no auge do sofrimento. É um dom saber descrever um acontecimento corrente para um soldado branco que assusta o africano, tomando-o por feitiçaria, anda por ali o abismo cultural. Porque Alberto Branquinho, como na montanha russa, traça uma atmosfera de pânico, põe ali todos os traços da brutalidade e finaliza com um toque de facécia. O plausível diverte e comove. O furriel Melo vai tomar banho, avista uma cobra, foge espavorido a tapar as pudendas, não para de gritar e alguém comenta: “Acho que a gaja deu uma dentada na picha do furriel cripto”. O conto “Arroz Especial” é a profundidade do insólito, com nojo toda aquela gente vai descobrir que andou a comer arroz de jagudi, o impensável. O vagomestre e o cozinheiro têm uma enorme densidade que atravessa estes contos, são mal vistos, são detestados e, no entanto, são convocados para o prodígio de alimentar na mais extrema das monotonias, mesmo quando a cozinha é periodicamente escavacada e brio profissional sobrepõe-se à virtude militar: “Algumas vezes, mal atirava o fósforo e a lenha começava a arder, era um repente: PUM!!! Uma bazucada e ia toda a cozinha pelos ares. Logo a seguir, rebentava o tiroteio, de fora e de dentro do aquartelamento, acompanhado do fogo dos morteiros de ambos os lados. Quando acabava, o cozinheiro saía do seu buraco e berrava para além do arame farpado:
- Cabrões! Filhos da puta! Escangalharam outra vez tudo! Um dia vou aí e fodo-vos a todos!
Era uma raiva muito grande, mas só de dois ou três minutos, porque depois entrava no abrigo privado e desatava a chorar”.
Em todas as circunstâncias, o Alberto Branquinho hílare é plausível e pela graça da escrita desconcerta e diverte fundo, é o caso daquele cabo Abel que nunca tinha estado em Bissau, agora está à espera de embarcar para a metrópole, ainda se sente a viver nos fundos das matas, na convivência das tabancas e é nisto que vai com a sua companhia fazer um cerco a um bairro periférico de Bissau: “Era já manhã. O pessoal que fazia o cerco sentava-se no chão, com a G3 entaladas entre os joelhos ou em cima das coxas, em atitude descontraída, que, em nada, se assemelhava às situações de tensão que, em circunstâncias idênticas tinham sido vividas em emboscadas ou cercos no interior da Guiné. De entre as casas, caminhado por uma vereda que passava ao pé do grupo de militares em que estava o cabo Abel, surgia uma rapariga negra, que vestia uma bata impecavelmente branca, trazendo consigo os livros escolares, agarrados contra o peito. O cabo Abel levantou-se e com a G3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:
- Bajuda, bô cá pude passa!
A moça que teria catorze ou quinze anos, parou por um momento, encarou o cabo Abel nos olhos e perguntou-lhe:
- Porquê você não fala comigo português direito! E, contornando-o, continuou o seu caminho para Bissau.
O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado, a vê-la passar”.
Momentos há em que o gargalhar acaba por comover tal a dor que provoca o desencontro entre quem está na guerra e espera ternura da retaguarda, escrito num aerograma, aqui o autor excede-se, criativo: “O Fabiano recebeu um aerograma e afastou-se, com o coração aos pulos. Sentou-se contra uma parede e, ao abri-lo quase o rasgou. Começou a ler: «Tu dizes que sais para batidas, patrulhas, operações e emboscadas. Ainda sais, dás uns passeios. Eu para aqui estou sozinha e é só de casa para o trabalho do trabalho para casa. Passear não posso é só missa aos domingos e…» Triste, amarrotou o aerograma e ficou muito tempo a olhar as biqueiras das botas.
Nunca mais escreveu para casa”.
Esgrimindo equívocos, tirando o máximo partido dos imprevistos, alcandorando a nobreza dos princípios e dos valores, posicionando numa grande angular os militares dentro dos destacamentos lá no ermo, Alberto Branquinho deixa um legado assombroso de contos intemporais sobre aquela guerra da Guiné, escritos com mão de mestre, porque a guerra foi aquilo tudo que ele arquitetou, entre as picadas e os rebentamentos, entre os mal-entendidos que a mata favorece, e a memória reaviva, numa explosão de luz, tudo o que por lá passamos.
É melhor ficarmos atentos a tudo o que ele ainda vai escrever, para nosso gáudio e para o (dele) dever de memória.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12231: Notas de leitura (530): "Atlântida", por João Augusto da Silva (Mário Beja Santos)