sábado, 25 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25559: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (29): Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


Lourinhã > Grafito > 24 out 2020 > Uma quadra atribuída a  Fernando Pessoa, num parede de um prédio devoluto já entretanto demolido: "A terra é feita de céu./A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu./Tudo é verdade e caminho".

Foto: © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Contos com mural ao fundo> Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!

 por Luís Graça (*)


Foi só largos meses depois, na ida à  consulta anual de vigilância a que o doente oncológico fica sujeito, no IPO de Lisboa,  que tu vieste a saber da morte desse teu conhecido... 

Dele não guardavas, para seres sincero, as melhores recordações. Era um tipo de quem sentias pena e asco, ao mesmo tempo (e sem saberes  bem por quê). Tinha sido doente do IPO, tal como tu, antes da pandemia, lá já vão uns bons anos.

Era alguém, um bocado "bronco", que fazia gala de dizer às "meninas", às médicas, às enfermeiras e às radioterapeutas que “tinha sido pegador de touros e ainda gostava de montar” (a cavalo) !...

Uma dos profissionais do IPO, tua conhecida,  que ainda se lembrava dele, comentou:

− Era uma figura patética, para o fim da vida. Mas era popular no IPO, uma figura do passado, um marialva à moda antiga... Cirandou por cá ainda uns tempos. E acabou até por morrer cá. 

Foi bravo na morte, disseram-te. Tu sempre o achaste, para além dessa faceta de marialva "démodé", um bocado exibicionista e histriónico. Precisava de palco. Mesmo no fim. Mas nessa altura, ele devia estar muito longe de saber que ia morrer… Bem pelo contrário. (Afinal, quem sabe onde e quando vai morrer?!)... E tinha-se voluntariado (?) para um ensaio clínico. Não chegaste a saber se fora aceite…

Descobriste que tinham, afinal, tu e ele, em comum um conhecido. Da terra dele. Mas o que mais vos aproximou foi, de facto, o IPO, que frequentaram juntos durante algum tempo. Enfim, encontraram-se ainda algumas vezes, na radioterapia... e no bar.

Abreviando a história:  ele acabou por te confiar umas fotocópias de um caderno com as suas memórias. Ainda eram umas largas dezenas de páginas, talvez perto da centena. Pediu-te um “parecer”. Achava que tu tinhas pinta de crítico literário. Só  por usares óculos e andares sempre com um livro debaixo do braço. No fundo, confiou em ti. Não sabes bem por quê, nunca lhe disseste, de resto,  o que fazias na vida… 

Ele queria saber se valeria a pena publicar a sua “história de vida”, em livro. E “ainda em tempo útil” (sic), à medida que o tratamento não parecia estar a resultar… Tinha um tique: olhava para o relógio como se estivesse a cronometrar o tempo de vida que lhe restava…

Os direitos de autor, segundo a sua vontade expressa, seriam entregues à Liga dos Amigos do IPO, instituição onde tinha sido “tratado por anjos” (sic). E ele era um sedutor e desfazia-se em lisonjas para quem cuidava dele.  Ou lhe dava trela, como era o teu caso.

Comentaste, mais tarde, este caso com um teu amigo psicólogo, psicoterapeuta, com nome na praça, e que te perguntou no fim:

−Está bem, mas diz-me então, tu que leste o manuscrito com a sua história de vida: o teu conhecido encaixava-se em que tipo da 'fauna humana' ?

Respondeste-lhe no mesmo tom de chalaça e non-sense:

−Não sou bom em zoologia e muito menos em taxinomia… Podes pô-lo na gaveta do 'acelera', do caceteiro, do energúmeno, do vilão, do brigão, do “mau da fita”, do “lobo mau” da história do Capuchinho Vermelho… Isto por alguns histórias dele (ou que soubeste dele por um amigo comum)... Histórias que ele provavelmente nunca contaria aos netos (nem deveriam ser  motivo de orgulho para os filhos)...Podia ter sido marialva e pegador de touros, um valentaço, e ser um gajo minimamente decente, com valores, com princípios, 
com ética, com bom senso e bom gosto…

−Também não gosto de catalogar ninguém às primeiras impressões… Mas arriscava-me a dizer que o teu conhecido não passava de um reles predador…

− Predador ?!...

− Sim, como a hiena… Tu que andaste pela Guiné, sabes que lá chamavam (ou ainda chamam) “lobo”, em crioulo, à hiena, um animal desprezível,  fedorento, caçador oportunístico... O que eu acho que é uma ofensa para o pobre lobo, para mim um animal nobre e altamente social…

− A hiena também o é, um animal social, é extremamente eficaz a caçar em grupo, como o lobo em alcateia… Talvez o epíteto seja bem aplicado neste caso… 

E acrescentaste:

− Podia contar-te histórias do pequeno cacique, capacho dos agrários, ricos e poderosos, capanga, como dizem os brasileiros…, que ele acabava de deixar transparecer, nas entrelinhas... Talvez pela compulsão de se mostar subserviente para com os  ricos, fortes e poderosos... e valentaço aos olhos dos mais fracos. Era o fruto de uma época, de um regime...

Foi mais ou menos nestes termos que tu descreveste, numa bela manhã de  sábado, em que se encontararam, tu e o teu amigo "Psi",  por acaso,  numa visita a um exposição temporária na Fundação Calouste Gulbenkian (se bem te recordas, sobre o "Cérebro", em meados de 2019), quem era essa tal “hiena” da tua pequena história… 

Oriundo da pequena burguesia rural da província, ali do Médio Tejo, na fronteira entre a Estremadura e o Ribatejo, era o que se podia chamar uma figura recorrente da pequena história da nossa História, com H grande. Sobretudo dos períodos mais conturbados como o foram a “aventura dos Descobrimentos”, as guerras, as invasões (com destaque para as francesas), as revoluções, enfim, todos os períodos de convulsão social, a guerra civil fratricida, como a dos tempos do Liberalismo, as lutas liberais de 1828-1834, a Maria da Fonte e a Patuleia, em 1846/47, ou ainda do tempo República ou e depois dos anos 20/30 que levaram à ascensão da Ditadura Militar e ao Estado Novo… Mas também, mais recentemente, a guerra colonial, o fim do salazarismo e do marcelismo, o 25 de Abril, o Verão Quente de 75…

Nos anos 50 o nosso homem tivera a sorte de poder fazer mais do que a quarta classe do ensino primário. Abrira um colégio privado lá na terra (uma vilória na margem direita do rio Tejo), o pai "pô-lo a estudar", como então se dizia. Deve ter feito o 2º ano, no máximo. Revelou-se desde cedo um arruaceiro, envolvendo-se facilmente “à porrada” com colegas e professores. Claro, foi expulso, e de algum modo fazia gala disso. É ele próprio que o conta nas suas memórias, sem pudor nem arrependimento.

Na época mandavam-se estes casos, quem tinha algumas posses, para o Colégio Nun'Álvares, ali perto, em Tomar. O pai lá fez o sacrifício, na secreta esperança de o corrigir e de “fazer dele um homem”… O pai, nortenho, conservador,  tinha o desgosto de ter um filho "corrécio" (sic)... Deve ter vendido mais umas jeiras de terra da herança da mulher (que essa, sim, é que tinha algo de seu, com restos de família fidalga em Alenquer). O gosto por touros e cavalos (e carros)  deve ter vindo desses tempos. 

Mas tu sabias pouco do seu passado, baseavas-te no que ele te contara, no seu manuscrito, ou numa ou noutra conversa avulsa. E algumas confidências enojaram-te, como as suas alegadas "conquistas amorosas".

Ofereceu-se para a Força Aérea, andou por lá os seis anos da praxe, como “mecânico de aviões” (sic). Se bem percebeste passou por Cabo Verde e Angola. Nunca te deu pormenores sobre a sua passagem por Angola, já em plena guerra. Sabes, isso, sim,  que aprendeu "uns truques de boxe". Passou a confiar na sua estrelinha da sorte e nos seus punhos (e no pedal: era um "acelera"...).  Mas foi o fator C que lhe abriu as portas de um emprego civil, com ordenado certo ao fim do mês, quando regressou de Angola em 1962. O veterinário municipal da terra, que era um cacique da União Nacional, deu-lhe uma mãozinha...

Passou a vender produtos zoofitossanitários e veterinários, percorrendo boa parte da Estremadura e do Ribatejo. Os porcos e as galinhas estavam então em explosão demográfica.  Percorria suiniculturas e aviculturas do Oeste. Apresentava-se também como delegado de propaganda médica veterinária... Habituou-se à vida de “caixeiro-viajante”, e à liberdade que isso lhe proporcionava, ficando semanas inteiras fora de casa. Não sabes se, à boa maneira dos tradicionais "caixeiros-viajantes", que nessa época ainda calcorreavam a província, chegou a ter duas famílias em dois sítios diferentes. Confirmou-te, isso, sim, que tinha os seus “arranjinhos por fora” (sic), ao longo do caminho de casa…

Nunca deu para perceber se estavas na presença de um sociopata. Pelo menos,  ele nunca terá chegado a ter problemas com a justiça (paraa além, eventualmente, das multas da Brgada de Trânsito)… Também já o conheceste na fase terminal da sua vida. Mas sabias que ele nunca contaria "a verdade toda"... Sobretudo gostava de ficar "bem na fotografia". Teria alguns traços do sociopata, no mínimo fora um homem violento. E, na verdade, não parecia nutrir sentimentos de compaixão pelos outros.

Contou-te (mas não deixou isso escrito nas suas "memórias") que atropelara mortalmente um “pobre diabo” (sic)... Na Estrada Nacional nº 1, na reta da Benedita, de noite. Numa noite de temporal. "Sem culpa"..., apressou-se a acrescentar. Mas nem sequer parou, para prestar socorro à vítima. “Ia a mais de 150 km à hora, quando lhe apareceu um vulto, curvado, a sair da berma da estrada”… Bateu-lhe de lado… Ao  princípio, pareceu-lhe até ter sido "um animal, talvez um javali"...  

Provavelmente intranquilo, confirmou pelos jornais, no dia seguinte, a notícia da morte de um homem, naquela noite, àquela hora, e naquela estrada : “Uma chatice..., mas devia ser um bêbado de fim-de-semana”, comentou ele, com o maior dos desplantes… Sentia-se, afinal,  impune. A polícia nunca chegou a descobrir o autor do atropelamento mortal e o caso terá sido arquivado. Por fim, o  bate-chapas, seu conhecido,  destruiu os eventuais indícios do crime de homício involuntário.

A propósito, o teu amigo "Psi" comentou, "ex-cathedra":

− Não é caso virgem. Temos gente (e muito respeitável) que faz (ou faria) o mesmo, a coberto da impunidade. Alguns ficam atormentados. Outros fazem tudo para esquecer. Outros confessam-se ao padre ou ao psicólogo.,,  Para o bem e o mal, a fauna humana é diversa e multicolorida… E adaptativa. Imagina o que seria um mundo de presas sem predadores ?... Ou só predadores: comiam-se uns aos outros… Mas voltando ao teu conhecido… Parece-me ter sido um gajo que não cresceu, ou não quis crescer… Mas eu diria que não há rapazes maus… Os “teddy boys” do nosso tempo, lembras-te ? Carros, gajas, bandos, música ié-ié…

− Sempre os houve e haverá, bandidos e aprendizes de bandidos que tanto sabem usar os punhos, como engatar, com um sorriso sedutor, a menina do coro e, logo a seguir, ajudar a velhinha a atravessar a rua… 

− Estou a ver… Na província, num certa província, isso ainda é (ou era) notório, tal como nos filmes do velho Faroeste…

− Quanto ao nosso fulano, perguntas… Pelo que li nas fotocópias do seu manuscrito, era um anticomunista primário ou, se calhar, nem era nada. Gabava-se de ter “partido o focinho a alguns comunas, em Rio Maior” e noutras “arenas de combate patriótico” (sic) onde atuou no Verão Quente de 75. 

De vez em quando, tu apanhavas, nos seus monólogos (era bastante conpulsivo a falar), alguns restos da sua tosca formação político-ideológica. E depois, durante a campanha eleitoral de Ramalho Eanes, em 1976, diz que chegou a andar com ele aos ombros… Coitado do Eanes!... O que nunca apuraste (nem quiseste, sabendo-o já bastante doente) foi a sua eventual participação nas redes bombistas que atuaram em 1975, pondo parte do país a ferro e fogo…

No seu diário faltavam duas ou três folhas, justamente as dessa época. E tu nunca o inquiriste sobre isso. Achavas que não tinhas esse direito, para mais numa situação em que a sua saúde se estava a degradar a olhos vistos... Mas não te pareceu que tivesse sido um operacional de coisa alguma (do MDLP, por exemplo). Quando  muito terá sido um "peão de brega" nas "touradas desse tempo" em que ele gostava,  isso sim, de “molhar a sopa”, como terá acontecido algumas vezes ao longo do Verão Quente de 75, nas terras onde havia "caça aos comunas" e que faziam parte do seu roteiro de "caixeiro-viajante". 

Com um sorriso amarelo, contou-te, da última vez que o viste (e que na prática foi uma despedida), que fora a própria médica oncologista do IPO quem lhe passara a “certidão de óbito antecipada”. (E ele dizia-te isso, com um súbita frieza, sem a mais pequena emoção, o  que te chocou.)

−Senhor Jota Jota (alcunha fictícia)…, sabe que eu nunca fui de paninhos quentes… O médico tem de dizer a verdade ao doente… No seu caso chegámos ao fim de linha. A medicação, que tomou e que é inovadora, deu-lhe muitos meses de vida… Será uma esperança para futuros doentes com tumores como os seus… A si, deu-lhe mais qualidade de vida, mas não vale a pena continuarmos… Seria causar-lhe falsas ilusões e mais sofrimento. A si e à sua família.  Tem metástases espalhadas por várias partes do corpo, e tudo começou, infelizmente, na próstata… Agora a bexiga, o fígado, o pâncreas… O diagnóstico foi, infelizmente,  tardio. Bem, vamos ter que o passar para os cuidados paliativos. Não quero que sofra. Vou-lhe recomendar também a ajuda piscológica. Boa sorte e coragem.

A verdade é que o Jota Jota ter-se-á apagado pouco tempo depois, pelo que tu vieste, 
mais tarde, a saber . Esteve ainda numa unidade cuidados paliativos, com muita morfina em cima daquele corpo que se degradou muito rapidamente…

Mas, muito antes disso, já lhe tinhas devolvido, pelo correio, o seu manuscrito com uma nota, elegante, cortês, até simpática, mas cínica: “Meu caro J… Escrever não é fácil. E menos ainda quando, no fim da viagem (ou da picada, você esteve em Angola, sabe do que falo), um gajo, como nós, olha para trás e põe-se a rebobinar o filme da p… da vida…”

Ele escrevia mal,  e com erros de ortografia, mas tu não tinhas coragem de dizer-lhe isso diretamente na cara… Como dizer isso, afinal, a um homem que, pela conversa da sua médica, ia entrar, dentro de pouco tempo, no terminal da morte, para mais sabendo que ele era um narcisista ?!…

Não o desencorajaste, acabaste por criar-lhe falsas esperanças: que a escrita precisava de ser melhorada, a pontuação, a ortografia, a ligação entre as partes, o fio cronológico, havia parágrafos a acrescentar, outros a cortar ou melhorar, que havia saltos bruscos, "brancas", lapsos de memória, erros factuais e cronológicos... Enfim, havia que acautelar a privacidade de certas pessoas que, não sendo figuras públicas, eram citadas… 

E depois conviria ainda  saber se a Liga dos Amigos do IPO daria o seu aval à iniciativa, por muito boa que fosse a intenção do autor… E era preciso, não menos importante, encontrar um editor… E restava saber qual seria a aceitação do livro, o volume de vendas, o montante dos direitos de autor… Enfim, uma trabalheira. 
Mas, que, não senhor,  não devia de desistir, escrever só lhe podia continuar a fazer bem, blá, blá, etc., etc.

Tu fazias questão de o tratar por você, para manter um certo distanciamento afetivo, ele era, de resto, uns largos anos mais velho do que tu. E havia um lado da sua humanidade que te causava asco...

Claro, nunca te chegou a responder. Não teria já ânimo para pensar no projeto, algo megalómano e mitómano, do livro. Teve, até ao fim da vida, uma boa companheira, ao que tu sabias, de origem cabo-verdiana… Mais do que companheira, enfermeira. Nunca a conheceste, a não ser de fotografia: teria idade para ser filha dele. (Confessou-te que sempre tivera atração pelas raparigas mais novas.)

Embora tendo casado muito jovem, e com filhos, mas cedo divorciado, o Jota Jota era um “engatão compulsivo”. De estatura média, entroncado, casaco de couro (a lembrar o dos seus tempos da Força Aérea), arranjaria mais tarde uma “pileca” para lisonjear o seu ego e completar a sua auto-imagem de marialva de pacotilha. Gostava de dar a sua “volta ao redondel”, que era o largo da feira lá do sítio onde morava… quando ainda tinha forças para tal… Mas nos últimos meses a sua decadência física fora galopante.

Às tantas tiveste pena daquele teu companheiro de infortúnio, mesmo sabendo que a sua vida tinha sido um caso de “pulhice humana”, e que tinha feito mal a muita gente, a começar por jovens mulheres que ele seduzira, e que era incapaz de autocrítica, compaixão e arrependimento…

O mais patético foi vê-lo, poucos meses afinal antes de morrer, contar-te, sentado num dos bancos do pequeno espaço ajardinado que existe no IPO, frente ao edifício principal, que aquela devia ser a sua “última visita à Santa Casa” (sic), como ele lhe chamava, ao hospital.

Aguardava  pela ambulância que o devia levar a casa, uns cento e poucos quilómetros a norte de Lisboa. Os dois faziam horas. Tu ias adiando o clique de telemóvel para a tua boleia. Talvez por não quereres perder o final daquela história de um homem a lutar contra o tempo e contra a morte. 

Não sabes se não ficaste ali apenas por caridade (a palavra repugnava-te). Ou por compaixão… Ou solidariedade. Ou por simples curiosidade mórbida...Mas ao mesmo tempo tu não querias desmerecer a tão inesperada quanto surpreendente confiança que ele depositara em ti, que só te conhecia do IPO… (Como costumavas dizer, nesse dia fizeste a tua boa ação de escoteiro.)

Já antes te confirmara que se sentia um “doente milionário” (sic)… Provavelmente queria dizer “privilegiado”. Mas fez questão de esclarecer:

− VIP!... Um doente VIP!... Com tratamento VIP!

Nunca tinhas ouvido uma tal expressão, algo surrealista e de todo deslocada num sítio daqueles, onde se sofria e morria todos os dias, gente de todas as classes sociais, género e idade...

− Tratamento VIP ? – interpelaste tu, para logo a seguir acrescentar:

− Mas é um direito, que o meu amigo J... tem, o direito à saúde, aos melhores cuidados de saúde possíveis,  um direito consagrado na Constituição… Há quarenta anos atrás já estávamos os dois na quinta das tabuletas.

Não sabes se ele terá entendido  a tua observação, tanto mais que ele não deveria conhecer, pelo que tu deduzias, os princípios em que se  apoiava a criação do SNS, o Serviço Nacional de Saúde… Mas logo percebeste onde ele queria chegar: de facto, e pelas suas contas de “caixeiro-viajante”, os gastos do IPO, “só com a sua humilde pessoa” (sic) , já ascenderiam a cerca de 200 mil euros (sem te explicar como é que ele teria apurado esse valor, absolutamente exorbitante no seu caso).

− Dava para comprar um Ferrari ! – asseverava ele, quase orgulhoso.
 
Com algum humor negro, a que se juntavam uns restos esfarrapados da sua proverbial fanfarronice, garantia-te que a “menina da farmácia” (sic) já brincava com ele, quando lá ia levantar a sua medicação:

− Senhor Jota Jota, por este andar vai levar o IPO à falência.

E seguia-se a justificação:

− A gente gasta um milhão de euros por semana só em medicamentos. O senhor leva a parte de leão…

E ele ria-se, não era bem riso, era uma estranha mistura do riso alarve do marialva fanfarrão e do sorriso triste, amarelo, forçado, do palhaço no último espetáculo  do circo que, no dia seguinte, vai ser desmontado, com a trupe a abalar para outra terra...  

Ao mesmo tempo, ele provocava-te compaixão e irritação. Ele era daquele tipo de doentes para quem o “consumo sumptuário” de cuidados médicos (consultas, exames, fármacos, aparelhos…, "quanto mais caros melhores!"), era uma forma de “status” social… Era um traço distintivo, afinal, de certos ricos e poderosos com quem ele se gabava de ter privado e com quem, afinal,  se identificara "nos bons velhos tempos"...

Ele sorria porque se sentia de algum modo lisonjeado com as palavras da “menina da farmácia”… Afinal, estava no “quadro de honra dos doentes despesistas” (sic). Havia nele um estranho prazer, quase sadomasoquista, por estar a gastar, com a sua doença, tanto dinheiro ao Estado, ou melhor aos contribuintes.

Tu duvidavas que a farmacêutica (ou mais provavelmente a técnica de farmácia que estava de serviço), em geral tão circunspecta e distante, fechada na sua “redoma de vidro”, por detrás do seu guiché, lhe tenha dito, textualmente, essas palavras... E muito menos falado nos milhões do orçamento do IPO. É mais provável que tenha sido a sua médica oncologista a dar-lhe essa informação, embora muito por alto e em tom de brincadeira. 

Logo que a ambulância partiu com o teu companheiro de infortúnio, tiveste o pressentimento (para não dizer a certeza) que nunca mais o voltarias a ver. E, confessaste, com algum alívio… A sua história acabrunhava-te. Ou, talvez pior, a “sentença de morte” que lhe fora ditada pelos médicos…”Já não havia nada a fazer", conformava-se ele. Estaria talvez já em adiantada fase do seu processo de luto, o da resignação, quando o homem que sabe que vai morrer aceita a fataçidade e desiste de lutar...

Recordas-te ainda de, logo no princípio da ida ao IPO, ele te contar-te a primeira vez que teve de ir a um urologista:

– Sou um maricas, não posso ver sangue! ( Refiria-se ao sangue dele, entenda-se!)

Andara a “mijar sangue” (sic), e a levantar-se amiudadas vezes, de noite, para ir à casa de banho. Até pensou que tinha apanhado algum “esquentamento” (sic). Foi protelando a ida a um consulta médica, até que uma crise maior, que o deixou prostrado,  o forçou a chamar o 112. Aliás, não foi ele, mas a sua “Bia", o seu "anjo da guarda" (sic)...

A ambulância do INEM levou-o, de imediato, à urgência do centro hospitalar da sua área de residência. Ele protestou, que tinha um seguro de saúde "caríssimo" (sic), que queria ser visto num hospital privado, que o público tinha má fama, que ia ficar toda a noite numa maca, com outros doentes aos berros, no corredor, e por aí fora.
Mas em boa hora lá o levaram ao sítio certo:

−  Mas, primeiro, dei de caras, no SO, com um urologista, que não era homem mas mulher, para minha grande surpresa. Pensava que os urologistas eram todos homens. A princípio, confesso, senti-me intimidado e até humilhado quando ela me mandou despir as calças, e ficar em posição fetal na marquesa…

E justificou-se, como se tivesse perdido a honra:

− Nunca tinha feito o toque retal, nunca ninguém (e muito menos uma mulher) me tinha posto o dedo no cu… Nem o dedo nem outra merda qualquer!

− Nunca tinha feito sequer uma vulgaríssima eco prostática ? – quiseste saber tu, evidenciando algum pudor, delicadeza e cautela na pergunta.

− Nada, nunca precisei, graças a Deus!

Perante a reação, algo desastrada, do doente, a médica riu-se para aliviar a tensão, e gracejou:

− Senhor Jota Jota, porte-se como um homem, já não tem idade para ser criança!... Aqui é apenas um paciente. Mas está no seu direito de recusar o toque retal… Se se portar bem, eu conto-lhe no fim uma história engraçada… Vem a propósito do pudor masculino, e passou-se comigo no início da minha carreira médica…

E, depois de feito o toque retal, a médica prosseguiu:

− Como viu, não doeu nada... Ou doeu ?!

− Não, senhora doutora. Até tem dedos de fada!

− E o senhor J... está inteiro, não perdeu nada!… Mas falando de coisas sérias: a próstata está muito inflamada, e mais dura do que seria normal… Vamos já fazer análises clínicas, para ver o valor do PSA (que deve estar alto) ... E muito vamos ter que fazer uma biópsia nos próximos dias… Só lamento o sr. Jota Jota não ter vindo mais cedo ao urologista, ou à urologista… Fica aqui mais um dia, em observação e para, logo amanhã de manhã,  fazer a eco, as análises… Depois irá para casa, ficando à espera que o chamem para a biópsia… (Infelizmente, vai ter que a fazer, mas é para melhor esclarecimento do diagnóstico, que é reservado.)

A médica fez depois questão de tranquilizar o doente, continuando a conversa bem humorada que mantivera logo de início:

− Afinal, a urologia é uma especialidade tão masculina ou tão feminina como qualquer outra… No caso de nós, as mulheres médicas urologistas, só não podemos é ter as unhas compridas e pintadas… Ou melhor, não convém…

E finalizando, àquela hora da noite, aquela conversa algo surreal (para o doente):

− Fique tranquilo… Tudo se há de compor. Hoje, se formos a tempo, ninguém morre de carcinoma da próstata… Esperemos é que não haja mais complicações… O nosso corpo é uma caixinha de surpresas... É preciso saber falar com ele, saber vê-lo e ouvi-lo, estar atento aos seus sinais... E então agora vou-lhe contar a história que lhe prometi, no caso de se portar bem como aconteceu.

E a história podia resumir-se nestes termos, tal como o Jota Jota ta contou, com graça, pondo-se na pele da médica (que passou a ser o seu "anjo da guarda"):

− Como deve imaginar, a urologia foi durante muito tempo uma especialidade médico-cirúrgica exercida por homens… Nos EUA as mulheres começaram mais tarde, nos anos 60… No nosso caso, só mais recentemente. Eu fui a primeira mulher do meu ano, do meu curso, a escolher esta especialidade como primeira opção… O meu pai, transmontano, caçador, “bon vivant”, bom garfo e melhor copo (faleceu de gota, coitado!), levou-me um dia a uma montaria, uma caçada ao javali. Era uma espécie de prémio, pelo meu sucesso no exame da especialidade. Eu era a única mulher no meio de tantos caçadores, todos empertigados nas suas fatiotas e botas de montar. Um mulher de arma em punho, está a ver ?!... Isto foi no Norte, em Trás-os-Montes, junto à raia espanhola… Desde miúda que eu gostava de acompanhar o meu pai, embora perto de casa, na caça ao coelho, à lebre, à perdiz… Quando fui, pela primeira vez, à montaria, os presentes, todos homens, começaram a torcer o nariz à minha presença, alguns pigarreavam ou fingiam que tossiam para disfarçar o desconforto. Outros puxavam grandes fumaças dos cigarros ou charutos… E antes que se avolumasse o mal-estar e se começasse a gerar algum burburinho, o meu pai (que nestas coisas tinha um sexto sentido apurado, a par de muita graça e bonomia) fez-me a presentação ao grupo dos machos lusitanos (também havia alguns espanhóis): “A minha filha, fulana de tal, médica, urologista… Estejam à vontade, meus senhores, podem continuar a mandar as vossas cara...lhadas (acho que foi esse o termo que ele usou), que ela, embora seja uma senhora muito educada, fina e de boas famílias, está farta de ver piças e cus… Só espero é que os senhores nunca precisem dos seus serviços, dela ou dos seus colegas”… 

E, por fim, a urologista arrematou:

− Fez-se um silêncio, quase sepulcral, por uns largos segundos, até que alguém, de copo na mão, exclamou, para desanuviar o ambiente: “Seja bem vinda, senhora doutora. Vê-se que é uma mulher de armas!”.

O nosso homem, o Jota Jota, ficou visivelmente bem disposto e lisonjeado com estes mimos todos, vindos de uma mulher, de belo porte,  assertiva, superiormente inteligente, de personalidade dominadora, e para mais "doutora"… E, à despedida, teve este rasgo de bom humor, que deixou a médica encantada e até enternecida com o seu trocadilho, à boa maneira marialva:

− Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


[ Obs. - Nesta série, "Contos com mural ao fundo", a realidade e a ficção misturam-se. Muitas vezes. E ainda bem. Ainda bem  que temos a literatura, uma forma de arte, que os seres humanos inventaram, e que nos ajuda a suportar melhor a vida e a morte, o prazer e a dor, a verdade e a mentira, o céu e o inferno, o amor e o ódio, a sordidez e a beleza humanas...]


© Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. Revisto em 24 de maio de 2024.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25545: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (28): Cá se fazem, cá se pagam ?!

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25558: Notas de leitura (1694): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1853 a 1854) (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2024:

Queridos amigos,
O conteúdo informativo deste Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde alterou-se profundamente. Da consulta que tenho vindo a efetuar ao Boletim desde 1850, a chamada Costa da Guiné só merece citações pelas taxas alfandegárias e nomeações, é quase um zero político. Mas na viragem de 1853 para 1854 são nítidas as mudanças. Honório Pereira Barreto escreve constantemente relatórios ao Governado Geral, saem-lhe as verdades como punhos: quem nomeia a partir de Lisboa envia o rebotalho das prisões e os quadros administrativos mais incompetentes; está constantemente a fazer sugestões e o Governador Geral aceita-as, sem exceção, louva-o publicamente. A verdade é que caminhamos para um mundo novo onde há escravos libertos, já se fala abertamente no respeito que merecem os autóctones, na administração da Justiça o Juiz dos Grumetes é uma pessoa respeitada. O termo da escravatura leva à reorganização do território, intensificam-se os negócios no Geba e no Corubal, surge um novo ordenamento administrativo e militar, assuntos que iremos versar no próximo texto.

Um abraço do
Mário


Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1853 a 1854) (4)


Mário Beja Santos

Dando continuidade aos últimos acontecimentos de 1853, o Boletim Official dá a infausta notícia do falecimento de D. Maria da Glória, publica-se na íntegra a ata do conselho de Estado, D. Fernando II é regente até à maioridade de D. Pedro, o futuro D. Pedro V. Mas há ainda acontecimentos desse ano que merecem algum destaque. É o caso de uma portaria publicada no dia 30 de dezembro, onde se diz o seguinte:
“Tendo representado o Diretor do Hospital Militar da Praça de S. José de Bissau sobre os graves inconvenientes que resultam de estar os miseráveis doentes expostos ao terrível incómodo que causam naquele clima os mosquitos, por não terem as camas o resguardo necessário para evitar a entrada de tais insectos: o Governador Geral, tendo observado por si próprio aquela verdade, e ouvido os queixumes do doente; e não podendo deixar de ser sensível ao aumento dos sofrimentos, que eles com vivas cores descreveram: determina que para o Hospital Militar da Praça de S. José de Bissau sejam compradas até doze camas de ferro com a armação necessária, a fim de terem de ter as cortinas que se usam naquela Praça, para evitar a entrada de mosquitos dentro daquelas camas.”

Em abril desse ano também ficamos a saber que o Capitão de Artilharia Victor Jorge, Comandante do Forte de S. Belchior, percebendo apenas a gratificação de cinco mil reis mensais, além do soldo da sua patente, não está, por isso, habilitado para todas as despesas a que é obrigado, já que pelo isolamento em que se acha naquele ponto tem de pagar muito caros os géneros comestíveis para seu alimento, já pelo dispêndio que faz com um continuado expediente, já finalmente pelos brindes que frequentemente se vê obrigado a fazer aos régulos vizinhos do Forte, segundo é isso e costume, para manter as boas relações com os respetivos povos, como exige a proteção que convém dar ao comércio de Bissau com os mesmos gentios: o Governador Geral desejando livrar dos apuros em que se acha o sobredito Comandante do Forte de S. Belchior, e considerando por outro lado a urgente conveniência do serviço público: ordena, que do primeiro do próximo mês de abril em diante, seja abonada ao mesmo Capitão Victor Jorge, e enquanto se conservar naquele comando, a gratificação de dez mil reis mensais. E ficamos igualmente a saber que se encontravam em grande vexame os oficiais do Batalhão de Artilharia de Linha destacados na Praça de S. José de Bissau, não tinham habitação militar para os acolher, eram obrigados a alugar casa na povoação que não lhes custava menos de oito patacas francesas por mês, fora igualmente deliberado aumentar-lhes o abono.

Perguntará o leitor qual é a verdadeira substância e que entendimento se pode extrair de toda esta informação constante no Boletim Official. Primeiro, como me parece já verificado, o noticiário sobre a Guiné é francamente residual até 1854, a partir daí dar-se-á uma reorganização administrativa e militar que é o primeiro esboço da ocupação efetiva. Segundo, vão começar a aparecer os relatórios e as tomadas de posição do Comendador e Governador Honório Pereira Barreto, a Guiné começa a ganhar forma territorial, Barreto expede com causa e fundamento para o Governador Geral a situação real, a desorganização, um efetivo militar que se revela pernicioso e incapaz de se fazer respeitar. Terceiro, o Boletim Official vai ressaltar os problemas económicos, citará comerciantes, até agora a importância da Guiné (ou Costa da Guiné) estava focada nas alfândegas, nos impostos, nas nomeações. A partir de agora a Guiné é mais qualquer coisa, como a leitura do Boletim Official patenteia.

Em março de 1854, o Brigadeiro Governador Geral Fortunato José Barreiros louva Honório Pereira Barreto nos seguintes termos:
“Tendo o Comendador Honório Pereira Barreto, desde que tomou posse do Governo interino da Guiné Portuguesa entre Dezembro de 1853 e Fevereiro de 1854 desempenhado as funções daquele cargo com o maior desvelo, assiduidade, e distinção, fazendo justiça com imparcialidade, dando seguimento a vários negócios que achou sem andamento, adotando muitas providências de reconhecida utilidade, e enviando um relatório do estado daquela colónia propondo uma série de medidas que manifestam a sua capacidade política e administrativa: o Governador Geral, comprazendo-se de ver em todos estes actos realizados as esperanças que tinha, quando o nomeou para o sobredito lugar, manda louvar o mesmo Comendador, pelos importantes serviços que acaba de prestar à Guiné Portuguesa.”

Na sequência deste louvor temos outra referência no mesmo Boletim Official a Barreto. Este informara o Governador Geral da absoluta impossibilidade de se fazer a cobertura dos tectos das casas de Bissau com telha de pau ou de barro, só que muitos dos habitantes são pobríssimos, não podem pagar a telha, o que os força a abandonar as suas casas ou vendê-las ao desbarato, só a primeira e segunda ruas da povoação são constituídas por edifícios mais sólidos, pelo que o Governador Geral determina que somente se ponha a execução do uso de tais telhas nas referidas duas primeiras ruas. Mas não fiquemos por aqui quanto a referências a Barreto, este informara o Governador Geral de ter suspendido Manuel Tavares d’Almeida, Diretor Interino da Alfândega de Bissau, por faltar à repartição com grave prejuízo do comércio, sem que tivesse dado parte do doente; por não ter dado resposta satisfatória às diversas intimações que lhe foram feitas, pretextando moléstia, apesar de ser visto a passear fora de casa, o Governador Geral confirmava o castigo aplicado por Barreto.

Em 15 de maio publica-se uma portaria que nos alarga a compreensão das mudanças que se estão a operar na Senegâmbia Portuguesa, novamente uma comunicação de Barreto para o Governador Geral relativa à conveniência de acabar com o abusivo procedimento de alguns indivíduos da povoação de S. José de Bissau, os quais retém como escravos homens e mulheres livres, habitantes dos terrenos circunvizinhos à Praça, a queixa chegara a Barreto através do Juíz dos Grumetes de Bandim e o régulo de Atim; tal retenção estava expressamente proibida pelas leis pátrias; o Governador Geral conformava-se com a opinião de Barreto e ordenava que este devia tornar público e exigir cumprimento que era absolutamente proibido fazer apreensão de qualquer indivíduo dos povos da Guiné a não ser dos legítimos escravos, havidos por compra ou por doação comprovada, Barreto devia intimar todas as pessoas que atualmente conservassem retidos indivíduos livres para que imediatamente fosse postos em liberdade.

E exara um parágrafo que é merecedor de muita atenção:
“Se algum dos habitantes das Possessões portuguesas em Guiné tiver motivo de queixa contra qualquer dos habitantes livres dos ditos povos circunvizinhos, por furtos, roubo, ou outro crime por ele praticado, fará a sua representação ao Governador da Guiné Portuguesa, para que este, depois de proceder às competentes averiguações, julgando a queixa bem fundada, exija do régulo respectivo a competente reparação. Quando os régulos efectuarem a entrega de algum culpado, com os artigos roubados, será o criminoso punido legalmente, mediante um processo sumário, e quando tenham de satisfazer por meio de trabalho a importância do roubo, será este previamente avaliado, e o criminoso compelido a indemnizar o dono dos objectos roubados. O Governador da Guiné dará conhecimentos destas disposições aos régulos".

Em Abril, o Chefe do Estado-Maior, Francisco Maria Barreiro Arrobas confirma no Governo interino o Comendador Honório Pereira Barreto, e deixa escapar o muito apreço que tem por ele, o Governador Geral: “Manda Sua Excelência declarar ao referido Senhor Comendador a firme convicção em que está de que neste novo período do seu governo da Guiné continuará a dar provas da probidade, do zelo e da inteligência com que sempre tem desempenhado as referidas funções.”

Como o leitor pode comprovar, algo mudou na importância da Guiné no contexto das relações com Cabo Verde, avizinha-se o fim da escravatura e as explorações agrícolas parecem ser a mais promissora alternativa.

Um dos aliciantes que encontro na leitura do Boletim Official do Governo de Cabo Verde é a variedade informativa, encontramos folhetins, poemas dedicados a Sua Excelência o Governador, comunicações de Estado como o falecimento de D. Maria II em 19 de novembro de1853, durante um parto, seguiu-se o beija-mão à rainha falecida, depois o beija-mão a Sua Majestade El-Rei Fernando II e novo beija-mão ao futuro D. Pedro V. Neste caso temos publicidade a farinhas restauradoras da saúde e das forças, e fala-se na Revalenta Arabica expedita ao Ministério do Palácio Imperial da Rússia.
Vista antiga de Cacheu
Estátua de Honório Pereira Barreto na Bissau colonial
Vila da Praia

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 17 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25536: Notas de leitura (1692): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25543: Notas de leitura (1693): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25557: Os 50 anos do 25 de Abril (24): "As gargalhadas" de Salgueiro Maia (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72)


1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 22 de Maio de 2024:


"As gargalhadas" de Salgueiro Maia

"Salgueiro Maia - Das Guerras em África à Revolução dos Cravos" é um livro de Moisés Cayetano Rosado, de Badajoz, uma terra que também fazia parte da Lusitânia.

Salgueiro Maia foi acusado de Comunista, de fascista, foi um dos primeiros subscritores do Documento dos Nove, deixou durante algum tempo de participar nas comemorações do 25 de Abril e pediu para ser enterrado em campa rasa ao som do Grândola vila morena, o hino do MFA.

Vejamos o prefácio deste livro e o que escreveu o Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o Cap. Salgueiro Maia:

Associo-me, com honra e júbilo, (...) saudando o ensaio histórico-biográfico do Sr. Professor Moisés Cayetano Rosado (...). E não encontro mais adequado modo de traduzir essa partilha (...), ocasião em que juntei às justíssimas Ordens da Torre e Espada, de Valor, Lealdade e Mérito e da Liberdade, atribuídas pelos Presidentes António Ramalho Eanes e Mário Soares, a Ordem do Infante D. Henrique.

Eis o que disse em 2016.

Foi há quarenta e dois anos!

Um homem em cima de uma chaimite. Que interpela o Poder que tarda em cair, enquanto o novo tarda em chegar (...)

(...) e termina. Neste Abril de 2021, tanto ou mais ainda do que há cinco anos, toda a homenagem e indelével gratidão é devida!

Marcelo Rebelo de Sousa

Palácio de Belém, 29 de Março de 2021.

Será que o Cap. Salgueiro Maia está a rir-se lá em baixo e quer dar uma lição de História à malta, sobre Castelos, a Ordem do Templo e a Ordem de Cristo?

O Rei D. Dinis, foi um senhor muito inteligente e hábil e fez tudo quanto quis. Antes da extinção da Ordem do Templo em 22 de Março de 1312, conseguiu integrar os bens da Ordem do Templo no Reino de Portugal, mantendo assim todo o seu património intacto.

Deu umas férias Grandes aos nossos Cavaleiros Templários e mandou-os para Castro Marim para proteger e manter a nossa Elite de Cavaleiros e formar novos guerreiros. As férias só terminaram depois de criar uma nova Ordem em 26 de Novembro de 1319, a que chamou Ordem de Cristo, onde foram integrados.

O melhor agora é citar algumas partes deste livro, sobre a vida deste guerreiro lusitano que foi Salgueiro Maia que terminou os seus dias como membro e Dirigente da Associação dos Amigos dos Castelos.

Pág. 62 (...) de 1 a 3 de Junho de 1973, celebrar-se-ia no Porto um encontro que viria ser uma "resposta" ao anterior: O "I encontro de Combatentes do Ultramar" (...). É interessante constatar que a hierarquia castrense proibiu que os militares no ativo participassem no encontro. O Gen. Spínola já tinha expresso, dois anos antes, que a solução do problema da Guiné (onde era Governador e Comandante-Chefe) era política, e muitos eram os militares spinolistas do Quadro Permanente que tinham intenção de intervir defendendo esta posição.

Em 5 de Março de 1974, tinham acordado na reunião celebrada em Cascais, a aprovação do importante documento. "O Movimento, as Forças Armadas e a Nação". Dos 197 presentes, 111 assinam o documento.

A pág. 75 (...) Distribuição das missões para o Golpe de Estado do 25 de Abril. O sr. Major Otelo esclarece. "Tens alguma dúvida? Não tenho nenhuma". Queres fazer alguma pergunta? "Duas" Quais são? Primeira: Programa político, (...). Segunda questão? E o Salgueiro Maia pergunta-me. Temos Generais no Posto de Comando? Aí eu tive uma mentira necessária e piedosa e disse-lhe: Concerteza pá, podes garantir pá que temos Generais no Posto de Comando.

Era mentira, não tínhamos porque os Generais não arriscavam nada (...).

A pág. 78 (...) O Salgueiro Maia - conta Otelo -, quando lhe dei a missão, avisou-me de que os soldados só tinham uma semana de recruta, não sabiam dar tiros. Disse-lhe, não faz mal, a tua coluna vai ser a coluna de isco, traz a maior quantidade de material de combate que puderes, Chaimites, M-47, Panhares, MBR, os soldados de capacete, metralhadoras e espingardas automáticas, munições, tudo. Quem vai opor-se a uma coluna dessas? Montas o arraial todo no Terreiro do Paço. Ficas à espera. Se por acaso estiver o Ministro do Exército no Gabinete, vais prendê-lo. E vão todos ter contigo.

Eu só tive uma amante na Guiné, chamava-se G3, tratava-a por tu, dormia ao meu lado com o carregador e uma bala na câmara.

Um atirador de Infantaria que domine o tiro instintivo pode agarrar a G3 só com uma mão e acertar num alvo a 50 metros sem apontar. Para isso é necessário premir o gatilho muitas vezes e gastar largas centenas de munições.
Eu nem imagino quantas vezes terá pensado o Cap. Salgueiro Maia, no Arraial do Terreiro do Paço e na sua responsabilidade sobre os militares que utilizou. Vem-me à memória o exemplo um deles estendido ao longo do passeio, a apontar a G3, não se sabe bem para onde, perante a curiosidade de três putos ao seu lado.
A sorte protege os audazes, mas não devemos abusar da sorte e muito menos a comandar uma força constituída por militares que nunca deram um tiro.

A pág. 75 e 78 permitem compreender a sua excitação em envolver-se a partir do 25 de Abril de 1974 sem ter a certeza de que tinha Generais no Posto de Comando.

Acresce que: Consta da pág. 110 e 111. O Maj. Vítor Alves adiantar-se-ia para expressar a Spínola a sua intenção de fazer um comunicado público divulgando o Programa do MFA, com os três grandes postulados de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver, e o velho general lançar-lhe-á um "jarro de água fria":

- "Vocês são muito jovens, sem formação política, deixem isso para quem sabe, eu tenho uns amigos que trataram desse assunto".

Esta declaração é vaga, não identifica quem são os amigos e não permite identificar a linha política defendida por esses amigos.

Pág.120. A Unicidade Sindical e a liquidação dos latifúndios e entregar a terra a quem realmente a trabalha. Esta é uma conversa para parolos, porque a unicidade Sindical foi objecto de forte contestação no meio operário e, trabalhar a terra, provoca muitos calos nas mãos e dores nas costas. Dos 20.000 trabalhadores necessários para trabalhar a terra, 50.000 passaram a vida a fazer comícios, nomeadamente nas cooperativas e unidades colectivas de produção.

Pág. 121. Estes acontecimentos vão pressupor a ruptura do "aparente" entendimento do PCP e do PS, e são um alerta ao socialismo europeu, representado pelas figuras de Olof Palme e Willy Brandt os grandes apoios de Mário Soares, hostis ao protagonismo do PCP. E mais hostil ainda ao Secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, que por estes dias dirá a Soares:
- "Portugal está perdido, vai ser um novo país comunista. Vai ser uma nova Cuba".

De facto há razões para as preocupações dos líderes ocidentais. No frente a frente realizado entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, em 8 de Novembro de 1975, este defende que no PS existem duas linhas.

Os dias loucos do PREC pág. 382. (...)

Mário Soares (...). O Partido Socialista já escolheu o seu campo (...), instaurar em Portugal uma sociedade socialista, uma sociedade sem classes mas em liberdade (...). Não fará uma revolução (...) que transforme este País numa ditadura e o PCP deu provas durante estes meses de que quer transformar este País numa ditadura.
Álvaro Cunhal. - Olhe que não! Olhe que não!
(...) Álvaro Cunhal - (...) Há membros do Partido Socialista que querem as duas coisas, querem liberdade e querem socialismo. Mas infelizmente isso não parece a política do Partido Socialista (...). Pág. 382 Os dias loucos do PREC. ÚLTIMAS OFENSAS, (Promoções e outras coisas)

Pág. 142. O Sr. Maj. Gen. Adelino de Matos Coelho grande amigo de Salgueiro Maia animou-o a pertencer à Associação dos amigos dos Castelos, como membro da Associação e seu dirigente, participa em actividades sobre Património nomeadamente em Braga, Castelo Branco, Coimbra, Alcobaça, Santarém, Monsanto, Sortelha, Almada, Castelo de Vide Marvão, Évora, Beja, Olivença e muitos mais.
Não é de estranhar que Salgueiro Maia, tenha estudado o percurso de D. Gualdim Pais (1118-1195), 6.º Mestre Templário ( de 1159 a 1195).

Era de 1209. O Mestre Gualdim certamente de nobre geração, natural de Braga, existiu no tempo de Afonso, Ilustríssimo Rei de Portugal. Abandonando a milícia secular em breve se elevou como um astro, porquanto, soldado do Templo, dirigiu-se a Jerusalém onde durante cinco anos levou vida trabalhosa. Com seu Mestre e seus irmãos, entrou em muitas batalhas, movendo-se contra o Rei do Egipto e da Síria. Como fosse tomada Ascalona, partindo logo para Antioquia, pelejou muitas vezes pela rendição de Sidon. Cinco anos passados, voltou, então para o Rei que o criara e o fizesse Cavaleiro. Feito procurador da Ordem do Templo em Portugal, fundou, neste, o Castelo de Pombal, Tomar, Zêzere e este que é chamado Almourol, Idanha e Monsanto (...). José Manuel Capêlo Portugal Templário, pág. 76 e 77.

Pág. 150. Em declarações à revista "Expresso", Vasco Lourenço considerava Eanes o principal responsável pela marginalização e persecução dos militares de Abril (...). Ramalho Eanes, militar de costumes austeros e vida ascética, imparcial na execução das suas convicções, teve de enfrentar-se com líderes políticos em contínua tensão: (...).

Costumes austeros e vida ascética é um dos princípios da Ordem do Templo. O percurso militar de alguns membros do MFA, indicia que Ramalho Eanes, não era o único a seguir estes princípios: Ser o primeiro a dar o exemplo e cortar a direito é um princípio de base.

Foi no programa "O que dizem os teus olhos" de Daniel Oliveira que ouvi este perguntar ao actor Vítor Norte, também ex-combatente:
Como foi a sua Guerra na Guiné? Resposta de Vítor Norte (...) Fui para lá um puto e vim de lá um velho. Mas... Esteve lá muito tempo? Perguntou o Daniel. Dois anos, foi a resposta seca de Vítor Norte.

As primeiras Eleições livres decorreram em 25 de Abril de 1975. A eleição da Mesa da Assembleia Constituinte decorreu no dia 5 de Junho de 1975 e teve como Presidente Henrique de Barros, que deu início aos trabalhos.

O 25 de Novembro de 1975 pôs fim ao PREC e à linha do MFA que defendia o manual da Revolução de Outubro de 1917 "Catástrofe iminente e os meios de a conjurar" de Lenine. Felizmente não conhecemos o resultado de uma guerra civil em 1975.
Os trabalhos da Assembleia Constituinte foram aprovados na sua votação final em 2 de Abril de 1976.

Pág. 105. No dia 25 de Abril de 1974, enquanto decorria o Golpe de Estado, (...). Mais tarde conta a sua conversação com Caetano: "Passei por uma antecâmara, onde se encontravam Moreira Baptista (Ministro do Interior) e Rui Patrício (Ministro dos Negócios Estrangeiros), chorando como uma criança, olhando para o infinito o primeiro. Marcelo estava pálido, barba por fazer, gravata desapertada, mas digno.

Pág. 154. Tem um curioso encontro com Cavaco Silva numa visita que este efectuou à EPC.

"Aproximam-se e o Coronel - Comandante da Escola diz a Cavaco. Sr. Professor, não sei se já conhece, este é o Ten-Coronel Salgueiro Maia, o Cap. de Abril que prendeu o Primeiro Ministro Marcelo Caetano... O governante sorri discretamente e cumprimenta Salgueiro Maia. Este demolidor, dispara sem pestanejar: "Prendi esse, sim senhor e prenderei outros se necessário for". Cavaco engole em seco e passa adiante, decerto pouco à vontade com tão inadequada analogia".
Salgueiro Maia não estava "para brincadeiras" com os políticos. (...).

Termina assim o autor deste livro, na pág. 190.

Caro Fernando.

Partiste cedo. Tens-nos feito cá muita falta!

Vais-te rir certamente, com a informação que te dou: depois de partires, depois de deixares de poder, causar-lhes problemas, fizeram de ti um Herói!

Vá lá, acaba com as gargalhadas. A vida e a morte são mesmo assim!

Um grande , um enorme abraço, muito amigo e de Abril!

10 de Setembro de 2021.

Baltazar Rebelo de Sousa, pai do nosso actual Presidente da República, foi Governador Geral em Moçambique, durante 2 anos e Ministro do Estado Novo de 7 de Nov. 1973 ao 25 de Abril de 1974.

Salgueiro Maia foi um guerreiro e não estava "para brincadeiras" com os políticos, ficou de forma simbólica ligado ao fim do Regime do Estado Novo.

Este guerreiro Lusitano da Arma de Cavalaria, com provas dadas em combate, é um justo merecedor da Ordem de Torre e Espada, de Valor, Lealdade e Mérito e da Liberdade.

Os políticos não faziam, nem fazem, a mais pequena ideia, do que é uma guerra. Mas quando uma guerra começa ficam a saber, o que é a verdadeira violência.

Tem razão o autor quando diz: Depois de partires, depois de deixares, de lhes causares problemas, fizeram de ti um herói.

Vá lá, acaba com as gargalhadas! A vida e a morte são mesmo assim.

Junto Capas dos livros:
"Salgueiro Maia - Das Guerras de África à Revolução dos Cravos", de Moisés Cayetano Rosado.
"Portugal Templário", de José Manuel Capêlo
"Catástrofe iminente e os meios de a conjurar", de Lenine
Contracapa do livro "Catástrofe iminente e os meios de a conjurar"
Editada para facilitar a leitura do texto

Um abraço,
Victor Costa,
Ex-Fur Mil At Inf
CCaç 4541/72

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Nota do editor

Último post da série de 20 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25542: Os 50 anos do 25 de Abril (23): Hoje, na RTP1, às 21:01, o 6º episódio da série documental, "A Conspiração", do realizador António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)

Guiné 61/74 - P25556: Timor-Leste, passado e presente (3): cerca de 70% dos nomes próprios e 98% dos apelidos dos timorenses... continuam a serportugueses!

 

Mendes, Manuel Patrício, e Laranjeira, Manuel Mendes (1935). Dicionário Tétum-Português. Macau: N.T. Fernandes & Filhos. (Disponível em formato digital na BNP - Biblioteca Nacional de Portugal.)


1. Não é por acaso que os ocupantes, invasores e ditadores como o Suharto ou o Franco proibem ou proibíam as línguas dos povos dominados e vencidos:   o português e o tétum, em Timor; o basco, o galego, o catalão, em Espanha, etc. A língua é a verdadeira pátria, a identidade de cada povo...

O tétum e o português ajudaram os timorenses a resistir à ocupação indonésia. tétum é a língua nacional e cooficial de Timor-Leste, a par do português.   Em 1981, a Igreja católica adotou, corajosamente, o tétum como língua da liturgia, em detrimento da língua indonésia. E esse facto foi relevante para o reforço da identidade cultural e nacional dos timorenses e da sua determinação para se tornarem livres e independentes.

Nós, portugueses, temos a obrigação histórica de dar o máximo apoio ao ensino e à promoção das duas línguas oficiais de Timor-Leste. E, por outro lado, temos de estar gratos aos missionários católicos que se interessaram, desde cedo, pelo ensino e divulgação das duas línguas, na época colonial.

Recordamos de novo, aqui hoje,  o trabalho de Mendes, Manuel Patrício, e Laranjeira, Manuel Mendes (1935). Dicionário Tétum-Português. Macau: N.T. Fernandes & Filhos.

2. A título de mera curiosidade, selecionamos  algumas das palavras do tétum que, segundo Mendes e Laranjeira (1935), foram "importadas" do português... Hoje há muito mais vocábulos de origem portuguesa, ligados à(s) ciência(s),  à tecnologia, à política, à economia, à sociologia, etc.: basta ver o sítio do Governo de Timor-Leste (em tétum, português e inglês)... A começar pela saudação: Benvindu ba portal online Governu Timor-Leste ni-nian! 

Veja-se, por exemplo, este excerto de um comunicado de imprensa, do dia 2 de maio de 2024, em tétum e em português:
 
TT > Komunikadus > 22 maiu 2024 > 
Sorumutuk Konsellu Ministrus nian iha loron 22 fulan-maiu tinan 2024

Prezidénsia Konsellu Ministrus
Portavós Governu Timor-Leste
IX Governu Konstitusionál

(...) Konsellu Ministrus hala’o sorumutuk iha Palásiu Governu, Dili, no aprova Rezolusaun Governu nian ne’ebé aprezenta husi Vise-Primeiru-Ministru, Ministru Koordenadór Asuntus Ekonómikus no Ministru Turizmu Ambiente, reprezenta Primeiru-Ministru, relasiona ho konsesaun donativu ida ba Repúblika Federativa Brazíl, hodi apoia intervensaun tanba inundasaun ne’ebé destroi Estadu Rio Grande Súl ho valór dolar amerikanu millaun 4.

Governu manifesta ninia solidariedade no fraternidade ho povu maun-alin brazileiru no liu-liu ho populasaun Estadu Rio Grande Súl, ne’ebé akontese udan boot hodi hamosu inundasaun no rai monu, ne’ebé kauza ema 157 mate, kanek 800 no besik 80 maka lakon, no mós ema rihun 77resin evakua ba fatin temporáriu.

PT > Comunicados > 22 de maio de 2024

Reunião do Conselho de Ministros de 22 de maio de 2024
Presidência do Conselho de Ministros
Porta-Voz do Governo de Timor-Leste

(...) O Conselho de Ministros reuniu-se no Palácio do Governo, em Díli, e aprovou a Resolução do Governo apresentada pelo Vice-Primeiro-Ministro, Ministro Coordenador dos Assuntos Económicos e Ministro do Turismo e Ambiente, em substituição do Primeiro-Ministro, relativa à concessão de um donativo à República Federativa do Brasil, para apoio à intervenção em resultado das cheias que assolaram o Estado de Rio Grande do Sul no valor de USD 4 milhões.

O Governo manifesta a sua solidariedade e fraternidade com o povo irmão brasileiro e especialmente com a população do Estado de Rio Grande do Sul, que foi devastado por fortes chuvas que causaram cheias e deslizamento de terras, que provocaram cerca de 157 mortes, 800 feridos, o desaparecimento de cerca de 80 pessoas e deixaram mais de 77 mil pessoas em abrigos temporários. (...)

3. A par do português, o tétum-praça (em tétum,  tetun prasa) é a língua oficial de Timor-Leste ao lado: foi (e continua a ser) a  língua franca entre os diferentes grupos etnolinguísticos do território. 

Este tétum-praça é a variedade oficial da língua, usada na administração e nas escolas, a par do português. Ao longo dos séculos, o tétum foi muito influenciado pelo português, o qual  passou, entretanto, a ser probido pela Indonésia, a partir de finais de 1975 e durante 24 anos.  Toda  uma geração de timorenses cresceu a falar e a escrever a  língua indonésia. O português passou a ser uma língua de resistência e de identidade nacional.
 
Apesar de alguma resistência dos mais novos, educados na (e pela) Indonésia, é um facto indesmetível que o português tem uma larga aceitação por parte do povo: 70% dos apelidos e 98% dos nomes próprios dos timorenses continuam, ainda hoje, a ser portugueses, mesmo que só um terço fale o português, na melhor das hipóteses...

Mais uma razão para darmos visibilidade a Timor, à sua gente e ao seu apego a Portugal e à lusofonia...

 
Apresentamos a seguir mais uma lista de palavras, de P a V,  que  ao longo dos séculos foram "encorporadas" no tétum... Mendes e Laranjeira (1935) identificam mais de  uma centena e meia (numa recolha de cerca de 8 mil vocábulos, feita nos anos de 1920/30).  Hoje são muitas mais...  

pasíar, v. Passear, vaguear; do português.

pára, v. Parar, terminar, deixar de...; udan pára, deixar de chover, estiar; do português.

parti, s. Participação; v. participar, dar parte; do português.

péça, s. Peça de artelharia, canhão; peça fuan, projéctil de peça, granada etc.; do português.

perdán, s. O m. q. perdua.

perdua, s. Perdão, desculpa; v. perdoar, desculpar; do português.

pinór, s. (t. h.) Penhor; do português.

pobos, s. O povo, a plebe; do português.

rabéca, s. Rabeca, violino; co'a rabeca, tocar rabeca; do português.

ramáta, v. Rematar, acabar, findar-se, terminar, completar; do português.

rarúut, s. Ai rarúut, uma planta das amomáceas, araruta; o m. q. labúta; do português.

rásta, v. Arrastar, levar de rastos; do português.

réal, réar, adj. Muitos, em multidão; ema réar, grande aglomeração de gente; do português arraial (?).

rebísta, v. Passar revista, revistar; do português.

recádo, s. Recados, cumprimentos; presentes que os noivos oferecem um ao outro antes do
casamento; do português.

reçán, réçan, s. Razões, motivos; la liatenc reçan ida, não motivos; la liatenc reçan ida, não saber explicar-se, não saber defender-se; ração, farnel; do português.

rêdi, s. Rede de arrasto, tresmalho; do português.

reformadu, adj. Reformado; do português.

rèinu, s. Reino. Em Timor o reino consiste numa certa extensão de terras cujos povos são governados por um régulo sob a dependência da autoridade portuguesa; divide-se em sucos governados por um chefo (dáto) e estes em povoações governadas por um catuas. Do português.

rekérè, v. Reclamar, exigir, requerer; do português.

réza, v. Rezar, orar, fazer oração; do português.

rícu, adj. Rico, abastado; s.n riqueza, fortuna, haveres; do português.

róda, rodan, rônda, s. Cordão que prende a rede do camaroeiro (clahat) ao aro; corda que retesa as peles nos tambores etc.; roda, aro, volante; do português.

román, romao, s. Romanzeira, romã; do português.

rônda, v. Rondar, vigiar; s. ronda; veja roda; do português.

rósa, s. Rosa, roseira (ai funan rosa); do português.

róta, s. Bengala, chibata, vergasta ; do português.

sáas, v. (Alas) Ser suficiente, chegar, bastar; do português, assaz (?).

sában, s. Chávena, chícara; do português; hudi saban (t.h.) (?).

sabán, s. Sabão; sabân mourin, sabonete; do português.

salga, v. Salgar, deitar sal; do português.

samána, s. (t. h.) Semana; do português.

sanbíla, s. Plaina, cepilho; v. aplainar, acepilhar; do português.

santantóni (ai), s. Uma árvore de flores brancas odoríferas (árvore de Santo António); do português.

santo, s. Santo, justo, bem-aventuado, as almas dos justos; estátua ou estampa religiosa; do português.

santolínu, s. Objectos religiosos antigos que os timorenses conservam em grande veneração
julgando conterem relíquias do Santo Lenho; do português.

sapéu, s. (t. h.) Chapéu; do português.

sapátu, s. Sapato, bota; ai sapatu, uma planta de cujas flores se extrai tinta preta; do português.

sarútu, s. Charuto; do português.

sébi, s. Chefe; do português.

secréta, s. (Uma secreta) Secreta, retrete; do português.

séla, v. Selar, pôr a sela ou selim; do português.

sélan, s. Sela, selim, coxim, albarda; do português.

selín, s. (t. h.) Selim, sela; do português.

sentídu, v. Acautelar-se, ter cuidado, tomar sentido; s. cuidado, sentido; do português.

sentinéla, s. Sentinela, vigia; v. estar àlerta, estar de sentinela; do português.

sepedéra, adj. Háas sepedera, uma variedade de mangas; do português "chupadeira" (?).

serbí, v. Servir, obedecer, estar na dependência de; ami haçara de' it serbi ba Ita-Boot, nós queremos somente ser súbditos; do português.

serbíçu, v. Serviço, trabalho ; do português.

séri, adj. Sério, sisudo, sossegado (oin seri); do português,

 sêrun, s. (Samoro) Cheiro; do português (?).

sicôru, s. O m. q. sicouru.

sicóuru, s. Socorro, auxilio, ajuda; v. socorrer, auxiliar, ajudar ; do português.

 sinál, s. Sinal, marca, distintivo ; do português.

sinár, s. O m. q. sinal.

sinór, s. Senhor; do português.

sinora, s. Senhora; cenoura (planta); do português.

sínti, v. Sentir; do português.

sintídu, (t. h.) O m. q. sentida.

sínu, s. Sino, sineta; dere sinu, tocar o sino; sinu lian, o som do sino; do português.

sírzi, v. Serzir, arremendar; sin. ca'ut; do português.

sita, v. Chita; adj. de chita; do português.

soldadu, s. Soldado; do português.

sôldu, s. Sôldo, ordenado; sin. cole; do português.

sombréru, s. Guarda-ehuva, ombreiro, sombrinha; do português.

sorti, s. Sorte, ventura, fortuna;  do português.

strúbi, v. Destruir; do português.

suàngui, s. Lobisomem etc., o m. q. buan; a palavra suángui não é usada em tétum, parece ser o aportuguesamento da palavra malaia suang à qual corresponde a buan em tétum.

subêru, adj. (Luca) Atrevido, arrogante, soberbo; do português.

Sucé, s. pr. José; do português.

suceder, s. Desgraça, infortúnio, calamidade; v. suceder uma desgraça; do português.

súci, v. (Dili) Acompanhar, associar-se; s. companhia, súcia; do português.

suma, v. Suma uè, abrir covas no leito da ribeira para aproveitar a água filtrada através da
areia; fumar (corrupção da palavra portuguesa).

sumáçu, s. Chumaço, travesseiro, almofada; do português,

tabácu, s. Tabaco; tabacu rahun, rapé; do português.

táçu, s. Tacho, caçoila; do português.

tamáti, s. Tomateiro, tomate; do português.

taráta, tarátar, v. Insultar, injuriar, tratai mal de palavras; do português.

tênda, s. Barraca ligeira, tenda;do português.

ténpar, s. Temperos, adubos; v. temperar, adubar; do português.

tenta, v. Tentar, induzir ao mal; do português.

tentaçán, s. Tentação; do português.

térmu, s. Tèrmo, documento, acta; do português.

tiia, tían, s. Tia ou tio; do português:

tímur, adj. De Timor, timorense, natural, oriundo ou produzido em Timor (em oposição a
maldè que se refere a coisas importadas, ou produzidas fora da ilha); haas timur, manga nativa (de inferior qualidade); cabas timur, algodão indígena da Timor;

tinta, s. Tinta; do português,

tíntu, túa tíntu, s. Vinho tinto,vinho; do português.
tíru, s. Tiro; v. apontar, fazer pontaria; ir em direcção a, ir direito a (la'o tiru ba...); do português.

titia, s. Tia, minha tia: do português.

tíu, tíun, s. Tio materno; do português.

trúca, v. Trocar, mudar, substituir; s. substituto, sucessor; do português,
 
uáca, s. Boi ou vaca; carau uaca avian, boi; carau uaca inan, vaca; o m. q. baca; do português.

úbas,  s. Videira, uvas; do português.

úvas, s. Videira, uva, cacho de uvas, o m. q. ubas; do português.

vadíu, s. e adj. Vàdio, o m. q. badíu; do português.

verónic, s. Medalha religiosa; do português "Verónica".
 
Obsrevações -  (t. h.)—Tétum da parte holandesa (do vocabulário tétum dos
missionários de Timor holandês)

Fonte: Mendes, Manuel Patrício, e Laranjeira, Manuel Mendes (1935). Dicionário Tétum-Português. Macau: N.T. Fernandes & Filhos. (Disponível em formato digital na BNP - Biblioteca Nacional de Portugal.)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG) (Atenção: não somos linguistas nem estamos a seguir a ortografia oficial do tétum)

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25426: Timor-Leste, passado e presente (2): Exorcizando fantasmas da história: reparações... ou reconciliações ?... Apostemos, isso, sim, no ensino e promoção do tétum e do português

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25555: Fotos à procura de... uma legenda (180): não sendo a G3, que espingarda automática empunham estes dois militares do BCP 21, no Leste de Angola, c. 1970/72 ?


Angola > Leste > O alf mil paraquedista Jaime Silva, do BCP 21 (1970/72), em 1970, a norte do Rio Cassai... Alguns leitores fizeram comentários sobre o tipo de arma que os dois militares empunham... Não era, de facto,  a G3, que equipava os paraquedistas, pelo menos no meu tempo, no CTIG...Oportunamente, o nosso camarada Jaime Silva, que tem uma forte ligação à Guiné e aos paraquedistas, mas fez a sua comissão de serviço em Angola, nos poderá esclarecer esta dúvida.

Foto (e legenda) © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentou o nosso camarada e tabanqueiro Victor Costa, ex-fur mil at inf, CCaç4541/72 (Safim, 1974):

A arma dos militares atravessando terreno alagado, na fotografia,  é parecida com a 5.56mm Colt XM177E2 Commando.

Projetado por Eugene Stoner, o M16 surgiu primeiro como o AR-10 de 7.62mm, em meados dos anos 1950, seguido pelo AR-15, adaptado para a munição de 5,56mm. 

A arma teve exportação significativa para o Sudeste Asiático, Reino Unido, Força Aérea dos EUA e,  finalmente, o Exército dos EUA, que lhe deu a designação M16. 

A promessa inicial não foi cumprida, quase na totalidade, nos primeiros anos de serviço no Vietname, onde revelou tendência para encravar em combate, tendo que ser mantido muito limpo (algo difícil de conseguir na selva). Descobriu-se que o problema se devia a uma nova carga propulsora. 

As modificações na arma e na carga propulsora produziram uma excelente espingarda automática,  o M16A1. O fabrico em plástico e aço prensado tornou-o mais leve e a elevada velocidade da munição compensou o seu pequeno calibre, em combate. O M16 surge numa variedade de formas modificadas, incluindo versões de cano pesado e curto. (...). 

Esta versão tem a designação de 5.56mm Colt XM177E2 Commando (...).
 
23 de maio de 2024 às 19:09 


2. Nota do editor LG:

Os nossos leitores não precisam de convite para confirmar, informar ou completar esta informação do Victor Costa (**).  Os nossos camaradas paraquedistas estão à altura de dizer algo mais sobre esta espingarda automática, usada por volta de 1970/72, pelo BCP 21, em Angola, nomeadamente no Leste.