1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Novembro de 2019:
Queridos amigos,
Mário Cláudio apresenta-se sempre como ficcionista, mas estreou-se na poesia antes de rumar para Bissau onde foi jurista no Quartel-General, como se deu notícia no texto anterior a propósito do seu livro autobiográfico "Astronomia". Nesta mesma obra ele refere o prazer de vasculhar em livrarias de segunda mão, onde encontrara uma publicação referente à doença do sono. Que a leu, demonstradamente ficamos a saber, quando se lê esta pretensa biografia de um intelectual imaginário chamado Tiago Veiga que vai até à Guiné, pasme-se, era Governador Carvalho Viegas, estamos no início da década de 1930, procura-se caraterizar a doença do sono.
Quando conversei telefonicamente com o Mário Cláudio para o associar ao nosso blogue, ele sugeriu-me a leitura destas duas obras, já lhe escrevi para saber se há mais, e havendo, aqui se fará o competente registo.
Um abraço do
Mário
Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária:
Um notável escritor que é nosso camarada da Guiné (2)
Beja Santos
Mário Cláudio |
Esta obra de ficção aproxima-se das oitocentas páginas, é uma biografia imaginária de um bisneto de Camilo Castelo Branco, que ele trata como um caso singular na literatura portuguesa, um interlocutor de grandes criadores artísticos como Fernando Pessoa, Jean Cocteau, W. D. Yeats ou Benedetto Croce. Tiago Veiga viaja para a colónia da Guiné em abril de 1932 a bordo do paquete Serpa Pinto. Acompanha o Dr. Fontoura de Sequeira, chefe da missão que consistia em avaliar a existência da doença do sono e das particularidades que apresentava. Fonseca de Sequeira entregará mais tarde às autoridades competentes o relatório da sua missão. “O caráter não oficial da participação de Tiago Veiga, e de uma outra personalidade, Jerónimo Paiva de Lima Sagres, explicava que a sua identidade fosse excluída do documento de Fontoura de Sequeira (…). A brigada minúscula ficaria alojada no melhor hotel de Bolama, um estabelecimento que apenas se distinguia de uma pensão qualquer em Fornos de Algodres pelo criado de mesa, um balanta que servia de luvas brancas os camarões grelhados, seguidos da papaia às fatias. O Governador da colónia, Luís António de Carvalho Viegas, receberia Fontoura de Sequeira, e na formal preleção com que o brindaria iria ele reiterar aquilo que constituía o cerne das suas convicções em matéria de política sanitária”.
É o momento propício para Mário Cláudio investir na caraterização da orografia:
“O território guineense surgiria a Veiga como uma espécie de grande bolacha verde, mergulhada em águas lodosas e paradas, e que aos poucos amolecia, terminando por inteiramente se esboroar, a construir ilhas e enseadas, penínsulas e cabos, e aquilo a que se chama ‘a bolanha’, e que não conformava mais do que a infinidade dos pântanos, tornada responsável na imaginação europeia por todos os males deste mundo”. E tem uma palavra para os colonos: “Receosos de que se concretizasse a transferência da capital da colónia, de Bolama para Bissau, pareciam eles optar por uma letargia paradoxal, favorecidos pelo argumento da prostração a que o clima os condenava. Amarelentos e aparentemente subnutridos, associavam-se em grupelhos emborcadores de aguardente de cana.” E traça-se a natureza da missão: “No mapa que estenderam diante do nosso homem, e através da lembrança de que não se esquecesse da dose semanal de quinino, delineava-se a área da incidência da profilaxia da enfermidade do sono. Ela ia de Compiana no Sul a Varela no Norte, e de Bolama no Oeste a Cam Queifá no Leste”.
Afinal de contas, o que andava Tiago Veiga a fazer por aquelas bandas? Mário Cláudio responde:
“Cedendo a esse fatalismo que transforma os salvadores do corpo e alma dos homens em predadores das restantes espécies, Fontoura de Sequeira dedicava à caça o tempo que lhe sobejava das canseiras do serviço, mas Tiago, tendo disparado um ou dois tiros experimentais, reveladores da mais completa inépcia venatória, logo se remetera a ocupações bem menos voluntaristas. Cobriam eles o território com uma celeridade incompatível com qualquer reflexão aturada sobre aquela doença que tão só cinco anos antes se apurara existir na Guiné Portuguesa. Montavam as tendas, arrebanhavam as populações, executavam as análises, desmontavam as tendas, e abalavam na manhã seguinte em direção a mais uma das localidades assinaladas no mapa de que se socorriam. A tarefa de Veiga consistia em anotar em fichas o nome dos infetados, a sua idade e sexo e morada, e qualquer observação pertinente. E não demoraria muito a que se familiarizasse o nosso biografado com uma terminologia que, não sendo científica, não deixava incluir o seu grão de carga poética, suscetível de desencadear um que outro surto de escrita pelo menos mental. (…) E os voos da fantasia de Tiago Veiga obtinham estimulante alimento da observação das preparações microscópicas a que o chefe da missão o convidava. A insídia com que o agente patogénico se manifestava, a selecionar as águas, conforme fossem doces, ou salgadas, e a vegetação, consoante fosse lisa, ou viscosa, denunciava a presença desse mistério do comportamento animal”.
É nisto que Baltasar entra na vida de Tiago Veiga, acontecimento inesperado, com grande carga emotiva:
“Na localidade de Bigina aconteceria aquilo que iria alterar-lhe a normal cadência do coração. Um garotinho dos seus três anos e pico, Mamadu Baldé, mas que os missionários haviam batizado de Baltasar por ter nascido pelos Santos Reis, achegou-se a Tiago. Completamente nu, mas com um colarzito de missangas ao pescoço, e mal atingindo o tampo da mesa que servia de secretária ao nosso homem, deitou-se a mirá-lo com os grandes olhos redondos. O nosso poeta não se deu por achado, a fim de analisar a atitude que o miúdo assumiria. Obstinado a partir daqui, e ao longo dos vinte dias em que a brigada estacionara naquelas paragens, em não se apartar das vizinhanças do nosso biografado, Baltasar não o largava, nem por um instante. E Tiago esforçava-se por aproveitar tal circunstância para distinguir o papel que lhe caberia, e aos seus companheiros, na correção de uma natureza porventura dependente da ausência do branco para fixar os seus equilíbrios intemporais. Essas ameaças, e eram muitíssimas, que rodeavam as incertezas passadas pelo cachopinho, a anemia, a caquexia, e o febrão remitente, tudo isso de caráter palustre, e mais a disenteria, e mais as febres, biliosa e perniciosa, ou a doença do sono, estariam ali talvez para que a terra continuasse como esponja empapada de lamas, insuscetível de conter em cada momento um número de vivos superior ao necessário para compensar o desfalque dos que tinham morrido. Veiga reparava então nos olhitos aguados de Baltasar, dirigia-lhe palavras que nada significavam, e que bem sabia que ficariam sem resposta, e consentia ao garoto que o procurasse à noite, que se insinuasse pelos dentros do mosquiteiro, que se estendesse a seus pés, e que desatando a chuchar no polegar direito, adormecesse como um anjo até os galos cantarem”.
E de seguida Tiago Veiga é sacudido por um ataque de paludismo, e há uma história de lendas da Guiné para contar, como adiante se verá.
(continua)
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Notas do editor
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Último poste da série de 15 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20347: Notas de leitura (1236): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (32) (Mário Beja Santos)