1. Vigésimo sétimo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:
Do Ninho D'Águia até África (27)
O perfume exótico das
filhas do Libanês
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O Cifra, na qualidade de militar que foi mobilizado pelo
governo de Portugal, para ir defender a então “Mãe Pátria” e a
“Soberania Portuguesa” além-mar, tal como aprendeu na escola
primária da vila a que pertencia a sua aldeia do Ninho d’Aguia,
que frequentou por quatro anos, onde o professor lhe explicava,
e tinha que fazer uma
redacção sobre o tema,
que os heróis que se
aventuraram por “mares
nunca antes
navegados”,
descobriram aquelas
terras selvagens, que
“cristianizaram”,
viajando numa “casca de
noz”, e tinham em mente
somente educar e
cristianizar, esses
povos também selvagens,
mas que mais tarde,
principalmente depois de frequentar outras escolas de ensino, no
estrangeiro, e depois de conviver com outras culturas, verificou
que não eram esses os principais objectivos, do reino de
Portugal, e veio a saber que essas expedições por “mares nunca
antes navegados”, era o investimento de governos e empresas, que
entre si, disputavam e queriam dividir diversas zonas do globo,
tal como se nada existisse, a não ser a sua vontade, para
subjugarem um povo que vivia com as suas leis, e talvez com a
sua guerra, ou com a sua paz, mas que só a eles dizia respeito,
e tinham uma cultura de milhares de anos, nesses territórios,
que estavam localizados em diversas partes do globo, e muito
longe da Europa, onde existia o reino de Portugal.
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Mas continuando e sem querer cortar o fio à meada, o Cifra
desembarcou nesta então província do Ultramar Português, que era
a Guiné, não saindo
de uma “casca de
noz”, que viajava
ao sabor do vento,
quase sempre com
terra à vista, mas de um navio,
que viajava no mar
alto, a poder de
motores a diesel,
não transportando
padrões em
granito, com a
cruz de Cristo,
arreios, cavalos,
espadas e lanças,
mas sim auto metralhadoras,
lança granadas, aviões que lançavam bombas de napalme e outro
material bélico e explosivo, transportado em camiões de seis
rodados, a gasóleo e outros combustíveis, não vestido como se
fosse um navegador, mas sim vestido de camuflado de combate,
(gravura em cima, com a G3 e o capacete de guerra do Setúbal,
pois a ele nunca lhe deram um capacete, e ele também nunca o
pediu), treinado para um conflito, embora fosse um razoável
militar, era um fraco guerreiro, e ainda bem porque a sua missão
era ser operador cripto.
Ficou estacionado na vila de Mansoa, passado algum tempo, já
conhecia parte da população, pois no seu tempo livre, andava por
ali, falava com este e com aquele. Numa dessas ocasiões,
passando de fronte da igreja que havia na vila, no seu
pensamento recordou a frase que tinha aprendido na escola
primária, que era mais ou menos, “cristianizaram esses povos
selvagens”, e de facto era verdade, pois logo a seguir à ponte em
cimento, sobre o rio Mansoa, a obra mais emblemática da vila era
sem dúvida a igreja, foto em baixo. Reparando melhor, a igreja
sobressaía das demais casas, algumas até pareciam casebres,
podia não haver outras infraestruturas na vila, e a população
ser quase toda de outra religião que não a católica, mas igreja
havia, não havia Padre, era verdade, mas com a chegada de
militares, vinha um capelão, periodicamente da capital da
província, e havia missa, pelo menos uma vez por semana, lá
nesse aspecto, se não cristianizaram, pelo menos tentaram.
Mansoa > Igreja Católica
Mas passamos adiante. O Cifra até gostava de assistir à
missa, gostava de entrar na igreja e gostava do cheiro, não
sabia se era ao mofo, se era ao incenso, ou se era do perfume
exótico das filhas do Libanês, também gostava de ouvir o Padre,
pois não falava de mensagens, de cifra ou de guerra, falava de
milagres e algumas outras coisas bonitas e dizia constantemente
que Jesus Cristo era muito boa pessoa, e o Cifra até simpatizava
com Jesus Cristo e pelas coisas que o Padre dizia, achava mesmo
que gostava de o ter conhecido, só não gostava era de o ver com
aquela cara de sofrimento, com as mãos e os pés perfurados com
pregos, e com a coroa de espinhos na cabeça, fazia-o sofrer
também só de pensar nisso. O Padre dizia que ele sofreu e lutou,
e como o Cifra também estava numa zona de conflito, onde se
sofria e lutava, às vezes colocava a mão na testa e ao redor da
cabeça, a ver se tinha também uma coroa de espinhos.
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Mas enfim, vamos continuar. Se fosse à semana, quase sempre
a missa era ao fim da tarde, quando a temperatura era mais
fresca, mas ao domingo era pela
manhã, normalmente assistia à missa
na companhia do Setúbal e do Curvas,
alto refilão, pois o Trinta e Seis,
baixo e forte na estatura, e o Mister
Hóstia, ajudavam o Padre e andavam
sempre ocupados, antes e depois da
missa.
O Cifra, foto ao lado na
frente da igreja, até recorda uma
vez em que o Mister Hóstia lhe
pediu o isqueiro para acender as
velas, e no final teve que andar à
sua procura, a cruzar o altar e ter
sempre que se ajoelhar de cada vez
que o fazia, pois o Mister Hóstia
não lhe dava qualquer atenção, com o
seu trabalho de dobrar as toalhas,
arrumar o frasco do vinho, que tinha
servido para celebrar a missa. Quando levou o frasco do vinho, foi o
único momento em que olhou de lado para o Cifra, enfim tentava
limpar e arrumar tudo.
No final, já fora da igreja, quando lhe
entregou o isqueiro, disse-lhe:
- Fiz de propósito, pedi-te o isqueiro, para depois me
procurares, pois sei que não passas um momento sem esse maldito
cigarro na boca, e teres de te ajoelhar, por diversas vezes,
perante Jesus Cristo, para veres se o respeitas mais, pois tanto
tu como o Setúbal e o Curvas, alto e refilão, são umas almas
perdidas, durante a santa missa só tinham olhos para as filhas
do Libanês.
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 13 de Novembro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10661: Do Ninho D'Águia até África (26): Raízes de agricultor (Tony Borié)