Queridos amigos,
É uma mera referência histórica, permite tomar contacto com os dotes excepcionais desse comunicador que foi Amílcar Cabral.
Se há dado da sua personalidade que eu gostaria de aprofundar ou discutir com intelectuais portugueses e guineenses é o da divisa unidade em torno da Guiné e Cabo Verde que ele considerava um dado inquestionável.
Como se sabe, são hoje raríssimas as vozes que apoiam o sonho de Cabral. Mas o que se questiona, para além da legitimidade do sonho, é se o líder, bem como os demais líderes históricos, não tinham consciência da inviabilidade do percurso e do profundo nível de antagonismo existente entre os dois povos.
Um abraço do
Mário Beja Santos
Um exemplo da comunicação prodigiosa do dirigente Amílcar Cabral
por Beja Santos
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São alocuções que se lêem de um só fôlego, e quase se sente a vibração, a entoação, a sensibilidade do orador (não esquecer que tudo quanto se está a ler nem revisto foi pelo seu autor, foi pura e simplesmente transcrito de um gravador). É o prodígio de quem se quer fazer persuadir pela razão e pela força das convicções, pelo ardor dos combatentes que tem diante dele. Pelo uso da linguagem, clara e acessível; pelo recurso das imagens, pela consistência da língua, um português de primeira água. Sabendo que há causas que ele defende cuja argumentação era (e continua a ser) discutível, da base ao topo, é inquestionável que Amílcar Cabral sabia medir e captar as audiências. Logo na primeira alocução, o líder do PAIGC debruça-se sobre a “Unidade” e “Luta”, as divisas do partido. Explica como as pessoas são diferentes, fala numa equipa de futebol e na unidade que é necessário ter para obter resultados. E explica como a união faz a força, daqui saltando para uma divisa para ele obsessiva: a unidade da Guiné e Cabo Verde, condicionando a libertação de uma a outra. Passando para a luta, define o colonialismo, as contradições de quem apoia o colonialista, as vicissitudes de quem alinha com a libertação. Refere as bases de apoio de um lado e do outro, defende, justificando, a inexistência de um proletariado do tipo ocidental, apela a uma unidade de forças de diferentes classes, de diferentes elementos da sociedade. Empolgado e sempre a contrariar a história, considera que, por natureza, por história, por geografia, por tendência económica, até por sangue, a Guiné e Cabo Verde são um só. Resta perguntar, à distância destas décadas, o que levou um homem sagaz, de cultura superior, a dizer tais enormidades sobre uma união que nunca existiu. E que todos os líderes africanos, de qualquer proveniência, sabiam não existir. E acena a um espantalho: o imperialismo quer separar a Guiné de Cabo Verde exactamente para manter a submissão. E termina a alocução animando os quadros a perseguir a luta para a conquista da liberdade e a construção do seu progresso e felicidade na Guiné e Cabo Verde.
Na outra alocução, Amílcar Cabral apela ao conhecimento da realidade para que a luta da libertação triunfe rapidamente, na base da unidade. Essa realidade era a Guiné e Cabo Verde e argumenta: “Uma coisa muito importante numa luta de libertação nacional é que aqueles que dirigem a luta, nunca devem confundir aquilo que têm na cabeça com a realidade… Eu posso ter a minha opinião sobre vários assuntos, posso ter a minha opinião sobre a forma de organizar a luta, de organizar um partido. Mas eu não posso pretender organizar um partido, organizar uma luta de acordo com aquilo que tenho na cabeça. Tem de ser de acordo com a realidade concreta da terra. Não podemos pretender, por exemplo organizar o nosso partido de acordo com os partidos de qualquer país da Europa. No começo da nossa luta, nós estávamos convencidos de que se mobilizássemos os trabalhadores de Bissau, de Bolama, de Bafatá, para fazerem greves, para protestarem nas ruas, para reclamarem na administração, os tugas mudariam, nos dariam a independência. Mas isso não é verdade. Em primeiro lugar, na nossa terra, os trabalhadores não têm tanta força como noutras terras. No campo era quase impossível fazer guerras, dadas as condições da situação política do nosso povo e até de interesses imediatos do nosso povo. Assim, tínhamos que adaptar a nossa luta a condições diferentes à nossa terra, e não fazer como se fez noutras terras. Mesmo na questão da mobilização tivemos que considerar o problema na Guiné de uma maneira e em Cabo Verde de outra maneira”. Impetuoso, imaginativo, o líder regressa a 1962, quando o PAIGC ainda não tinha armas e cerca de 200 quadros estavam a ser preparados no exterior. Lembra a complexidade do mosaico étnico, a necessidade dos quadros se movimentarem de uma região para a outra para conhecer a realidade e recorda que não há sucessos militares sem um trabalho político adequado. Recorda ao auditório que o homem chegou à Lua e regozija-se porque a realidade dos outros têm grande importância para o evoluir da luta do partido. E passa para a descrição da realidade geográfica, económica, social, cultural da Guiné e Cabo Verde. É impossível não se ficar surpreendido, à distância destas décadas, pela sua capacidade em distinguir o que é dissemelhante e o que é controversamente complementar.
Lendo as intervenções de um homem que será assassinado quatro anos depois, sabe-se lá se por alguns dos quadros que os estão a ouvir em 1969, em Conacri, é impossível contornar o magneto de um líder que estava absolutamente convicto que criara a coesão entre guineenses e cabo-verdianos. Termina lembrando aos seus camaradas as condições em que formara o PAIGC e o cepticismo na maior parte dos seus amigos que lhe disseram que tudo aquilo era uma doidice. Doidice ou não, Amílcar Cabral recorda aos presentes que a formação do PAIGC em tais condições adversas fora o ponto de partida para uma realidade nova.
Trata-se de um testemunho histórico de belas peças de oratória num português irrepreensível, o que não surpreende para quem conheça a sua obra política e científica, a partir dos anos 50.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6747: Notas de leitura (131): Cambança Guiné Morte e vida em maré baixa, de Alberto Braquinho (Mário Beja Santos)