segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22478: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XII: Mina A/C em 21/8/1966, e violento ataque ao Enxalé em 9 de setembro



Armamento do PAIGC: Metralhadora Pesada Degtyarev (DShK),cal. 12,7 mm, m/ 938/56, de fabrico soviético,  também conhecida, na gíria do mato, como Deka, Desseque ou DCK (*)



João Crisóstomo 
(a viver em Nova Iorque desde 1977)


1. Continuação da publicação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história”
como eu a lembro e vivi
(João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (**)


Parte XII:

Dia 20, 21 e 22 Agosto: Op Gorro


Não me parece que o relatório contenha uma “completa” informação sobre esta operação Gorro. Contudo eu não me lembro de pormenores que me possibilitem contradizer o que está escrito. A info pode estar correta, mas está definitivamente incompleta. 

Se me não engano depois do rebentamento do engenho explosivo em que sofremos vários feridos, alguns deles graves, a CCaç 1439  voltou para o quartel no mesmo dia. O relato não menciona isso, mas dá a entender que a operação Gorro se prolongou no dia seguinte, dia 22.

Eu fazia parte deste deslocamento em que sofremos o rebentamento de uma mina, mas não me lembro da finalidade deste deslocamento. Não me lembro sequer se estávamos picando a estrada ; acredito que não. Não sei se era eu que estava a comandar a coluna (, penso que não!),  pois a presença do médico de batalhão dá-me a entender que o efectivo das NT era mais do que um simples pelotão e que não era eu quem estava a comandar as NT.

No fim do relato deste dia vem mencionado que,  além do Médico , o "Furriel Mil da CCav 1482 Higino F. Silva" também se distinguiu nesta acção ; o que confirma as minhas reservas sobre o relato, como está escrito.

Lembro sim que eu ia na frente ao lado do condutor, o António Figueiredo. Iamos numa GMC, uma viatura pesada. E eu não ia aí por acaso: eu sabia do natural nervosismo dos condutores de viaturas, especialmente em casos assim em que se "confiava” que "aquela estrada” era segura e não havia minas. E quis (, o que tentei fazer sempre durante todo o meu tempo na Guiné), "cutir confiança e descanso” de que não havia motivos para demasiados medos. Não quis nunca que houvesse nos meus homens a percepção de que eu pedia deles o difícil, ficando eu em local ou posição menos perigosa. Isso foi norma que segui desde o primeiro dia até voltar de regresso. E sei que os meus soldados o sentiam assim pois um dia sem querer eu tive disso provas. Como passo a descrever:

Lembro-me de estar em Bambadinca, creio que foi durante o mês que estivemos lá, antes de irmos para Enxalé. Sei que à minha frente apareceu um indivíduo que eu à primeira vista nem sabia quem era , mas logo o reconheci. Era o Jaime, ainda meu primo afastado, que vivia numa aldeia perto do meu casal e tinha sido meu companheiro de escola. Tenho bem vivo o que se seguiu, pois nunca esqueci mais o que me disse nesse dia. Depois de longa conversa (,ele estava no mesmo batalhão que eu, mas numa outra companhi),  ele disse-me que "tinha uma coisa para me dizer” . E era que os meus soldados lhe tinham pedido para ele falar comigo; que "eles gostavam de mim, mas que eu era muito afoito”; e que não devia ser assim pois era muito perigoso para todos”. "Oh senhor Alferes", disse , imagine como o seu paizinho ia ficar se ele sabia disto!”.

Retomando o que me lembro: sei que de repente houve um grande estrondo e eu fui pelos ares. Dei comigo batendo com a cara no chão do lado direito da viatura; a minha G3 a meu lado, de cano enterrado no chão. A mina tinha sido preparada para rebentar na segunda passagem: a roda da frente passou, e a mina rebentou com o impacto da roda de trás. Os que vinham atrás, incluindo o médico do batalhão, foram todos pelos ares ; se tivesse sido uma viatura mais ligeira, o impacto teria causado vários mortos com certeza. 

 Felizmente que tínhamos tido o cuidado de reforçar dentro do possível todas as nossas viaturas pesadas. Havia mesmo uma viatura a que chamávamos "o granadeiro" que foi reforçada com chapas de aço a toda a volta, para a tornar "à prova de bala”; o chão da viatura ficou com duas camadas, de cimento e areia entre as duas camadas. O fim dela era exactamente de ir à frente de colunas para servir de ‘rebenta minas”…neste dia o granadeiro não fazia parte da coluna.

Lembro bem o ter ouvido disparos que me pareceram ser ao longe, como que alguém a dizer que tinha ouvido o estrondo da mina; mas não tenho lembrança de qualquer "emboscada” séria como dá a entender este relatório. Lembro sim de termos tomado posições de seguranca, e embora não lembre o “ tendo-se organizado um grupo de perseguição” acredito que se tenha procedido a buscas nos arredores, para prevenir quaisquer surpresas. 

 Lembro a chegada do helicóptero, que se destinava à evacuação do 1º cabo José Manuel Afonso Ferreira; e sabíamos que o médico Alferes Francisco Pinho da Costa também apresentava dificuldades; não sabíamos porém a sua gravidade, pois ele não deixava de prestar socorros a toda a gente. Só nos disse da sua gravidade quando o helicóptero já estava a chegar e ele disse que também tinha de ser evacuado: depois de violentamente projectado pelo sopro da mina , ao cair no chão tinha partido as pernas…

Copio literalmente o que está escrito no relatório sobre esta “op. GORRO”:

(...) "Dia 20, 21 e 22 Agosto — A CC 1439 realizou a Op Gorro na zona do chão balanta que consistia numa Batida na região de Colicunda. Tendo sondado o espírito da população balanta , parece o mesmo estar saturado da pressão In. manifestando a mesma popoulação desejar colaborar com NT. Não houve contactos com IN.exerceu-se uma acção de captação e simpatia na população balanta. Foi uma operação de grande desgaste físico.>>

Em 21 de Agosto as nossas tropas acionaram um engenho explosivo tendo simultaneamente sofrido uma emboscada na estrada de Porto Gole-Enxalé entre Porto Gole e Ressunhá. Apesar das NT sofrerem o rebentamento deste engenho explosivo,  reagiarm eficazmente à emboscada IN tendo-se organizado um grupo de perseguição e tendo o IN dispersado, urtando-se ao combate.

Do rebentamento do engenho explosivo resultaram danos materiais e físicos:

(i)n Destruição de uma viatura GMC

(ii) Feridos das NT:

  • Alf Mil Médico Francisco Pinho da Costa, do BCAÇ 1888, evacuado
  • 1º cabo 682 1364 José Manuel Afonso Ferreira, evacuado
  • 1º cabo aux. enfer. 647 4664, Alexandrino Pestana F. Leitão
  • 1º cabo 182 6865 Carlos Tibúrcio Nunes
  • 1º cabo 7351565, José Luís Fernandes Martins
  • Soldado condutor 8563364, António de Almeida Figueiredo
  • Sold 22665 António Francisco Caneca de Oliveira
  • Sold 651 7665 Álvaro de Sousa
  • Sold 0483065 José Dionísio Vieira de Castro
  • Sold 09/63 Nagna Chete, da 1ª CCaç
  • Sold da Polícia Administrativa 241/64 , Buli Mané.

Distinguiram-se nesta acção o Alferes Mil. Médico Francisco Pinho da Costa e o Furriel Mil da CCav 1482, Higino F. Silva.
 
Dia 9 de setembro de 1966- O Quartel de Enxalé sofreu um violento ataque IN:

Copio o que consta no “relatório":

(...) "Dia 9 de setembro de 1966 -  O Quartel de Enxalé sofreu um violento ataque IN tendo este feito uso pela primeira vez nesta zona do canhão sem recuo além da Met Pes 12,7 e toda a gama de armas aut. com bazuca e morteiros 82 e 60.

Todo o pessoal reagiu da melhor maneira, opondo ao IN uma resistência tenaz. O ataque durou duas horas e dez minutos. Durante a madrugada organizou-se um grupo de perseguição, tendo sido detectado um grupo IN o qual depois de alvejado abandonou uma Met Pes 12,7 reagindo à força de perseguição com granadas de mão.

RESULTADOS OBTIDOS- O IN sofreu baixas em número não estimado. Foi apreendido o seguinte material:

  • Uma Met Pes. 12,7 Degtyarev m/938/46 (DShK)
  • Um cunhete de transporte c/1 G.E. Mort 82 e embalagem c/9 cgr.Blt.
  • Uma granada de mão of. (RG4)
  • Um carregador c/ cartuchos calibre 9 mm P.M. Beretta

As NT sofreram os seguintes feridos ligeiros:

  • Furiel Mil Eduardo José Ferreira de Oliveira
  • Soldado nº 56/65 Américo Fernandes

Referência elogiosa do Comandante Int. Militar: “Motivo de muito apreço a captura da Metralhadora Pesada 12,7 mm”. (...)

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Nota do autor:

Para não ser acusado de omissão e "desculpas de mau pagador” , devo acrescentar que tenho ouvido várias vezes que eu tive um papel pouco lisonjeiro neste acontecimento:

Com razão ou não, aqui fica o que várias vezes me têm dito : que o ataque, assim dizem, devia estar a ser preparado para ter lugar na manhã do dia seguinte mas que eu de alguma maneira forcei o IN a atacar mais cedo do que tinham intenção de fazer. Que eu fui à tabanca e aí acendi uma lanterna de mão. E o IN, pensando que eu estava os estava a descobrir, no mesmo momento abriu fogo e começou o ataque. Assim dizem !

Não me lembro mas é natural que fosse eu que estava de oficial de serviço nesse dia; se decidi ir à tabanca estava de serviço com certeza. A verdade é que eu não tinha em Enxalé nenhuma “bajuda” especial; mas, talvez para ajudar a passar o tempo, decidi dar uma vista de olhos pela tabanca de Enxalé que ficava mesmo pegada ao quartel, separada deste apenas uns 50 a 100 metros com uma rede de arame farpado a meio. Não me lembro dos pormenores senão do tiroteio que começou quando eu estava junto do arame farpado; e eu nem a minha G3 tinha trazido comigo. Lembro, sim, do inferno de ataque que de repente explodiu. E lembro de me ter atirado ao chão onde permaneci de cara e barriga contra o chão por muito tempo sem me mexer; e depois, não sei quando nem porquê, decidi que podia voltar-me: e de costas colado no chão eu via as balas tracejantes passando por cima. Eu ouvia bem o inferno do ataque e a nossa resposta; não sei quanto tempo passei nessa posição. Lembro que depois de muito esperar ( meia hora, duas horas? não faço a mínima ideia…) o fogo parou e eu fui a rastejar ( como eu tinha bem aprendido e praticado em Mafra…) e cheguei ao quartel. 

 Os meus cotovelos e os meus joelhos eram uma chaga… e lembro no dia seguinte o Zagalo todo empolgado a organizar um grupo para ir atrás do IN antes que este tivesse tempo de regressar aos lugares/bases de onde tinham vindo. Não me lembro desta mencionada metralhadora pesada, mas lembro ouvir que tinham visto muitos rastos de sangue, mas que não havia nenhum morto ou ferido, que o IN tinha tido muito tempo durante a noite de os levar com eles.    

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Notas do editor:


(...) Características desta arma:

Origem: URSS
Calibre: 12,7 mm
Data de fabrico inicial: 1938
Comprimento: 1,625 m
Velocidade Inicial à Boca do Cano: 860 m/s
Alcance Prático em Tiro Terrestre:  2000 m
Alcance Prátio em Tito Anti-Aéreo: 1000 m
Peso: 35,5 Kg
Alimentação: Fitas de 250
Cadência de Tiro: 540 a 600 tpm
Munição: 12,7 x 108 mm
Funcionamento: Arma automática, a funcionar por gases.



Guiné 61/74 - P22479: Notas de leitura (1373): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à apreciação da tese de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho. Que investigou afincadamente, é dado irrefutável. Põe-se em dúvida quanto à utilidade do levantamento a que procedeu quanto a trajetórias pessoais e profissionais, tanto dos fundadores como dos líderes e combatentes da segunda geração. Dos eventuais seis fundadores, só dois prevaleceram, Amílcar Cabral e Aristides Pereira, nunca se fala daquele que efetivamente deu o corpo ao manifesto na mobilização de todos aqueles jovens que foram encaminhados para Conacri, Rafael Barbosa. A questão iconográfica, como foram encarados os heróis e o líder por ambos os países, parece-me uma visão acertada. E tudo descamba na análise do golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, a historiadora veste-se de juíza e encontra razões de sobra para culpar os guineenses de tudo quanto se passou até à consumação da rutura. Vale pelo que vale, mas deu direito a doutoramento.

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (3)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne: “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: “O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”.

O estudo a que a autora se acomete sobre as trajetórias destas figuras gradas do PAIGC inclui uma verificação de quem é quem entre os fundadores do partido, traços comuns das trajetórias familiares, quem é quem entre os combatentes, o seu recrutamento e história familiar, valores e princípios proclamados e tratamento da figura dos heróis, tanto na Guiné como em Cabo Verde, como, nos dois países, se procurou implementar políticas de democracia revolucionária e como caraterizar o fim abrupto do PAIGC. É este o último ponto que aqui se analisa, sugerindo sempre aos leitores a leitura integral desta tese de doutoramento defendida em 2005 e agora publicada pela Imprensa da Universidade de Coimbra.

É estranho como a autora formula as suas premissas sem, em nenhuma circunstância, nos oferecer o contraditório. O golpe de Estado de 14 de novembro de 1980 é sumariamente descrito, lembra-se que o golpe de Estado era moeda-corrente da época, dá-se conta das medidas tomadas: aprovação da primeira lei do Conselho da Revolução, destituição de Luís Cabral, dissolução da Assembleia Nacional Popular, do Conselho de Estado e do Conselho dos Comissários de Estado, o Conselho da Revolução passa a ter o poder que tinham estes órgãos políticos. Ficamos a saber a composição do Conselho da Revolução e a sua proveniência. A 24 de novembro é nomeado um Governo Provisório, e desencadeia-se um rol de acusações quanto ao falhanço da unidade Guiné-Cabo Verde. Os golpistas acusavam a ala cabo-verdiana do partido por diferentes razões, era acusado o Governo anterior de corrupção, de irresponsabilidade, de laxismo face aos erros, de nepotismo, de ostentação e de ambição pessoal dos seus membros. Tivesse Ângela Benoliel Coutinho consultado o acervo documental do CIDAC, em Lisboa, e não teria escrito “não se deram exemplos destas práticas e não se nomearam os indivíduos que as teriam praticado”. Atenda-se que o próprio Luís Cabral em discursos proferidos, nomeadamente em 1978 e 1979, já referia casos de corrupção, de irresponsabilidade e de laxismo, vem nos documentos. A autora encontra muitas semelhanças entre a composição do Governo anterior e o Governo de transição sob a responsabilidade do Conselho da Revolução, o que sendo verdade só abona como os golpistas eram dirigentes de extração guineense e aderiram à rutura, não sabemos com que alma e coração. Ângela Coutinho não esconde o tratamento parcial na análise a que procede a este golpe: fala nas contradições de Nino, nas acusações graves, retoma o evento do assassinato de Amílcar Cabral em que já era patente o profundo sentimento anti-cabo-verdiano, em que mesmo os golpistas de 20 de janeiro de 1973 falavam em eliminar os cabo-verdianos e os mestiços.

Nino Vieira e Aristides Pereira travam-se de razões, trocam mensagens acusatórias, consumava-se na prática a rutura. A imprensa cabo-verdiana publicou os protestos e as críticas profundas ao golpe, o fantasma do assassinato de Cabral paira permanente no ar, em janeiro de 1991 cria-se o PAICV em Cabo-Verde, mantém-se o PAIGC na Guiné-Bissau. A autora procura afincadamente demonstrar que não havia nenhuma hegemonia cabo-verdiana, uma vez mais é esquecido o espírito do Congresso de Cassacá e em nenhuma circunstância a autora aponta para as razões próximas do golpe, nomeadamente as discriminações entre as novas Constituições de Cabo-Verde e Guiné-Bissau. A autora também critica o palavrório usado pelo PAIGC quanto a fuzilamentos perpetrados pelo Governo de Luís Cabral, Luís Cabral, no exílio iria sempre evocar a existência de inimigos do PAIGC, supostos agentes da ex-PIDE e Comandos guineenses que teriam tentado dar um golpe de Estado a 11 de março de 1975. Só que Luís Cabral nunca apresentou documentação nem mesmo provas de julgamento que pudessem justificar os fuzilamentos contínuos que se praticaram durante o seu mandato. Quem lê esta tese de doutoramento pode ficar com a sensação de que houve um grupo de maus da fita, os golpistas, e os mártires da unidade Guiné-Cabo Verde, que foram escorraçados pelos primeiros. Se isto é ciência histórica, o mundo anda às avessas.

E assim chegamos às conclusões. Dá-se como provado que houve uma renovação da direção política do PAIGC muito antes da declaração da independência da Guiné-Bissau, em 1973, não é rigorosamente verdade, houve mexidas, entrou muita gente na segunda geração mas o poder ficou nas mãos da dupla Aristides Pereira – Luís Cabral, ao longo do Governo deste último grassou o descontentamento e surgiram problemas políticos de grande melindre, suficientes para os militares guineenses terem encerrado fileiras. Há pontos suscitados que merecem estudos posteriores, é o caso da questão das mulheres, ausentes da fundação do partido, Carmen Pereira foi a única militante cabo-verdiana eleita para a direção do partido. Igualmente acertado aparece o tratamento da imagem de Cabral nos dois países. A direção do processo revolucionário, a que a autora faz alusão, tem vindo a ser estudado por variados autores, é incontestável que o PAIGC rapidamente perdeu a dinâmica revolucionária na prática, usou-a nos seus planos de desenvolvimento, enquanto se afastava das massas, completamente intimidadas pelas provas de terror de execuções, prisões e banimentos, afastamento de régulos, a par de nomeações sem qualquer relevância de comissários de nulo poder de decisão, o poder estava concentrado em Bissau. Comparando Guiné com Cabo Verde, obviamente que este último país vai ficar melhor na fotografia.

Enfim, uma investigação a que se pode reconhecer muito trabalho, mas um exercício que se deplora de tratamento faccioso da história de uma rutura. Aliás, não é só Ângela Benoliel Coutinho que foge ao estudo da verdade quanto à essência da rutura, o fantasma e a iconografia de uma unidade que foi extremamente proveitosa para a independência dos dois países nunca passou de um sonho arquitetado por Amílcar Cabral num cenário idílico que nunca existiu. E os dois países continuam a pagar caro a fantasmagoria de todas essa ficções.
Amílcar Cabral com Carmen Pereira, imagem do jornal Público, 5 de junho de 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22459: Notas de leitura (1372): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22477: (De)Caras (174): Carlos de Azeredo (1930-2021), um homem digno, nobre e corajoso (José Belo, Suécia)


Capa do livro de memórias de Carlos de Azeredo “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império” (Porto, Civilização Editora, 2004, 496 pp.): Sinopse: "Foi prisioneiro após a invasão do Estado português da Índia, seguir-se-ão três comissões, das duas na Guiné, por onde andou no Olossato, Aldeia Formosa e Bolama, regressará meses depois, a pedido de Spínola, para acompanhar os reordenamentos, envolveu-se no 25 de Abril, foi governante na Madeira, onde recebeu o Presidente da República e Presidente do Conselho depostos; será assessor militar de Sá Carneiro, Comandante da Região Militar Norte e Chefe da Casa Militar de Mário Soares. É intenso livro de memórias, o General Carlos de Azeredo é conhecido pela resposta pronta, pela língua afiada e pelo destemor." (*)


1. Mensagem de José Belo, o nosso luso-sueco, cidadão do mundo, membro da Tabanca Grande, que reparte a sua vida entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e Key-West (Flórida, EUA). Foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia (Na outra vida, foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); é cap inf ref. ; durante anos alimentou, no nosso blogue, a série "Da Suécia com Saudade"): 


Data - 22 agosto 2021 13:38
Assunto - Carlos de Azeredo


Caro Luís: A notícia da morte do Sr. General Carlos de Azeredo (**), a quem me ligava profunda e respeitosa amizade pessoal, foi para mim um daqueles momentos em que uma catadupa de recordações foram dominantes.

Escrevi algumas “linhas” a título de comentário que se tornaram num texto longo para tal.
Vou enviar-te o texto que talvez tenha neste momento especial algum interesse para os Camaradas.

Um abraço, J.Belo


Carlos de Azeredo um Homem digno, nobre e corajoso (***)

por Joseph Belo

Data - 22 agosto 2021, 14:43

A citação do General Douglas McArthur aquando do seu discurso de despedida ao Congresso Norte Americano em 1951 bem se poderia aplicar à morte do Sr. General Carlos de Azeredo: “Old Soldiers never die;they just fade away” (Os velhos soldados nunca morrem simplesmente desaparecem)

Tendo servido em Aldeia Formosa e Mampata sob as ordens do então Major Carlos de Azeredo, fiquei a ele ligado por forte e respeitosa amizade pessoal.

Tive a honra de dar uma pequeníssima colaboração aquando da preparação do seu livro “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império” (**).

Já há muito a viver na Suécia, fui contactado por um dos seus filhos que então o apoiava na recolha de “histórias” relacionadas com a sua presença no teatro de guerra da Guiné. (Contacto facilitado pelo meu Amigo e Camarada José Teixeira).

Entre outros, os detalhes relacionados com a ataque a partir de Aldeia Formosa a importante base inimiga situada na proximidade, mas bem já dentro da República da Guiné-Conakri.

Os ataques com canhões sem recuo, morteiros 120 e mesmo foguetões 1122, tanto a Aldeia Formosa como aos Destacamentos de Mampatá e Chamarra, assim como as inúmeras emboscadas às colunas de abastecimento Buba-Aldeia Formosa-Gandembel, eram efectuados por forças inimigas desta base.

Num período em que os mesmos se estavam a intensificar, o Major Azeredo ordenou ao Capitão de Artilharia Ricardo Rei, então responsável por uma bateria de obuses 14 sediada em Aldeia Formosa para elaborar um plano de fogos para um ataque a esta base.

O Capitão Rei, que era um operacional bastante agressivo, tinha evidente vontade de cumprir a ordem. Lembrou no entanto ao seu superior que tal ataque viria certamente a causar “turbulências” tanto a nível do Quartel General de Bissau, como no Comando-Chefe e, não menos, entre os políticos em Lisboa pelas previsíveis consequências internacionais.

A resposta do Major Azeredo foi simples: "Precisamente!"

Depois de preparação cuidadosa, as granadas foram durante a mesma noite “enfiadas” na base inimiga, com as inerentes consequências provocadas por uma bateria de obuses 14 quando sob comando competente .

Não muitas horas passadas, Spinola desembarca do seu helicóptero em Aldeia Formosa. Trazia uma expressão facial que nada de bom indicava. Realmente as “turbulências” previstas estavam a surgir.

Depois de vívida troca de opiniões com o Major Azeredo, o Comandante-Chefe aparentou acalmar-se. Talvez (!) o respeito pela coragem da frontalidade de Carlos de Azeredo, então não muito habitual entre alguns dos responsáveis militares.

De qualquer modo, ao regressar ao helicóptero disse em voz bem audível: "Continue!"

Talvez (!) tivesse contribuído para a falta de consequências disciplinares, por muitos previstas,
o facto de tanto Spinola como Carlos de Azeredo serem oficiais da Arma da Cavalaria e o Comandante-Chefe sempre que, em conversa, se referia a Carlos de Azeredo, o apodar de um “Puro Sangue”. Talvez. (Spínola, nascido em 1910, era vinte anos mais velho que o Carlos de Azeredo.)

Recomenda-se a leitura do livro “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império” não só pelos acontecimentos relacionados com a Guiné mas, e principalmente, com tudo o relatado por vários testemunhos de outros militares quanto ao procedimento honroso do então Capitão Carlos de Azeredo. (***)

Um abraço do J.Belo

2. Nota do editor:

No CTIG, Carlos de Azeredo foi comandante da CCav 1616 / BCAV 1897 (Mansoa e Olossato, 1966 / 1968), do Comando Operacional do Sector de Aldeia Formosa / COP 1 (1968/69), e do Centro de Instrução Militar de Bolama (1969).

Fichas de unidades:

(i) CCav 1616 (Mansoa e Olossato, 1966 / 1968):

Cmdts: Cap Grad Cav Eduardo Manuel de Oliveira Trigo PerestreJo de Alarcão e Silva | Cap Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme

Partida: Embarque em 12Nov66, desembarque 18Nov66 | Regresso: Embarque em 02Ago68
Síntese da atividade opercaional

A CCav 1616 seguiu, em 28Nov66, para a região de Mansoa, a fim de efectuar a adaptação operacional sob orientação do BCaç 1857 e seguidamente ficar integrada no dispositivo e manobra do seu Batalhão, instalando a sede em Mansoa.

Actuou em operações nas regiões de Cubonge, Locher, Sarauol e Tambato, entre outras e na protecção a trabalhos de descapinagem da estrada Mansoa-Cutia, até 03Abr67.

Após ter tomado parte na operação "Fabíola", foi colocada, temporariamente, em Cutia, onde substituíu a CCaç 1421, de 26Abr67 a 07Mai67, com vista a assegurar a segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mansoa-Mansabá, então realizados na dependência do BCaç 1912.

Deixando ainda um pelotão em Cutia até 29Jun67, foi transferida em 07Mai67 para Mansabá, a fim de assumir a missão de intervenção e reserva do seu batalhão.

Em 02Ju167, rendendo a CArt 1486, assum iu a responsabilidade do subsector de Olossato, com um pelotão em Ponte Maqué, no sector do seu batalhão.

Em 29Ju168, foi rendida no subsector de Olossato pela CCaç 2367, ali colocada do antecedente em reforço da guarnição, até à chegada e final do treino operacional da CCaç 2406, seguindo depois para Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações - O BCAV 1997 (CCAV 1615, 1616 e 1617 ) tem História da Unidade (Caixa n." 78 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM). A CCav 1617 tem Breve Resumo da História da Unidade (Caixa n." 106 - 2* Div/4ª  Sec, do AHM).
 

(ii) Comando Operacional do Sector de Aldeia Formosa / Comando Operacional n.º 1

Identificação COSAF I COP 1
Cmdt: Maj Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme
Início: 12Jun68
Extinção: 15Jan69

Síntese da Actividade Operacional

Este comando operacional foi criado com vista a fazer face a um recrudescimento da actividade inimiga na região do Forreá-Contabane, efectuar o reordenamento de populações na área de Aldeia Formosa e facilitar a acção operacional do BArt 1896 - e depois do BCaç 2834 - na região de Buba.

Estabeleceu a sua sede em Aldeia Formosa. Dele fizeram parte a companhia e outros meios de apoio de combate ali sediados e mais duas subunidades de intervenção que lhe foram especificamente atribuídas.

Em 20Ago68, o COSAF passou a designar-se COP 1. Desenvolveu intensa actividade operacional na área, com a realização de patrulhamentos ofensivos, emboscadas e acções sobre as forças inimigas infiltradas na zona.

Em 15Jan69, foi extinto, passando a responsabilidade da área a ser assumida pelo BCaç 2834.

Observações - Não tem História da Unidade.
 

(iii) Centro de Instrução Militar

Identificação CIM

Cmdt:
Cap Inf José Manuel Severiano Teixeira
Cap Inf António Lopes de Figueiredo
Cap Inf António Ferreira Rodrigues Areia
Cap Inf Laurénio Felipe de Sousa Alves
Cap Inf António Feliciano Mota da Câmara Soares Tavares
Cap Inf João José Louro Rodrigues de Passos
Cap Inf Alcino Fernando Veiga dos Santos
Cap Inf António de Matos
Cap Art Samuel Matias do Amaral
Cap Inf Carlos Alberto Antunes Ferreira da Silva
Maj Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme
Maj Inf Carlos Alberto Idães Soares Fabião
Maj Inf Fernando Jorge Belém Santana Guapo
Maj Cav José Luís Jordão de Ornelas Monteiro
TCor Inf Octávio Hugo de Almeida e Vasconcelos Pimentel
TCor Cav Raúl Augusto Paixão Ribeiro
Cor Inf Carlos Emiliano Fernandes
Divisa:

Início: Anterior a OIJan61 | Extinção: 14Set74


Síntese da Actividade Operacional

Era uma unidade da guarnição normal, tendo sido criada inicialmente em Bissau no aquartelamento de Santa Luzia, a partir de 17Mar59, com a finalidade de ministrar instrução militar ao pessoal residente na Guiné e já recenseado
e com documentos de identificação nacionais.


Inicialmente, com a designação Centro de Instrução de Civilizados, passou, a partir de 24Nov59, a ter a designação de Centro de Instrução Militar, ministrando também instrução a praças I.

Em 20Mai61, foi transferido para Bolama, tendo assumido a responsabilidade do subsector respectivo, o qual englobava ainda as ilhas de Bijagós.

Para além da instrução básica e especial ministrada aos militares do recenseamento local para formação de diversas especialidades, efectuou ainda a IAO de unidades e subunidades metropolitanas, esta instrução especialmente a partir de meados de 1970, e estágios de Oficiais e Sargentos para enquadramento de unidades africanas da guarnição normal.

Efectuou também acções de patrulhamento e de contacto com as populações, garantindo ainda a segurança, protecção e controlo dos itinerários, dos aldeamentos e das populações, contribuindo para o seu desenvolvimento social, económico e cultural e superintendendo
no funcionamento do Centro de Licenças de Bolama.

Em 14Set74, na sequência do plano de retracção do dispositivo e após entrega do aquartelamento de Bolama ao PAIGC, o Centro foi desactivado e extinto.

Observações - Tem História da Unidade, referente a OlJan72 a 30Jun74 (Caixa n.º 117 - 2ª
Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte:  Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pp. 265, 487 e 601 e 683/684.
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

1 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15693: Notas de leitura (804): “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império”, por Carlos de Azeredo, Livraria Civilização, 2004 (1) (Mário Beja Santos)

5 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15708: Notas de leitura (805): “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império”, por Carlos de Azeredo, Livraria Civilização, 2004 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 21 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22474: In Memoriam (404): Gen Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-2021), falecido na cidade do Porto no passado dia 19 de Agosto de 2021... Entra para a Tabanca Grande, a título póstumo, sob o lugar nº 848

(***) Último poste da série > 15 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22283: (De)Caras (138): Pepito, o amigo sportinguista (Carlos Fortunato, ex-fur mil trms CCAÇ 13, "Os Leões Negros", Bissorã, 1969/71, e presidente da direção da ONGD Ajuda Amiga)

domingo, 22 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22476: Manuscrito(s) (Luís Graça) (204): Caminhando contigo pela picada da vida...





1. A Alice Carneiro, minha panheira de uma vida e mãe dos nossos filhos, agradece todos as mensagens de parabéns que lhe dirigiram no seu dia de aniversário, 18 de agosto de 2021 (*)...

E,depois,  autoriza-me que partilhe no blogue o texto (poético) que eu lhe li, em voz alta, na Tabanca do Atira-te ao Mar, num almoço que reuniu alguns amigos e que teve, como  cereja no bolo, a visita, de surpresa, da sua/nossa netinha, Clara Klut da Graça, que está com 21 meses.


Caminhando contigo 
pela picada da vida



1. Ao fim de um ano e meio de pandemia, estamos vivos.
Tu e eu, e os que nos são queridos, amigos e familiares.
Pelo menos, estamos vivos.
E foi a pandemia das nossas vidas.
Há três pandemias em cada século,
Mas uma com mais morbimortalidade do que as outras duas.
Não creio que voltemos a apanhar uma pandemia, como esta,
No tempo que nos resta para viver.

2. Estamos vivos, mas mais velhos, claro.
E sobretudo com mais mazelas.
Eu, pelo menos com mais mazelas, e já não são poucas.
Ao “annus horribilis” de 2020
Sucedeu o “annus horribilis” de 2021.
De resto, já tivemos muitos,
Nos vinte e tal primeiros anos das nossas vidas.
Para mim, a guerra, por exemplo.

3. Mas, hoje, no dia dos teus anos,
Não quero recordar o passado,
Nem sequer o nosso passado vivido em comum.
Feitas as contas lá vão 46 anos, desde 1975.
Estamos quase a celebrar as “bodas de ouro”…
Não quero muito menos fazer o balanço desse tempo,
Porque, se calhar, sobre a garrafa da vida e dos sonhos, para mim “meia cheia”,
Tu virias dizer que está… “meia vazia”.

4. Quero viver o futuro,
Ou imaginar um futuro em que continuemos a caber os dois,
Com todos aqueles que amamos,
Os nossos filhos, a Clarinha, a Catarina,
E todo o resto da nossa família da Lourinhã e de Candoz,
Mais os nossos queridos amigos do peito de todo o lado,
Alguns dos quais estão aqui à nossa mesa.
Quero ainda pensar que há lugar para nós os dois,
No comboio do futuro.
A isso se chama esperança.
Que não pode ser uma ilha só para nós,
Mas um arquipélago,
Tão grande como o mundo,
Abarcando oceanos e continentes.


5. As palavras, ao fim desta pandemia e destes anos todos, já estão muito gastas.
Há uma fadiga, não apenas pandémica, mas também existencial.
Às vezes dizes: “Estou cansada… Estou cansada de muito dar e pouco receber”…
Felicidade, por exemplo…. O que quer dizer “ser feliz” ?
Não sei o que é ser feliz, em abstracto,
Se calhar não é preciso muito para se ser feliz, hoje e aqui,
Por uma tarde,
Por um fim de tarde.
Não digo já um dia, um ano, uma vida.
Nem ninguém poderá ser feliz uma vida toda.
Nem os deuses, os santos ou os heróis.

6. A felicidade é onde a gente a põe,

E a gente deve pô-la onde está,
O que nunca ou raramente acontece.
A felicidade está apenas nos pequenos detalhes,
Uma frase batida, que gostávamos de repetir, lembras-te ?!,
Quando, em Espanha, gostávamos de ir para os hotéis NH.
Uma treta, são todos iguais, os hotéis,  em toda a parte,
Desde que tenham uma boa cama e lençóis limpos.
Aqui e hoje, a felicidade pode ser apenas
Uma esplanada em cima do mar.
Uma mesa, umas cadeiras,
Para mim, para ti, e para aqueles que amamos.
Um prato de choco frito ou de sardinhas,
Um copo de cerveja Bohemia, ou simples copo de vinho,
Um céu azul,
O sol a uma hora antes de se pôr,
Uma temperatura amena, uma brisa suave,
No nosso querido mês de agosto,
No dia dos teus anos,
Com o Mar do Cerro em frente,
Os surfistas espreguiçando-se,
As traineiras das sardinhas a 300 metros da praia,
Restos de caravelas e naus de outrora,
Dos nossos avoengos que tinham uma terra estreita,
Apertada como uma camisa curta,
E um mar sem fim à sua frente.

7. A felicidade não existe, minha querida Chita,
Ou então é apenas a nossa capacidade de sonhar
E de concretizar pequenas coisas, pequenos projectos.
E é isso que eu quero para ti e para mim,
Já não quero nem posso dar a volta ao mundo em 100 dias,
Só quero ter um planeta mais maneirinho e habitável
Para os nossos filhos e netos.

8. Vamos viver o resto dos nossos dias
Com a pressão do legado ambiental e societal que vamos deixar aos nossos vindouros.
Sou moderadamente otimista em relação à nossa capacidade coletiva:
Quem sabe equacionar um problema também é capaz de o resolver.
Mas temos que começar por nós.
Como eu te escrevi há 3 anos, em 8 de março de 2019,
Sinto que nos temos de proteger mais, um ao outro,
Quando chegarmos, dentro em breve, ao círculo polar ártico da vida.
Temos que nos proteger também do egoísmo geriátrico,
Temos que nos acarinhar mais
E receber mais carinho dos nossos filhos e amigos.
Receber e dar carinho, é um dos pressupostos do programa para se ser feliz,
Estou plenamente de acordo contigo.

9. E hoje continuo a dizer-te,
No dia em que fazes 76 anos:
Não temos outro jeito de estarmos juntos,
Ao caminhar pela picada da vida,
Uma imagem que me vem do tempo de guerra,
E que, tal como nesse tempo, está cheia de minas e armadilhas.
E o amor é essa capacidade de sermos as duas metades da vida fundidas,
Separadas e cada uma para seu lado,
Morreriam na floresta da solidão,
No deserto do sofrimento,
No vazio da noite sem madrugada.

10. Neste dia, tão especial para ti, e para mim,
Só posso exprimir a minha alegria e gratidão por existires
E teres, mal ou bem (,mas acho que mais bem do que mal),
Decidido fazer junto comigo essa caminhada pela picada da vida.
Vou-te pagando com alguns pobres versos, e textos poéticos, como estes,
Mas acumulando dívidas para contigo
Que ainda espero poder pagar em vida.
Não quero levar dívidas para o inferno
E, muito menos, que escrevas no meu epitáfio: “Caloteiro”.

Teu Nhicas, que não tem outro jeito de te dizer que te ama. (**)
Lourinhã, 18 de agosto de 2021

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Notas  do editor:

(*) Vd. poste de 18 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22464: Parabéns a você (1984): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira, esposa do nosso Editor Luís Graça

Guiné 61/74 - P22475: Blogpoesia (746): "Agendamento"; "A nossa intimidade" e "Passar despercebido", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação semanal de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, CachilCatió e Bissau, 1964/66):


Agendamento

A vida é feita de compartimentos.
Cuidar da previsão dos factos é tarefa indispensável.
Para não haver surpresas desagradáveis.
Caminhar sem saber onde se dão os passos traz percalços.
Quem quer atingir o fim tem rumar no caminho certo.
De contrário arrisca-se a seguir pelo inverso.
Nunca mais lá chega...


Bar Castelão, 17 de Agosto de 2021
11h30m
Jlmg


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A nossa intimidade

Há coisas só nossas.
Secretas.
São a nossa intimidade.
O reino do nosso ser.
Onde plantamos nossos sonhos
E curtimos as tristezas.
Ali reina nossa vontade.
Crescem nossas flores.
Um jardim fechado com rosas e jasmim.
Labirinto da nossa alma.
É o orvalho da esperança que o rega
Para que o fruto seja são e abundante...


Bar Castelão em Mafra , 19 de Agosto de 2021
1056m
Jlmg


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Passar despercebido

Na vida o melhor é não dar nas vistas.
Passar despercebido é o melhor para nós.
Na tropa dava sempre certo.
Quem desse nas vistas estava a ser sempre chamado pelo comandante de pelotão.
Para tudo. Até ao fim da guerra.
Depressa me apercebi. Nunca me arrependi.
E ficou para a vida...


Mafra, 20 de Agosto de 2021
10h25m
Jlmg

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Último poste da série de 18 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22381: Blogpoesia (745): "Vagueio em liberdade"; "As três condições" e "Meu rumo", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 21 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22474: In Memoriam (404): Gen Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-2021), falecido na cidade do Porto no passado dia 19 de Agosto de 2021... Entra para a Tabanca Grande, a título póstumo, sob o lugar nº 848

IN MEMORIAM

Gen Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme
(Marco de Canaveses, 4 de Outubro de 1930 - Porto, 19 de Agosto de 2021)


Doente há já alguns anos, faleceu na passada quinta-feira, na cidade do Porto, o senhor General Carlos Azeredo.

Figura importante do 25 de Abril porque lhe foi incumbida a coordenação do Movimento no Norte do Pais, foi desde o tempo em que esteve prisioneiro na Índia, um militar ímpar e um exemplo para os seus superiores e subordinados. (*)

A propósito, lembro o P4043 - Falando do General Carlos Azeredo, de 17 de Março de 2009, onde o nosso camarada José Belo fala das qualidades, como militar, do então Capitão Carlos Azeredo que comandou na Guiné a CCAV 1616 / BCAV 1897 (Mansoa, Cutia, Mansabá e Olossato, 1966/68) e o COP 1, sediado em Aldeia Formosa, de 12 de Junho de 1968 até à sua extinção em 15 de Janeiro de 1969.

No mesmo Poste podemos também ler uma entrevista feita pelo Jornal Matosinhos Hoje Online ao senhor General Carlos Azeredo, aproveitando a sua presença no Convívio dos Combatentes do Concelho de Matosinhos, do mesmo ano.


Entre outras funções, foi depois do 25 de Abril Comandante-Chefe e Governador Militar da Madeira, Governador Civil do Distrito Autónomo do Funchal, 2.º Comandante da Região Militar do Norte e Chefe da Casa Civil do Presidente da República Mário Soares.

Escreveu o livro "Invasão do Norte - 1809 - A Campanha do General Silveira Contra o Marechal Soult" e uma autobiografia a que deu o título "Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império", que mereceu uma recenção do nosso camarada Mário Beja Santos.


Das presenças do senhor General Carlos Azevedo nos convívios dos Combatentes do Ultramar do Concelho de Matosinhos ficam aqui estes instantâneos:
Apesar de estar sempre presente na qualidade de convidado de honra, nada o demovia de pagar o seu almoço.
Fotografia de Família com o senhor Presdidente da Câmara, Dr Guilherme Pinto e alguns dos organizadores do Convívio
Momento de troca de algumas palavras com um Antigo Combatente
O senhor General Carlos Azeredo e o Dr. Guilherme Pinto, os nossos Convidados de Honra em 2009
O senhor General Carlos Azeredo durante a entrevista ao Jornal Matosinhos Hoje Online
Momento do corte do Bolo Comemorativo do III Convívio de 2009
António Maria, Fernando Silva e Gen Carlos Azeredo, três Antigos Combatentes da Guiné
Estará o senhor Gen Carlos Azeredo a dirigir-se às "Tropas em Parada", despedindo-se e prometendo voltar. Ele e o Dr. Guilherme Pinto fazem já parte dos amigos que da lei da morte se libertaram.

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À família do senhor General Carlos Azeredo, especialmente a sua esposa, filhos e netos, os Combatentes do Ultramar do Concelho de Matosinhos, a Tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, assim como o editores deste Blogue, endereçam as suas mais sentidas condolências pela perda do seu ente querido.  (**)

Por sugestão dos nossos editores Carlos Vinhal e Luís Graça, o Gen Carlos Azeredo, que tem 10 referências no nosso blogue e uma forte ligação à Guiné, passa a integrar a nossa Tabanca Grande, a título póstumo, sob o lugar nº 848. (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

17 DE MARÇO DE 2009 > Guiné 63/74 - P4043: Falando do General Carlos Azeredo (José Belo / Joaquim Queirós)

17 DE DEZEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P9217: Efemérides (80): O Gen Carlos de Azeredo recorda, em entrevista à TSF, a invasão de Goa (que faz hoje 50 anos)

1 DE FEVEREIRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P15693: Notas de leitura (804): “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império”, por Carlos de Azeredo, Livraria Civilização, 2004 (1) (Mário Beja Santos)

5 DE FEVEREIRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P15708: Notas de leitura (805): “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império”, por Carlos de Azeredo, Livraria Civilização, 2004 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Último poste da série de 11 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22448: In Memoriam (403): João Dinis (1941-2021), ex-sold cond auto, CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65), e empresário em Bafatá, há mais de meio século... Morreu ontem de Covid-19, em Bissau (Patrício Ribeiro)

Guiné 61/74 - P22473: Os nossos seres, saberes e lazeres (465): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Nas primeiras férias com pandemia (2020), passarinhou-se por Óbidos e circunvizinhança, muitas memórias afloraram, já que na adolescência os meus padrinhos me convidavam a passar férias na Foz do Arelho, fiquei a adorar aquele mar selvagem e barulhento, as manhãs com bruma, as passeatas pela tarde, muitas vezes à volta da Lagoa de Óbidos. Extinto o vínculo a Pedrógão, diluído a Tomar, ficava de pé uma nesga de oportunidade de manter contato com a natureza a pouco menos de uma hora de casa. E essa oportunidade surgiu com estas duas casinhas implantadas em colina, em área protegida, com quilómetros de vinha e pêra rocha circundante. Aqui se dá notícia do feito, de visitas de saltitão até chegar a Sines, a neta gosta a valer de São Torpes, e o avô também.


Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (12)

Mário Beja Santos

Venho a Peniche para comprar casa lá longe e logo me assalta a lembrança de passeios da juventude com o meu padrinho que aqui vinha para tratar dos assuntos do Algarve Exportador (Fábrica de Conservas Nice), começávamos no Bairro dos Pescadores, muita gente a trabalhar com as redes, preparando futuras fainas, e depois passávamos ao lado da fortaleza, falava-me sempre da história da terra e regressávamos à Foz do Arelho passando por este pano de muralha. Aqui estou especado olhando enternecido estas canas da Índia lembrando igualmente as que a minha avó Ângela plantou no nosso quintal no bairro social de Alvalade, estou a fazer horas para entrar na Conservatória da terra, foi aqui que o promotor imobiliário me mandou vir para a escritura das casas do Reguengo Grande, que também passarão a ser minhas, e espero vir a ser muito feliz nelas, foi amor à primeira vista, a pureza daquelas linhas decoradas a branco e vermelho no meio de tanta pedra que deve vir da era jurássica, estou no extremo do concelho da Lourinhã, quando sair da Travessa da Boa Esperança e virar à esquerda, minutos depois entro no concelho do Bombarral. Esfrego as mãos, venho com a família passar aqui a última semana de julho de 2021, quero enamorar-me da região, assim Deus me dê vida e saúde.
Subi à colina em frente, onde se prantam cinco moinhos (quatro deles em estado calamitoso) para vos mostrar o meu lugarejo, os meus casebres, foram bem reedificados, não perderam a tipicidade de habitações de pequenos proprietários rurais, estão decoradas com gosto e naturalmente que estou ávido em transportar para aqui traquitana pessoal. O carro arruma-se lá no cimo da ladeira, tenho depois o silêncio por minha conta, às vezes interrompido pela canzoada do vizinho da planície onde se multiplicam as abóboras, ladram todas à uma e segue-se o profundo silêncio. Sento-me a meditar que tipo de jardim zen vou para ali procurar desenvolver no meio dos pedregulhos, tenho laranjas e ameixas, um velho casebre onde antigos proprietários deviam guardar ovelhas, tudo a seu tempo, o importante é ter a curiosidade espevitada e pôr ordem no caderno de todas estas atividades que me aguardam – e espero que sejam muitas e por muito tempo.
Consta que Napoleão, lá do alto de uma pirâmide, quando fez a campanha do Egito, se dirigiu aos soldados falando-lhes dos quarenta séculos que contemplavam. Aqui fia mais fino, se é tudo verdade o que li no Museu dos Dinossauros, estou sentado e a contemplar milhões de anos, esta pedra de forma encarquilhada espalha-se por toda a parte, é uma mistura exótica entre estes verdes de pomares e vinhas e pedras de outras eras, sente-se o aconchego de uma certa prosperidade rural, o benefício das vistas largas e todas estas marcas do calendário de uma antiguidade que não podemos discernir, a não ser pelo peso da fantasia.
Aconteceu, preparava-me para ir dormitar, a lua irrompeu em todo o seu esplendor, pareceu-me a aeronave a encaminhar-se para uma daquelas cidades da ficção científica, impossível resistir a todo este sombreado da noite em diálogo com os focos de luz.
Cá está, meti-me por caminho pedestre em direção ao Vimeiro, de quando em vez passa um ciclista ou outro pedestre que se cumprimenta, e como não ficar impressionado com esta brutalidade da pedra afagada pela vegetação – também esta terá no ADN o tempo jurássico? Não importa, o resultado é este esplendor, é somar e seguir.
Passeio a Óbidos, visita curta e com pouca detença, há outros objetivos na viagem. Mas como resistir à fosforescência desta buganvília que cresce teimosa como se intencionasse formar um túnel de vegetação para dar sombra na Rua Direita?
Não conheço açude como este, fazia serventia à secular Fábrica de Fiação de Tomar, para aqui chegar percorre-se uma bela mata, custa no início ver as ruínas da fábrica, um dó de alma, podiam ser um modelo de arqueologia industrial, mas foi tudo saqueado. E depois chega-se a este panorama, o Nabão a desfazer-se em água, há para ali praias em miniatura, gente em piqueniques, é tudo muito belo, mas o que seria este açude se estivesse bem conservado?
E agora Sines, estamos perante a Igreja de Nossa Senhora das Salas, não lhe falta o estilo manuelino, acho que tudo começou por uma promessa depois de um putativo milagre, uma ordem militar religiosa não gostou da construção e Vasco da Gama mandou fazer o templo que guarda um curioso tesouro. Da Lourinhã viajou-se para Sines, há uma criança que constitui o meu futuro que adora estas praias, pois delas iremos falar.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22456: Os nossos seres, saberes e lazeres (464): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22472: Meu pai, meu velho, meu camarada (67): Lembrando, no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte V


Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > c. 1943 > A cidade, a baía o Porto Grande e o Monte Cara ao fundo.  Ao centro,  em segundo plano, o edifício de maior volumetria é o Liceu Gil Eanes, por onde passou a elite do Mindelo e onde estudou Amílcar Cabral (que ali completa o 7º ano do liceu, em 1944, seguindo depois para Lisboa onde se licenciou em engenharia agronómica, no Instituto Superior de Agronomia
). 

Cortesia de Adriano Miranda Lima / Blogue Praia de Bote (2012). Informação complementar de Adriano Miranda Lima: “Foto de origem desconhecida mas que parece ser da Foto Melo ou do José Vitória”. 



Estrada Lourinhã-Peniche EN 8-2], cruzamento para a Praia da Areia Branca > 7/9/1942 > Foto enviada pelo irmão, Domingos Severino, o primeiro a contar a esquerda. Possivelmente foi em “dia de sortes”, do grupo dos nascido em 1922… Reconhece-se o Toni, o segundo a contar da esquerda;  o Carlos Fidalgo,  o terceiro; e o Rei, o quinto;  todos falecidos. Não 
é possível identificar o 4º elemento e 6º (de bicicleta). Foto: arquivo da família.



Lourinhã, estrada Lourinhã-Peniche, 7/9/1942... Uma fotografia com amigos, contemporâneos do meu pai... Do grupo da foto anterior. Nenhum deles está hoje vivo, se bem os reconheço. O segundo do lado esquerdo, é o meu tio, irmão do meu pai (dois anos mais novo) e meu saudoso padrinho de batismo, Domingos Henriques Severino. O terceiro é o Toni. O quinto  é o Carlos Fidalgo (, mais trade sócio da firma Fidalgo & Matos Lda) e o sexto o José Frade. A foto, enviada para Cabo Verde, está assinada pelo Domingos Severino.



Lourinhã > 6/12/1942 > Da esquerda para a direita: Nazaré, Ascensão e Maria Adelaide, três vizinhas e amigas de Luís Henriques, fotografadas na ponte sobre o Rio Grande, Lourinhã. Foto enviada para o amigo e vizinho, expedicionário em Cabo Verde, com "votos de verdadeira e sincera amizade". A primeira parte da legenda é ilegível.

Lembro-me de todas elas. A Maria Adelaide já morreu. Da Ascensão perdi-lhe o rasto. A Nazaré, conhecia-a bem, era a tia da Mariete, a família toda foi para a América,   em meados dos anos 50. E julgo que casou por lá... Será que ainda é viva ? Era "ajuntadeira" (costureira de calçado), e trabalhou muito para o meu pai, sapateiro, que dava trabalho a muita gente na Lourinhã.

Lembro-me bem da ti Adelina, mãe da Nazaré, nossa vizinha, e que era um, espécie de curandeira lá do bairro... Nós morávamos na rua dos Valados, ou do Castelo, e elas na rua, paralela, a do Clube... Quando puto, e quando doente, ela - a tia Adelina - aplicava-me as suas mezinhas, receitas da medicina popular com séculos de eficácia simbólica e terapêutica... Lembro-me, com repulsa, das suas unturas, na garganta, feitas com “gordura de galinha”, para tratar da papeira... Foto: arquivo de famíl



Lourinhã > s/d > c. 1940/50 > Passeando com primos e primas… Luís Henriques é o primeiro da esquerda. Na outra ponta, o primo António Francisco Sousa (que emigrará, muito mais tarde, para Moçambique). Foto: arquivo de família.


Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > “Maio de 1943. O jardim de Mindelo onde respirei lufadas de perfume e pó de arroz: isto quando se passava por grupos de senhoras ou meninas. Quando se ouvia tocar a música, à volta deste jardim passeavam milhares de transeuntes”. Foto Melo, pertencente ao arquivo da família.

Na realidade, tratava-se da Praça Nova, ajardinada (hoje, Praça Amílcar Cabral), onde havia/há um coreto, um quiosque, um lado e os bustos de dois insignes portuguesa, o poeta Luís de Camões e o Marquês Sá da Bandeira (Santarém, 1795 - Lisboa, 1876), 
uma grande figura, como militar e político do liberalismo, que  liderou a  luta contra o esclavagismo no Portugal do séc. XIX.




Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Maio de 1943 > O jardim de Mindelo. A estátua de Luís de Camões, inaugurada em 1940… Foto: arquivo de família


Cabo Verde > S. Vicente > Mindelo > "Junho de 1943. Alguns internados do depósito dos convalescentes. Entre eles, estou também eu, sentado, lendo [o livro ] ‘Os Bastidores da Grande Guerra’. Luís Henriques , 1º Cabo nº 188/41, 1º Batalhão Expedicionário, R.I. nº 5. S. Vicente. C. Verde".

 [ O meu pai é o primeiro da 1ª primeira fila, do lado direito, assinalado com um círculo a vermelho; esteve internado cerca de 4 meses, já no final da comissão, por doença de pulmões; a morbimortalidade entre os expedicionárias era elevada; o livro em, questão podia o ser de Adolfo Coelho, "Nos bastidores da grande guerra", documentário, editado em 1934, em Lisboa, pela Livaria Clássica Editora].



Cabo Verde > S. Vicente > 1/12/1942 > "Uma das fases do jogo de voleibol no dia da festa da Restauração, organizada pelo R. I.  nº 5, em Lazareto, 1/12/1942, S. Vicente, C.Verde. Luís Henriques". Foto: arquivo da família.



Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > Cais acostável, baía e o Monte Cara, ao fundo > “Agosto de 1942- A nossa maior alegria, depois dos trabalhos, o banho, em que tantos aprenderam a nadar. Entre tantos, estou eu, Luís Henriques. Em cima do cais, estão os nossos sargentos Peralta e M. Pereira (falecido)”.

 Segundo nos contava, ainda chegou a salvar mais do que um camarada, em risco de se afogar… Um deles, ao que parece, terá tentado o suicídio, uns meses antes do regresso a casa: sofria de sífilis, um das doenças sexualmente transmissíveis que mais afligia o contingente expedicionário, numa altura em que ainda não exista a “bala mágica”, o antibiótico… Recordo-me de o meu pai me dizer que no Mindelo “até as pedras tinham vénereo” (sic)… Segundo o nosso camarada Adriano Lima, a penicilina só chegou a Cabo Verde no início de 1945. Foto: arquivo da família.


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


5. Continuação da "história de vida" de Luís Henriques, ex-1º cabo at inf, 3ª Companhia do 1º Batalhão do RI5, unidade mais tarde integrada no RI 23 (*). Esteve no Mindelo entre julho de 1941 e setembro de 1943. Era natural da Lourinhã. Faria 101 anos,se fosse vivo, no dia 19 de agosto de 2021. A pandemia de Covid-19 impediu a realização, o ano passado, da homenagem que a família e alguns amigos lourinhanses queriam prestar-lhe.  O seu filho mais velho, o nosso editor Luís Graça, reuniu entretanto, numa pequena brochura de 100 páginas, o essencial da informação documental sobre a sua vida (*).
 

Antes de partir para Cabo Verde, o jovem Luís Henriques foi ao Nadrupe reiterar a sua vontade de continuar a namorar a filha do senhor Manuel Barbosa, pequeno agricultor com terras próprias (e outras de renda), e sete bocas para alimentar  (a esposa e seis filhos, 3 rapazes e 3 raparigas)… 

O futuro sogro terá sugerido que rompesse o namoro, porque não se sabia o que podia acontecer, “podia morrer ou arranjar outra” (sic)… Mas o meu futuro pai manteve-se fiel à promessa de continuar a namorar a Maria da Graça (que também assinava Maria da Graça Barbosa, mas no seu BI era apenas a Maria da Graça, nascida em 6 de agosto de 1922, no dia da festa local, o da N. Sra. da Graça).

Do Mindelo escreve à sua namorada, futura noiva e esposa, Maria da Graça. Eis algumas quadras que chegaram  até nós:

Deus ao fazer as três Graças,

Sua obra deu por finda,

Nasces tu, Maria da Graça,

A quarta Graça, a mais linda.

(c. 1941)

Desterrado nesta terra,

A saudade me consome,

Que Deus nos livre da guerra,

Já nos basta a sede e a fome.

 

Estou farto de engolir pó,

Nesta ilha abandonada,

Mas sinto-me menos só,

Quando penso em ti, minha amada.

 

Maria, minha cachopa,

Não me sais do pensamento,

Logo que eu saia da tropa,

Vou pedir-te em casamento.

 

 (c. 1942)

 


Lourinhã > Lourinhã > Abril de 1991 > Luís Henriques (1920-2012), com 70 anos, com a esposa, Maria da Graça (1922-2016). Celebravam nesse ano os 45 anos de casados ( e as "bodas de ouro", em 1996). Foto: arquivo da família.


Correspondia-se também com vizinhos, amigos e amigas da Lourinhã. Infelizmente, essa correspondência perdeu-se, com o tempo. Escrevia em papel fino, e ia mandando fotos, em geral de formato reduzido, legendadas no verso e algumas vezes a tinta verde.

Nos tempos livres, dedicava-se ao desporto: futebol, voleibol, natação. E gostava de ler e escrever. É natural que houvesse uma biblioteca  pública no Mindelo. E o próprio RI 23 deveria ter alguns livros para ocupação dos tempos livres dos expedicionários.

Era um leitor compulsivo. Lembro-me de me ter citado, entre outros, o romance do escritor austríaco, de origem judaica, Stefan Zweig (1881-1942), “Vinte e quatro horas na vida de uma mulher” (1935), que eu, confesso, nunca li.

Sinopse: "A rotina de um hotel na Riviera é abalada por uma notícia escandalosa. Uma mulher abandona o marido e as duas filhas, em nome de uma paixão por um jovem que havia acabado de conhecer. Este episódio despoleta uma acesa discussão entre os hóspedes do hotel e leva a Senhora C., uma aristocrata inglesa de sessenta e sete anos, a recordar um episódio secreto da sua vida que a tortura há mais de duas décadas. Vinte e quatro horas na vida de uma mulher é um relato apaixonante e intimista sobre a vida de uma mulher que se liberta das correntes do pudor e do preconceito social em nome de uma paixão avassaladora." (Fonte: A Esfera dos Livros).

Em 1942, o escritor e a mulher haviam-se suicidado em Petrópolis, no Brasil, país que os acolheu, no exílio.  Antes tinham passado duas vezes por Portugal. O meu pai deve ter tido acesso à edição de 1937, com a chancela da Civilização, Porto, trad.  Olando Alice. Terá sido um dos livros que  mais o marcou na sua vida, a avaliar pelo número de vezes que o citava. 

Em Cabo Verde, Luís Henriques foi contemporâneo dos pais de outros membros  da Tabanca Grande, nossos camaradas  (Hélder Sousa, Augusto Silva Santos, Luís Dias) ou amigos (Nelson Herbert)... Recorde-se os seus nomes: 

  • Ângelo Ferreira de Sousa (1921- 2001) (nascido no Cartaxo, a 28 de abril de 1921);
  • Armando Duarte Lopes (1920-2018) (nasceu no Mindelo; emigrará depois para a Guiné, onde foi futebolista);
  • Feliciano Delfim Santos (1922-1989) (esteve na ilha do Sal) (nascido a 22 de abril de 1922);
  • Porfírio Dias (1918-1988) (esteve no Mindelo, quase 3 anos, entre julho de 1941 e maio de 1944) (nasceu em Lisboa, em 30 de julho de 1919).

(Continua)

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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série > 


22 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21282: Meu pai, meu velho, meu camarada (65): Lembrando, no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte III

20 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21273: Meu pai, meu velho, meu camarada (63): Lembrando, no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte II