sexta-feira, 3 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23321: Notas de leitura (1451): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Estas navegações e estes documentos narrativos abriram campo a um conhecimento que estilhaçou ideias pré-concebidas durante séculos. Dos trabalhos de José Silva Horta depreende-se claramente que havia conceções cristalizadas ao longo de séculos sobre esses povos desconhecidos tratados como descrentes e selvagens. Os relatos entremeiam dados que a cultura europeia demorou a assimilar: os povos pardos, fundamentalmente islamizados, seguia-se o grande deserto, em território longínquo estava a mítica Tombuctu, longe ficava o Benim, pela mesma orla costeira chegava-se à terra dos Negros, os navegadores informavam que havia uma economia de troca, reportaram usos e costumes, havia claros indícios da presença do islamismo e também da idolatria, gradualmente a aceitação das trocas. Esses mesmos autores da literatura de viagens iriam lançar outras novas questões, importantes para a divulgação do Cristianismo, traziam já subjacente a ideia de que os povos civilizadores tinham muito trabalho pela frente para tirar da selvajaria aqueles povos que eram vistos manifestamente como atrasados, a despeito das suas manifestações culturais e das boas práticas de acolhimento. Assim entrou em germinação a mentalidade colonizadora, só contestada e repudiada no século XX.

Um abraço do
Mário



Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (3)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”.

Voltando um pouco atrás, recorda-se ao leitor que esta literatura de viagens tem um peso documental inexcedível para o trabalho historiográfico. Depois de fazermos referência aqui a Cadamosto iremos até uma obra intitulada “O Confronto do Olhar, o encontro dos povos na época das Navegações Portuguesas”, Editorial Caminho, 1991, com as colaborações de Luís de Albuquerque, António Luís Ferronha, José da Silva Horta e Rui Loureiro. José da Silva Horta vai situar-nos neste espaço da costa africana e dá-nos a imagem do africano pelos portugueses antes dos contatos e em sequência os primeiros olhares sobre o africano do Sara Ocidental à Serra Leoa (meados do século XV – início do século XVI). Cadamosto depois de nos descrever o país da Gâmbia, como navegavam os negros nas suas almadias, como se estudavam as distâncias, e isto num lindo capítulo em que refere a Estrela Polar e as seis estrelas do polo antártico, referencia quem foram os primeiros a descobrir as ilhas de Cabo Verde, assunto que, como é de todos sabido, lançou grande polémica na historiografia dos séculos XIX e XX. Navegando pela costa africana entre o cabo Verde e o Senegal chegaram a um lugar onde foram levados à presença do Batimansa, sucedem-se as trocas. Cadamosto pronuncia-se sobre a religião, modo de viver e trajar destes negros, uns praticantes da idolatria, outros praticantes da seita de Mafoma. “No modo de viver, quase todos se governam conforme os negros do reino do Senegal. Comem carne de cão, que nunca ouvi dizer que se comesse noutra parte. Os seus vestidos são de algodão e se os negros do Senegal andam quase todos nus, estes pela maior parte andam vestidos. As mulheres vestem todas por uma mesma forma, salvo que quando são pequenas gostam de fazer alguns lavores sobre a pele, picando com agulhas os peitos, braços e pescoço, os quais parecem desses bordados de seda que se usam nos lenços e são feitos com fogo de modo que em tempo algum se apagam”. Fala dos elefantes, do descobrimento do rio de Casamansa cujo rei é igualmente o Senhor Casamansa, avança-se para a Guiné, tal como ela hoje existe, regressa-se depois a Portugal.

A viagem de Pedro de Sintra, escudeiro do Infante D. Henrique, faz parte dos relatos de Cadamosto. É a primeira referência que se faz ao cabo de Sagres da Guiné, a 80 milhas do cabo da Verga. “Dizem os marinheiros, pelas informações que houveram, que os seus habitantes são idólatras, adoram estátuas de pau com a forma humana. São de uma cor mais amulatada do que negra e têm alguns sinais feitos com ferro em brasa pela cara e pelo resto do corpo”. Trata-se de um relato que revela claramente que as navegações tinham atingido o cabo Roxo e se aproximavam da costa da Libéria.

Os trabalhos de José da Silva Horta no já aludido livro “O Confronto do Olhar” têm a ver com a imagem do africano antes e depois dos contatos estabelecidos.

Antes, havia a ideia do negro da Etiópia, do egípcio, pensava-se no mouro, e admitia-se a existência de um reino distante com um senhor cristão, o Preste João. José da Silva Horta faz um levantamento das expressões à volta do negro, como é óbvio pouco valorativas e não abonando gente civilizada. Havia, insista-se, no imaginário, o tal Preste João que era pensado como patriarca de Núbia e Etiópia que “senhoreia mui grandes terras e muitas cidades de cristãos mas que são negros como a pez e queimam-se com fogo em sinal de Cruz em reconhecimento do batismo, e como quer que estas gentes são negros, mas são homens de bom entendimento e de bom siso”. Em jeito de conclusão, o historiador diz que a imagem do africano em Portugal no século XIV inícios do século XV é marcada pela permanência de estereótipos negativos da herança medieval anterior, associados à cor negra e ao Negro.

Tudo se alterará a partir das navegações nas costas do Sara Ocidental e com as motivações do projeto henriquino, os propósitos de cristianização não chocavam com a escravatura, assentava-se numa sobrevalorização da alma sobre o corpo, e os relatos da literatura de viagens vão emitir juízos sobre a vida nómada dos Árabes, dos Azenegues e dos Negros, fala-se permanentemente em bestialidade, credos errados, adoração de ídolos em terras verdes e luxuriantes. José da Silva Horta elenca vários testemunhos como os de Cadamosto e Pedro de Sintra, também os de Diogo Gomes, recorde-se que Pedro de Sintra percorreu a costa da Guiné, antes deixou-nos um retrato dos Mandingas e dos Jalofos senegaleses, retratou as feiras dos Banhuns entre o rio Casamansa e o Cacheu, também a crença dos habitantes da Serra Leoa e enfatiza a perenidade do Homem Selvagem nas representações do africano, com toda a ambiguidade entre homem e animal que lhe é própria. Duarte Pacheco Pereira fala na Serra Leoa em que há gente belicosa, negros que comem outros homens, que têm idólatras e feiticeiros, negros que têm dentes limados e agudos como o cão. E a aproximação entre o homem e o animal é bem clara: “Nesta serra há muitos elefantes e onças e outras muito variadas animálias que nesta Espanha nem em toda a Europa não há. Também há aqui homens selvagens, a que os Antigos chamaram Sátiros, e são todos cobertos de um cabelo ou sedas quase e tão ásperas como de porco; e estes parecem criatura humana e usam o coito com suas mulheres como nós usamos com as nossas; e em vez de falarem, gritam quando lhes fazem mal”.

O historiador também observa que num tempo em que dificilmente seria pensável a existência de verdadeiros homens fora da geração de Adão, o próprio Negro via-se envolvido em dúvidas sobre a sua humanidade, e despedimo-nos exatamente com uma observação de Duarte Pacheco Pereira:
“Muitos Antigos disseram que, se alguma terra estivesse oriente e ocidente com outra terra, que ambas teriam um grau do Sol igualmente, e tudo seria de uma qualidade. E quanto à igualeza do Sol é verdade; mas como quer que a majestade de grande natureza usa de grande variedade, em sua ordem, no criar e gerar das coisas, achámos, por experiência, que os homens deste promontório de Lopo Gonçalves (cabo Lopez) e toda a outra terra de Guiné são assaz Negros, e as outras gentes que jazem além do mar Oceano a ocidente (que tem o grau do Sol por igual, como os Negros da dita Guiné) são pardos quase brancos; e estas são as gentes que habitam na terra do Brasil. E que se algum queira dizer que estes estão guardados da quentura do Sol, por nesta região haver muitos arvoredos que lhe fazem sombra, e que, por isso, são quase alvos, digo que se muitas árvores nesta terra há, que tantas e mais, tão espessas há nesta parte oriental de aquém do oceano de Guiné. E se disserem que estes de aquém são negros porque andam nus e os outros são brancos porque andam vestidos, tanto privilégio deu a natureza a uns como a outros, porque todos andam segundo nasceram; assim que podemos dizer que o Sol não faz mais impressão a uns que a outros. E agora é para saber se todos são da geração de Adão”.

Iniciavam-se os encontros, iriam eclodir os grandes debates sobre se os negros tinham alma, demorou tempo a compreender que a gente de todas as etnias e cores faziam parte da mesma humanidade. Perceba-se, pois, que o grau de dúvidas culturais e civilizacionais reveladas nestes encontros obedeciam a uma estrutura mental sedimentada durante séculos.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23310: Notas de leitura (1450): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23320: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte X (Conclusão)

1. Conclusão da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte X

Dois sustos aconteceram com os novatos acabados de chegar. Um soldado esquecendo-se que tinha ainda o carregador na sua G3 e, estando em formatura, teve a sorte de ter apenas o cano da arma em cima da bota e, descuidado, premiu o gatilho, rebentando com um dos dedos do seu pé.

Um outro caso que poderia ser grave e com os mesmos novatos, deu-se já nos nossos quartos. Um Pelotão de Sapadores acabado de regressar do mato para onde se tinha deslocado, acompanhados pelos nossos, já que a missão era indicar-lhes as zonas onde tínhamos colocado minas. O Alferes, que comandava este pelotão dos novatos, premiu gatilho da sua G3 sem antes ter tirado o carregador da arma e, também, sem verificar se tinha bala da câmara, disparou furando o teto do quarto. Não fosse a rápida experiência de um dos nossos Furriéis desviando-lhe o cano da G3 para o teto e gritando para que tirasse o dedo do gatilho, o dito Alferes atrapalhado, e todo pálido, tinha provocado uma tragédia. Notamos todos nós, mais velhos, que os que nos vinham render apresentavam muita inexperiência.

Também no meu Batalhão, o Comandante diariamente publicava em Ordem de Serviço louvores a quase toda a maralha. No que me toca, deixou-me de fora. Embora já o esperasse, senti-me ferido. Vingou-se de mim com as armas que dispunha. Continuei a olhar bem de frente para ele sempre que o via.
Este personagem acabou por vir a ser internado no Hospital Militar de Bissau com uma ameaça cardíaca. Já em Bissau, lamentou-se ao nosso Médico sobre a minha ausência em não o ir visitar ao Hospital. Respondi ao Médico que ele sabia bem o mal que durante toda a comissão me tentou fazer. Na verdade, vendo quem ele louvou, deixou-me revoltado. Nunca mais lhe falei em todos os encontros que tivemos até hoje, em que ele esteve presente.

Felizmente, o Capitão da Companhia soube reconhecer todos os esforços que fiz em prol da saúde, não só dos nossos como de toda a população local. Deu-me um louvor que me deixou muito orgulhoso.

Sei que contribui para a paz que tivemos em todo o tempo que permanecemos naquele local. As informações chegavam-me de muitos lados e até de Bissau. Marquei o meu tempo que passei pela Guiné. Mais tarde, colegas meus civis da Guiné, sempre que me viam, falavam da minha passagem por aquela terra.

Por fim, e antes de deixar de escrever sobre a Guiné, vou-me debruçar resumidamente sobre a jovem que lá conheci e a quem devo muito do meu estado de saúde mental, conseguido durante toda a minha comissão no interior do território e na localidade já por mim várias vezes enunciada, ou seja, o Pelundo.

Logo no primeiro dia que cheguei a esta localidade e sede do meu Batalhão, era já fim da tarde, encontrava-se à minha espera junto da porta de armas uma jovem que perguntando pelo Furriel Enfermeiro lhe indicaram a minha pessoa.
O meu espanto foi grande ao registar a sua grande desenvoltura dizendo-me logo como um ultimato fosse, que seria ela a tomar conta da minha roupa sempre que eu necessitasse de a ter lavada e passada a ferro. Acrescentou-me que já tomava conta da roupa do Médico, do Comandante Tenente Coronel Romão Loureiro e do Segundo Comandante Major Pinho.
Verifiquei também que era a única das lavadeiras da aldeia que tinha ordem de entrar dentro do arame farpado. Era tratada de modo muito especial como se fosse a princesinha daquela Aldeia.

No dia seguinte e ao fim do horário obrigatório de permanência no Quartel, saí para dar uma volta pela Aldeia como o primeiro reconhecimento tímido da mesma e como um primeiro apalpar do pulso ao ambiente da mesma.
Encontrei um ambiente muito descontraído para uma zona de conflito, vendo soldados nossos em cavaqueira descontraída com membros da população jovens como nós.
Para ajudar, o nosso Alferes de Informações e o homem mais próximo do Comando, era oriundo de Cabo Verde. Vim a saber mais tarde que tinha a minha profissão civil. Como dominante do dialeto, ajudou-nos aos mais atrevidos, na aproximação a estes nativos.

Ao terceiro dia entreguei pela primeira vez roupa à jovem lavadeira Judite. Logo ela me convidou para, ao fim do dia e após o meu jantar no Quartel, vir à Aldeia e, deste modo, poder conhecer as suas amigas e amigos e ambientar-me ao meio.
Assim aconteceu a minha primeira fuga ao arame farpado até cerca da meia-noite.
Levou-me para uma casa (Palhota na designação local) onde me vi rodeado de quatro das suas amigas e de um já menos jovem, que vim a saber ser um dos cerca de cem filhos do Régulo daquela Aldeia e muito influente na juventude desta, principalmente no meio feminino.

Falando quase sempre em Manjaco (dialeto local) senti-me tremendamente estranho, não fosse de longe a longe ditas algumas frases em português e um sempre ligeiro sorriso que a jovem Judite me lançava. Ali eu era uma carta fora do baralho, mas que mais tarde verifiquei o quanto ganhei de segurança arriscando-me desta forma. Entrei no mundo deles sem mostrar receio nem superioridade.
Verifiquei também, logo nos primeiros dias, que esta jovem se impunha não só entre as da mesma idade ou mais velhas, como também entre os rapazes. Vim mais tarde a saber que o Régulo Vicente a tinha comprado desde tenra idade para um dos seus filhos que se encontrava em Bissau a estudar ou a trabalhar. Ao certo nunca me preocupei em saber o que o dito cujo fazia.

Diariamente a minha relação com a população foi aumentando. O número de pessoas que era atendida no Quartel também aumentava à medida não só das suas necessidades como da confiança que tinham em nós.

Também todos os dias, nas horas de folga, eu saía do arame farpado e percorria as ruas da Aldeia cumprimentando todas as pessoas que encontrava. Deste modo, diariamente fui conquistando a sua confiança ao ponto de por vezes sentar-me ou mesmo deitar-me a descansar um pouco numa ou outra palhota de pessoas idosas que já tinham passado pelo posto Médico do Quartel.
Os mais idosos começaram a cumprimentar-me segurando-me as mãos e beijando-as. Os mais pequenitos vinham até mim puxando-me pelos calções à espera de um afeto. Ambientei-me ao meio.
O mesmo foi acontecendo, não só com a Judite, mas com toda a geração de jovens que dia sim, dia não, durante as noites e, até cerca da meia-noite, nos juntávamos no bailarico. Alguns dos filhos do Régulo Vicente tinham como uma espécie de Clube Noturno. Eu raramente faltava a estes bailaricos.
Com o passar dos dias fui criando um afeto muito especial com esta jovem. Uma espécie também de adoção pela sua família, que me recebia com sorrisos e carinho na sua palhota.
No Bailarico, ela era a minha parceira diária e não deixava que outras se aproximassem de mim. O carinho que ela com o seu olhar me transmitia era grande. Por vezes, outras jovens atrevidas, nos momentos da entrega da roupa lavada junto ao arame farpado, aproveitavam-se para a provocar, agarrando-se ao meu pescoço. Ela reagia com fúria e as mais sabidas gozavam galhofando.

O tempo ia passando e mais a sentia próxima de mim, mesmo sabendo que estava comprada para outrem. Pelo meu lado, respeitosamente lhe transmitia afetos respondendo-lhe a todas as perguntas que ela me fazia sobre a minha vida em Portugal e sobre a namorada que lá tinha deixado mostrando-lhe fotografias dela. Acrescento que quando da segunda vez que vim à Metrópole de férias, falei muito sobre esta jovem à minha namorada na altura e mais tarde mãe de meus filhos, para me ajudar a escolher umas peças de roupa para eu levar de presente à Judite. A custo concordou já que a jovem merecia. Deste modo, levei-lhe de Lisboa, sandálias, saia e blusa adaptadas ao meio da Guiné.

Durante vários meses não houve fins de tarde, ou após a hora de almoço, que não estivesse por momentos juntos na cavaqueira. Passou a fazer parte da minha vida naquela Aldeia e tema de muitas conversas no Quartel. Acrescento antes de mais, que sempre a respeitei nunca me excedendo nos afetos.
A este respeito apercebi-me por diversas vezes de tentativas de me armadilharem a vida dado a fragilidade que viam nela a meu respeito. Tive o bom senso, embora sabe Deus com quanto custo, de não avançar demais na relação dado ao isolamento em que todos nos encontrávamos.
Nos bailaricos, apenas com ela podia dançar. Embora sabendo-se vigiada não resistia. Tantas vezes ela foi fruto de comentários de militares que no mesmo local se encontravam.

Chegou uma altura que por ordem do futuro noivo ou da família dele ou dela, não me interessou saber, foi proibida de dançar comigo. Ia para o baile e não dançando comigo, também impedia outras jovens de aceitarem os meus convites. Uma noite, porém, uma delas resolveu romper o bloqueio que ela ordenava e veio ao meu encontro para que eu com ela dançar. Foi como lhe tivessem dado uma grande paulada. Terminada a música, e esquecendo-se dos que a vigiavam, veio ao meu encontro saltando para o meu pescoço e dizendo bem alto “tu és meu”. Fiquei sem respiração naquele momento com tantos olhares virados para mim. O Alferes Tunes, grande amigo meu, comentou-me que doravante teria que ter todos os cuidados e mais alguns com o Major e o Tenente Coronel mas, principalmente, com o primeiro, porque andava sempre com o olho em mim. O Tunes, encontrei-o recentemente e com aspeto debilitado pela doença cancerígena que o atacou. Selamos um grande abraço apesar do ambiente pandémico que se vai vivendo. Disse-lhe também que tinha resolvido escrever sobre os tempos passados na Guiné, o que ele tanto ao longo de anos me pediu para fazer. “Escreve sobre o que viveste e observaste naquela época – pedia-me ele”.

Durante os tempos em que ela proibia as outras jovens de dançarem comigo, deixei de frequentar o club de baile até que resolvi aparecer e encontrar quem rompesse aquele bloqueio.
Depois destes episódios, apareceu no Pelundo o dito filho do Régulo para quem a família dela a tinha vendido ainda criança. Era um hábito tribal que me revoltava assim como o chamado “fanado” (corte do clitóris).
Os dias e tempos que se seguiram foram traumáticos para os dois mas principalmente para ela. Por mais que uma vez e já noite, ao passar por caminhos estreitos perto da palhota da família dela, encontrei-os a discutir e ela chorando. Segui sempre em frente respeitando a custo não interferir no meio.

Muitas outras peripécias se passaram até que por ordem do Comandante de Batalhão fui transferido para tomar conta da nossa Companhia instalada na Aldeia de Có e região da tribo Mancanha.
Antes de partir para Có, procurei encontrar-me com a Judite para me despedir dela bem como, de outras pessoas da Aldeia minhas amigas sem esquecer a professora primária e seu irmão. Todos me mostraram desconforto por verem partir o amigo. Quanto à Judite, não conseguiu esconder uma lágrima apesar de já por esta altura, só a encontrar para receber e entregar-lhe a minha roupa para lavar.

Não me foi nada fácil esta mudança repentina. Dentro de mim tudo era revolta por me sentir injustiçado a pouco mais de cinco meses do fim da Comissão. Mais ainda, por verificar que da parte do Médico do Batalhão nada ter feito para tentar impedir a minha transferência bem pelo contrário, apoiou-a como já anteriormente o referi ao escrever sobre este tema.
Lá parti para aquela unidade em escolta mas com a minha cabeça cheia de revolta.
Voltei ao Pelundo por duas vezes. A primeira por causa da inauguração do novo Posto Médico e por fim, para os últimos dias, antes de sermos substituídos e partirmos para Bissau a fim de regressar à Metrópole.

Quando por fim regressei para partir para Bissau, tive pouco tempo e hipóteses de a ver até porque no único dia que tive, desencontrei-me com ela, dado eu já não saber se estaria em família ou na casa do sogro, o dito Régulo Vicente. Por isso, só já quase ao fim do dia o meu Cabo Enfermeiro me transmitiu um pedido dela dizendo-lhe que estaria à minha espera para se despedir de mim numa casa do Régulo num outro local da Aldeia. Fui logo que pude e verifiquei nos olhos dela que pretendia despedir-se de mim de forma diferente da que veio a acontecer.

Durante os dias de espera pelo barco em Bissau, tive sempre notícias dela. Ficava impressionado como ela, quase diariamente, fazia-me chegar as preocupações dela sobre a minha pessoa. Ficou para sempre no meu coração. Quando o navio Uíge chegou ao cais de Alcântara em Lisboa e desembarquei, quase que não me mantinha nas minhas pernas. Vinha bastante debilitado da viagem. Rara foi a noite que consegui dormir. O meu quarto encontrava-se numa zona em que os motores do navio se faziam ouvir e, não bastando, enjoei quase toda a viagem.

Depois do desfile fomos levados para o Quartel da Amadora na altura era Infantaria 1. Levei comigo uma muda de roupa civil e, sentando-me na parada, ali mesmo me despi entregando a minha farda e botas a um dos militares que lá se encontrava. Gritei bem alto. Chega de fardas para mim! Zarpei logo que pude do Quartel.

(FIM)

Miratejo, 30 de setembro de 2021

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Nota do editor

Poste anterior de 31 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23314: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte IX (Penúltima)

Guiné 61/74 - P23319: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (1): A pontaria dos artilheiros... (Morais da Silva / C. Martins)

Peça de artilharia 130 mm M-46, de fabrico soviético (ano de introdução: 1954). Este tipo de armamento foi usado pelo PAIGC contra Guileje em maio de 1973, a partir do território da Guiné-Conacri. O seu alcance (máximo, com cargas propulsoras suplementares) pode ir aos 27,5 km. Tem uma guarnição de 7 homens.

Fonte: Wikipedia (em finlandês) (2007) (com a devida vénia...)

1. Guidaje, Guileje e Gadamael, os famosos 3 G, ou a "batalha dos 3 G", já aqui tão acaloradamente discutida, analisada, comentada, ao ponto de alguns de nós termos perdido a serenidade e a contenção verbal que devem ser apanágio deste blogue de antigos combatentes...  

Para o ano, os três G vão fazer meio centenário... Bolas, como estamos velhos!

Estamos em crer que ainda há muito coisa para dizer, e aprender, sobretudo aqueles de nós que não viveram na pele as agruras daqueles longos, trágicos mas também heróicos dias de maio e junho de 1973... Dias que  não se podem resumir à contabilidade (seca) das munições gastas ou das baixas de um lado e do outro (e foram muitas). (*)

Hoje, que passam 49 anos sobre a Op Amílcar Cabral, em que o PAIGC jogou forte (em termos de meios humanos e materiais mobilizados) contra as posições fronteiriças de Guidaje (no Norte) e Guileje e Gadamael (no Sul), parece-nos oportuno repescar alguns postes e comentários que andam por aí perdidos... E publicar novas histórias. Daí esta série "Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra?"...

Felizmente que ainda temos muitos camaradas vivos, que podem falar de cátedra sobre os 3 G, Guidaje, Guileje e Gadamael... Outros, entretanto, já não estão cá... Já do lado do PAIGC, é cada vez mais raro poder-se contar com testemunhos, orais ou escritos, sobre os acontecimentos de então.

Referências não faltam no nosso blogue... Alguns dirão, "ad nauseam"... Citemos entre outras:

Dossiê Guileje / Gadamael (56)

Gadamael (384)

Guidaje (255)

Guileje (540)

Op Amílcar Cabral (6)

Curiosamente, não temos nenhum descritor "Batalha dos 3 G", consagrado pela historiografista pró-PAIGC...


2. C
omecemos pelo poste P20103, que é já um "clássico" (**). O cor art ref António Carlos Morais da Silva, membro da nossa Tabanca Grande [, foto atual à esquerda], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972 (***), professor de tiro de artilharia na Escola Prática de Artilharia e da Academia Militar, é um homem frontal, nortenho, natural de Lamego, que gosta de chamar os bois pelos cornos

O cor art ref Morais da Silva tem autoridade para falar sobre as nossas (e as do PAIGC) "perícias artilheiras" porque é um especialista em tiro de artilharia e conheceu o terreno, passou por Gadamael, embora já não sendo contemporâneao da famigerada "batalha dos 3 G"...

(...)  A  narrativa artilheira deste senhor [o Osvaldo Lopes da Silva, ] é uma salgalhada sem ponta por onde pegar. (****)

"Calcula" coordenadas geográficas de que locais? Das posições? Para quê, se não as tem do objectivo pois procurou obter orientação azimutal via clarões das bocas de fogo de Guilege?! 

Ligou as posições com uma poligonal?! Como assim? Como define azimutes sem linha de vista? Como calcula distâncias? A passo, a corta-mato?! E como orienta a caminhada? 

Ou também calculou latitudes e longitudes? Apurou a posição relativa das bocas de fogo de Guilege! Para quê? Fazer de cada uma um objectivo?!

Enfim, basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante. 

O que certamente aconteceu foi ajustar fogos com observação avançada consentida pelo "recolhimento" das NT.  Assim aconteceu em Fevereiro de 71, em Gadamael, mas felizmente os intervenientes na observação e no cálculo eram analfabetos na direcção do tiro. Tomadas medidas de interdição,  nunca mais o conseguiram fazer,  passando a executar fogos escalonados em alcance (tiro rolante). 

Na Guiné, as artilharias das NT e do IN eram baratas tontas que actuavam por "intuição" a partir do som e do conhecimento do terreno (quem o conhecia a palmo). 

Muitas vezes pedi ao meu Cmdt-Chefe que me arranjasse um radar contra-morteiro e o problema da artilharia IN era assunto arrumado. Infelizmente nunca recebi o "presente".

Morais da Silva
Cor Art Ref
Professor de tiro de Artilharia 
na EPA [Escola Prática de Artilharia] e na Academia Militar  (...)


3.  E fiquemos por agora pelo comentário do C. Martins, beirão, hoje médico reformado, antigo comandante de um Pel Art que esteve em Gadamael (1973/74) (*) (. Nunca se increveu formalmente na Tabanca Grande, por razões pessoais e profissionais, mas é um leitor assíduo e ativo, com mais de 35 referências no blogue)

(...) Guerras, guerrinhas, obuses, peças, granadas, cargas e por aí vai....

Factos: por vezes flagelavam com morteiro 82, canhão s/r, grad [fogute 122 mm] e possivelmente com a peça, essa de longo alcance. [peça de artilharia 130 mm, M-46, do exxército da Guiné-Conacri].

Felizmente raramente acertavam.

Ninguém contava as granadas IN 
[muito menos de lápis e papel na mão]  .

Nós éramos bem treinados na EPA [Escola Prática de Artilharia, emVendas Novas] e nos cálculos de tiro. As cartas eram muito boas.

Alguns subvertiam o número de disparos para que a reposição fosse aumentando de forma a ter cada vez mais granadas.

As granadas do obus 14 eram de fabrico USA, apesar de o obus ser de fabrico inglês.

Após a desgraça de maio/junho de 1973, em Gadamael houve um reforço de material e humano, a saber; 3 companhias, 2 pelotões de milícias, 1 pelart de obus 14, 1 pelotão de canhão s/r, 1 pelotão de morteiro 81, o que dava em média cerca de 600 homens em permanência.

Raramente a contrabateria surtia efeito, a alternativa era fazer batimento de zona que tinha pelo menos bastante efeito psicológico no IN (soube à posteriori).

Tínhamos bons abrigos subterrâneos.

E assim se passavam os dias,  uns melhores outros piores mas sempre arruinando o orçamento de Estado.

Na atualidade as melhores peças de artilharia são as de fabrico sueco, como quase todo o material de guerra fabricado por eles. (...)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23317: A nossa guerra em números (17): chuva de granadas sobre Guileje (18-21 mai 1973) e Gadamael Porto (31 mai-11 jun 1973)

(**) Vd. poste de 28 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20103: Dossiê Guileje / Gadamael (33): "Basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante" (diz o cor art ref Morais da Silva, antigo professor de tiro de artilharia da EPA e da Academia Militar), a propósito da comunicação de Osvaldo Lopes da Silva, apresentada em Coimbra, em 23/5/2013`

(***) Vd. poste de 20 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16218: Dossiê Guileje / Gadamael (28): A situação de Gadamel, ao tempo da CCÇ 2796 (1970/72), que teve dois grandes comandantes, Cap Op Esp Fernando Assunção Silva e Cap Art António Carlos Morais Silva (Vasco Pires, (ex-Alf Mil Art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

(****) Vd. poste de 27 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20100: Dossiê Guileje / Gadamael (32): O texto, inédito, de Osvaldo Lopes da Silva, um dos principais cérebros da Op Amílcar Cabral; mesa-redonda em Coimbra, 23/5/2013: " O ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio."

Vd. também poste de 30 de agosto de 2019>  Guiné 61/74 - P20107: Lições de artilharia para os infantes (7): Tal como o Strela reduziu a liberdade do nosso movimento aéreo, o radar de localização de armas (vulgo contra-morteiro) teria congelado a artilharia do PAIGC... (Morais da Silva / António J. Pereira da Costa / Luís Graça / Manuel Luís Lomba)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Escapara-me esta obra de divulgação saída do punho de um jornalista cheio de pergaminhos. Não foi por acaso que surgiu em 1933, estamos numa época em que se procura a todo o transe publicitar os valores imperiais. No que toca à sua narrativa sobre a Guiné, Rocha Martins deu provas de grande probidade, não foi aos arquivos mas consultou a melhor bibliografia da época, não ilude a pressão exercida pelos franceses e ingleses para reduzir a presença portuguesa na Senegâmbia e descreve sumariamente a vida atribulada dos três primeiros governadores. Não se trata, pois, de obra de consulta imperativa para investigadores, era um puro exercício de divulgação, acontece que muito bem redigido. No seu todo, Rocha Martins podia dar-se por satisfeito com o seu libelo patriótico, ao mostrar que aquelas parcelas do Império sobrantes de tanta procela eram um motivo de orgulho pátrio, e a elas devíamos rapidamente atender, começando por as habitar, e fazê-las progredir.

Um abraço do
Mário



História das colónias portuguesas, por Rocha Martins

Mário Beja Santos


"História das Colónias Portuguesas, obra patriótica sob o patrocínio do Diário de Notícias", é da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa, reputado jornalista e plumitivo admirado, a edição é de 1933, Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade.

Como é óbvio, circunscrevemos as apreciações à colónia da Guiné. O autor faz um esboço histórico, refere as etnias, a natureza das selvas e dos rios, fala-nos nas companhias de tráfico de escravos e deixa o seguinte comentário: “Enorme e estranho território, nuns lugares fertilíssimo, noutros selvático e adusto, era habitado por tribos de caráter guerreiro, havendo, todavia, algumas que muito se compraziam em viver com os portugueses. O principal tráfico que se fez foi o da escravatura. Os Mouros, desde há muito, se entregavam àquele negócio, tendo em suas terras de Marrocos não só cativos negros mas brancos e cristãos. Os primeiros convertidos foram Fulas e Mandingas”.

Refere com detalhe a figura dos lançados, dos conversos ao Islamismo, observa usos e costumes: “Vestiam calção e camisola curta, usavam sandálias e barrete de algodão, à mourisca. Possuíam cavalos muito bem adestrados; as armas de guerra eram constituídas por zagaias, couraça de algodão empancado para lhes cobrir o peito e o ventre".

Enuncia as informações apresentadas por André Álvares d’Almada no seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dizendo que a mercadoria mais preciosa nesta época era o sal, que os Jalofos e os Mandingas transportavam. Era monopólio régio – trocavam o sal por oiro, escravos e estojos finos. Na esteira de André Alvares d’Almada faz a descrição do reino de Budamel. Relaciona Cabo Verde com a Guiné: “Na ilha de Santiago, onde se tinham instalado, em que os mercadores partiam e estabeleceram-se em Cacheu na Aldeia de Buramos ou Papéis de Cacanda e ali os portugueses viviam em comum com os indígenas. Manuel Lopes Cardoso, sem dúvida judeu, conseguiu, em 1588, uma concessão régia, podia construir em Cacheu uma fortaleza. Na margem direita do rio de S. Domingos estabeleceu outra feitoria em território Banhum, duas léguas abaixo de Cacheu”. É um autor que se sente dotado para contar histórias que sejam inclusivamente apreciadas por leitores de jornais. “Houve um português que se tornou marido da filha do rei Foulo, o grande soberano. Chamava-se João Ferreira e nascera no Crato, houve um filho deste matrimónio. Os indígenas alcunharam-no de Ganagoga – um homem que sabia todos os dialetos da negraria”. Os géneros que os portugueses levavam aos guinéus eram vinho, panos da Bretanha, vidros e moedas de dois reis.

Dá-nos também preferência do Mandimansa e depois foca-se em Cacheu. O primeiro Capitão-Mor de Cacheu foi António de Barros Bezerra, que trouxe criados, escravos, foragidos, vadios. Fortificou a povoação, rodeando-a de altíssima escadaria, abriu-se um fosso onde entravam as águas e se podia navegar. Artilhou o forte, feito de adobe e coberto de colmo, tal como a Igreja de Nossa Senhora do Vencimento. No período dos Filipes, o comércio dos portugueses continuava a ser o dos escravos, marfim e algum oiro. Vassalos de outros países penetravam à vontade em território onde primeiramente se manifestara só a presença portuguesa. Dá-nos igualmente a saber que com a restauração foi nomeado Capitão-Mor de Cacheu Gonçalo Gamboa de Ayala, que fundou Farim. Inevitavelmente, fala-nos das companhias do tráfico de escravos, da Companhia de Cacheu que introduziu na Nova Espanha dez mil toneladas de negros; não deixa de mencionar a Companhia de Grão Pará e Maranhão e das dificuldades sentidas, sucedeu-lhe a companhia de comércio exclusivo das ilhas de Cabo Verde e Cacheu, extinta em 1786. E começa o apertado cerco à Senegâmbia Portuguesa, a cobiça francesa, pretendia o porto de Bissau. É referido a demolição da fortaleza de Bissau, no reinado de D. João V, virá a ser refeita no reinado de D. José. Rocha Martins refere o período anárquico que se viveu durante as invasões francesas em que a Corte for para o Brasil. E depois de nos dar um quadro da vida em Bissau, Geba e Bolama e da Ilha das Galinhas refere a tentativa dos Franceses e dos Ingleses para os expulsar da região. A intensidade da intervenção francesa no princípio do século XIX, fala-se da questão do Casamansa, das diligências de Caetano Nozolini e António Pereira Barreto e como se conseguiu impedir a presença britânica em Bolama. Refere a política de Latino Coelho, Ministro da Marinha e Ultramar que aprovou uma nova divisão administrativa da Guiné em 1869. Ao Conselho de Cacheu juntavam-se Farim, Ziguinchor, Mata e Bolor; a Bissau pertenciam Geba, Colirna, Orango e Bolola.

Depois do chamado desastre de Bolor, dá-se autonomização da Guiné em 1879, e é nomeado como primeiro Governador o Coronel Agostinho Coelho. Este relatou para Lisboa que a situação era tremenda, exercia-se um certo domínio em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Bolama e sobre meia légua de terra denominada Colónia do Rio Grande. “Portugal exerce um simulacro de soberania, tem vindo a abandonar lugares como Bolor, no rio de S. Domingos onde havia um destacamento de três praças com o fim único de içar a bandeira quando passa o navio. Em S. Belchior, Viena, Fá e Corubal não há bandeira nem autoridade portuguesa. Os negociantes de Buba pagam além de presentes isolados a um outro rei a respeitável soma de oito contos de reis a título de imposto. Franceses e indígenas de Buba não reconheciam o domínio nacional. As fortalezas caíam em ruína. Para policiar todas as regiões havia duzentos e tantos soldados e para os rios uma velha escuna A Bissau”. É neste quadro que vai atuar o primeiro governador com um pequeno efetivo a que se irão juntar 142 praças do batalhão de Moçambique: obrigando o régulo de Orango a pagar a austríacos 6 mil francos que lhes tinham roubado; os Fulas atacaram Buba que foi defendida por 200 portuguesas; os Beafadas atacaram os Fulas. Rocha Martins refere ainda a atividade do segundo e terceiro governadores.

O segundo, Pedro Inácio de Gouveia, recebeu espingardas do governo central, nesse tempo os franceses intervinham escandalosamente no Casamansa, declaravam que Portugal só possuía Ziguinchor. Os Fulas atacavam no Rio Grande, foi necessário enviar um contingente que os obrigou a fazer a paz. Rocha Martins refere o papel do tenente Francisco Marques Geraldes e como Bakar Kadali derrotou os rebeldes no Forreá, obrigando Mamadi Paté a pedir a paz. O terceiro governador foi o oficial da Armada Francisco Gomes Barbosa, e Rocha Martins escreve: “Os Franceses iam apertando o cerco do seu território, encravando a Guiné. Tinham Senegal e queriam Casamansa, ocuparam ilhas sob o título de Riviera do Sul. A Inglaterra dominava na Gâmbia e na Serra Leoa. Ia porém chegar o momento em que se inaugurava o período contemporâneo da vida colonial com a Conferência de Berlim, onde se decidiu os destinos das possessões em África. Os portugueses tinham ido à descoberta; nenhum povo os precedera nessa obra; depois, mercê do domínio espanhol, das suas lutas indestinas, da grandeza das suas possessões, que as cobiças maldeixavam, iam ver-se em situação de que lhe era difícil defender o que lhe pertencia. Conseguiu-se, porém, à custa de um novo esforço. Ressuscitaria, em parte, a sua velha epopeia”.

Notas bastante curiosas de alguém que se afadigou em tempos de Ditadura Nacional a fazer uma radiografia do Império, num texto cheio de motivação e onde houve o cuidado de procurar dar informações idóneas à luz dos conhecimentos da época.

Mapa de África datado de 1572
Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
Sonô, a escultura guineense mais disputada nos leilões internacionais
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23290: Historiografia da presença portuguesa em África (318): “Por Terras da Guiné, Notas de um Antigo Missionário, Padre João Esteves Ribeiro” publicado em "Portugal Missionário, reunião havida no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim em 1928"; edição da Tipografia das Missões em Couto de Cucujães em 1929 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 31 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23317: A nossa guerra em números (17): chuva de granadas sobre Guileje (18-21 mai 1973) e Gadamael Porto (31 mai-11 jun 1973)


English: Finnish Army 130 mm Gun M-46 during a direct fire mission in a live fire exercise 
[Peça de artilharia 130 mm, M-46. Exército finlandês, durante uma missão de fogo direto, em exercícios de fogos reais]

Suomi: 130 K 54 suora-ammunnassa

Date 6 March 2010 | 
Source Own work | Author Levvuori

Source: Wikimedia Commons | Public domain  (Com a devida vénia...)


1. Foi há 49 anos que a "fúria" do PAIGC, com o apoio dos seus aliados externos (Senegal, Guiné-Conacri, ex-URSS, Cuba...) se virou para os aquartelamentos de fronteira, a Norte (Guidaje, Bigene) e a Sul (Guileje, Gadamael Porto), com a intenção de os varrer do mapa, e aumentar a pressão político-militar para melhor se posicionar à mesa de eventuais futuras negociações,  e sobretudo a pressão diplomática,  tendo em vista a declaração unilateral da independência do território, o que viria a acontecer em 24 de setembro de 1973.

Citando o nosso vade-mécum (Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 1974-175) (*):

(i) "Durante o ano de 1973, o mais simbólico na história da Guerra Colonial, o PAIGC realizou 640 ataques a aquartelamentos portugueses ", o que representa 61% do total das suas acções  ofensivas (1042), "especialmente junto às fronteiras Norte e Sul: Bigene, no Norte, foi atacada 21 vezes, Guileje, no Sul,foi atacada 36 vezes, Guidage (Norte), 43 vezes, e  Gadamael Porto (Sul) , 70 vezes" (pág, 194).

(ii) foram implantadas 750 minas (AP e A/C), das quais 416 (55,5%) no 1º semestre;

(iii) globalmente, as baixas provocadas à tropa portuguesa e à população civil foram significativas:  181 militares mortos e 1133 feridos; do lado da população civil, 120 mortos e 554 feridos;

(iv) as baixas (mortos e feridos)  no 1º semestre (1248)  representaram 62,8%  do total do ano de 1973 (1988).

Estes resultados poderiam ter sido mais gravosos se, no 2º semestre de 1973, o PAIGC não estivesse empenhado na preparação e  realização do Congresso e da Assembleia Nacional, em território da Guiné-Conacri,  que estiveram na origem da proclamação unilateral da indepêndência em 24 de setembro de 1972.

Na sequência da Operação Amílcar Cabral, planeada já antes mas desencaeada depois da morte do líder (20 de janeiro de 1973), o PAIGC, nas flagelações e ataques a aquartelamentos portugueses, privilegiou o uso de armas pesadas da guerra clássica, com destaque para:
  • morteiros 82 mm e 120 mm;
  • canhão sem recuo 82 B-10;
  • foguetes 122 mm;
  • peças de artilharia 130 mm M-46, de grande alcance (cerca de 27 km).
A artilharia 130 mm foi usada pela primeira vez contra Guileje em maio de 1973 (**). E com crescente precisão. De origem soviética, com quase  todo o  armamento do PAIGC, operava a partir do território da Guiné-Conacri e tinha sido cedida pelo regime de Sékou Touré.

Entre 18 e 21 de maio de 1973 por exemplo, foram lançadas sobre Guileje cerca de sete centenas de granadas, de vários tipos (incluindo RPG 7).  Média diária (4 dias): 171,25 granadas.

Entre 31 de maio e 11 de junho, Gadamael Porto  foi flagelada com 1468  granadas: média diária (em 12 dias), 122,3 granadas;  máximo 620 granadas (em 1 de junho), mínimo 4 granadas (em 10 de junho) (op cit., pág. 175).
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(**) Vd. poste de 18 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1672: Guileje: a artilharia do PAIGC (Nuno Rubim)

Guiné 61/74 - P23316: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXIV: Pisa, Toscana, Itália, 2014




Itália > Região da Toscana  > Pisa > 2014 > Stuada na foz do rio Arno (que há dois mil anos estava a 4 km do mar, e hoje está a 17km), Pisa foi no séc. XI uma das grandes potênias marítmas do Mediterâneo, juntamente com Génova e Veneza... Não é só célebre pela sua torre inclinada... É também a terra natal de Galileu Galilei (Pisa, 1564 - Florença, 1642), um dos pais da ciência moderna, e uma das grandes vítimasda Santa Inquisição) (LG)



[ António Graça de Abreu, foto à esquerda: (i) docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem 310 referências no blogue; (vi) texto e fotos enviados em 25/3/2022 ]

 

 Pisa, Toscana, Itália, 2014 

por António Graça de Abreu (*)


Venho por duas vezes, a segunda em 2014, como que saído das nuvens para, na Universidade, falar das minhas traduções para português de poesia chinesa.

Na Piazza dei Miracoli, uma catedral do século XI, um baptistério, uma torre inclinada, um campo-santo. O mármore branco desceu das montanhas de Carrara e chegou deslizando com o vento e a chuva. O engenho celestial dos artífices, a pedra feita espanto e luz, as sinuosidades da terra, os contornos do tempo. Um casal de pássaros em voo desordenado sobre a torre de Pisa. Até as aves estranham a inclinação.

Subo os quase trezentos degraus em caracol por dentro da torre. No alto, os sinos, o êxtase do dia, a alquimia do coração. Diante de mim, a cidade medieval e a Piazza dei Miracoli, o nome foi-lhe dado por Gabriele d’Annunzio. O supremo milagre, a magia sublime, homens caminhando sobre a terra.

Depois, uma longa conversa com Galileo Galilei (1564-1642), que aqui nasceu, e adormeço num hotelzinho barato nas margens do rio Arno, com águas de Florença encharcando o olhar.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23262: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXIII: Parque Nacional da Mesa Verde, Colorado, EUA, 2005

Guiné 61/74 - P23315: Carta aberta a... (15): ... ao camarada e escritor português Francisco Baptista (José Belo, estrangeirado)


José Belo, jurista, o nosso luso-sueco, cidadão do mundo, membro da Tabanca Grande, (i) tem repartido a sua vida agora entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e os EUA (Key West, Florida; (ii) foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia, recusando-se a jubilar-se do cargo: afinal todos os anos pela primavera, corre o boato de que a Tabanca da Lapónia morre para logo a seguir ressuscitar, como a Fénix Renascida (*); (iii) na outra vida, foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); (iv) é cap inf ref (mas poderia e deveria ser corone) do exército português; (v) durante anos alimentou, no nosso blogue, a série "Da Suécia com Saudade"; (vi) tem mais de 220 referências no nosso blogue.


1. Mensagem do José Belo:

Data - 30 mai 2022 11:10 
Assunto - Carta aberta ao Camarada Francisco Baptista

Muitas décadas longe da Lusitânia criam saudades várias. Saudades por certo eivadas de subjetividades.

Nos dicionários encontramos “subjetividade” como sendo o tomar-se conhecimento dos objetos externos a partir de referências próprias.

Fernando Pessoa escreveu: "Quanto mais diferente de mim alguém é,  mais real me parece, porque menos depende da minha subjetividade".

“Subjetividades”como maldição comum a todos os que buscam reencontrar as raízes que os formaram numa Pátria cada vez mais distante no tempo e, não menos, nas referências.

Esta subjectiva (!) introdução foi provocada por nova e atenta leitura dos textos de Francisco Baptista publicados no blogue. (*)

Leitura que nos faz descobrir novos detalhes de um todo. Detalhes realçando valores firmes que nos foram imbuídos por um riquíssimo somatório de tradições.

Somos envolvidos em invisível rede narrativa que, na sua globalidade, acaba por diluir diversidades circunstanciais, sejam elas geográficas ou de classe social.

Rede profundamente interiorizada que tão bem acaba por definir o… ser-se português!

Grato a Francisco Baptista por estas verdadeiras viagens de retorno.(**)
J.Belo
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de maio de  2022 > Guiné 61/74 - P23306: (In)citações (207): Tal como a Fénix Renascida, a Tabanca da Lapónia afinal não morreu: continua lá no seu sítio, "de neve e gelo" e com "pão e vinho sobre a mesa" para os amigos, e os cães (e as renas) atrelados ao trenó (José Belo, régulo vitalício)

Guiné 61/74 - P23314: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte IX (Penúltima)

1. Continuação da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte IX

Durante a minha permanência em Có tive alguns casos de saúde muito complicados que me obrigaram a puxar pela minha cabeça e pedir a Deus ajuda e inspiração.

Um deles aconteceu pelo Natal de 1970. Um dos militares tinha recebido nesse dia uma encomenda da família onde vinham enchidos. Acontece, que devido ao tempo da demora da chegada e principalmente com as diferenças de temperaturas, estes enchidos já não chegaram em bom estado de qualidade.

Aproximou-se a noite e, eis que aquele militar, juntamente com alguns amigos, veio ao meu encontro gritando de desespero tal eram as dores de cabeça sentidas e o aumento de volume desta. Fiquei impressionado com o que estava observando. Pensei primeiro, em procurar um contacto Médico via rádio, mas o desespero do militar fez com que eu me concentrasse e arriscasse um primeiro tratamento que sabia mal não lhe faria. Deste modo, ordenei ao Enfermeiro que naquele dia tinha como ajudante ao Posto Médico, aplicar-lhe uma injeção indo-venosa para combater a alergia e, logo de seguida, uma injeção anti palúdica. Entretanto e finalmente, dirigi-me ao posto de rádio para que me localizassem um Médico.

Finalmente um Médico entrou em linha comigo a quem relatei o acontecido bem como as medidas que já havia tomado. Do outro lado da linha a voz do Médico deixou-me tranquilo e de certo modo feliz, por ouvir que melhor ele não teria feito. Na verdade, fui encontrar o paciente mais calmo. Disse-lhe para se ir deitar e, acaso as coisas se complicassem, para rapidamente me chamarem. Respirei fundo e ouvi palavras carinhosas do capitão da Companhia que, com um abraço me agradeceu por me encontrar com eles naquela unidade.

Um outro caso que também já mais esquecerei, aconteceu com uma criança de tenra idade já que apenas tinha cerca ano e meio.

Eram já cerca das dez horas da noite quando ao meu quarto o Capitão me foi chamar preocupado com a criança que estaria a morrer e, com mãe, que desesperada, com a criança nos braços, chorava.

Vesti-me rapidamente dirigindo-me ao Posto Médico para observar a criança. Fora deste, muitos militares se juntaram mais alguns civis da aldeia de Có.

Deitado já na maca, verifiquei que a criança vinha gelada e com os membros apresentando rigidez. Da sua boquita brotava espuma que lhe dificultava a respiração que, por sinal, já não se sentia. Pedi ao Enfermeiro que naquele momento tinha para me ajudar que lhe sugasse a expetoração enquanto eu com uma agulha fui picando a base dos seus pezinhos tentando ver se tinham recção. Nada! A criança tinha entrado em coma. Como já não se podia evacuar a criança para o Hospital em Bissau por via aérea, dado o avançado da noite, aos choros agonizantes da jovem mãe, concentrei-me e mentalmente pedindo ajuda ao Criador, mandei preparar meia injeção de Coramina ao mesmo tempo que comecei a fazer-lhe massagem cardíaca e respiração boca a boca. Todo eu já transpirando eis que, de repente, vi mexer uma pestana e dei um grito de alegria dizendo “já temos homem!”. Continuei fazendo massagem cardíaca até que a criança abriu os olhos e começou a chorar. Em pensamento agradeci a Deus que me inspirou. Recebi um abraço forte da jovem mãe. Todos os companheiros militares se encontravam comovidos. O Capitão deu-me um grande abraço e pediu ajuda para que de Bula onde se encontrava uma Companhia de Cavalaria, visse das possibilidades de transportarem se possível, a criança mesmo de noite para Bissau juntamente com a mãe, a fim de poder ser bem observada no Hospital. É a principal e gratificante recordação do meu trabalho na saúde que trouxe da Guiné.

Um outro acontecimento que acompanhei em Có foi quando um dia já noite, o quartel ficou em polvorosa com o aparecimento junto ao comando de um homem fisicamente bem constituído e com a saliva a escorrer-lhe da boca tal a raiva que trazia dentro dele ou, como suspeitei, a quantidade de droga que teria ingerido para vir preso à capela por populares da aldeia. Vinha preso com uma corda pela cinta com duas pontas da corda soltas onde, três de cada lado desta, controlavam o avanço de ataque para cada um dos lados. Os populares que o traziam amarrado, cheios de medo diziam que o dito já tinha matado um homem à dentada na aldeia e gritava que vinha para matar o Capitão China.

O Capitão Rodrigues, natural de Macau e de origem chinesa, ficou assustado com a convicção do prisioneiro que mesmo ali manietado, continuava lançando ameaças. O Capitão, voltando-se para mim solicitou-me que, com medicação, conseguisse dominar a fera de modo a ser possível ficar em prisão durante a noite de modo a poder ser enviado para Bissau no dia seguinte. Naquela noite, fiquei já com poucas dúvidas, da utilização de drogas por parte do PAIGC em ações suicidas levadas a cabo por parte da guerrilha. A quantidade de saliva que escorria da boca do homem mais o seu olhar de fera enjaulada, tiraram-me qualquer dúvida. Foi um fim de dia atribulado.

Recordo-me do último Natal que passei na Guiné (Natal de 1970) em Có. Estas datas eram muito atribuladas porque por norma, a guerrilha adorava flagelar os nossos quartéis. Um ambiente carregado e melancólico se fazia sentir porque, tínhamos os nossos militares patrulhando a zona, e deste modo, termos a garantia de segurança. A ceia só seria servida com todos já regressados do mato.

Enquanto esperávamos pelo regresso dos nossos militares ausentes, recordo o Capitão Rodrigues sentado ao balcão do pequeno bar que lá possuíamos, bebendo cerveja acompanhada de camarão. A quantidade de camarão era considerável e, como tal, convidou-me para me sentar junto a ele. A nossa conversa foi sobre os momentos que estávamos vivendo e da ansiedade sentida principalmente naquele dia. Era já de madrugada quando nos foi servida a ceia de Natal. Três dias depois festejei ali o meu vigésimo quinto aniversário.

Durante a minha permanência neste aquartelamento, desloquei-me uma única vez ao Pelundo. Aqui ia ser inaugurado um novo Posto Médico com condições de trabalho melhoradas bem como tendo anexada uma pequena enfermaria.
Para este novo Posto Médico, tinha sido eu encargado, antes de ser transferido para Có, de requisitar tudo o que fosse necessário para que o mesmo funcionasse em pleno. Sucede que ao chegar ao Pelundo, verifiquei que muito do material faltava, principalmente as camas na enfermaria.

Como era habitual nos Comandantes dos Batalhões, pelo menos no meu, foi convidado o Comandante-chefe General Spínola para a dita inauguração. O General, ao entrar e verificar as falhas que se notavam, gritou ao meu Comandante dizendo que palhaçada era aquela, ser convidado para inaugurar paredes! Eis que o meu Comandante de Batalhão, tremendo como varas verdes, chamou-me para dar explicações ao General. Coube-me então a mim, que já há mais de dois meses me encontrava afastado noutro local, explicar ao General que tudo o que ali faltava, a tempo e horas eu tinha requisitado aos serviços competentes em Bissau. O General chamou o seu Ajudante de Campo, que era o Capitão Ramos, dizendo-lhe que fosse imediatamente a Bissau tratar daquelas falhas junto dos Serviços de Material de Saúde e das razões do não envio atempado. Deste modo não ouve inauguração nenhuma e o General deu meia volta e apanhou o helicóptero de regresso a Bissau.

Ao fim do dia regressei também a Có, não sem antes passar pelo Posto de Saúde ao qual pertencia e tinha a meu cargo, confraternizar uns instantes com o pessoal.

Encontrei aqui nesse dia a jovem que sempre tinha cuidado da minha roupa, com um ar adoentado. O Médico ao ver-me, aproveitou para a provocar dizendo-me que era eu o culpado pelo estado de saúde que a moça apresentava.
Tentei animá-la dizendo que brevemente estaria de volta. Na verdade, o seu aspeto tinha pouco de saudável. Sobre esta jovem, dedicarei a parte final das minhas memórias de Tempos de Guerra.

Regressado a Có, continuei com o meu trabalho de zelar pela saúde dos nossos militares bem como da população que dos mesmos cuidados necessitava.

Chegou-se ao dia de preparar a transferência de funções e de material a quem me vinha substituir ou seja, a Companhia que nos vinha render naquele lugar e, permitir o meu regresso ao Pelundo e assim poder ajudar lá também nos preparativos da passagem de testemunho àqueles que nos iriam render.
Porém, antes tive que verificar em Có o material existente e as falhas mais importantes a repor para que o novo Furriel Enfermeiro encontrasse as condições possíveis para poder desempenhar as suas funções.

Com uma campanha desgastante, tive a necessidade de me deslocar a Bissau e aos Serviços de Material de Saúde requisitar agulhas e outro material de consumo corrente. Aqui vim encontrar os responsáveis destes serviços tremendamente aborrecidos para com a minha pessoa por tudo o que tinha acontecido com a não inauguração do novo Posto Médico do Quartel do Pelundo. Pelo que vim a ser informado, o General provocou um reboliço enorme com aquela gente que se viram forçados a tirar três camas do Hospital e enviá-las para o Pelundo. Respondi-lhes que apenas me tinha limitado a informar o General do que a tempo e horas eu tinha feito todas as requisições.
Zangados, fartaram-se de chamar de “Macaco Fula” ao General. Sempre notei que o pessoal de Bissau não gostava do General porque lhes apertava os calos várias vezes.

Antes de fazer o trespasse de funções ao Furriel que me iria render, fiz um levantamento exaustivo de todo o material já que o Primeiro-sargento me havia dito querer ser ele a fazer o dito trespasse. Durante os meses que ali permaneci, poucas vezes a este Primeiro-sargento lhe dirigi palavra.
Desde o primeiro dia que ali cheguei, as guerras foram uma constante entre nós os dois. Eu era bem diferente daquele outro que fui render. O Lemos, por motivos que não vou aqui descrever, foi preso e enviado para outro local como já foi por mim referido anteriormente.
Mandei chamar então o Primeiro-sargento ao Posto Médico para lhe mostrar todo o material de uso corrente como agulhas, seringas, tesouras, caixas de enfermeiro, etc.
Verificou que havia umas agulhas que sobravam do lote obrigatório a entregar e pediu que, acaso eu não me importasse, poder levar umas seis para oferecer a uma Enfermeira da terra dele. Respondi-lhe que podia oferecer à dita senhora o que quisesse porque sempre me tinha dito, que no fundo, quem mandava ali era ele. Ficou corado de atrapalhação com mais uma ferroadela que lhe dava.
Regressei no dia seguinte à minha unidade, CCS do Batalhão 2884 no Pelundo.
Aqui já se encontrava a Companhia que nos ia render bem como a Companhia operacional que acompanhava a CCS.
Encontrei o Quartel remodelado. Com Posto Médico novo, quartos dos Sargentos novos, enfim, vim encontrar outras condições habitacionais bem melhores do que aquelas que durante tantos meses tive.

Liberto de funções, embora tivesse que orientar o novo Furriel Enfermeiro e Médico sobre como a população estava habituada a ser tratada, como deveriam continuar a lidar com ela e, a pedido do Médico, fui mostrar a este a aldeia e fornecer-lhe as orientações necessárias que eu achava por convenientes. Este Médico tinha estado preso em Penamacor por razões políticas.
Achei esquisito ter-me pedido para que o informasse das casas onde viviam prostitutas. Não contei nada a ninguém mas vi logo que era tentar passar e receber informações do outro lado. Sei que não regressou com os seus ao Continente porque ficou creio a viver lá com a professora. O Mundo é pequeno e, na FNPT em Lisboa, onde comecei a trabalhar, encontrava-se também e no mesmo departamento, o compadre do dito cujo Médico. Este companheiro de trabalho de vez em quando dava-me informações do seu compadre.

Comecei então a despedir-me das pessoas da população com quem mais lidei de perto e de todos que por mim passavam e me cumprimentavam apertando-me as mãos de agradecimento pela forma como tinha lidado com todos eles. Como surpresa, um grupo de mulheres veio ter comigo implorando para que eu não regressasse ao Continente e ficasse a tomar conta da saúde deles no Posto Médico Civil que o General tinha lá mandado construir. A custo e deveras emocionado, respondi-lhes que estava cheio de saudades da minha família mas que lhes agradecia do fundo do coração o carinho que me tinham e que eu nunca iria esquecer.

Estes últimos dias no Quartel no Pelundo foram passados no quase descanso total.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23303: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte VIII

Guiné 61/74 - P23313: Parabéns a você (2071): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23309: Parabéns a você (2070): Fernando Andrade Sousa, ex-1.º Cabo Aux. Enf. da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) e Joaquim Pinto Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3398/BCAÇ 3852 e CCAÇ 6 (Buba e Bedanda, 1971/73)

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23312: (In)citações (208): Uma tarde maravilhosa, na cidadela de Cascais, vendo com pessoas amigas a exposição "Portugal e Luxemburgo: países de esperança em tempos difíceis" e recordando o nosso Aristides Sousa Mendes (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Cascais > Palácio da Cidadela de Cascais > Exposição "Portugal e Luxemburgo – Países de Esperança em Tempos Difíceis” > 27 de maio de 2022 > João Crisóstomo, Vilma e amigas


Na 1ª foto, da esquerda para a direita:

(i) Luísa da Rocha, presidente da Aqualink: 
(ii)  Mrs Fischer, cuja mãe recebeu um visto de Aristides Sousa Mendes;
(iii)  eu, João Crisóstomo ; 
(iv) Mariana Abrantes, da "Sousa Mendes Foundation US”;
(v) Vilma, segurando uma medalha de ASMendes que na altura fizeram o favor de me oferecer; 
(vi) e a arquiteta Luísa Maria Pacheco, museóloga desta exposição, como o foi/é doutras grandes exposições como a do Museu e exposição de Vilar Formoso, da exposição "Portugal the Last hope” nos Estados Unidos, etc.

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Excerto de mensagem do João Crisóstomo, com data de 28 do corrente, 00h22:

(...) Luís, quando me telefonaste ontem, estava a caminho de Cascais onde fomos ver a exposição "Portugal e Luxemburgo – Países de Esperança em Tempos Difíceis” (*). Para o caso de ainda não teres lido sobre ela, envio-te no fim deste, um pequeno mas elucidativo artigo que tirei da internet. (*)

Foi um dia maravilhoso em muitos aspectos. Parece-me que a melhor maneira de te dizer o que foi,  é copiar um E-mail que acabo de enviar a várias pessoas amigas que estiveram comigo nesta visita. Aqui vai (**):

My very very dear friends,

Lembrando uma tarde maravilhosa… Onde a Luísa Pacheco e a Mariana Abrantes põem as mãos é sempre assim.

Que grande exposição! Eu, que pensava "estar por dentro" de alguns assuntos relacionados com a Segunda Guerra Mundial  e o Holocausto, não me cansava de aprender/descobrir coisas até então desconhecidas para mim. Mas com a Luísa Pacheco como docente e guia tinha de ser mesmo assim.

Obrigado pela companhia de todos, especialmente das queridas Luísa Pacheco e Mariana Abrantes e da “my darling wife” Vilma que torna sempre ainda melhores as coisas já boas por si.

Muito gratificante também foi conhecer a Luísa da Rocha. Depois do que logo constatei e aprendi a seu respeito, pergunto-me como é possível não a ter conhecido mais cedo. Mea culpa, mea culpa , I guess. E ter tido finalmente a oportunidade de encontrar em pessoa a Mrs Schiffer (ou Fischer ?) (desculpem, mas não sei mesmo como é o primeiro nome, apesar de ter ouvido várias vezes um carinhoso apelido) personagem de quem tantas vezes tenho ouvido e lido.

Não posso deixar de manifestar a minha gratidão à Sousa Mendes Foundation US, pelo inesperado reconhecimento e bonita medalha de Aristides de Sousa Mendes com que me generosamente presentearam. Bem hajam.

Na esperança de muitos encontros como este,
Um abraço com carinho e gratidão pela vossa amizade.

João Crisóstomo
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Notas do editor:

(*)  30 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23311: Agenda cultural (812): Exposição no Palácio da Cidadela de Cascais, de 13 de maio a 28 de agosto de 2022: "Portugal e Luxemburgo: países de esperança em tempos difíceis"