terça-feira, 6 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20038: Escritos do António Lúcio Vieira (2): De novo o tempo se quedou... (Excerto do livro "O Mouro da Praia da Foz")


Guiné > Região do Cachei > Rio Cacheu > c. 1966/1967 > Destacamento de São Vicente, ligando Bula a Ingoré.  Uma LDM [, a 308,] da Marinha fazia a cambança do rio Cacheu. Na foto, o Lúcio, à direita, com o Miranda e outro militar.

(...) Estive seis meses de intervenção em Bula e 17 meses em Ingoré, na fronteira norte com o Senegal. Daí conhecer muito bem as passagens em João Landim e S. Vicente- (...) O Machado era um dos vários exemplares da Companhia [, a CCAV 788 / BCAV 790, Bula e Ingoré, 1965/67], com aptidões variadas. Uma delas era exactamente a apetência para dar nas vistas. Representava, como poucos, as cenas mais desconcertantes que possas imaginar. As vítimas, muitas vezes, eram os "maçaricos" das Companhias que "estagiavam" connosco, tanto em Bula, como depois em Ingoré.

[...) Trata-se de uma barraca do pequeno destacamento da Marinha que ali assegurava a manutenção da LDM que fazia a travessia do rio. Vejam-se mensagens e os "autógrafos" que a rapaziada lá ia deixando, "grafiatadas" nas paredes"! (...): "Visite o hotel Bandalho",  "LDM 308 C/M Rego", "Coruche, 31-1-66", Parque de Nudismo"...

Foto (e legenda): ©Lúcio Vieira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Carta da Província (1961) > Escala: 1/500 mil > Posição relativa de São Vicente, no rio Cacheu entre Bula e Ingoré. Hoje há uma moderna ponte, de tecnologia e construção portuguesas, em São Vicente, no Rio Cacheu, É a chamada "euroafricana" (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



Guiné-Bissau > Região do  Cacheu > Rio Cacheu > Ponte de São Vicente (ou ponte Euro-Africana). Início da construção construção em 2007.


Guiné-Bissau > Região do  Cacheu > Rio Cacheu > Ponte de São Vicente (ou ponte Euro-Africana), em betão armado, com 670 metros de comprimento, inaugurada em 2009. A construção esteve a cargo da portuguesa Soares da Costa.

Fotos do geólogo e fotógrafo Pedro Moço, autor do blogue "Construção da Ponte de S. Vicente - Guiné.Bissau" (com a devida vénia).


António Lúcio Vieira, ex-fur mil,
CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67)
DE NOVO O TEMPO SE QUEDOU - Nenhum acto é mais irracional que a morte de um ser humano às mãos de outro (**)

por António Lúcio Vieira (***)

Os contornos alaranjados, de um sol que prometia calcinar, surgiram por entre as copas do mangal. A um sinal do guia, a coluna parou. Embora soprasse uma brisa fresca, naqueles derradeiros dias da época das chuvas, quando as temperaturas se tornam impiedosas, os corpos transpiravam abundantemente, como resultado da longa  caminhada nocturna, de muitas horas. Por isso parámos.

Daí a pouco – diziam-nos a experiência e os sentidos – as aves acordariam com o som infernal das rajadas e rebentamentos e nenhum homem podia estar fisicamente cansado, quando entrasse no mortífero jogo. olhámos uns para os outros, em busca de reacções, mas os rostos denotavam a mesma frieza e impassibilidade de tantas outras ocasiões anteriores.

Estávamos, “apenas”, mergulhados em mais uma operação de assalto a um reduto inimigo, desta feita na região de Zinguichor, na linha de fronteira com o Senegal. Só isso. E isso era o que de mais vulgar nos podia acontecer, naqueles estranhos dias, no mato húmido e ardiloso da Guiné. Havia já tanto tempo que vestíamos a pele de guerrilheiros experimentados, que as recordações dos dias banais quase se haviam desvanecido. Porquê preocuparmo-nos agora com um acontecimento, tão aparentemente banal, como pode ser um desafio à morte?

A guerrilha transformara-se, com a rotina permitida pelo tempo, num indelével estigma da nossa existência: um poderoso e inebriante elixir, que nos provocava os sentidos, com desusado vício, e uma quase constante sensação de embriaguez. Tratava-se, afinal, de mais um banal desafio às nossas capacidades e nenhum de nós sabia porquê, nem de que modo, se recusam assim os levianos desafios de vida e morte. A voz do capitão soou no AVF, num aviso sussurrado e lacónico: “Entrámos na zona do objectivo. Máximo silêncio, progressão fantasma”.

Lentamente, com mil cautelas, de olhos e sentidos despertos, recomeçámos a caminhada, agora medindo os passos e as sombras, já de armas em riste e prontas a  iniciar acção de fogo. À frente a atrás da coluna, sentiam--se os olhares de muitas dezenas de homens perscrutando a barreira verde-densa, que ornava as margens da picada, sinuosa e atapetada de ramos e folhas secas. Da progressão de mais de centena e meia de militares, apenas pairava no ar um breve quebrar abafado, provocado pelas folhas secas esmagadas pelas botas de lona.

O pesado silêncio que se abatera sobre a mata – dizia-nos o saber adquirido – não augurava nada de bom. Cherno, o experimentado guia fula, sábio na leitura de pistas e sinais, agitava-se, inquieto e olhava-nos, a espaços, com uma estranha expressão que nunca antes lhe vira. Um pouco adiante, ao dobrar um pequeno renque de cajueiros, a testa da coluna entrou em zona menos arborizada, pejada de mato rasteiro e bordejada por um pequeno mangal. Bruscamente, uma estreita barreira de capim anunciava o fim da savana. À nossa frente, em semicírculo, perfilava-se de novo a mata densa, de árvores enormes, de musculados troncos. Entre a parede de capim e a fronteira da mata, abria-se uma extensa clareira, demasiado extensa e aberta, como as suspeitas e o temor que nos assaltaram.

Quando as primeiras rajadas de pistola-metralhadora acordaram o silêncio, lançadas raso ao solo por duas sentinelas entrincheiradas em abrigos individuais, os homens da  frente, na testa da coluna, atingiam a orla da mata. Era uma ratoeira. Apercebemo-nos da situação no primeiro instante, quando o fogo inimigo começou a esventrar o solo à  nossa volta, abrindo, com incessantes rajadas, caprichosos sulcos mortíferos, como bichas-de-rabear, que nos zurziam aos ouvidos, se infiltravam enfileiradas no chão, quais formações de formigas e nos contornavam os corpos deitados, como se batucassem uma ritual dança de morte.

A mata à nossa frente abria-se em apertado circulo e o inimigo acoitava-se aí, em todo o redor da “ferradura”, a coberto dos trocos espessos e, lá no cimo, dissimulado na ramagem frondosa das imponentes árvores centenárias. No meio, desprotegidos na calva clareira que a mata envolvia, estávamos nós. Expostos e vulneráveis.

O matraquear medonho das armas esboçava uma visão de apocalipse, abalando-nos o âmago e acordando-nos de novo para a eminência do perigo que, em tantas ocasiões semelhantes, de imediato nos tornava animais acossados. E era desse medo, estranhamente inconsciente, porém controlado, que germinava um quase sobre-humano, levianamente inevitável e incorrigível, desprezo pelo silvar das balas, com que, persistente e com demasiada eficácia, tentavam silenciar-nos.

Era imperiosa uma leitura serena da situação e uma tomada urgente de decisões, antes que os morteiros 82, dos artilheiros do PAIGC, corrigissem o ângulo e a Companhia de Infantaria, recém-desembarcada em Bissau – que nos reforçava a retaguarda, naquele que foi o seu baptismo de fogo – se visse envolvida pelos experimentados guerrilheiros guineenses.

O capitão mandou assim avançar o grupo de assalto “Os Dragões”, para envolvimento pela direita, enquanto me ordenava que deslocasse, pelo flanco esquerdo da ferradura, os homens dos “Craques”, numa tentativa de espartilhar os elementos mais avançados do inimigo.

À minha frente, o Jaime, um dos mais hábeis artilheiros do meu grupo, praguejava com a Dreyse, que se encravara, enquanto, muito perto da minha posição e à ilharga dos homens sob o meu comando, o recém-transferido Furriel Miranda, surpreendentemente calmo, acendia um cigarro e percorria com o olhar as copas das árvores, em busca de alvos. Impressionava a frieza e domínio daquele moço cabo-verdiano, serenamente sorridente e despreocupado.

Do interior da mata, ceifando capim e descarnando arbustos, soavam novas rajadas, por entre as quais se distinguia, com enervante nitidez, o cantar irritante de duas metralhadoras ligeiras, estrategicamente instaladas nos flancos da mata. A escassos metros dos homens do meu grupo, o “Aranha”, artilheiro-mor dos “Dragões”, procurava raivosamente silenciar uma delas, à morteirada – com o morteiro 60 abraçado junto ao sovaco, em posição de tiro tenso – e com a destreza e o sangue frio que toda a Companhia lhe reconhecia.

Ao segundo disparo, a metralhadora suspendeu o matraquear e, como que obedecendo a um sinal, todas as armas, de ambos os lados do campo, se calaram. Um manto impressionante de silêncio desceu na mata e envolveu tudo e todos. Olhei em redor os homens do meu grupo, em busca de feridos. Ilesos, dispersos pelo chão, acoitando-se à protecção de troncos caídos, ou nos pouco numerosos morros de baga-baga – altas formações de rijo barro, construídas pelas vorazes colónias de formiga salalé – rompiam com o olhar a densidade da mata, tentando adivinhar as sombras e os segredos, que se aprestavam para um confronto que, do outro lado do bosque, se suspeitava persistente e se tornaria, se necessário, desprendida e pacientemente longo.

Sentia-se, em muitos daqueles jovens militares, uma inabalável decisão, uma quase  teimosa valentia, denunciadas pela estranha tranquilidade nos rostos e nos gestos. Homens, tão arreigadamente decididos, quase sempre aldeões, tão cedo e tão abruptamente arrancados ao conforto materno, viam-se movidos, quantas vezes sem sequer entenderem princípios e razão, para as malhas de obstinados interesses, tão distantes e desligados dos sonhos de futuro, com que, no dia-a-dia, alimentavam a pacatez da arrastada existência, que ao povo humilde coubera em sorte.

Quase sempre, também, sem um gesto de revolta, sem uma palavra de raiva, sem um arredar da barricada, sem comida e sem água, tanta vez, sem uma lágrima de desespero. Sem pernas, sem braços, quantos deles; sem futuro nem esperança: outros ainda sem vida.

Alguns metros atrás, no flanco direito da orla da mata, o furriel enfermeiro, irrequieto madeirense, gracejava, enquanto acudia ao braço do Cabo “Mané”, riscado por uma bala, felizmente sem sorte. Mesmo ali, enquanto dispersas salvas de rajada, mantinham vigilantes as forças em confronto, o funchalense Ilídio – meu particular companheiro de ócios e perigos – mantinha o apurado e incorrigível sentido de humor, que o distinguia no conjunto da Companhia, enquanto se entregava à nobre tarefa de sarar os corpos dos homens no terreno.

Escolhi esse momento para me levantar e correr para um abrigo melhor, que vislumbrara pouco antes, formado por um tronco caído, junto a um trilho, trinta metros  adiante. Mal me havia erguido do chão quando, de uma árvore próxima, saiu uma curta rajada e depois outra mais longa. A primeira cravou-se no extremo do tronco onde antes me abrigava: a segunda, alguns metros adiante, levantou um sopro de poalha acastanhada, quando se cravou num morro de salalé, onde um dos homens do meu grupo pouco antes se havia recolhido.

Corri a trintena de metros, em busca de melhor local para me acoitar, enquanto disparava pequenas rajadas para as copas de duas das árvores, de onde me visavam. Mas os meus disparos já não se ouviam, confundidos na macabra sinfonia do estouro das muitas armas dos rapazes da frente. Recomposto, o “Mané” aprontara já o morteiro 60 quase na vertical, soltando-lhe, logo depois, uma granada. Segundos volvidos, o projéctil mergulhava na copa do bissilão, fazendo saltar ramos e folhas, pedaços de tronco, carne humana e metal.

Depois, o silêncio abateu-se de novo. Pelo ANGRC9 a troante voz de tenor do capitão perguntava se os T6 estavam demorados. Respondeu-lhe o comandante da pequena esquadrilha, avisando da chegada do apoio aéreo ao objectivo em cerca de três minutos. E pedia coordenadas para o lançamento das bombas. No alto, sobrevoando  a zona, a bordo da pequena Dornier, o comandante de batalhão informava: “Abutres na zona”. O Poiares afastou, por momentos, o ouvido do AVF, olhou-me e gritou: “Estão a chegar os aviões. Ouvi agora no rádio”.

Não tardou o som tonificante dos motores dos dois T6 da Força Aérea. Localizado o alvo, picavam, em sucessivas passagens sobre o denso bosque, com manobras de voo rasante, libertando das asas cargas mortíferas, que afundavam crateras e mutilavam árvores e homens, enquanto as armas ligeiras, dos efectivos do PAICG, disparavam descoordenadamente sobre eles, tentando abatê-los. Tudo em redor pareceu eclodir, num apocalíptico derrocar da própria natureza e das vidas que ali se acoitavam.

Respirámos fundo, por escassos momentos. Aliviados de munições, os Harvard T6 rumaram à base em Bissalanca, deixando no seu rasto, para além de sementes da morte, um estranho e cavado silêncio. Pelo rádio chegou o aviso de que as munições  dos “Dragões”, que ocupavam a frente da flecha, ameaçavam esgotar-se. A uma ordem do capitão, o meu grupo e o do Furriel Miranda avançaram. Possuíamos um resto de munições e era-nos ordenado que reforçássemos a vanguarda, na zona mais próxima da primeira linha da guerrilha africana, dissimulada na mata. Cerca de trinta homens apenas, naquela ponta da flecha e uma, preocupantemente reduzida, reserva de munições. Ninguém, no seio dos dois pequenos grupos de assalto, queria pensar no que aconteceria quando, balas e granadas, do nosso escasso grupo de homens, se acabassem.

Éramos, nas circunstâncias, a derradeira esperança de romper a passagem e fazer recuar a força sitiante, após horas de confronto, sem avanços, nem vislumbre de saída daquela armadilha em que, mesmo após a eternidade de uma já longa experiência de guerrilha, havíamos ingenuamente caído.

Algures, já em “chão francês” – como ainda, muitos anos após a independência, era apelidado o território senegalês – na orla da densa floresta, por entre pragas e gritos, sentíamos a movimentação dos homens acoitados na mata, deslocando apressadamente para a retaguarda, nos subterrâneos da base de Zinguichor, situada a escassas dezenas de metros, os mortos e os feridos, que a acção conjunta das forças no terreno e os aviões bombardeiros haviam causado.

Era aí, na referenciada base, agora estrategicamente instalada centenas de metros para o interior, em recém-construído conjunto de instalações e estreitos corredores, dissimulados no subsolo, onde não faltava um improvisado hospital de campanha, que se havia apontado o objectivo da missão. E era a segunda vez que as nossas forças demandavam o local, meses antes arrasado, aquando de uma primeira incursão à estratégica base inimiga.

Algures, alguém pedia desesperadamente um helicóptero, para evacuação de feridos. Na “DO” de comando, que sobrevoava a zona, estava-se por certo a pedir à torre de controlo de Bissau o apoio aéreo, porque, durante breves minutos, nenhum som se ouvia no auscultador do meu rádio. Quando o silêncio pouco depois foi quebrado, a voz serena do comandante Calado restabelecia o contacto, informando que o heli se dirigia a norte, rumo ao objectivo, na zona de fronteira onde nos encontrávamos.

Logo depois vi o Morais, em terreno aberto, deitado sobre um ensanguentado braço esquerdo, que a outra mão amparava. Quando ao longe se destacou a silhueta do helicóptero, chamei o cabo enfermeiro, indiquei-lhe a posição do ferido e ordenei aos homens que avançassem para a língua de bolanha à nossa esquerda, onde se montaria a segurança para a aterragem. Era um local ornado de palmeiras esguias e de frondosa ramagem, alto capim e arbustos flexíveis, que dificilmente se deixam quebrar. Não era a posição ideal para o pouso, mas a urgência da evacuação de, pelo  menos um dos feridos e a proximidade das forças adversárias, não permitiam escolha melhor e mais segura.

Metros atrás, no interior da “ferradura” da clareira, dispersas pelo chão, o grosso das nossas forças vigiava. Estava-se, claramente, numa fase de mútuo estudo de estratégia, durante a qual apenas pequenas rajadas, ou tiros isolados, quebravam o silêncio e mantinham atentos os atiradores de ambos os lados. O mato estendia-se a todo o espaço que a vista abrangia, da orla do pântano à densa floresta ao longe, que uma névoa difusa só agora, várias horas após a nossa chegada, aparentava dissipar-se. Aproximávamo-nos de meio do dia e o chão queimava. Reflexos castanho-avermelhados rodopiavam ao sol, espelhavam nos caules de capim e nas águas lodosas do braço pantanoso da bolanha.

Quando o heli, numa súbita elipse, se aproximou do solo, o vento levantado pelas pás do hélice envolveu-nos numa onda de frescura. Do interior do aparelho saíram o mecânico e uma, estranhamente calma, enfermeira paraquedista. Escassos minutos após o pouso, enquanto da mata os homens do PAIGC metralhavam a zona onde nos encontrávamos, numa tentativa de abatê-lo, o aparelho elevou-se no ar, num quase acrobático salto, brusco e veloz, levando a bordo um primeiro grupo de feridos. Antes, porém, deixara-nos o mais desejado dos presentes: garrafões de fresca água e cunhetes de munições de G3, de Dreyse, de morteiro e bazooka.

Decorreu uma silenciosa eternidade. As munições recém-chegadas distribuíam-se pelos homens, em breves lances de corrida, quase sempre acompanhados por curtas  rajadas de cobertura. Entretanto, quase sem nos apercebermos, o Alouette III regressava, terminando a evacuação dos feridos. Concluída a missão de segurança, atravessámos, em sentido inverso, a estreita língua de pântano, agora sob uma mais cerrada barreira de fogo da guerrilha. As granadas de morteiro caíam à frente e atrás de nós, erguendo cogumelos de lodo e água pestilenta e poupando, milagrosamente, o punhado de homens, que me seguiam de volta à zona da clareira que nos fora destinada.

A bolanha ali era pouco profunda, porém o facto de estarmos enterrados nela até quase aos joelhos e com as botas encalhadas no fundo lodoso e movediço, criava-nos  uma incómoda sensação de aprisionamento. De pé, quase sem capacidade de movimentos e à mercê das balas que, do interior da mata encetavam nova flagelação, tentávamos desesperadamente encetar uma resposta. “Tá um gajo de camisa verde naquela árvore, meu furriel!”- gritava o China, enquanto disparava na direcção do atirador furtivo, que se dissimulara com a ramagem, na forca formada pelo tronco. Na frente, bem no interior da ferradura, já se respondia de novo às armas do PAIGC, que pouco depois voltaram ao silêncio.

Era, porém, um silêncio pesado e angustiante, que nem as aves ousavam quebrar. um silêncio que se elevava no espaço, que parecia subir velozmente rumo ao céu, como se fosse uma maldição, ou uma prece. Mas foi efémero. Daí a pouco, por entre gritos e pragas, as forças inimigas voltaram a disparar.

Abateu-se o céu naquela antecâmara do inferno, dividida pelo espaço aberto da clareira e a fiada de árvores que escondiam a floresta. o estrondo enorme de todas as nossa armas e a consciência de que não estávamos dispostos a ceder, deve ter abalado a moral dos homens na mata porque, pouco depois, os sentimos recuar. Sabíamo-lo porque os tiros nos chegavam agora mais dispersos e distantes.

Entretanto, reabastecidos, os aviões voltaram a rasar o terreno, lançando, uma e outra vez, pesados projecteis, que abalavam a mata até às vísceras. Era uma estranha e assustadora melopeia, que se esbatia, lá longe, em ondas sucessivas. o Micas olhava os enormes pássaros de fogo, com uma expressão quase patética, enquanto gritava, eufórico, naquele seu jeito de dizer as coisas que, mesmo ali, às portas do inferno, arrancava sorrisos aos companheiros.

Era o espectáculo da morte, no seu apogeu, traduzido em nós como algo de imponente e cruelmente tonificante. O nosso primeiro objectivo era a própria sobrevivência e os T6 estavam, decididamente, a contribuir profundamente para a conseguirmos. Era isso, afinal, a premissa de todas as guerras, dos grandes conflitos às curtas escaramuças; das legítimas, onde se defende o berço, o sangue e os haveres, às movidas por obscuros interesses de hegemonia e de conquista.

Enquanto os T6 cumpriam o ritual do extermínio, em bombardeamentos retaliatórios, sentado junto a um morro de baga-baga, um cigarro tremulando entre os dedos, todo esse incómodo desfiar de ideias me atormentava a mente e repercutia no cérebro, quase tanto como o estrondo das bombas lançadas pelos Harvard, a escassos cem metros do meu improvisado abrigo. Quando nos levantámos para o assalto, cumprindo a clássica acção de busca e recolha na mata, após o som dos aviões se ter perdido para os lados do Cacheu, o equipamento pesava-nos como chumbo. A lama e o lodo,  colados ao camuflado e ao corpo e a quase incapacidade de raciocínio, inspiravam-nos laivos de inquietante irracionalidade e desvario.

E isso notava-se bastante mais quando riscávamos os olhares uns pelos outros, sem nos atrevermos a fitar demoradamente os companheiros de missão, de infortúnio, porém de sobrevivência. Autómatos, como muitos de nós pareciam ter por condição, naqueles decisivos momentos da existência. Filhos retirados às mães, perdidos num turbilhão fervente de decisões e tratados e manobras, de uma política que nenhum aprendera a ler e da qual muito menos sabia os reais motivos.

Entrámos, cautelosos, afoitando a densidade da floresta. A frescura provocada pelas sombras da mata colidiu connosco, fazendo-nos sentir, por breves instantes, seres humanos. Mas foi curto o fragor da sensação. A visão apocalíptica dos corpos mutilados, ou totalmente desfeitos, por onde o sangue ainda abundantemente se derramava, regando a terra e ceifando o que de vida lhes restava, ribombou aos nossos olhos.

Ali nos confrontávamos com o cru dilema e nenhum de nós era capaz de discernir o que os nossos olhos viam: se peças de uma máquina desfeita pelo homem, se o próprio homem esmagado pela máquina. No fundo, para as estatísticas oficiais, tratava-se apenas de, fria e levianamente, inimigos abatidos, números para constar nos relatórios, com que os feitores da guerra – habitualmente alheios às dores e traumas dos conflitos – geriam a sorte dos que matam e dos que morrem.

Autómatos, como então pensei, sorriamos, incredulamente renascidos, esquecidos já de perigos e canseiras, mesmo na presença daquela tão cruel e irreparável visão da morte. No chão, cadáveres ou moribundos, deixados para trás, jaziam homens cujo crime se resumia à ignomínia de terem nascido na sua própria terra, a uma teimosa vontade de liberdade, de viverem e morrerem naquele chão que os parira e alimentava, livres de opressões e de destinos alheios.

A acção da guerrilha, sabíamo-lo pela propaganda do movimento, não visava o povo dominador e menos ainda o dominado, que aceitava o jugo, o alvo eram os teimosamente cegos e insensíveis poderes instalados em Lisboa, que rodeavam de grilhetas todos os pulsos e todos os destinos do povo. Pior; dos povos. Sofria-se, “do Minho a Timor”, um longo e desgastante cativeiro, disfarçado, além fronteiras, pelo folclore e pela psicossocial. “Não voltaremos a ser um campo de trabalhos forçados”,  ecoava nas palavras serenas, determinadas e contidas de Amílcar Cabral.

Açoitavam-nos a mente as avisadas palavras dos líderes da guerrilha. os panfletos de propaganda, recolhidos nas tabancas, ou de mistura com o espólio capturado em bases inimigas, açoitavam-nos os olhos e as palavras transmitidas via rádio, a partir de Conacri, invadiam-nos as horas de sono e latejavam-nos na mente, tanto quanto as granadas, que se abatiam sobre a débil moral dos homens, nos esventravam abrigos e casernas e nos minavam a resistência. Que luta aquela e o que fazia, naquela distante terra de outras gentes, a juventude de um país que apenas ambicionava viver solidária e, se possível, feliz. E em paz.

De casa, bem longe, chegavam aerogramas; palavras pungentes, escritas com tinta de lágrimas, linhas de trémula caligrafia, por entre as banais consultas sobre a saúde e o bem-estar, no habitual tropel de interrogações, se queria saber se “já cá vens passar o Natal?”.

Nos homens quase em fim de comissão, prenhes de incertezas, vazios de destino e de futuro; homens de brandos costumes, cansados de guerra e de medos e raivas, os silêncios, mais do que gritados nas entrelinhas das cartas, sentiam-se nos rostos e nos olhares vazios, nos desalentos, de quantos sabíamos não poder responder a muito do que, na longínqua e descuidada “Metrópole”, nos perguntavam os do nosso sangue e os do nosso afecto: os da nossa raça.

E era maior o sentimento de frustração quando, junto às perguntas para as quais, de todo, desconhecíamos resposta, se juntavam as respostas que a prudência aconselhava a evitar. Tal como o amor, imortalizado por Camões, também as palavras, escritas ou faladas, chegadas aos ouvidos atentos dos que, na sombra, “zelavam pela defesa do Estado”, mesmo ali na antecâmara da morte, eram algo que soava como um perigoso “fogo que ardia sem se ver”, uma geração inteira, o sangue novo, generoso e  fértil da juventude de um país, levado em porões de navio para terras que não sabia, sofria amordaçado a sina de ser povo e os caprichos de quantos, muito antes ainda de ter nascido, lhe traçaram o destino e lhe ameaçaram a existência e o futuro.

Pensava-se em tudo isso, numa amálgama confusa de sensações e sentimentos, de razões e motivos, que nenhum de nós, em verdade, conseguia conscientemente entender. Embarcaram os melhores filhos de uma nação em porões de barcos e eles foram. Decretaram-se neles ordens de matar ou, heroicamente morrer. E os filhos do povo, que já tanto sofria na carne a agrura de ser cativo na sua própria terra, partiram, tão espiritualmente vulneráveis, como galhardamente afoitos. Matando, muitos deles; morrendo, ingloriamente, outros tantos. Crianças, há tão pouco, tantos de nós por ali errantes, por entre os nevoeiros da vida, procurando nortes e caminhos, sem saber, quantas vezes, que passos encetar em busca de futuro e sorte.

Pensamentos que, tantos de nós, nos rincões da branda terra portuguesa, ou nos densos e ardilosos matos africanos, sentíamos ecoarem nas mentes, martelando com desusado estrondo as horas de vigília das longas noites de atalaia. ou furtando os pés aos segredos, em longas progressões nocturnas no terreno, semeado de mistério e incertezas. As nossas noites eram, havia muito, noites sem sono, noites sem estradas nem destinos. Sem luar, ou um farol: noites, sequer, sem certezas de haver amanhecer.

Naquele discreto espaço, anichado ao Golfo da Guiné, que a imprensa estrangeira tenebrosamente apelidava de “Vietname de África”, parcela de território pouco mais vasta do que a continental superfície alentejana – escassos 36 mil quilómetros quadrados de chão pantanoso, onde as febres mortais abundam; nesga de África espartilhada pelos limites do moderado Senegal e da hostil República da Guiné-Conacri – ali mesmo, perdido no abafado e castigador clima tropical, adiava-se o futuro de dois povos, distintos e distantes.

De um lado o sangue novo e válido de Portugal que, na mente e no corpo, sofria traumas, que as gerações seguintes não iriam poder sarar. Do outro lado do conflito, a juventude africana que, em recurso, de armas na mão, dizia ao secular colonizador que era tempo de assumir nas suas mãos os destinos do seu próprio povo e que apenas a ele cabia escrever o futuro da sua própria terra.

Já por todo o mundo civilizado as potências colonizadoras tinha escutado e entendido as legítimas aspirações do martirizado continente africano. Menos em Lisboa, onde repousava o autismo e a alma de todo um povo se vestia de luto, em cada barco que chegava, em cada medalha póstuma.

Vinha-nos à mente tudo isso enquanto, perscrutando a ardilosa floresta, invadimos a proibida barreira da fronteira senegalesa. Para além dela, em zona tabu, a base inimiga desalojava, apressadamente, para o interior, os mortos e feridos que, ao longo daquela longa manhã, os guerrilheiros conseguiram evacuar. Numa rápida acção de busca e recolha, capturámos armas e documentos e encetámos o regresso. Não era aconselhável prolongar o avanço, já que o território que pisávamos era soberano e o Senegal não se apresentava como opositor declarado de Portugal. Nada mais havia ali a fazer. As duas centenas de homens, autómatos macerados das duas companhias no terreno, estavam exaustos após seis terríveis horas de fogo.

Sobreviver a um dia assim, dilacera na alma cicatrizes, tão dolorosamente insanáveis e tão eternamente demoníacas, que nenhum homem, nascido e moldado no barro dos afectos e da razão, espiritualmente lhe resiste. Algures, o poema recorda: “nunca se regressa apenas vivo / ainda que a guerra finja não matar”.

Ouvem-se os tambores da guerra, por uma vez, “e nunca mais se retoma a inocência / nem a vida”. E nenhum bálsamo era, ainda assim, mais prodigioso do que a certeza que, para além do germinar dos sinistros e infindáveis pesadelos, arautos do ruir do humano, que nos enfeitiçara a existência, a epopeia da morte não lograva dissipar o pensamento de que podíamos, apesar de tudo, lidar com o inferno e a sombra da mortalha. o sol do meio-dia, que só então parecia ter despertado, espelhava-se a oeste num ténue cirro de nuvens, que se alongava em línguas poeirentas, como tempestades de areia e queimava, mais do que o sibilar das balas e o explodir das granadas, que nos haviam tentado o corpo.

Mas a ligeira brisa que se levantou de sul surgia como uma revigorante terapia de esperança, rasgando as fronteiras de um dia que se anunciava mais promissor e radioso, porque a vida nos devolvia aos recantos da alma, onde o espectro da morte, uma vez mais, se tentara dissimuladamente insidiar.

Depois, na penosa caminhada para sul, a coluna regressou, pelos meandros sinuosos da picada.

António Lúcio Vieira

In “O Mouro da Praia da Foz”  (Lisboa, Chiado Editora, 2014) (cortesia do autor) (****)
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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P20037: Parabéns a você (1659): Cor Inf Ref Fernando José Estrela Soares, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2445 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor_

Último poste da série de 4  de agosto de  2019 > Guiné 61/74 - P20033: Parabéns a você (1658): José Nunes, ex-1.º Cabo Mecânico-Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira (ex- Alf Mil Inf da CCAÇ 1420 - Guiné 1965/67 e Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 - Guiné 1970/72)

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20036: Notas de leitura (1206): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Luís Barbosa Vicente é um gestor e um associativista que, mesmo vivendo em Portugal, acompanha dia a dia as questões matriciais do seu país. Recomendo a todos esta análise sobre o Estado, o modo de fazer política, o viver de costas voltadas entre os órgãos de poder e as sociedades civis guineenses. O autor adianta propostas da reforma do Estado e modernização da administração pública e abona dados para um paradigma de desenvolvimento que exige uma clara reformulação dos órgãos do poder, está convicto da mensagem certeira de Cabral de que o reconhecimento da luta de libertação não seria ganha pela sua geração mas sim pela geração seguinte, ele confia que há uma geração seguinte que recolocará a cidadania guineense no mapa de África e do mundo.

Um abraço do
Mário


Olhares sobre a Guiné-Bissau depois das eleições de 2014, até hoje (1)

Beja Santos

A obra intitula-se “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016. O autor é guineense e desenvolve ampla atividade como gestor de projetos e desenvolvimento e, igualmente, como formador e consultor da União Europeia.

As eleições de 2014 trouxeram uma vaga de esperança num país desolado que saía de um ditadura militar encabeçada por narcotraficantes. Em pouco tempo, surgiram contradições, questiúnculas e tensões insanáveis nos diferentes órgãos do poder. A Procuradoria-Geral da República emite logo nesse ano um parecer sobre a inconstitucionalidade de um decreto presidencial, o Supremo Tribunal de Justiça delibera no mesmo sentido, o Tribunal de Contas aprecia o primeiro Relatório de Contas de Estado referente ao ano de 2010. O Procurador-Geral e o Presidente do Tribunal de Contas foram prontamente demitidos, era o princípio da confusão.

Observa o autor que “A garantia de desempenhar cargos altamente remunerados associados aos privilégios da função é a mistura explosiva para as disputas intestinas pelo poder. É importante realçar que o exercício desses cargos, nomeadamente de ministros, secretários de Estado, assessores, conselheiros e até de presidentes ou vogais de conselhos de administração de empresas públicas garantem um salário líquido mensal de 2,5 milhões de francos CFA, que corresponde a cerca de 3700 euros, num país onde o salário mínimo é de cerca de 46 euros”. E há um pano de fundo que não se pode descurar: o miserabilismo da função pública, a existência de um número muito elevado de serviços e imprecisão relativamente às atribuições dos mesmos, a não oficialização de leis orgânicas, desarticulação entre as estruturas e os postos de trabalho – a máquina da administração pública vive emperrada, os técnicos esmifram-se por fazer serviço externo e obter ajudas de custo, vão em missões que na maioria dos casos nada traz de tangível ou de palpável, já que os serviços públicos continuam ineficientes e inacessíveis à generalidade da população.

E há a existência de um governo que produz legislação em circuito fechado, a reforma do Estado é sistematicamente adiada. Dentro dessa confusão e inércia, depois das eleições de 2014, no período de um ano assistiu-se à formação de quatro governos, com situações caricaturais, veneno mortal para o descrédito dos órgãos de soberania. Refere igualmente o autor que em Junho de 2015 foi nomeado um governo liderado por Baciro Djá, um dos 15 dissidentes expulsos do PAIGC, com o apoio parlamentar do partido da renovação social. Como numa obra cómica, o recém-governo teve que se reunir no Ministério da Administração Interna, uma vez que o Palácio do Governo continuava ocupado e sitiado, o PAIGC recusara a nomeação de um novo primeiro-ministro.

Luís Vicente debruça-se sobre os custos da política sem regra, mostra os indicadores económicos e recorda que em cada ciclo de crescimento há uma rutura que deita por terra o trabalho antecedente. Os políticos permanecem indiferentes à turbulência: “De 1984 e posterior abertura democrática até à presente data, nenhum governo conseguiu concluir o seu mandato, o que só por si inviabiliza o cumprimento de qualquer programa de desenvolvimento económico ou orçamento de Estado".

Há que ponderar o que está subjacente à crise encetada em 2014: os principais protagonistas provêm do PAIGC, parecem atuar em grupos, ignora a solidariedade política, as fragilidades institucionais, descuram as consultas públicas e o contacto estreito com os eleitores das diferentes regiões de onde provêm. O Presidente da República devia ser o garante da concertação estratégica, o símbolo da unidade, o rosto da independência nacional, árbitro e defensor da coesão nacional. Pela Constituição, tem o poder de presidir ao Conselho de Ministros e solicitar informações sobre atos de governação e matéria do debate político na Assembleia da República. Tudo emperrou logo com o governo de Domingos Simões Pereira, o autor detalha as principais peças de tragicomédia. Numa fase crucial de negociações com a comunidade de dadores para se obter apoios fundamentais, consubstanciadas na Mesa Redonda de Bruxelas, agravou-se a crise política, José Mário Vaz e Domingos Simões Pereira davam a imagem pública da desavença e incompatibilidade com o relacionamento institucional. O Presidente da República discursou em Agosto de 2015 e lembrou a incapacidade do Primeiro-Ministro para a coabitação institucional, faltavam informações básicas, faziam-se nomeações sem ouvir o presidente da República e este lembrava um estado de dissolução em que o governo se mostrava impotente: exploração desenfreada dos recursos naturais, em particular as areias pesadas de Varela; corte abusivo de árvores; delapidação dos recursos pesqueiros; corrupção, peculato e outros crimes económicos no exercício das funções públicas; falta de transparência na adjudicação de contratos públicos. O Primeiro-Ministro demitido procurou justificar-se, e contra-atacou dizendo que podia provar objetivamente as informações inverídicas do Presidente da República. De acordo com a constituição, o partido vencedor das eleições, o PAIGC, foi convidado à apresentar um nome para o cargo de chefe do Governo, tendo o mesmo recaído no presidente do partido, o mesmo Domingos Simões Pereira, houve pronta rejeição com o Presidente da República. O PAIGC entendeu publicamente criticar o Presidente José Mário Vaz, acusando-o de querer chamar a si todas as competências do Governo, que estava a desencadear uma crise que levava as receitas fiscais a cair a pique, alegando que a evolução da situação económica do país era bastante encorajadora e que toda esta crise política podia levar ao cancelamento de apoios prometidos na mesa redonda de Bruxelas.

É neste ponto expositivo que o autor entende retomar o legado político do PAIGC, porventura para encontrar os porquês desta crónica falta de lealdade política, de ética no exercício das funções político-partidárias, do amiguismo. Recorda o entendimento de Amílcar Cabral quanto ao sentido de unidade: “quaisquer que sejam as diferenças que existam, é preciso ser um só, um conjunto, para realizar um dado objectivo”. Só que tal mote foi sempre objeto de grandes contradições internas. Como suporte básico para essa unidade, Cabral delineou dois programas de ação: um programa maior, que passava pelo desenvolvimento socioeconómico do país; e um programa menor que tinha por objetivo a libertação do país do jugo colonial. Na arrancada da independência, com ajuda internacional formaram-se guineenses com cursos superiores, com curso técnico médio, com cursos profissionalizantes e quadros políticos e sindicais. O PAIGC perdeu a linha revolucionária, desligou-se das sociedades rurais, concentrou-se na mera gestão da continuidade do poder, houve a crise de 1980, a unidade Guiné-Cabo Verde volatizou-se e os problemas da cidadania, do desenvolvimento e da educação entraram em refluxo, tudo se agravou com o chamado plano de ajustamento estrutural, aos poucos os homens da luta foram dando lugar a uma nova classe de profissionais na obtenção de financiamento para projetos, ponteiros, importadores, tudo dentro de um vasto círculo de oligarcas amigos, com contas bancárias no estrangeiro.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20035: Notas de leitura (1205): "O Mouro da Praia da Foz e Outras Vidas de Outras Gentes", romance de António Lúcio Vieira (Chiado Editora, Lisboa, 2014, 22pp.)

Guiné 61/74 - P20035: Notas de leitura (1205): "O Mouro da Praia da Foz e Outras Vidas de Outras Gentes", romance de António Lúcio Vieira (Chiado Editora, Lisboa, 2014, 22pp.)

Título: O Mouro da Praia da Foz e Outras Vidas de Outras Gentes
Autor: António Lúcio Vieira
Data de publicação: Janeiro de 2014
Número de páginas: 229
ISBN: 978-989-51-0763-6
Colecção: Viagens na Ficção
Género: Ficção
Editor: Chiado Editora, Lisboa.
Preço de capa: 12 €




Sinopse

António Lúcio Vieira (*)
Nasci na Rua da Cova, naquela baixa e discreta casinha de piso térreo, que se anicha, timidamente, ao canto do patamar. Não há, ainda agora, naquela ribatejana vila de Alcanena, mais poético recanto.

Perco-me nas voltas do tempo. Sei, ainda assim, que residimos quase sempre nesse romântico casulo, que então me parecia um casarão, até ao início da viagem, que me havia de resgatar àquele ninho e àquela rua - com a casa avarandada da ti’ Ludovina por atalaia - e lançar nos braços do sonho, das utopias e das escarpas da vida.
Por algum tempo, após a viuvez de minha tia Maria, os meus pais tomaram as rédeas da padaria da família. Durou pouco o deslumbre. O meu pai não era, decididamente, homem de prisões. Aquele quotidiano espartilho, entre as quatro paredes do forno e da sala da amassadeira, não cativava aquele serrano, nascido para as bandas de Alvados, nas abas da Serra d’Aire. O homem sonhava com o mundo, os caminhos, os espaços e as paisagens. Queria andar por aí, por longes terras. Não tardou que a padaria se tornasse rotina do passado e o determinado aventureiro retomasse o apaixonado percurso de desbravador de estradas e fronteiras, geradores de estórias e imagens, que ainda agora me marcam a existência. Herdei-lhe isso, pois herdei!

Nasci no Ribatejo. Nasci no povo e do povo. Os primeiros e decisivos dezoito anos, na minha Alcanena natal, foram, sei-o hoje, muito mais do que uma vida. Mergulho as minhas raízes, desde o início, nos alcatruzes dos dias, nos sonhos dos homens e nos socalcos desta orgia de existir. Guardo, desse tempo, a ânsia de cavalgar impulsos, a alma da cigarra, que por vezes segrega a formiga, a vontade de partir em eterna aventura pelos mundos, que cada vez se tornam mais remotos e guardo, desde então, um gritante desprezo pelos ouros e lantejoulas que vestem a sociedade.

Era o embrião do incorrigível paladino e sonhador que, pela mão do avô, se intrusava na tertúlia do Facão e escutava, surpreso, os desalentos dos operários, a luta diária pelo pão, os reveses e frustrações, as doenças dos filhos, as lágrimas das esposas e o cansaço precoce dos braços e do sangue.

Sou assim. Da infância retenho a plenitude dos mágicos momentos, a paixão pela vida, pela terra e, sobretudo, pelo mar, “de quem cedo fui amante”. Desse remoto despertar conservo as palavras urgentes que me vestem os poemas, os gritos de revolta e os sangues sacrificados de tantos irmãos que apenas clamaram vida. Da infância desperto as prédicas, avisadas e sábias, do avô António, os mundos por descobrir, que se derramavam dos olhos do meu pai e as ferramentas forjadas pelos malhos da esperança, que haviam de permitir o cerne e a seiva e a alma e os anseios, deste aprendiz de alquimista, mal refeito do acto de ter nascido, que tanto quis amar e a quem tão pouco foi dado ver amor.
Fonte: Chiado Books (com a devida vénia...)

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Recorte de imprensa (**):




Fonte: Adapt de Almonda,  14 de fevereiro de 2014, p. 5 (com a devida vénia...)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20031: Escritos do António Lúcio Vieira (1): A suprema mas vã glória de afundar um submarino inimigo... no Rio Mansoa, nas imediações de João Landim... Ou os delírios de um alferes de engenharia que não ficou na História Pátria!

(**) Último poste da série > 2 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20028: Notas de leitura (1204): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (17) (Mário Beja Santos)

domingo, 4 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20034: Blogpoesia (631): "Visão matinal", "Horas felizes..." e "O corrimão da escada", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Visão matinal

Janelão oval do café Castelão.
Dá para a estrada, cheia de carros que giram na vida.
Esboços de rostos, por detrás dos seus vidros, carregam canseiras, cada um com as suas.
A vida é uma luta.
Se ganha ou se perde.
Comerás o pão com o suor do teu rosto.
Dá sabor ao viver.
Se fosse tudo de graça, não tinha graça nenhuma.
Quem se deita cansado dorme melhor.
Cada um tem seu talento.
Há que fazê-lo render.
Se acabou o maná do deserto.
Chova ou não chova.
Há que avançar...

Ouvindo HAUSER - Adagio (Albinoni)
Café Castelão em Mafra, 2 de Agosto de 2019
9h6m
Jlmg

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Horas felizes...

Horas felizes eu vivi no dealbar da minha infância e adolescência.
Quando me cercavam de ternura e de carinho os do meu sangue e meus vizinhos.
Quando calcorreava as veredas da minha aldeia como se fosse o bosque do imaginário.
Tomava banho nú na serenidade dos regatos brandos tanques alheios.
Me regalava com a boa fruta que abundava para lá dos muros da fidalguia.
Quando corria o concelho inteiro ao pedal da bicicleta com mudanças de cubo.
Tinham sabor divino as romarias para as muitas ermidas no alto dos montes.

Depois veio a tropa e a turbulência do ultramar.
A seguir a ascenção dura na vida, à força dos meus braços e inteligência.
Quando vi nascer no meu jardim os quatro rebentos que me vão perpetuar no mundo.

Finalmente, chegou a hora de repousar saboreando a liberdade da aposentação e com saúde, enquanto o Criador deixar...

Bar "Castelão" em Mafra, 31 de Julho
8h38m
Jlmg

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O corrimão da escada

Faz falta um corrimão em cada degrau.
Fica mais leve o subir e seguro o descer.
Uma escada alta de pedra sem ele é um alçapão.
Assim morreu o sr. Joaquim da "Tripa", estatelado no chão...
E eu. Contei todos os degraus de pedra da escada que dava para a estrada.
Lá se foram os calções.
O que valeu,
Meu pai era alfaiate.
O resto ficou por minha conta...
A lição ficou.

Hoje, desço as escadas do primeiro andar bem agarradinho a ele e recomendo a quem cá vem.
Excepto à minha cadela que os trepa à velocidade da luz...

Mafra, 28 de Julho de 2019
20h43m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20016: Blogpoesia (630): "Veleidades...", "Quero lá saber..." e "Minha praia", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20033: Parabéns a você (1658): José Nunes, ex-1.º Cabo Mecânico-Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira (ex- Alf Mil Inf da CCAÇ 1420 - Guiné 1965/67 e Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 - Guiné 1970/72)


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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20023: Parabéns a você (1657): Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil Cav da CCAV 8350 (Guiné, 1972/74)

sábado, 3 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20032: Os nossos seres, saberes e lazeres (346): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Primeiro o assombro de regressar a Gand, parece que nunca aqui se tinha estado, o que não é verdade, a cidade aprimorou-se, introduziu arquitetura arrojada no seu casco histórico, recuperou mercados, lavou fachadas, continua a querer rivalizar com Bruxelas, Antuérpia e Bruges, como destino turístico.
Há um dado que impressiona o viandante, é o caráter dinâmico da cidade, foi um potente polo industrial, por isso ficou conhecida como a Manchester do continente, foi palco dos primeiros movimentos socialistas e sindicatos modernos, e se não tivesse tido tanto dinamismo e tanto para oferecer aos forasteiros não teria sido escolhida para a Exposição Universal de 1913.
É bom voltar a Gand, 15 anos depois do último contacto e respirar esta vida garrida e o tanto cuidado na preservação do património.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (8)

Beja Santos

A próspera Gand medieval e dos tempos modernos teve ousadia para saltar a tempo nos tempos industriais, ficou conhecida como a Manchester do continente, não foi por acaso que chamou a si a Exposição Universal de 1913, uma inesquecível mostra de modernidade e confiança no progresso, revelou-se uma concorrente de Bruxelas e de Antuérpia. Gand sofreu bastante com a ofensiva final dos Aliados, mas soube levantar-se, e se era a cidade que tinha três famosas torres, acrescentou-lhe uma quarta, a Torre dos Livros, é esta a cidade que hoje o viandante percorre, anda para ali amargurado com a escassez do tempo, já percorreu o Castelo do Conde da Flandres, veja-se esta imponência, vai agora para o campanário municipal, dali se desfruta uma impressionante panorâmica, como vamos ver.




Os campanários municipais da Flandres e da França eram o símbolo por excelência da liberdade, poder e prosperidade das cidades, por razões de segurança aqui se instalavam arquivos, a caixa-forte e muitas vezes a prisão. O campanário municipal de Gand é Património da Humanidade por decisão da UNESCO, tem belos carrilhões, nos seus diferentes pisos instala-se maquinaria, relojoaria, e no topo do monumento ondula orgulhoso o dragão de Gand, o emblema da cidade.


Sobe-se à torre e houvesse uma câmara mais eficaz e dar-se-ia ao espetador uma longitude impressionante, paciência, é o que se sabe fazer, mas parece o suficiente para ter vontade de aqui vir.



O que mais alicia quem por aqui deambula é a harmonia das praças, o cuidado na preservação das fachadas, tudo bem articulado, espaçoso, apetece andar de um lado para o outro, fotografar edifício a edifício, caminhar pelas pontes, espreitar os velhos armazéns, o que vendia peixe, cereais ou pão reconverteu-se em estabelecimentos de confeções e decorações.



A Igreja de S. Nicolau é uma joia dos princípios do século XII, e escusado é dizer que não parou no gótico, veja-se a magnificência do barroco, S. Nicolau era o patrono dos comerciantes e dos marítimos, investiram em força na casa do patrono. Tem uma torre de cruzeiro espetacular, acaba por atuar como uma lanterna natural, deixando penetrar os raios de luz diretamente no transepto.



A Igreja impressiona por refletir a vida quotidiana e a prosperidade e dinâmica dos marítimos e comerciantes, as diferentes guildas possuíam as suas capelas, ornavam as paredes, vejam-se esta opulente imagem e a ocupação das naves. É hora de deixar Gand, o viandante sente o amargo de boca, quer rever a Catedral de Saint-Bavon, voltar à Igreja de S. Miguel, conhecer os museus, flanar pelas praças, o tempo está de feição, encolhe os ombros resignado, o melhor é deixar os sonhos em aberto e regressar à estação de caminhos-de-ferro.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20015: Os nossos seres, saberes e lazeres (345): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20031: Escritos do António Lúcio Vieira (1): A suprema mas vã glória de afundar um submarino inimigo... no Rio Mansoa, nas imediações de João Landim... Ou os delírios de um alferes de engenharia que não ficou na História Pátria!


Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Bula (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor: Rio Mansoa e passagem em João Landim.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


Guiné > O fur mil cav Lúcio Vieira, da CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), no rio Geba.

Foto (e legenda): ©Lúcio Vieira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um conto do [António] Lúcio Vieira,  ex-fur mil cav, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), escritor, residente em Torres Novas. novo membro da nossa Tabanca Grande (*):

SUBMARINO À VISTA!

esta é uma estória realmente surreal

por Lúcio Vieira

[O editor decidou situá-la em João Landim, no Rio Mansoa, à revelia do autor, que apenas esclareceu o seguinte, em email que lhe mandou ontem, em resposta a uma pergunta sobre o lugar:  (...) "sobre o episódio do submarino, não me recordo, francamente, como a estória me chegou. Talvez tenha acontecido em João Landim, mas não sei. Sei, isso sim, é que me pareceu tão deliciosa que não resisti." (...) Ainda bem que o Lúcio Vieira não resistiu... Independentemente do sítio exato onde aconteceu, é uma daquelas histórias que fará parte, seguramente,  da antologia do nosso humor de caserna. Recorde-se, por outro lado, o currículo do autor, enquanto combatente: " "Cruzei o rio Mansoa (na legenda troquei-o, inadvertidamente com o Geba) durante toda a comissão. Tal como o Cacheu.  (...) Estive seis meses de intervenção em Bula e 17 meses em Ingoré, na fronteira norte com o Senegal. Daí conhecer muito bem as passagens em João Landim e S. Vicente."]

Até no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência, pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado pelas dores que sempre resultam das tragédias.

Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência, aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela.

Chega. Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960.

Manhã cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra, alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques inimigos.

A famosa jangada de João Landim, no rio Mansoa
Foto de Virgínio Briote  (c. 1965/66)
Atracada, uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma mais sofisticada LDM da marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso de água.

Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos, trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço.

Uma pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca, umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava, três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem contrária.

Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores – bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando, cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário.

Mais a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar.

Dois ou três, dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede, habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento.

De pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre, do polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda.

Pese embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa.

E também da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente nevrálgicos para o rumo dos conflitos. Assim, aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem podia ser – quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo semelhante.

Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira.

Um homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia.

No seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia, despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de acção psicossocial.

Estava-se nisto quando, binóculos virados a montante, algo lhe chamou a atenção, lá longe no caudal do rio, logo após a curva junto ao mangal. Havia ali qualquer coisa a navegar, lentamente, em total discrição, descendo sorrateiramente o rio, bem no meio da corrente.

Deixou o local de vigia, no alpendre do barracão e aproximou-se da margem. Não, não havia dúvidas: vinha ali qualquer coisa estranha, com um navegar manhoso. Algo enfim, naquela manhã, descia, lenta e matreiramente, a corrente. Mal se vislumbrava o dorso escuro do enigmático objecto, mas bem se via que era algo grande, arredondado e estranhamente silencioso.

Por entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado graduado, de cenho franzido e sentidos alerta.

Voltou a mirar o estranho objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da margem. Numa daqueles clássicas decisões, bem expressas nos cânones da caserna, que mandam, em caso de dúvida, atirar primeiro antes de se perguntar “quem vem lá?”, o homem tomou de imediato uma decisão de radical efeito. E tudo ali então se precipitou.

De binóculo em riste - em clara desvantagem ante o, bem mais potente e avantajado, “periscópio” inimigo - porém munido de corajoso ímpeto de destemido afrontamento, o alferes gritava a plenos pulmões: “Peguem nas armas! Vai ali um submarino!”, enquanto os homens, dispersos pelo recinto, de expressão aparvalhada, tentavam perceber a situação. Antes de desaparecer no interior das instalações, em busca da sua própria arma e de umas quantas granadas defensivas, ainda o espavorido oficial repetia à restante guarnição: “Porra, vão buscar as armas!”

Atarantados, os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra.

Entrincheirado com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o “submersível inimigo”. Só podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois, seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros.

“Fogo, fogo nele!”, gritava o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo, qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas, levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender patavina da situação.

“Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia. O intrépido alferes, entretanto, em pequenas corridas pela margem, na busca de melhores posições de tiro, não dava tréguas ao misterioso objecto navegante.

Era uma cena patética, digna da mais talentosa opera-buffa, dos gloriosos tempos da commedia dell’arte.

Nos fugazes segundos que mediariam, entre o gizar de uma estratégia de ataque, ao iminente, inevitável e definitivo afundamento do descomunal submersível, o homem imaginava-se nas capas dos jornais da longínqua capital do império, sob os holofotes da televisão e os microfones das rádios, nos gabinetes dos ministérios e chancelarias, nos jantares de gala em sua honra, no decorrer dos quais, uma vez mais, se enalteceria, nas vozes embargadas dos nossos mais lídimos representantes, o seu heróico feito.

O homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do palácio de Belém, altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do venerando chefe de estado, uma qualquer comenda, das várias com que o patrono das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos mais distintos eleitos.

Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam de lhe proporcionar.

Que subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, por ventura, em todas as guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo, recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da Engenharia!

Toda a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se rever nela por incontáveis gerações.

“Atirem, não o deixem escapar!”, e os rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que, oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo.

Uma, duas rajadas. O arrojado alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio. À boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então “aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?”

Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o “vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a montante, de onde havia pouco surgira. “Está com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã.

E que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A Dreyse, tragam a Dreyse!”. Lesto, o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa corrida, desaparecendo no interior das instalações.

Quando voltaram, de metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços, deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar. Da ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial.

Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso “submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando, tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano.

As armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela perdida margem de rio. As honrarias, as comendas, os jantares e discursos e as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome.

Que dia aquele, de tanto fervor patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da Guiné. Os deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, com os reveses enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando, tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida.

Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky, para encarrilar as ideias.

No exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky, quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora errada.

O perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta: “malhas que o Império tece…”

Perdão, tecia.

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Em rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via rádio, pedir o apoio dos T-6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha. Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar.

António Lúcio Vieira
CCav 788 / BCAV 790 ( Bula e Ingoré, 1965/67)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste  de 2 de agosto de  2019 > Guiné 61/74 - P20027: Tabanca Grande (483): Lúcio Vieira, ex-fur mil, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), natural de Torres Novas, jornalista, poeta, dramaturgo, encenador: senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 794

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20030: (In)citações (138): A minha Guerra da Guiné: a Leste, algo de novo... (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) datada de 31 de Julho de 2019:

A propósito

A minha Guerra da Guiné: a Leste, algo de novo… 

Ambos objectivados para nos matarmos uns aos outros, o canhão russo s/r 82B-10 e a sua granada, do PAIGC, eram uma espécie de trambolhos, sem estética, ao passo que o nosso canhão s/r NATO M40 era elegante e a sua granada a beldade do nosso paiol. O deles era de tracção humana e matava-nos, porque o alombavam para qualquer sítio; o nosso, era de tracção automotora, e não matava, porque “era malandro, não ia para o mato”.

Em Buruntuma tivemos por companhia um canhão s/r M40-10,6, a mãe das Armas Pesadas da nossa Infantaria, a mais viril das armas de todos os exércitos, antes e depois da “igualdade do género”, montado na longitudinal à carroçaria dum jipe Willis, que nos exigiu 4 espaldões elevados, um em cada ponto cardeal daquela tabanca, construções de alvenaria granítica, projectadas e dirigidas pelo Furriel Manuel Simas, material raro na Guiné Portuguesa, cuja maior parte ousamos “expropriar” à Guiné-Conacri, com o camião Renault requisitado à Casa Pinheiro, com a matrícula GN sobreposta à matrícula G, circulando impunemente pela estrada asfaltada da Guiné-Conacri, a transportá-la duma pedreira abandonada por colonos franceses.

O CSR M40 10,6 cm colocado num Jipe. Buruntuma 1973
 Foto: Com a devida vénia ao camarada Luís Dias - HISTÓRIAS DA GUINÉ 71-74 - A C.CAC 3491-DULOMBI

A sua dotação orgânica era apenas de 2 granadas, uma economia impositiva, não pela beleza estética do seu conjunto, mas porque custava 8.000$00 cada, preço FOB e pagos em dólares, – o soldo mensal de 1 capitão ou de 2 alferes, ou o vencimento de 3 furriéis ou o pré de 80 soldados. O montante da “Folha de férias” dos 150 militares da nossa Companhia equivalia ao custo das 2 granadas!

Pelas suas 4 “casas rústicas”, pelo custo das suas granadas, pela independência do seu paiol e pela sua exclusividade ao nosso capitão, quando ele passeava o canhão pela tabanca (a treinar e a impressionar a população), comentava-se na gíria de caserna “o nosso comandante anda a passear as duas “p… caras”.
O canhão nunca foi disparado, as 2 granadas eram reservadas às duas Panhard dos nossos vizinhos guineanos. No inventário da rendição, o seu “mapa de carga” registava a existência de 2, mas deixamos 18 de herança à CCaç 1418, que nos foi render em Maio de 1966! O milagre da multiplicação foi assim. O SINTREP ou lá o que era que relatava os ataques, requisitava a sua reposição, tudo nos conformes, – e lá vinham mais 2 granadas…

A fronteira internacional de Buruntuma tinha sinalética, uma placa de betão do legado do nosso “antepassado” Jorge Ferreira (e virtuoso fotógrafo de “bajudas”), e, do lado de lá, em Kandica, bem pertinho, à distância de apenas de 1,5km, estava aquartelada uma unidade de pára-quedistas da Rep. da Guiné-Conacri, comandava-a um jovem e comunicativo tenente. As patrulhas cruzaram-se por duas ou três vezes, com o pequeno rio Piai em separador, trocávamos continências vistosas, uns amistosos e uníssomos “bonjour!”, dávamos-lhes cigarros “Português Suave” e cerveja Sagres, que eles retribuíam com abacaxis, evidenciando privações.
As patrulhas e o seu tenente deixaram de ser vistas, constava que, por denúncia do PAIGC, o tenebroso Skou Touré mandara-o prender e fuzilar, notícia coincidente com o seu decreto dele a criar uma faixa com o fundo de 15Km, em terra de ninguém, para a maior manobra do PAIGC, o nosso Estado-Maior deu-nos o alerta e fez chegar à Companhia fotos do tal canhão s/r russo 82B-10, rodeado de guerrilheiros, que não chegamos nem a ver nem a experimentar, um prenúncio do seu uso de armamento pesado, o fluxo de cidadãos guineanos entrou em decadência e Buruntuma ficou isolada – uma ilha rodeada de IN por todos os lados. Evidências da parceria dos dois líderes e da sua determinação em nos infernizar a vida à mão armada. E nós não deixamos de proceder em conformidade…

Canhão s/r russo 82B-10
 Foto: Carlos Vinhal

No quadro das minhas funções de instrução e comando de milícias e de Apsico (Acção Psicossocial) junto da população, coube-me fazer o levantamento e a estatística do gado vacum, roubado pelo PAIGC às tabancas da quadrícula de Buruntuma, e, baseando-me nas quantidades reclamadas nas queixas das populações, refugiadas desde Cundagá, a Ajango e até Catabá, o roubo de gado na área da nossa quadrícula aproximava-se das 10 000 cabeças! Naquele tempo, na sua Frente Leste, o PAIGC era bem-sucedido como ladrão de gado e mal sucedido na subversão e pior como “libertador”, o que provocou a perda da vida a dois dos seus comandantes – primeiro Vitorino Costa e, depois, Domingos Ramos.
Então foi organizado e treinado à moda dos “comandos” um pequeno grupo de voluntários, que passou à acção do outro lado com a táctica do olho por olho e dente por dente, sob o disfarce de “bandido”, munido de armamento capturado, com os brancos a enfarruscar o rosto com fuligem dos caldeirões do rancho.

Na “operação vaca” não se recapturava manadas, apenas 1 ou 2 cabeças, menos por razões de manobra e logísticas, mas para encobrir outra: a quantidade implicava a restituição aos lesados, que, depois, não as vendiam – por serem o símbolo da importância social de cada um, em relação aos “homens grandes”, e a moeda para a “compra de bajuda” (moça), em relação aos “djubis” (os moços). A malta da “patrulha da vaca” amealhava bons “pesos”, mas, enquanto não foi extinta (o seu efectivo ameaçado com uma “porrada”), a carne de “vaca de bandido” não faltou ao passadio da tropa, nem à “vianda” das milícias e das mais de 5 000 almas residentes, naturais e refugiados, nessa grande tabanca de fulas e mandingas, um triângulo incrustado e linha da fronteira com a Guiné-Conacri.
No contexto da sua perseguição ao fulas guineanos, prolongamento dos da Guiné Portuguesa e seus oposicionistas, a “germanderie” de Skou Touré matava, mas, havia sempre alguns que corriam os riscos, circulando nessa terra de ninguém para aceder às lojas e ao serviço de saúde da tropa portuguesa, em socorro da sua penúria, enquanto a acção da nossa “patrulha das vacas” criava a conjuntura do açular dos cães da animosidade entre guinéus e os “bandido” bissau-guineenses. Nunca vi gente tão miserável e esfarrapada como esses cidadãos guineanos, que arriscavam a vida para chegar a Buruntuma, em demanda dos bens de primeira necessidade.
A “patrulha da vaca” manteve-se activa, até ao dia em que, já próximo da nossa rendição, se deixou seduzir pela mais formosa e melhor nutrida vitela, jamais vista nos nossos encontros com manadas de vacas a pastar em território inimigo, - uma cilada para os apanhar à mão; safaram-se todos e incólumes, graças ao “calo” de combatentes e, sobretudo, ao desembaraço do nosso cabo da milícia Mamadu Jaló, aliviando-se do incómodo da pesada fita de munições com rajadas da sua MG 42, rompeu o cerco e cortou ao meio os dois primeiros pára-quedistas IN que surgira na “exploração do sucesso”.
Em quase 2 anos da vida de combates pelos quatro quadrantes da Guiné, nunca tínhamos feito uma retirada tão acelerada, esta também com a cobertura da sorte: reencontramos a vitela da nossa desgraça no nosso caminho, escoltámo-la até Buruntuma, como troféu do nosso contentamento, mas o vagomestre só pagou “um preço justo”, depois de ameaçarmos a sua libertação… Mas a coisa ficou preta!

Os dois grupos de milícias, de 30 elementos cada, eram comandados por mim e pelo saudoso camarada e amigo Manuel Simas – deixou-nos há pouco, que Deus o tenha –, continuamos a “frequentar” o outro lado em reconhecimentos e, pela detecção de alterações das rotinas, no quartel de Kandica, recebemos a incumbência, a minha da segurança e apoio, a dele, de medir distâncias, de o mapear e de mapear suas acessibilidades.
Éramos apenas 4, iniciamos a nossa missão ao início da tarde, progredindo pelo lado da tabanca queimada e desabitada de Catabá, pela calmaria, em que toda a gente se recolhia, o calor a rondar os 50 graus e a humidade do ar os 98%, passo a passo, ou melhor: a rastejar. Enquanto evoco esta memória, sinto os mesmos calafrios, já velhos de mais de 50 anos, dos minutos que pareceram eternidade, em que estive colado ao chão, escondido na grande plantação de abacaxis, do outro lado da estrada que servia a sua porta de armas, a uns 30 metros das duas corpulentas sentinelas, a ver-lhes as botas de cano alto até ao joelho, a boina vermelha no “catulo” e a pistola-metralhadora a tiracolo.
Emitido pelo nosso rádio o sinal convencionado, a malta dum dos nossos morteiros de 81 mandou uma morteirada de reconhecimento, a granada explodiu longe e muito ao largo, soou a cornetada do “à rasca”, aquele quartel entrou em desassossego, as sentinelas desapareceram e a porta de armas fechou-se.

No dia seguinte, o Manuel Simas, que virá a notabilizar-se nos Estados Unidos, nas esculturas de ossos de baleias e de cachalotes e, depois, como docente na Escola Secundária de Ponta Delgada, entregou ao capitão a planta das acessibilidades e do aquartelamento, devidamente assinados o posto de transmissões, a caserna, o paiol, o parque das 2 Panhard, etc. e os azimutes e as estimativas da distância de tiro, pelos quais ele determinou as coordenadas de tiro dos 3 morteiros de 81 e desse canhão s/r M40.

Ao corrente da iminência da nossa rendição, os IN´s da outra banda tornaram-se recorrentes em nos fazer chegar as ameaças que nem todos estaríamos vivos à data da partida para Lisboa, pela sua vingança do combate e da captura daquela sedutora vitela.
Mas o Capitão Fernando Lacerda, um brioso oficial da Cavalaria clássica e estereótipo da valentia em combate – nunca se lançara ao solo, ironizando que “não queria sujar a farda”, estava à altura das circunstâncias e obviou-nos o problema.
Por analogia com o ardil que o oficial de Cavalaria Marechal Rommel montara no deserto egípcio de Al Amim, e que confundiu o Marechal Montgomery, ele mutilou os camiões, unimogs e jipes das suas panelas e tubos de escape, mandou-os circular em alta aceleração pelo perímetro de Buruntuma, da alvorada à noite, o seu escape livre a roncar em altos decibéis, para IN ouvir, da alvorada à noite, postou exploradores das milícias de vigilância ao troço crítico, na estrada do Gabú, entre Buruntuma e Ajango, que o mantiveram a par das emboscadas montadas pelo IN, e este, de desmobilização em desmobilização, acabou por desistir, com essa roncadura activa, prolongada até ao dia da nossa rendição.

As viaturas da CCav 703 tinham iniciado a sua roncadura pela alvorada, os cães, que, atraídos pelo cheiro do rancho, orbitavam o estacionamento, organizaram-se em matilhas e faziam o seu coro a ladrar, a CCaç 1418 chegou de Nova Lamego em nossa rendição, o pessoal foi rápido na desestiva da deles e na estiva da nossa tralha e a CCav 703 fez-se à estrada do Gabu e foi passar uma curta nomadização em Fá Mandinga, que não foi de estágio, mas problemática, a maior estação agrária da Guiné, ora área em subversão, praticamente ao abandono, que havia sido a menina dos olhos de Amílcar Cabral, enquanto engenheiro agrónomo do governo provincial, cujas instalações virão a ser reconvertidas em aboletamento da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, a menina dos olhos do General António de Spínola e viveiro de alguns heróis nacionais, estou a lembrar-me do João Bacar Jaló e do Marcelino da Mata.
Ao aperceberem-se do logro, os IN´s da outra banda juntaram-se, montaram um cerco em meia-lua a Buruntuma e lançaram um denso ataque, com a base em Kandica, e o seu novo comandante, Capitão Gonçalves (?), na posse dos nossos dados, enquanto se defendia em proximidade, mandou os morteiros de 81 e aquele canhão s/r vomitar granadas e terão sido as nossas 18 “p… caras” que calaram o ataque. O nosso levantamento e a competência do Furriel Manuel Simas tiveram consequências: Kandica ficou arrasada, as suas acessibilidades revolvidas até às entranhas, as baixas humanas terão sido numerosas, e o primeiro momento da internacionalização da Guerra da Guiné havia acontecido.
Então o governo de Conacri e o PAIGC objectivaram todo o seu potencial bélico pela destruição e ocupação de Buruntuma, obrigando o Comando-Chefe General Arnaldo Schulz a investir as suas reservas de Artilharia, de tropa normal, de comandos, fuzileiros, pára-quedistas na defesa dessa quadrícula, a oportunidade para os “guerreiros do ar” de Bissalanca demonstrar a sua perícia no lançamento das suas “bilhas”.

A Guerra da Guiné privou-nos “dos anos o doce fruto” da vida, mas partimos e chegamos a Lisboa, mais mortos que vivos, macilentos, mirrados, só pele e osso e exaustos, e “Buruntuma um dia será grande”, citando o Jorge Ferreira.

Outra conclusão e com penumbras. Se, em 1965, Lisboa nos impusera um apertado racionamento ao gasto das granadas desse nosso canhão s/r, pelo seu elevado custo, quando os capitães da guarnição da Guiné iniciaram a sua reconversão em conjurados, em 1973, com a criação do MOCAP (Movimento dos Capitães), os conselheiros militares da União Soviética junto do PAIGC propuseram a Moscovo que reconsiderasse os fluxos do fornecimento gratuito das granadas do canhão s/r russo e do outro armamento pesado, pela sua alta taxa de desperdícios e por a sua relação custos/benefícios se oferecer muito negativa.

Indício de prova e um recado à nossa História Contemporânea: se, em 1973, a coisa não estava muito branca para os capitães da Guiné, impelindo-os a essa “insubordinação castrense descontrolada”, estava a ficar muito preta para o PAIGC, impelindo-o a criar a crise dos “três G´s” – eram 3 G´s, um P (Pirada) e um B (Buruntuma). Como falhou estes dois, o resultado da primeira ronda foi: PAIGC (Guileje) 1 – FA portuguesas 4, mas o resultado final foi: PAIGC 1, de derrota em derrota - FA portuguesas, 0, pela vitória do MFA.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20003: (In)citações (137): Obrigado, amigos/as e camaradas, pelos votos de parabéns que me deram ao km 73 da minha "picada da vida" (Jaime Silva)