sábado, 10 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22090: Os nossos seres, saberes e lazeres (446): Quando vi nascer a Avenida de Roma (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Não se trata de uma ode triunfal à Avenida de Roma, é um apanhado de recordações de quem teve a dita de ver nascer de solo inculto toda esta arquitetura que marcou uma época, em toda a acepção da palavra. Primeiro pelo arrojo arquitetónico, o regime abria os cordões à bolsa e satisfazia as classes médias com habitação digna, casas com porteiro, mármores, amplas divisões, com os transportes à porta, artérias folgadas. Havia, é certo, obras incompletas, caso da Avenida João XXI, que só muitos anos mais tarde é que desceu até ao Campo Pequeno. Há estudos completos sobre a evolução desta parte da cidade, o historiador de Arte José-Augusto França, que a seguir ao 25 de abril deu uma perninha no planeamento urbano e na história da cidade, descreve bem como tudo aqui despontou, basta ler o seu livro Os Anos 20 em Portugal. Imaginem a petizada a vir num bairro relativamente monocórdico e assistir, entre a poeirada, à nascença deste admirável novo mundo.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (3)

Mário Beja Santos

Eu bem gostaria de vos contar ao pormenor o que era o nosso ensino primário, o que se aprendia em português, o tipo de leituras, o esplendor da Pátria, as minudências da Geografia, das Ciências Naturais, a profusão de heróis na nossa História gloriosa, e deixo para último a aritmética, com trabalhos que me deram cabo da cabeça mas, confesso, defenestraram-me medos para os rudimentos do que cada um de nós deve saber de Gestão, a começar pela nossa. Escrevi nas memórias da minha infância O Fedelho Exuberante o que por acaso guardei numa folha de apontamentos que, pasme-se, sobreviveu. Era uma coisa assim: “O professor deu dois quintos de uma folha de papel a cada um dos 35 alunos da classe. Quantas folhas foram distribuídas? Abro o caderno, mostro a operação, 2 a dividir por 5 dá 0.4, multiplico por 35, logo 14 folhas, estou impante de alegria, a minha mãe acena, afirmativa”. Claro que houve traumas com os decímetros, os hectómetros e os decâmetros, felizmente tudo passou.
Aqui na António Patrício há Bairro Social e outra arquitetura. Na esquina com a Avenida de Roma são prédios da Caixa de Previdência, mas neste recanto emergiram dois prédios diferentes, marcarão a fronteira do quarteirão, a seguir temos os prédios verdes, assentaram nas profundezas do olival, erguem-se em pilares decorados por pequenos mosaicos, são todos verdes, os habitantes, insista-se, trazem outra graduação social, reconheça-se no entanto que na Rua António Patrício temos o prédio dos médicos, confim com o meu, a Dr.ª Maria Alcina Esteves da Fonseca, do rés-do-chão direito, assistirá, em 1964, ao estertor da minha querida avó, no rés-do-chão esquerdo vive o Dr. Ivo Loio, que foi padrinho de casamento de Agostinho Neto, pelos anos fora farei amizade com o Dr. Cabral Rego, cuja paixão eram os postais máximos, e com o Dr. Carlos Conceição, que fazia anos do dia de Natal e exigia a nossa presença.
Os prédios verdes modificaram o funcionamento do nosso abastecimento. A minha mãe fornecia-se diariamente no Mercado do Saldanha, as miudezas conheceram transferência da Rua de Entrecampos para aqui. Logo em frente a nossa casa havia padaria com fabrico próprio, dispersos talhos, frutaria, mercearia, o mais que se sabe. Instalaram-se empresas de reparação, escritórios e até cabeleireiro. Por uma questão de fidelidade, continuei a ir cortar cabelo no Campo Grande na Barbearia do Sr. Cunha, esperantista emérito, e a deliciar-me com o disse que disse da clientela.
Recorde-se que os nossos prédios do Bairro Social, entenda-se, têm uma arquitetura bastante uniforme, sempre de três andares, o mesmo tipo de fachada com algumas variações nas varandas, já se disse que há uma certa variedade na dimensão das casas. Podia agora discretear sobre as cinco divisões da minha morada, a lembrança da chegada do esquentador, do frigorífico e da enceradora (não esquecer que havia para ali umas enormes tábuas de pinho, nenhuma Encerite conseguia fazer luzir todo aquele madeirame), mas não me parece oportuno. Vamos subir até à Avenida de Roma, deixa-se o Campo Grande e a Igreja dos Santos Reis Magos onde frequentei a catequese para outra ocasião, tenho pena de não vos falar mais dos nossos quintais, bem tratados por gente que tinha fortes reminiscências do meio rural de onde eram provenientes, as nespereiras, os loendreiros, as laranjeiras, os buxos, mas também não é oportuno.
A atração irrecusável é o nascimento daquele cruzamento na Avenida de Roma. Vamos aos factos.
Tudo começou naqueles quatro prédios portentosos, cor-de-rosa, com umas marquises rendilhadas e fazendo junção com prédios mais baixos da Avenida dos Estados Unidos da América e até mesmo com um prédio do Bairro Social. Combinávamos na escola ir espreitar o avanço dos trabalhos, subíamos os andaimes a partir das cinco da tarde, víamos chegar os novos residentes que, indiferentes à poeirada permanente, chegavam com os seus haveres nas camionetas de mudança, íamos espreitar o espólio dos novos inquilinos, descobrimos que havia porteiros, tinham secretárias torcidos e tremidos. Era um caos harmonioso, havia gente a chegar indiferentes à zoada dos camartelos, dos camiões pejados de areia a despejar matéria-prima para alimentar as betoneiras, estas sempre a resfolgar e a vomitar o ingrediente transportado para o trabalho dos trolhas.
Inolvidável experiência, ver a Avenida de Roma crescer prodigiosamente em direção à linha do caminho-de-ferro, e depois ultrapassá-lo. Nós, a miudagem, apalermados com o arrojo daquelas linhas, nada se comparava com a casa do nosso bairro, nós tínhamos varandas simples e austeras, óculos a fazer de janelas, o que se via no nosso bairro podia-se ver na Encarnação ou no Alto da Ajuda, era um fabrico em série de baixo custo e até me apetecia contar-vos que na nossa casa usaram madeira não tratada, uma noite acordámos com um estrondo monumental na sala de jantar, o guarda-loiça enfiou-se pelas ripas podres, houve que substituir todo aquele travejamento em pinho. Na Avenida de Roma tudo parecia panorâmico, varandas arredondadas, andares com três e quatro janelas e com estores, prédios com cores garridas, não havia dois tons iguais, portas bem chapeadas, pegas como de casas apalaçadas, os átrios marmoreados, os prédios com elevador, saiam das viaturas de mudanças móveis de estilo novo, o chamado estilo americano, andávamos a ver os elementos escultóricos e a tentar decifrá-los, sabíamos lá o que eram os tritões e as sereias, um dos prédios tinha lá em cima uma escultura de um ferreiro. Que maior novidade podíamos ter?
Antes de continuar, e de vos dizer que estão a chegar comerciantes azafamados com lojas a vender café e chá (a mistura popular de café, com preço imposto pelo Governo é coisa das mercearias, nestas lojas novas primam os lotes de S. Tomé, Angola e Timor), sapatarias, artigos orientais, pequenos estabelecimentos com papelaria e tabacaria, e até descrever o bulício rodoviário, uma palavra, para o Vá Vá. O Vá Vá é um dos pontos altos desta modernidade onde pontificam Formosinho Sanches e José Segurado, e no termo da Avenida Cassiano Branco. Ainda hoje podemos visitar o seu interior azulejar, o resto mudou radicalmente, perdeu o ar de café, é um snack-bar insípido. Por aqui passo sempre que posso para homenagear a Menez que nos deixou esta arte tão bela, felizmente conservada, ainda que tenha perdido a primitiva atmosfera.
A imagem seguinte é para mostrar a ligação entre as elegantíssimas torres e prédios que vão manter a escala e dar uma dimensão segura à Avenida de Roma. Estou neste momento a ver a trautear o maestro e compositor Joly Braga Santos, que vivia no prédio à esquerda. A seguir ao 25 de abril esta zona foi sacudida por uma tormenta, houve para ali uma explosão de todo o tamanho no primeiro andar da torre, constava que alguém estava a fazer uma bomba naquela atmosfera de PREC e deu-se mal, desapareceu entre muitas janelas desfeitas.
Olho para a correnteza destes prédios e logo me lembro de outra novidade, os cafés com o título snack-bar, a novidade eram as refeições ligeiras que davam pelo nome de combinados, aqui não havia petiscos de taberna, nada de bacalhau albardado ou bifanas, comia-se ao balcão mas também à mesa. Posso fechar os olhos e recordar os diferentes estabelecimentos que por aqui houve, que davam uma sensação de autossuficiência que se prolongava até à Avenida Guerra Junqueiro, onde o comércio adquiria uma outra sofisticação. Ficaram ainda algumas lojas icónicas, a Cafélia e a Livraria Barata, aqui o proprietário sabia olhar o cliente e dispensar-lhe, quando lhe tinha confiança, um livro proibido e também aqui, numa loja então com dimensões insignificantes, era possível encontrar David Mourão Ferreira, Artur Portela Filho ou Virgílio Ferreira.
A Avenida de Roma estende-se entre a Praça de Londres e a Avenida do Brasil. Veremos mais adiante que do cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida dos Estados Unidos da América é tudo muito mais taciturno, o comércio é muito menos vibrante, a grande recordação que guardo é o Cinema Alvalade, e explicarei porquê. A artéria febricitante é aquela que passou nestas últimas imagens e que culmina com esta preciosidade arquitetónica de Cassiano Branco. Entre a muita sorte que a vida meu deu tenho um querido amigo que aqui vive, e não há vez que aqui quando bato à porta não recorde o Café Roma e mesmo ao lado o Café Londres, ambos de saudosa memória.
(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 3 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22063: Os nossos seres, saberes e lazeres (444): Quando vi nascer a Avenida de Roma (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22070: Os nossos seres, saberes e lazeres (445): A minha primeira viagem (de comboio) para além do Ave, Minho... Uma aventura, até Ermidas do Sado, Santiago do Cacém, Alentejo ! (Joaquim Costa)

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22089: Efemérides (347): Comemoração do Dia do Antigo Combatente, promovida pelo Núcleo da Liga dos Combatentes e Câmara Municipal de Matosinhos


COMEMORAÇÃO DO DIA DO ANTIGO COMBATENTE EM MATOSINHOS

A Cerimónia decorreu no Cemitério de Sendim, junto ao Memorial aos Mortos dos Combatentes da Guerra do Ultramar do Concelho de Matosinhos e teve início às 10 horas da manhã com os cumprimentos à Dra. Luísa Salgueiro, Presidente da Câmara Municipal.
A conjuntura sanitária que impede a ajuntamento de pessoas e o facto de o cemitério estar transformado num estaleiro de obras, muito diminuiu o impacto que esta cerimónia merecia.
Atendendo às condicionantes impostas, não houve participação pública, estando apenas presentes ao acto 9 elementos representativos dos Órgãos Sociais do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, entre eles o Combatente José Trindade, habitual Porta-Guião.

Foi a melhor forma de comemorar o primeiro Dia do Antigo Combatente, instituído no Art.º 3.º do Estatuto do Antigo Combatente, Lei n.º 46 de 2020 de 20 de Agosto.

O Combatente José Trindade, Porta-Guião do Núcleo

O primeiro acto foi a deposição de uma Coroa de Flores junto ao módulo do Memorial onde estão inscritos os nomes dos 70 Combatentes caídos em Campanha pelo Presidente da Direcção do Núcleo, Tenente Coronel Armando Costa e pela Dra. Luísa Salgueiro.
Seguiu-se um minuto de silêncio
O Combatente José Francisco Oliveira leu a Prece do Exército
Por último, o Tenente Coronel Armando Costa leu aos presentes uma mensagem do Presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, Gen Chito Rodrigues.
Momentos finais da primeira comemoração do Dia do Antigo Combatente em Matosinhos


Fotos: Núcleo de Matosinhos da LC
Texto e edição das fotos: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22035: Efemérides (346): No Dia Mundial da Árvore, lembrando o castanheiro do Barriguinho a que cheguei fogo involuntariamente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P22088: Memórias cruzadas da Região Boé: CART 1742: as principais ocorrências em 12 e 13 de janeiro de 1968, entre Canjadude e Cheche: três baixas e um prisioneiro (Jorge Araújo)


Imagem de satélite da região Leste, assinalando-se o itinerário entre Nova Lamego/Ché-Che, percurso de 47.5 km (Google.com,  hoje), ao longo do qual o perigo era uma constante, por efeito da existência de minas a/c e emboscadas, em particular durante a realização de colunas de reabastecimento.




O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo.


MEMÓRIAS CRUZADAS DA REGIÃO DO BOÉ

A ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CART 1742:

 AS PRINCIPAIS OCORRÊNCIAS EM 12 E 13 DE JANEIRO DE 1968, ENTRE CANJADUDE E CHÉ-CHE

- AS TRÊS BAIXAS E UM PRISIONEIRO DAS NT -

 

1. - INTRODUÇÃO


O presente texto nasce da leitura do P22059 (02Abr2021) e, concomitantemente, do interesse suscitado no seu aprofundamento, em particular os episódios relativos à actividade operacional da CART 1742 (1967-1969), com relevância para as ocorrências registadas na primeira quinzena do mês de Janeiro de 1968, onde perderam a vida, em combate, o Major Luís Vasco da Veiga Ferreira Pedras, da Chefia do Serviço de Material, QG/CTIG, o Fur Mil de Construções e Instalações, Abílio Duarte Jorge, do BENG 447,  e o soldado Saná Quetá, do Pel Mil 161.


Para além desse desiderato é justo deixar expresso os agradecimentos quer ao camarada Virgílio Teixeira, por ter tido a gentileza de partilhar mais algumas memórias da História da sua Unidade: o BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/1969) quer ao camarada Abel Santos, pelas suas (novas) imagens da «Jangada do Ché-Che», «peças» importantes na (para a) reconstrução do «grande puzzle» historiográfico do Blogue, que no dia 23 do corrente comemora o seu 17.º Aniversário.


Voltando à questão de partida, a metodologia que utilizámos na estruturação deste "fragmento" é semelhante às anteriores, tendo procedido à triangulação de conteúdos de várias fontes: oficiais e outras, de ambos os «lados do combate», em especial aqueles que se enquadravam no tema em análise.


2. - CECA - ASPECTOS DA ACTIVIDADE OPERACIONAL > CART 1742


Tendo por base os objectivos indicados na introdução, recorremos à bibliografia Oficial do Estado-Maior do Exército (CECA), «Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África», 6.º Volume, tendo encontrado a seguinte referência:


◙ Zona Leste: «Operação Agora ou Nunca», realizada de 11 a 13 de Janeiro de 1968 (de 5.ª feira a sábado), envolvendo forças da CART 1742 (-), um Gr Comb da CCAÇ 5 e uma Sec/Pel Mil 161, com apoio aéreo, onde executaram no dia 12 [Jan] um patrulhamento de reconhecimento na região de Siai [infografia ao lado]

No decurso da missão, o IN atacou as NT instaladas em Dongol, provocando-lhes oito feridos graves, sete ligeiros e um desaparecido [António de Castro Aguiar; feito prisioneiro]. Na reacção, as NT causaram cinco mortos e muitos feridos em número não estimado. Encontrado um elemento IN ferido que, ao ser intimado a render-se,  abriu fogo e foi, por isso, abatido, apreendendo-se a sua arma, uma "Kalashinkov". (CECA; 6.º Vol., pp 163-164).



2.1 - NARRATIVA DE UM ELEMENTO DA CART 1742

 - O CASO DO "DIÁRIO" DE MÁRIO DOS ANJOS TEIXEIRA ALVES, 1.º CABO CORNETEIRO DA CART 1742 


Para a elaboração deste ponto era importante ter acesso ao histórico das actividades operacionais desenvolvidas pela Unidade em apreço, por considerarmos que a resenha Oficial ficara aquém do que era expectável. 


Da busca realizada, localizamos no P13434 (24Jul2014) uma descrição histórica, designada por «Diário da CART 1742», da autoria de Mário dos Anjos Teixeira Alves, ex-1.º Cabo Corneteiro, enviado ao Blogue, em Julho de 2014, pelo camarada Abel Santos, e que "encaixou" na perfeição.


Assim, sobre as ocorrências em título, citamos o que Mário Alves escreveu:

(…)

Dia 11Jan68 (5.ª feira)


Chegou o nosso capitão [Cap Mil Inf Álvaro Lereno Cohen] a dizer-nos para prepararmos o material, porque iam sair três pelotões às 3h00 da tarde.


Dia 12Jan68 (6.ª feira)


Houve correio para os que estão no destacamento, já os que foram para o mato só o receberão quando chegarem.


Dia 13Jan68(sábado)


Saiu daqui o helicóptero, a avioneta e dois bombardeiros [T6] para irem ter com o nosso pessoal que anda a fazer a operação no Siai.

Às 13 horas chegou o helicóptero com quatro feridos, dois brancos e dois africanos. Diziam que ainda havia mais feridos, por isso, às 14h00 chegou novamente o helicóptero com mais três feridos, e às 16h00 voltou novamente com mais três feridos, estes por uma mina que rebentou na coluna que ia buscar ao Ché-Che o nosso pessoal.

Um dos feridos foi o major do Serviço de Material [Luís Vasco da Veiga Ferreira Pedras] que foi levado directamente para Bissau, e os outros foram de avioneta.

Também ficou lá um furriel morto [Abílio Soares Jorge] e um soldado [Saná Quetá] todos da mesma companhia e ainda alguns feridos menos graves, que por ser já de noite não puderam ir busca-los.


Dia 14Jan68 (domingo) – às 7h00


Já o helicóptero tinha chegado com mais feridos, e às 8h00 chegou ainda com os restantes. Após o almoço chegou um carro da administração com um elemento IN morto, que apanharam em Piche, e a população fez um festival, quanto mais não fosse, para agradar às tropas.

Às 17h00 chegou a companhia e disseram que, quem tinha sido ferido foi o Aníbal enfermeiro e o Martins das transmissões, que foram para Bissau [HM 241], e talvez tenham que ir para a metrópole.

Houve mais oito feridos com menor gravidade, um era o alferes Magalhães e o furriel Amaro, sendo os restantes cabos e soldados, um deles era o Damásio Fonseca.

Também chegou a má notícia que o major faleceu ao chegar a Bissau, o furriel que morreu era da engenharia e o soldado era africano [Saná Quetá, do Pel Mil 161; natural de Ganguiró, Nova Lamego].


Dia 15Jan68 (2.ª feira) – às 7h00


De manhã estivemos a conferir o material que tinha chegado na noite anterior, e também pensávamos no soldado que estava em Bissau ferido, mas afinal estava desaparecido, foi o [António de Castro] Aguiar de "Arrifana".

(…)

3. - O QUE FOI ESCRITO A PROPÓSITO DAS OCORRÊNCIAS ACIMA, POR PARTE DO PAIGC  


Os casos relativos às ocorrências acima, que incluem os episódios de "combate" e o elemento "aprisionado" pertencente à CART 1742, foram analisados pelos responsáveis do PAIGC e publicitados no jornal «Libertação», edição n.º 87, de Fevereiro de 1968, cujo conteúdo se reproduz abaixo:



 


Para além do conteúdo acima, consta na capa desta edição do «Libertação» uma foto com quatro militares das NT feitos prisioneiros, desconhecendo-se os seus nomes. 
Dos quatro, quem será o António de Castro Aguiar, o "Arrifana"? Responda quem souber.

 



Fonte: Citação:
(1968), "Libertação", n.º 87, Ano 1968, Fevereiro de 1968, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral - Vasco Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44344, com a devida vénia.

 

3.1 - O INTERROGATÓRIO FEITO AO ANTÓNIO DE CASTRO AGUIAR


Na sequência de ter sido aprisionado na região de Siai, pelas forças do PAIGC, por se encontrar ferido, o camarada António de Castro Aguiar foi levado (presume-se!) para o hospital de Boké, onde lhe prestaram, certamente, cuidados de enfermagem, seguindo depois para a prisão de Conacri, passando a ser considerado como "prisioneiro de guerra".


Na condição de "prisioneiro", António de Castro Aguiar é interrogado pelos responsáveis do PAIGC, passando o resultado desse inquérito a fazer parte de uma coletânea, com outros depoimentos sobre o mesmo contexto, designada por «Falam os portugueses prisioneiros de guerra», Caderno n.º 2, cuja capa se reproduz abaixo, bem como as dez questões formuladas e as respectivas respostas dadas pelo camarada "Arrifana". 

 

 


Trata-se de um ublicação da FPLN - FrentePatriótica de Libertação Nacional, sediedade em Argel, reproduzindo declarações de militares portugueses feitos prisioneiros pelo PAIGC. A FPNL operava também a Rádi0 Voz da Liberdade.



Fonte: Citação:
(s.d.), "Guiné. Falam os portugueses prisioneiros de guerra", Fundação Mário Soares / DCN - Documentos Vítor Cabrita Neto, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_152453, com a devida vénia.

 

■ Depois de mais de trinta e quatro meses de cativeiro (correspondente a mais de um milhar de dias), António Aguiar - o "Arrifana" (nome da sua terra natal) - e mais vinte e três outros camaradas seus, conseguem finalmente recuperar a liberdade na sequência da «Operação Mar Verde», levada a cabo em 22 de Novembro de 1970, domingo.


■ Decorridos quarenta e quatro anos após a libertação da prisão do PAIGC, em Conacri, conhecida por "Montanha", eis António de Castro Aguiar (foto 1), ladeado por Abel Santos, à sua direita, e pelo ex-Alf Mil Magalhães, à sua esquerda, durante o Convívio da CART 1742, de 2014, organizado em Leça da Palmeira – P20201 (03Out2019).

 


Foto 1 - António Castro Aguiar, ao centro, durante o Convívio da CART 1742, de 2014, realizado em Leça da Palmeira. Foto do álbum de Abel Santos, com a devida vénia.

 


Foto 2 > CART 1742 > A secção do Abel Santos: Da esquerda para a direita: em cima: Furriel Pontes, já falecido; 1ºs Cabos, Loura e Costa; Soldados Cruz e Abel; Em baixo: Soldados Ferreira; Silva; Miranda; Aguiar ("Arrifana") e Soares, já falecido. (Cortesia de Abel Santos, Poste P20201)



► Fontes consultadas:

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª edição, Lisboa (2015).


 

Ø  (1) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07177.087. Título: Libertação. Número 87. Ano: 1968. Data: Fevereiro de 1968. Directores: Amílcar Cabral, Luís Cabral, Vasco Cabral e Dulce Almada. Observações: Órgão do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral - Vasco Cabral. Tipo Documental: IMPRENSA.


 

(2) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 02970.001.015. Título: Guiné. Falam os portugueses prisioneiros de guerra. Assunto: Caderno n.º 2, publicação da FPLN, em Argel, reproduzindo declarações de militares portugueses feitos prisioneiros pelo PAIGC – José Neto Vaz, José Manuel Moreira Duarte, José da Silva Morais, António Ângelo Duarte, David Gouveia Pedras, Luís Salvador, Antunes Almeida Vieira, Luís dos Santos Marques, Augusto Dias, Manuel Ferreira, António de Castro Aguiar, José Manuel Alves Vieira, Víctor Manuel Jesus Capítulo -, emitidas pela Rádio Libertação do PAIGC e pela Voz da Liberdade. - Contém ainda lista de prisioneiros do Caderno n.º 1, composta por Rui Rafael Correia, José Maria de M. Medeiros, Manuel da Silva, Agostinho da Silva Duarte, Manuel Augusto Leite da Silva, António Júlio Rosa, Manuel Marques de Oliveira, Geraldino Marques Coutinho. Data: s.d. Fundo: DCN - Documentos Vítor Cabrita Neto. Tipo Documental: Documentos.


 

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

 

Termino agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

04ABR2021

Guiné 61/74 - P22087: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (85): respondendo ao pedido de colaboração da doutoranda Sílva Espírito-Santo, biógrafa de Cecília Supico Pinto (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Foto nº 1 > Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) > O João Crisóstomo  e o Henrique Matos,o primeiro  comandante do Pel Caç Nat 52 (1966/68),  junto ao monumento comemoratvo dos 500 anos da chegada de Diogo Gomes ao Rio Geba


Foto nº 2 > Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) > 1966 > Visita da Cecília Supico Pinto


Foto nº 3 > Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) > 1966 >  Local de convívio da companhia: sentada, em segundo plano, a Cecília Supico Pinto; o capelão, de costas, dá-lhe as boas vindas; a sua secretária aparece èm primeiro plano, à esquerda.

 


Foto nº 4A  > Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) >  Aerograma  > Resposta do Movimento Nacional Feminino a um pedido do João Crisóstomo. Tem a data do correio de Lisboa, 18 de novembro de 1965 [?]
 

Foto nº 4B  > Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) >  Excerto do aerograma com resposta a um pedido do João Crisóstimi. Termina assim: "Com as nossas saudações académicas, Pela Secção de Apoio aos Milicianosm Maria do Rosário Domingues".


Foto nº 5 > Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) > Conteúdo do aerograma do MNF, datado de Lisboa, 17 de novembro de 1965



Foto nº 5A> Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) > Conteúdo do aerograma do MNF, datado de Lisboa, 17 de novembro de 1965. Excerto.



Foto nº 5B > Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) > Excerto aerograma do MNF, datado de Lisboa, 17 de novembro de 1965 e assinado por Maria Adelaide Sousa Secção de pedidos individuais.

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Mensagem de João Crisóstomo [, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67); é um luso-americano, natural de Paradas, A-dos-Cunhados, Torres Vedras; vive em Nova Iorque; e é um conhecido ativista de causas que muito nos dizem, a nós, portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes],


Date: domingo, 4/04/2021 à(s) 12:08
Subject: resposta ao pedido da Sílvia Espírito-Santis  a Luís Graça( blogue)
 

Prezada Sílvia,
 
Vi o seu pedido no blogue  e a resposta do Luís Graça (*).

Por razões evidentes  acredito que vai receber mais  respostas do que alguma vez imaginou. Aqui está a minha pequena colaboração. Limito-me a enviar alguma informação, 3 fotos e um documento que, pela suas perguntas,  acho mais pertinentes. 

Quanto às suas perguntas  "o que pensava", "o que sabia",   " como encarou as visitas", "efeitos nos ânimos" etc., deixarei que  outros, com mais facilidade  de expressão,  falem sobre isso, que o poderão fazer bem melhor do que eu.  
 
Eis aqui a minha resposta a algumas das suas questões:

(i) João Crisóstomo, residente em Nova Iorque, desde 1975;

(ii) Idade etc:  76 anos; nasci em Torres Vedras em Junho de 1944.

(iii) Serviço militar  como alferes miliciano. Entrada  em Mafra em 26 de Janeiro de 1964. Graduado  como  aspirante,  fui para  Beja onde preparei um pelotão; depois  fui para Lamego onde frequentei o curso de operações especiais (,tipo "Ranger") ; e daí fui para a Madeira em preparação para o Ultramar. Na ausência temporária do capitão da companhia,  fui eu que em 2 de Agosto de 1965  comandei esta companhia de madeirenses (CCaç 1439 ) na viagem para a Guiné,   aonde chegámos a 6 de Agosto de 1965. Regressámos a 18 de Abril de 1967.

(iv) Chegados a Bissau, fomos directamente para o Xime (agosto de 1965) ; um mês  depois, em Setembro, omos para Bambadinca e logo a seguir em Outubro fomos para Enxalé com os seus   destacamentos de Missirá  e Porto Gole.
 
(v) Em Porto Gole (, local onde os primeiros portugueses chegaram subindo o Rio Geba e onde se encontra um padrão alusivo, na data dos 500 anos da sua chegada, foto nº 1)  e onde estive várias vezes como comandante do destacamento, recebi a visita  [, em 1966,]  de Cecília Supico Pinto e sua assistente, trazida pelos fuzileiros devidamente acompanhada e protegida. Evidentemente que a visita, anunciada com antecedência,  trouxe aí nesse dia o comandante da Companhia, capelão e   médico do batalhão de Bafatá a que pertencíamos  e outros militares conforme foto que junto [, Foto nº 2].

(vi) As fotos nºs 2 e 3 foram dois dos momentos dessa visita. A 3ª foto (uma árvore frondosa, algumas mesas improvisadas, bancos feitos de troncos de cites, as paredes com fotos, recortes de jornais etc.) mostra o nosso local de lazer e diversão habitual ( e por este pode compreender o meu pedido ao movimento , conforme mencionado na resposta recebida, vd. Foto nº 5)  e foi neste local que demos as boas vindas à Supio Pinto( sentada num banco/cibe); a secretária  é a senhora de costas, no lado esquerdo da foto e comitiva.   O Capelão, de pé,  mesmo junto da Supico Pinto,  faz o seu discurso...  
 
 (vii) Consciente do papel  do Movimento,  cheguei mesmo a contactá-lo, pedindo suporte e apoio, na forma de presentes de Natal,  letras e músicas populares para ajudar com os nossos momentos de lazer  (quando os havia!), pois conhecidas canções populares  eram um meio que eu achava eficiente e usei várias vezes para  animar os meus soldados.
 
 Não sei se isto ajuda para o que pretende; espero não seja de todo irrelevante . Muitos outros lhe mandarão muito mais e melhor.

Guiné 61/74 - P22086: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (47): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2021:

Queridos amigos,
É o cerimonial do adeus, foi bem difícil a partida do Cuor, felizmente que na sobreposição se visitou Gambiel, Aldeia do Cuor, as imediações de Missirá, se vasculharam as permanentes necessidades de Finete. Deixaram-se as contas regularizadas, era o mais importante, para não virem mais tarde reclamarem capacetes ou baionetas em falta à carga. A nossa estranhíssima memória das coisas levanta questão labirínticas, no meu caso continuo sem perceber como for possível reproduzir aquela noite com lua em que me despedi de Mato de Cão e arredores, havia maré-cheia ainda noite cerrada e regressou-se ao romper da alva, viveram-se todos os sons que a mata emana, os murmúrios do Geba, a entrada em Missirá em marcha trôpega quando a população civil se entrega às tarefas no sol esplendente do raiar da manhã. Pois assim aconteceu, talvez tenha sido lenitivo para a partida, não se vive impunemente mais de 16 meses sem detença naquele território, convivendo ombro a ombro a vida e a morte com velhos e crianças, gente da nossa idade, situações de perigo ou risco, e se sonha, antes de vir a paz, que as crianças e os adultos aprendam a ler, possam ir ao médico, esperar dias melhores, foi esse o trem da vida, a consigna daquela presença, com os melhores votos de esperança na hora da partida.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (47): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Inoubliable Annette, lumière de mon coeur, devido ao período letivo, ao trabalho da Função Pública e aos preparativos da documentação para a próxima Assembleia-Geral da Associação Europeia de Consumidores, não tenho tido parança, às vezes um tanto trôpego ando a catar em velhos dossiês o material remanescente da comissão na Guiné, tenho sido afortunado com elementos que fui enviando na minha correspondência, peço à família e amigos e por isso os posso revelar, às vezes as cópias não são boas, caso destas duas imagens que o meu amigo Sousa Pires me facultou mas que permitem visualizar o interior de Missirá e uma perspetiva da fonte de Cancumba, vital para o nosso fornecimento de águas, para a higiene das mulheres e crianças.

Como cronologicamente estou em vias de abandonar Missirá, caminhamos para 14 de novembro, nesse dia o meu pelotão de caçadores nativos partiu e chegou outro, vou ficar vários dias para ajudar a aclimatar o meu camarada Alves Correia à atmosfera do Cuor.

As impressões que te vou deixar são muito íntimas, nós já temos conversado sobre coisas que aconteceram antes de eu partir para a Guiné, lembra-te daquele caviloso inquérito que me foi instaurado por ter havido informação de que eu era “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”, e que esteve na base de eu ter ido para a Guiné em rendição individual, como me disse o major “Vá lá infetar os pretos com as suas ideias políticas”. Falei-te igualmente das conversas que tive com o meu amigo José Manuel Medeiros Ferreira, pertencíamos à mesma unidade militar, ele sugeriu que eu desertasse com ele, tivemos conversas muito dolorosas, reatámos relações quando ele veio de Genebra, depois do 25 de Abril. Tenho procurado centrar-me só na comissão na Guiné, reconheço que tu tens razão, não se pode concluir esta narrativa no dia em que regressei, em 1970. Havia os sinistrados a viver em Lisboa, com quem convivi. Depois de um mês de férias, fui dar duas recrutas a Mafra, fazia parte de um contrato que estabeleci com o Ministério do Exército para depois ter tempo para acabar rapidamente a licenciatura, como aconteceu, e o ministrar a minha experiência aos soldados-cadetes teve poder catártico, útil para eles se aperceberem da dureza da guerra, útil para mim por transferir a vivência na preparação de quem em breve ia para a guerra. Meu adorado amor, a saída do Cuor desorientava-me profundamente, não era impunemente que ganhara aquelas raízes afetivas, e não tinha qualquer ilusão que a ida para Bambadinca não era uma viagem para as terras de leite e mel. E agora passo ao papel a minha derradeira viagem a Mato de Cão, o que se passar a seguir são atos de acompanhamento, em termos operacionais, da dita aclimatação das tropas do Alves Correia aos territórios do Cuor que percorríamos em permanência.

Saio pela calada da noite pela porta de Sansão, está prevista a passagem de um comboio de embarcações qualquer coisa como as três, quatro da manhã. Temos umas boas horas de marcha e o luar a nosso favor. Anuncia-se a época seca, e vamos a corta-mato pela bolanha entre Caranquecunda e Sansão, sempre a corta-mato descemos até Maná, flanqueia-se a estrada até Canturé, caminha-se sobre a picada até Gambaná, não há perigo de pisar minas, é tudo pedra, até parece lajedo. Com o seu olhar apurado, beneficiando do luar, Cibo Indjai chama-me a atenção para as pegadas de vaca na terra seca. É uma noite muito amena, o ar respira-se sem dificuldade, levamos todos só a camisa de camuflado, o suor evapora-se e logo a seguir emerge um suor oleaginoso. Atravessamos o palmeiral de Chicri, com toda a prudência subimos para o Planalto de Mato de Cão, posicionamo-nos em meia-lua, sempre com dois observadores nos extremos, de pé, só assim será possível detetar possíveis movimentos de aproximação de gente que venha de Madina. E ficamos à espera, ouvindo o Geba caudaloso, o murmúrio das águas já a galgar o tarrafo, prenúncio da maré-cheia, é ela quem vai propiciar a passagem das embarcações civis. Como de costume, ouvem-se os gemidos das hienas, o restolhar dos corpos do mato, o piar das aves noturnas, os estalos do arvoredo. Em plena madrugada, somos despertados pelo ronco dos motores, primeiro um zumbido quase suave e persistente, depois uma zoada sempre em aproximação. É um espetáculo fantasmático, vemos passar as sombras das embarcações, batelões da Casa Gouveia. Acontece que o luar é intenso, metaliza as águas, correm sem estrépito, é uma sonoridade monótona, pressinto que nunca mais viverei tais sensações. Beneficiando agora de um luar mais intenso, volto-me e despeço-me do Planalto de Mato de Cão, vejo à distância o sombreado dos palmares em volta, pergunto-me quantas vezes vim a este local, sempre com o coração contrito, se houve aprendizagem para a prudência que jamais esqueci e nunca tergiversei foi esta aproximação e esta retirada, direi sempre com orgulho que só por bambúrrio da sorte podíamos ter sido emboscados ou sujeitos a mina antipessoal. E olho também lá para o fundo, como se estivesse a ver a estrada que nos leva a Saliquinhé, S. Belchior e até ao Enxalé, sempre a beijar o rio, depois da fronteira do Cuor. E assim regressamos com os primeiros alvores de um vermelho enfarruscado, depois a mata incendeia-se com o súbito aparecimento do sol. Como sempre acontece, o nosso percurso de regresso nunca é igual ao anterior, desta vez descemos até à tabanca abandonada de Mato de Cão, subimos junto a Chicri, vamos a corta-mato até Gã Gémeos, e quando a manhã rompe em todo o seu esplendor entramos aos baldões em Missirá, já mulheres e homens partem para as culturas ou para as lavagens, a vida retoma-se dentro do perímetro vegetal, e quero que tu saibas, minha adorada, que guardo êxtase deste momento, e aquele sentimento contraditório de quem aqui penou e agora parte contristado.

Como vão ser os últimos dias em Missirá, Annette? Efetuou-se toda a operação da transferência, quem entra e quem sai não vai esquecer que houve um cerimonial de curto-fogo por parte de um grupo de guerrilheiros do PAIGC que lançaram morteiradas um pouco abaixo da fonte de Cancumba, parecia uma praxe, mas vinha na sequência de um conjunto de pequenas e quase inócuas flagelações que ocorreram entre outubro e novembro. Desse período de 14 a 19 fico sozinho em Missirá, melhor dito ficou também Ussumane Baldé, o meu guarda-costas interino, que me irá ajudar a arrumar os trastes, a limpar o pó dos discos, a embalar os livros, os meus haveres são de fresca data, tudo quanto trouxe o fogo devorou, são haveres recentes. Bens de valor só os nossos valores, a nossa cultura e o amor de Deus passado aos homens.

À chegada, o Alves Correia dá-me uma informação surpreendente, trazia instruções do major de operações para desencadear, no amanhecer de 16 de novembro, a Operação Truta Vivaz, iria colaborar um grupo de combate da CCAÇ 12, 60 homens iriam fazer um patrulhamento ofensivo percorrendo um bom terço do território do Cuor. À cautela, e com a maior discrição, conversei com o guia Quebá Soncó, o pelotão 54 encontrar-se-ia com a força da CCAÇ 12 em Finete, ao amanhecer do dia 16, olhando para a carta, sugeri o itinerário, um tanto cansativo até à tabanca de Sinchã Corubal, nada de aventuras em direção a Madina, e descer-se-ia em direção a Chicri, lembrei-lhe aquela emboscada noturna em que seguimos exatamente este itinerário, fizemos a vida negra a um grupo que vinha de Madina sabe-se lá se para Mero se para os Nhabijões, e retirando para Chicri. Fiquei em Missirá com o pelotão de milícias. Aproveito para acompanhar umas obras, vou-me despedindo das famílias Soncó e Mané, tomo chá com Lânsana Soncó, falamos nos nomes das árvores, fiquei finalmente a perceber a diferença entre pau-conta e pau-incenso, pau-veludo, pau-bicho, farroba e calabaceira. Convido o régulo para jantarmos em privado, devolvo-lhe o anel de Infali Soncó, só Malã é que tem dignidade para usar este anel, começa por protestar, depois reconsidera, mas não deixa de me recordar que eu passei a ser um Soncó. E iremos os dois pela última vez passar juntos na mesquita.

A Truta Vivaz correu sem incidentes. A 18 vamos até à ponte do rio Gambiel e vistoriámos, o Alves Correia e eu, tudo quanto está no depósito de víveres, lençóis e fronhas, caixas de munições. A 19 bem cedo, fui mostrar-lhe as zonas geminadas e armadilhadas em Morocunda e Mato Madeira, dali seguimos para o último itinerário, a Aldeia do Cuor. Almoçámos muito cedo, a coluna que me leva tem que vir à luz do dia. Aceno a todos a despedida, a miudagem acompanha-me ruidosamente até à Porta de Armas. Vou na caixa da viatura, de pé, quero despedir-me do Cuor, guardar-lhe a essência dos odores, dos tons do arvoredo, do fio da picada que se estende até Canturé, vejo as toranjas no arvoredo frondoso, os imensos morros de bagabaga, guardo a imagem dos limoeiros e dos cajueiros em flor, prossegue a viagem pela imensa linha reta ladeada de belos poilões até à ladeira de Finete. Procuro reter tudo, como se a vista pudesse empapar-se como um mata borrão e até reter a panorâmica na bolanha de Finete, em que se avista lá ao fundo, no alto, Santa Helena. A despedida em Finete também não foi fácil, despeço-me a chorar daquela criança cujo processo acompanhei, Abudu Cassamá, tem as suas costas retalhadas pela explosão de uma granada incendiária. Já chegámos ao rio Geba, despeço-me de todos que me acompanharam, é o último olhar para o Cuor, agora é só voltar as costas, entro na canoa, troco uns arremedos de conversa com Mufali Iafai, subo a rampa de Bambadinca, sei de ciência certa que começa neste exato momento uma nota etapa da minha vida.

Estou a preparar-me para te telefonar amanhã à noite, sei que passas o dia no Luxemburgo. Há dias estranhaste o meu tom de voz, tinha mesmo a voz embargada, é o frémito das saudades, traduz-se nas tremuras da voz, é como se ficasse descompassado, preciso tanto de ti, sei que só me dás alento, temos os nossos projetos em marcha, mas preciso doidamente de ti. E mais não digo. Bisous, Paulo

(continua)

Duas imagens cedidas pelo meu amigo Sousa Pires, furriel em Missirá e um colaborador dileto.
Sem a água da fonte de Cancumba a vida em Missirá era impossível. Todos os dias, no mínimo duas vezes, uma secção ia buscar bidões, jerricãs e garrafões. Na véspera de eu chegar a Missirá (3 de agosto de 1968) veio gente de Madina deixar propaganda e avisos sinistros. Até fins de outubro de 69, registei por seis vezes a presença do inimigo, aqui. Nunca envenenaram a água. Montávamos segurança para as mulheres lavarem a roupa e abastecerem-se. Era ali que elas tomavam banho com as crianças, recusaram sempre o balneário de Missirá.
O grande tormento era quando o Unimog 404 ou o burrinho, o 411, estavam avariados. Então, meia Missirá arrastava os bidões ida e volta, operação penosa só compensada pelo banho frio, muitas vezes a cheirar a petróleo. O Furriel Pires veio à fonte tirar a fotografia para celebrar a cabeça rapada.

O colorido da festa, mulher Futa-Fula exibindo belos adornos
Balantas trabalhando na construção de um orique, imagem publicada no livro Raízes, edição da Fundação Mário Soares, depois da recuperação feita de negativos afetados pelas destruições feitas nas instalações no INEP pelas tropas senegalesas durante a guerra de 1998-99
Azáfama no Cais do Xime, a sua construção revolucionou o abastecimento de toda a região Leste
O Cais do Xime inaugurado em 1969, já em grande fase de degradação, ambas as imagens pertencem ao blogue
Mal chegado a Bambadinca, novembro de 1969, vida nova, mas longe do muitíssimo amado regulado do Cuor
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22060: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (46): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22085: FAP (124): António Galinha Dias, o ex-fur mil pil, que fez a helievacuação do cap cubano Peralta, em 18 de novembro de 1969 (Miguel Pessoa, cor pilav ref)


Foto nº 1 A > Mira-Sintra / Meleças > 2018 > O ex-fur mil pil António Galinha Dias, BA 12, Bissalanca, 1968/70. É hoje sócio-gerente da firma Agroar - Trabalhos Aéreos Lda. com sede em Évora.


Foto nº 1 >  Mira-Sintra / Meleças > 2018 > Convívio de pessoal da FAP que voou na Guiné. O segundo a contar da esquerda é  ex-fur mil pil António Galinha Dias, que fez a helievacuação do cap cubano Pedro Rpodriguez Peralta, em 18 de novembro de 1969, sendo a enfermeira paarquedista a Maria Zulmira.

Foto (e legenda): © Miguel Pessoa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Mensagem do Miguel Pessoa, herói dos céus da Guiné, ferido em combate por um míssil Strela, ex-ten pilav, BA12, Bissalanca, 1972-74, hoje cor pilav ref, com mais de 2 centenas de referências no nosso blogue:

Date: quinta, 8/04/2021 à(s) 14:50
Subject: Piloto do heli que evacuou o Peralta (*)

Olá, Luís.

Encontrei esta foto do Galinha Dias,  tirada num convívio de pessoal que voou na Guiné, realizado em 2018. 

O Galinha Dias é o 2º da esquerda, de blusão cor de tijolo [. Foto nº 1, acima]

Abraço.  Miguel
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Guiné 61/74 - P22084: Parabéns a você (1949): Jorge Canhão, ex-Fur Mil Inf da 3.ª C/BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74); Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68) e Cor PilAv Ref Miguel Pessoa, ex-Ten PilAv da Esquadra 121/GO 1201/BA 12 (Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22071: Parabéns a você (1948): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp da CART 3492/BART 3873, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15 (Xitole, Mato Cão e Mansoa, 1971/73)