terça-feira, 20 de novembro de 2012

Guiné 63/74 – P10701: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (22): O Boby

 
1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 15 de Novembro de 2012:

Caros amigos Luís, Vinhal e M. Ribeiro
Recebam um grande abraço e votos de muita saúde. Aqui vai também, mais um salpico dos tais cor-de-rosa.
Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Olossato 1966

O que havemos de fazer?! Talvez… talvez …, olha (!), pôr gasolina no cú do Boby! 

Tarde cálida muito cálida e algo seca; as chuvas estavam à porta, os pavorosos trovões e os temidos tornados. Os fantasmagóricos relâmpagos a rachar o céu de lés a lés. Coisa nunca visto por um tuga mobilizado para a Guiné.

Embora assim quente, a tarde estava muito calma, demais, e tediosa, a convidar pelo menos os mais irrequietos a fazerem alguma coisa, fosse o que fosse, para combater o marasmo. À porta da messe alguns dormiam nas cadeiras baloiçantes (é verdade, os pipos não serviam só para transportar o vinho canforado para a tropa, serviam para fazer cómodas cadeiras também), outros nem por isso. E um ou outro certamente a pensar como devia chatear o outro. Daqueles, nunca faltaram não.

Que fazer então?

Passa enfrente o Boby. Não ia para Farim não, embora o sentido fosse esse. Nem vinha de Bissorã. À procura duma sombra talvez, e para fazer o que os “amigos” Furriéis ali estavam a fazer e a sugerir: dormir! Os cães não saíam do quartel. Sentiam-se bem ali e é que de vez em quando saltava uma bucha.

No Olossato havia 5 cães (pelo menos os “recenseados”) a viverem, quase sempre em matilha: A cadela sempre à frente e o séquito sempre atrás. Disciplina militar também.

Uma cadela (pobre da cadela) e 4 machos, todos tipo rafeiro e sem qualquer patente. Entre eles destacava-se pelo corpanzil o Boby.

O clima parecia também prolongar o cio e, seria como o milho que dava 2-3 vezes por ano?


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Tabanca do regulado de Badora... Alguns dos numerosos cães que  infestavam as povoações... E nos nossos quartéis, onde cheirava a comida,  fresca e abundante, ainda mais... Eram um problema de saúde pública. 
Foto do nosso camarada Arlimdo Roda, ex-fur mil, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos Reservados


Bom, o Boby pelo estilo e pela raça (?) era o mais solicitado pela malta. Brincava-se com ele. Só faltava dar um nó ao rabo. Tivesse o rabo comprimento para isso.

Só que naquele dia os astros não estavam com o Boby.

O Boby passou no local errado, à hora errada e… com gente errada ali por perto. Da ideia, não me lembro de quem foi, mas daquela ao fazer foi um instante. Ali era assim: havia uma ideia e já estava um ou mais a pô-la em prática. Sempre para chatear o outro. Desta vez escolheu-se o desamparado do Boby

Desperdícios embebidos em gasolina e “óh Boby anda cá”. De rabo a abanar todo solícito, como era habitual, o Boby aproxima-se e sim senhor podem fazer o que quiser. Então alguém lhe esfrega desperdícios com gasolina no rabo. O que parecia ao princípio ser um refresco para o Boby logo o tornou possesso. Numa fração de segundos o Boby encrespa-se e aí vai ele!

Velocidade de turbo. Imparável!!

A gasolina era a vulgar, das viaturas, mas pela velocidade que o Boby chegou a atingir se calhar era mesmo gasolina de avião que andava por ali O Boby de vez em quando pára e, apoiado nas patas da frente esticadas, esfregava o cú no chão. E dava para aliviar. Mas era só uns curtos segundos porque logo, e já com a “primeira” previamente metida, encetava outro vai-e-vai em correria desenfreada, louca. Enquanto houvesse quartel e espaço…O Boby ficou com o diabo no corpo.

O cão estava transformado em diabo mesmo e uma raiva incontida tomou conta dele. Era uma fera. Julgo que se alguém se atravessasse naquela altura, o Boby descarregava a fúria.

Todo o mundo refugiou-se na caserna e o filme era agora vista da janela que não se abria muito não fosse ele escolher aquela abertura para ver se passava por ali mais vento pelo rabo.

A – casa dos Oficiais; B – casa dos Furrieis; C - A estrada Bissorã-Farim que dividia a meio o aquartelamento do Olossato. Em cima, junto às árvores, e em baixo, no meio da estrada, os cavalos-de-frisa delimitavam o aquartelamento.

De cavalo-de-frisa a cavalo-de-frisa (nos extremos do aquartelamento - aprox. 150metros-) o Boby supersónico e tocado a gasolina (d’avião?) percorreu várias vezes o espaço num frenético vai-e-vem.

O filme entretanto acabou de forma paulatina e o tempo foi bom conselheiro para o Boby, isto é a irritação com o tempo foi aliviando, aliviando… . Mais calmo e sereno, agora mais a pensar certamente “quem foi o FdP que me fez isto”?

O facto de ele voltar a abanar o rabo indiciou que o pesadelo tinha passado.

Não me lembro se depois disto o Boby ainda vinha junto de nós e com o rabo a abanar.

Tudo então voltou à normalidade.

Outro programa seguiria dentro de momentos…

Bom, a lição foi aproveitada. Para mim pelo menos, pois gasolina em cú de cão?

Nem pensar!!!

Aconteceu um dia na Guiné!!... pronto!.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 – P10531: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (21): Operação Outra Vez, objectivo: Iracunda

Guiné 63/74 - P10700: Crachás de unidades que passaram por Guileje (CCAÇ 3477 e CCAÇ 3325, 1971/72) e Cacine (CCAÇ 2726, 1970/72) (Mário Bravo, ex-alf médico, 1971/72)










Crachás da CCAÇ 3477, Gringos de Guileje (Guileje, nov 71/ dez 72), CCAÇ 3325, Os Cobras de Guilje (Guileje, 1971) e CCAÇ 2726 (Cacine, 1970/72)


Fotos: © Mário Bravo (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada, médico, Mário [Silva] Bravo (ex-alf med, CCAÇ 6 e HM 241, Bedanda e Bissau, 1971/72)


Bom dia Amigo e Camarada Luis Graça

Há algum tempo que não publico no nosso blogue, por distracção e não por outra razão.

Continuo a ser visita assídua, e considero que a tua gestão é excelente.

Nas minhas buscas, cá em casa, encontrei estes crachás que me foram oferecidos em Guileje (os primeiros: CCAÇ 3325 e CCAÇ 3477) e o outro (CCAÇ 2725), não tenho a certeza. Será que corresponde a alguma unidade de Gadamael, onde também estive ?

O envio destas imagens pode servir para encontrar companheiros dessas épocas, e que gostaria de reencontrar, através do nosso blogue.


Mário

Guiné 63/74 - P10699: Do Ninho D'Águia até África (28): A avioneta do correio (Tony Borié)

1. Vigésimo oitavo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, enviado em mensagem do dia 17 de Novembro de 2012:


Do Ninho D'Águia até África (28)

A avioneta



O Cifra, nas suas viagens de entrega de material classificado, que era o novo código do sistema de cifra, todos os meses renovado, e que era entregue por mão a todas as forças militares que se encontravam em cenário de guerra, sob o comando da unidade de que fazia parte, viaja agora, na avioneta do correio. Vai sentado atrás, ao lado dos sacos do correio. Costuma levar consigo, quase sempre uma Kodac, que o Movimento Nacional Feminino lhe ofereceu numa das suas visitas ao aquartelamento.

O piloto era um furriel, a quem carinhosamente chamavam “Pardal”, que todos conheciam no aquartelamento, pelas suas acrobacias. Iam aterrar numa povoação perto da fronteira com outro país africano, foto em baixo do marco da fronteira.


Voavam baixo, pois o “Pardal” conhecia a pista, que não era mais do que uma clareira no capim. Havia alguma água no solo, não se apercebeu, fez-se à pista e tentou aterrar. A roda esquerda do trem de aterragem ao tocar o solo molhado, desequilibrou a aeronave, que voou mais uns tantos metros, rodopia um pouco, para a direita e para a esquerda, seguindo de novo em frente, embora balançando para um lado e para o outro, mas ficando completamente parada e em segurança, um pouco mais à frente.

Por momentos o Cifra, fica como que paralisado e em pânico. Com o impacto do aparelho no solo, devia de ter dado umas cambalhotas dentro da aeronave, ou talvez não, nunca chegou a saber, pois não levava qualquer cinto de protecção. Recupera o seu sentido de orientação, apalpa a cabeça, com as mãos, não vê qualquer sinal de sangue, afasta um saco do correio de cima de si, bate com os pés, não se recorda se era janela ou porta, que estava em sua frente, com tal impacto, se era porta ou janela, abriu-se. Sai, olha para a frente, e vê o militar, que viajava na frente, sentado com a cabeça baixa, sinal de que talvez tivesse perdido os sentidos, abre a porta, e nesse momento o militar olha para o Cifra, assustado, fazendo algumas perguntas, parecendo estar em pânico.

O Cifra ajuda-o a sair e explica que tiveram um acidente. Do outro lado, no assento do piloto, “O Pardal”, que o Cifra nunca chegou a saber se perdeu o controlo da aeronave, ou o seu sentido de orientação, diz, com a maior calma do mundo:
- Qual acidente, qual caral..!. Vai à volta e abre esta merda, que estou farto de empurrar a porta.

Ninguém sofreu qualquer ferimento, a não ser o susto. No dizer do “Pardal”, a aeronave estava operacional. Em seguida, surgem alguns militares, que vinham prestar protecção e levar os sacos do correio. Ajudaram a colocar de novo a aeronave em outra posição, o Cifra, passou para o lugar da frente, levantou voo de novo usando um lado da clareira no capim, com bastante receio do Cifra, que passado pouco tempo, e perante os sorrisos do “Pardal”, aterraram em Mansoa, depois de fazer umas tantas acrobacias no ar, pois sempre que via uma árvore mais alta, dava uma volta a rasar em seu redor, fazendo a passarada fugir. Quando surgia um rio ou uma bolanha, passava a rasar a água, e sempre que fazia estas manobras, o Cifra agarrava-se com quanta força tinha à cadeira, e às vezes até fechava os olhos, e o “Pardal”, logo dizia:
- Está visto que não és um militar de acção.

O tal militar que viajava na frente, a quem o Cifra abriu a porta para sair, e pertencia à companhia local, ficou eterno amigo do Cifra, e sempre que passava no aquartelamento, bebiam um copo juntos, fazendo juramentos de que nunca diziam nada, do medo que na altura sentiram.

O Kodac das fotografias desapareceu, talvez fosse juntamente com os sacos do correio.
O Cifra gostava mesmo daquela máquina, era do tipo que para se tirar uma fotografia, tinha que se puxar uma pequena alavanca do lado do caixote.

(Fotos e Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10683: Do Ninho D'Águia até África (27): O perfume exótico das filhas do Libanês (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10698: Em busca de ... (209): Meu parente José Diamantino Pereira, que morou em São Francisco do Sul e no Rio de Janeiro, Brasil, antes de se ter alistado na marinha de guerra portuguesa, por volta de 1963 (Salete Ramos)

1. Mensagem da nossa leitora Salete Ramos, a residir presumivelmente no Brasil:

De: Salete Ramos [maria.saleteramos@hotmail.com]

Data: 18 de Novembro de 2012 19:42

Assunto: achar um parente da marinha da guerra

Boa tarde, procurando pelo nome um parente, não sei exatamente como entrei no seu blog, mas percebi que tem bastante veteranos, eu possuo uma foto dele e seu amigos, mas eu não sei postar, então no próximo contato, pedirei que o façam, mas seu nome é José Diamantino Pereira, ele morava em São Francisco do Sul, Santa Catarina, foi para o Rio de Janeiro, e voltou mais ou menos em 1963, dizendo que iria para guerra, passou em nossa casa para se despedir, até então nunca mais tivemos notícias, ele era o único sobrinho de minha mãe, nunca conheci ninguém do lado materno a não ser ele.

Gostaria de saber se é vivo ou não, será que você pode ajudar-me, guardarei alguma resposta, não quero herança nem dinheiro, somente saber porque nunca descobrimos parente nenhum dela, ela era negra, filha de escravos, sua irmã possível mãe dele era Lurdes, e ele era da marinha, obrigada, espero ter noticias,e desculpe pelo incómodo.



2. Resposta do nosso camarada e colaborador permanente José Martins [, foto à direita,] que, neste blogue da Tabanca Grande, tem o delicado pelouro dos "perdidos & achados":

Bom dia Luís

Através dos registos militares é um bocado difícil, se não impossível, dada a confidencialidade dos mesmos e, sobretudo, porque naquela época os ramos tinham, cada, o seu ministério (a Aeronáutica era uma Secretaria de Estado) e, quer a Marinha quer a Força Aérea, têm uma forma diferente da do exército na "exposição" dos seus elementos.

Quando quis saber alguma coisa sobre um Furriel Piloto, nascido em Moscavide, contactei o Estado Maior da FA, mas foi infrutífera, apesar de ter falecido em Angola.

Curiosamente, junto do Registo Civil de Loures, graças à amabilidade de um funcionário que, sabendo que se destinava a um trabalho sobre os combatentes do concelho e já publicado no blogue, fez a pesquisa e assim obtive, pela porta dos fundos, o que não consegui pela porta principal.

Com os dados de que a nossa visitante dispõe, sabendo a naturalidade do primo, poderá tentar obter algum dado. Há pouco tempo localizei o irmão de um amigo, de quem já não tinha contacto desde o casamento nos anos 70. Já tinha falecido, mas no registo constava o local de inumação e a agência que tinha tratado de tudo. É a tecnologia.

Abraço, José Martins

3. Resposta do editor do blogue a nossa leitora Salete Ramos:


Cara leitora: Obrigado pelo seu contacto e pelo carinho com que fala do seu parente e nosso camarada José Diamantino Pereira de quem, infelizmente, não sabemos mais nada. Partimos do princípio que o seu parente era cidadão português,  nascido no Brasil ou em Portugal, e que por volta de 1963, possivelmente com 20 anos, ou até menos, se terá alistado na Marinha de guerra portuguesa. 

Era importante, para termos algum sucesso nas nossas pesquisas, (i) saber onde nasceu o seu primo (em que município ou concelho). Por outro lado, seria útil termos (ii) uma foto digitalizada dele como militar. Veja se consegue mandá-la por email. Neste blogue, não pode postá-la diretamente, tem que ser por intermédio dos respetivos editores: o blogue não funciona como o Facebook, onde também temos uma página, e onde a Salete aí pode inserir a foto do José, no caso de também ter uma conta).  Enfim,veja  se tem (iii) alguma legenda no verso da fotografia: local e data onde foi tirada...

Seria ainda importante saber em que (iv) parte da África portuguesa (Angola, Guiné, Moçambique) é que esteve o seu primo durante a guerra colonial (que se desenrolou entre 1961 e 1975). Ou em que em navio da república portuguesa (NRP) prestou serviço o José Diamantino Pereira.

As nossas melhores saudações. Boa sorte para as suas pesquisas. Luís Graça.
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 18 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10689: Em busca de ... (208): Vasco Pires, ex-comandante do 23º Pel Art pede a Manuel da Silva Fernandes, ex-1º cabo cripto da CCAÇ 2796, contactos dos seus antigos furrieis, que estiveram com ele em Gadamael (1970/72)


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10697: Convívios (482): Breve relato do último convívio da Magnífica Tabanca da Linha (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 16 de Novembro de 2012:

Olá Carlos, bom dia,
Para os fins habituais de incremento da camaradagem entre o pessoal da Tabanca, envio este breve relato, conciso, e que nem sempre respeita a verdade dos acontecimentos, mas serve para que o pessoal aquilate sobre a necessidade de uma regular alimentação, prevenindo, não só a fome, como o regular funcionamento do organismo.

Para ti, e para o Tabancal, vai aquele abraço
JD


A Magnífica Tabanca da Linha - Breve relato do último encontro 

O dia nasceu com o céu limpo, azul e brilhante.
Antevia um ambiente acarinhado pelo clima.

Pelas onze horas começou o céu a encortinar-se com nuvens densas, que passaram a ameaçar com evidente instabilidade. Mais uma hora, e chovia, por vezes com grande intensidade.
Pelas doze e trinta já uma boa parte do pessoal se encontrava no interior da Adega, e ninguém se preocupava com o tempo exterior, onde chovia a potes.

Apresentaram-se os "habitués" e o Marcelino da Mata, que passa a integrar este grupo de tabanqueiros. Também compareceram alguns amigos da Tabanca, o António Silva, o António Paiva, e o Hélder Valério de Sousa, reincidente, que ainda não exigiu a sua condição de atabancado na Linha. Houve duas faltas relevantes, a do casal Pessoa, em virtude de uma consulta médica há muito programada para o gigante aviador.

Outra falta que já vem sendo habitual, em virtude de mazelas várias, foi a do senhor 2.º Comandante Rogério Cardoso. Desta vez nem mandou recado, nem respondeu a diferentes pedidos de confirmação. Fazemos votos de que não lhe falte a saúde, e continuamos a contar com ele, e a guardar-lhe a posição hierárquica.

No entanto, está bem de entender, uma unidade com Comandante e sem substituto competente, não revela meios funcionais para as diversas circunstâncias, tanto de representação, como de substituição, como de desenvolvimento estratégico-tático. Disso me deu conta Sua Exa. o Senhor Comandante, quando numa recente conversa para a qual me convocou, e com recurso a saudosos ensinamentos pidescos, me questionou sobre o Senhor 2.º Comandante, se estaria com algum problema especial. Confessei-lhe que não sabia, e que tinha ficado sem o contacto telefónico desde que perdera o telemóvel. Sua Excelência, com um ar meio comprometido, ainda me questionou se a sua imagem de Comandante e líder não ficava algo afectada pela ausência constante de um adjunto completamente reconhecido. Na minha condição de simples amanuense, assentei com a cabeça, e perguntei-lhe por que raio não havia dois segundos-comandantes. Sempre fora assim! Sua Exa. levou a mão direita ao nariz, deixou-a descair com os dedos a acariciar-lhe a parte inferior do rosto, e siciou algo do género: eh pá, o Zé, eu dei-te muita porrada, mas parece que te fez bem. Já pensas! Cá o amanuense tomou o elogio como um louvor, e num gesto submisso agradeceu-lhe.

O Senhor Comandante, com o sentido da oportunidade e da exploração que o caracteriza, logo me encarregou de fazer a apresentação do novo 2.º Comandante, com a manutenção do anterior, antes da abertura das hostilidades do almoço. Que sim, mas quem deveria anunciar, pois ainda não conhecia o nome do elemento promovido. Eh pá, pois é! Estás a ver como este cargo me dá tanta chatice? Quem é que achas que devo nomear? Diz lá, mas não penses que ficas com algum estatuto especial, estás só a pensar comigo, no estrito cumprimento dos deveres de lealdade e colaboração.

 Foi como se sentisse uma facada, pois já alimentava a esperança de chegar tão precocemente a um lugar no Olimpo. Eu até já imaginava as caras de espanto de gente tão conceituada como o Marques, o Carioca, o Tirano, o Pires, o Resende, o Moreira, ou o intelectualóide cínico, os mais veteranos, que heroicamente, diga-se de passagem, têm contribuído com muito valor para o enriquecimento dos empresários da restauração. Fiquei sem pinga de sangue, e incapaz de me apontar para o desempenho do cargo. Anda um gajo a dar o litro, quando não é mais, e ninguém lhe reconhece a capacidade para ser 2.º Comandante, afinal, um lugar onde não se faz nada. Ainda imaginei a inveja desses gajos recentemente mobilizados para a luta, uns putos peneirentos, assim da laia do Manuel Joaquim, do Carlos Silva, do Humberto, do Horta, do Roger e do Palma, mas fiquei a recear que a indicação recaísse sobre um deles, o que seria tremendamente injusto. Pior seria, se ele, vesgo como está, deixasse a decisão sobre a nomeação para a última da hora, e desse com os olhos em arrivistas como o Paiva, ou o Hélder Sousa.

O Comandante está chéché, pensava eu, quando o gajo, com voz grave, perfurou-me a caixa dos pirolitos com nova pergunta: então? Então, meu Comandante? Então o quê? perguntei já a ver o fim do mundo em cuecas. Porra pá! então quem é que sugeres? O Fitas, meu Comandante. O Fitas? Olha, não está mal pensado. E foi desta maneira praticamente cientifica, que se nomeou o Fitas para prover ao lugar de 2.º Comandante graduado, um tipo que desde a primeira hora, se bateu com entusiasmo por esta organização abandalhada, onde toda a gente come e bebe num ambiente de xinfrin, num registo de indisciplina, que é muito bem feito, que em nada dignifica a imagem do Comandante. E peço eu ao santo protector deste país, que não tenha a má lembrança de o candidatar a Presidente, que isso então é que seriam gajos a trepar no poder, e eu feito escravo nesta vida de amanuense.

 Ao novo 2.º Comandante, manda Sua Exa. o Senhor Comandante, que passe à ordem, que a nomeação só se tornará definitiva no próximo encontro da tropa, e fica já obrigado a fazer discurso de reconhecimento, e a jurar que Comandante só há um, e que lhe será fiel em todas as circunstâncias. No final, já com o coração a bombar desordenadamente, ainda tive que pregar um pontapé no cu do Hélder de Sousa, que tem andado com implicâncias, e pode ter sido a razão para que Sua Exa. tivesse duvidado da minha competência para ascender ao lugar a que tanto aspiro, e mereço.

Algumas das fotos do acontecimento de autoria de Manuel Resende






Fotos de Manuel Resende
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10681: Convívios (481): 23.º Encontro e Almoço de Natal da Tabanca do Centro, dia 28 de Novembro de 2012, em Monte Real (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P10696: Álbum fotográfico do Alberto Pires, Teco, ex-fur mil, CCAÇ 726 (Guileje, out 64/ jun 66) (Parte III): Um operação com baixas de um lado e outro (2ª sequência): uma evacuação em helicóptero Alouette II


Foto nº 20


Foto nº 19


Foto nº 14


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 8



Foto nº 7



Foto nº 9



Foto nº 10


Foto nº 11



Foto nº 12

Foto nº 1


Foto nº 1  (do lote "Guerrilheiros mortos" )



Foto nº 2 (do lote "Guerrilheiros mortos" )


Guiné > Região de Tombali > Guileje > > CCAÇ 726 (out 64/jun 66) > s/d > Uma "operação militar"... Segunda (e última)  parte... 

Não se percebe, na ausência de legendas, se o burro ou mula é um despojo de guerra (foto nº 20). Sabemos que nessa época o PAIGC usava animais de carga para transporte de armas e munições, nomeadamente no norte da Guiné (região do Oio). A foto nº 20 sugere "partilha de despojos", depois de um bem sucedido assalto ao objetivo (*)... 

A foto nº 19, tudo indica que seja de um guerrilheiro morto nesta operação. Já as outras duas fotos (nº 1 e 2) do lote "Guerrilheiros mortos", não temos a certeza se dizem respeito a esta operação... É muito provável até que não. Por outro lado, não é nossa intenção chocar ou melindrar os nossos leitores mais sensíveis: é bom não esquecer que estávamos em guerra, e que há alguns fotográficos de camaradas nossos que documentam esse facto...

Também não temos a certeza se todas as fotos dizem respeito à "mesma" operação... As fotos nºs 5,6,7,8, 9, 10, 11 e 12 formam uma sequência lógica e cronológica: houve pelo menos um ferido (, africano, provavelmente milícia,) das NT, ferido esse que é levado em maca improvisada até a uma clareira na mata (fotos nºs 5 e 6), esperando a chegada de um heli; o local para o heli pousar em segurança  é devidamente sinalizado por granada de fumos e panos vermelhos (fotos nºs 7,8, 9 e 10); a seguir, um outro ferido (que parece ser um soldado metropolitano), é  levado às costas (foto nº 11), e colocado numa espécie de maca afixada na parte lateral esquerda do heli, um AL II, portanto do lado de  fora, e evacuado  para o HM 241 (Bissau) (foto nº 12).

 É-nos mais difícil perceber o que se passa na foto nº 14 (abertura de uma cova ?) e sobretudo na foto nº 1 (restos humanos ? material do IN escondido ?). (LG)

Fotos: © Alberto Pires (Teco) (2007) / AD - Acção para o Desenvolvimento. [Editadas por L.G.]. Todos os direitos reservados


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Alberto Pires, mais conhecido por Teco,  natural de Angola, ex-fur mil na CCAÇ 726, a primeira subunidade a ocupar Guileje em 1964)... A companhia esteve em Guileje entre Outubro de 1974 e Junho de 1966. Ocupou Mejo e mantinha lá um destacamento em 1965 (*).

As fotos que estamos a publicar pertencem a um lote que o Teco pôs à disposição do Núcleo Museológico Memória de Guiledje e do nosso blogue (são mais de 60 fotos). Não trazem legenda, mas estão agrupadas por temas: (i) CCAÇ 726 (Guileje); (ii) construção de abrigos (Guilje); (iii) destacamento de Mejo; (iv) operação militar; e (v) guerrilheiros mortos (neste caso, são apenas duas as fotos disponibilizadas)...


Estas fotos que publicamos hoje, têm a ver com uma "operação militar" (não se sabe onde nem quando, de qualquer modo só pode ter decorrido  entre 1964 e 1966,  durante a comissão da CCAÇ 726, numa  época em que ainda se usava o capacete de aço). São 20 imagens no total, numeradas de 1 a 20, e que foram todas editadas por nós, com vista à melhoria da sua resolução e qualidade. 

Não sabemos qual a ordem lógica e cronológica destas 20 fotos, pese embora a sua numeração. Presumimos que as NT partiram de Guileje, e progrediram até um objetivo IN (*). Houve contacto, mortos e feridos, helievacuações, destruição de uma tabanca (ou acampamento temporário: parece-nos mais verosímil ser uma tabanca, uma vez que há estruturas de adobe, paredes, cobertura de capim...).

Nesta segunda sequência mostra-se o resto das fotos, incluindo uma notável sequência de uma helievacuação: na época, 1964/66, ainda não havia o heli Alouette III, apenas o II (**)... Não sabemos se o contacto havido na altura com o IN, aconteceu  no assalto ao objetivo ou no regresso a Guileje. 

Peço tanto ao Teco (que esperamos venha a aceitar o nosso convite para integrar formalmente a nossa Tabanca Grande, e que tem um fabuloso álbum fotográfico sobre a Guiné, estimado em 500 fotos)  como ao Carlos Guedes (, nosso grã-tabanqueiro, e também camarada do Teco na CCAÇ 726), que nos ajudem a esclarecer esta e outras dúvidas.  

De qualquer modo, são imagens, muito sugestivas, que valem por si e que nos ajudam a recordar muitas das nossas operações efetuadas nas difíceis condições do teatro de guerra da Guiné.

_________________


Notas do editor:

(*) Último poste da série > 18 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10690: Álbum fotográfico do Alberto Pires, Teco, ex-fur mil, CCAÇ 726 (Guileje, out 64/ jun 66) (Parte II): Um operação com baixas de um lado e outro (1ª sequência)

(**) Sobre o Alouette II vd os seguintes postes:





Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 726 (Out 64 / Jul 66) > O pessoal em operações militares: na foto, acima, transporte às costas de um ferido, evacuado para o HM 241, em Bissau, por um helicóptero Alouette II (versão anterior do Alouette III, que nos era mais familiar, sobretudo para aqueles que chegaram à Guiné a partir de 1968).

Fotos: © Alberto Pires (Teco)./ AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007) / Jorge Félix (2009). Direitos reservados.



7 de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5420: FAP (38) : O helicóptero Alouette II ou uma arrepiante viagem na 'montanha russa' até ao HM 241 (Jorge Félix)


(...) Como o teu Blogue, já nosso, tem antes de mais, a qualidade de recordar para tratar, vou falar do Heli onde aprendi a pilotar os "zingarelhos" e está numa foto deste P5417. A foto do Alberto Pires [Teco] era a BW [preto e branco] e eu dei-lhe uma coloração para se perceber melhor.

O heli era o Alouette II (dois). O que está na foto [, acima,] já tem rodas, os que conhecia eram todos com Patins. Nesta altura, os feridos eram transportados no "caixão" que eu destaquei a amarelo. Podes imaginar como arrepiante seria vajar, amarrado e bem amarrado, naquele cubículo do lado de fora da carlinga...

Cada um de nós teve o pior da guerra, (eu felizmente tinha whisky servido de bandeja à chegada na placa), mas um ferido evacuado num Heli Al II, deve ter tido a pior experiência da sua vida.

Como é que de um Blogue tão extenso fui dar importância a este pequeno acontecimento? (...)


23 de maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8314: Tabanca Grande (286): Maria Arminda Lopes Pereira dos Santos, ex-Ten Grad Enf.ª Pára-quedista, 1961-1970

(...) "A partir daí a guerra na Guiné estava instalada e assim que foi possível fomos colocadas na Base de Bissalanca, para o início das evacuações aéreas com enfermeiras. Havia os aviões Auster e os helicópteros Alouette II; nestes não nos era possível acompanhar de perto os feridos, os quais eram transportados fora do helicóptero, numa espécie de caixas colocadas por cima dos patins do heli, uma de cada lado. Nos Auster a maca quase entrava pela cadeira ao lado do piloto e na cauda do avião. 

"Felizmente mais tarde chegaram os DO-27 e os Alouette III, onde passámos a fazer inúmeras evacuações, adaptando e modificando os meios sanitários e a nossa actuação, com a finalidade de uma mais eficaz prestação de cuidados aos feridos, os quais iam sendo cada vez em maior número. Infelizmente tivemos que chegar a fazer evacuações no Dakota, quando havia ao mesmo tempo muitos feridos e a pista era adequada para a sua aterragem." (...) 

Vd. também Wikipedia > Aérospatiale Alouette II (em português)

(... ) O Alouette II é um helicóptero ligeiro, produzido, sob diversas versões, pelo construtor aeronáutico francês, SNCASE, que em 1957deu origem à Sud Aviation, em 1970 à Aérospatiale, em 1992 à Eurocopter e que em 2000 passou a integrar a EADS (...)

Foi o primeiro helicóptero do mundo, motorizado com turbina a gás a ser certificado para voo.

As versões militares eram usadas essencialmente em, fotografia aérea, observação, salvamento marítimo. ligação e treino. Na parte civil era usado essencialmente na evacuação médica principalmente em grande altitude, tirando partido do seu motor de turbina. (...)

Guiné 63/74 - P10695: Álbum fotográfico de Leonel Olhero (4): Bula (Fernando Súcio / Leonel Olhero)



1. Quarto de uma série de 4 postes com fotografias enviadas pelo nosso camarada e tertuliano Fernando Súcio (foto à esquerda), ex-Soldado Condutor do Pel Mort 4275, Bula, 1972/74, fotos estas pertencentes ao seu conterrâneo, o outro nosso camarada Leonel Olhero (foto à direita), ex-Fur Mil Cav do Esq Rec 3432 (Panhard), Bula, 1971/73.



Bula > Festa no Esq Rec 3432 (Panhard)

Bula > Aspirante Daniel Salgueira

Coluna auto na estrada Mansabá/Cutia/Mansoa, na zona do chamado carreiro da morte





____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10680: Álbum fotográfico de Leonel Olhero (3): Bula (Fernando Súcio / Leonel Olhero)

Guiné 63/74 - P10694: Notas de leitura (430): "Crónica dos (Des)Feitos da Guiné", por Francisco Henriques da Silva (1) (Mário Beja Santos

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2012:

Queridos amigos,
O livro do nosso confrade Francisco Henriques da Silva gira à volta do conflito político-militar que avassalou a Guiné-Bissau em 1998-1999 e deixou sequelas até ao presente.
É o relato de alguém que é pressionado a ter que agir celeremente enquanto Bissau está a ferro e fogo, há vidas a proteger, evacuações melindrosas, há que atuar à procura de uma paz. O embaixador não arreda pé, a própria embaixada é atingida, as instâncias do poder não lhe agradecem. Só em 22 de Julho, o presidente Jorge Sampaio lhe envia uma mensagem, exprimindo o seu maior apreço pela coragem e serenidade que desde há semanas ia dando provas, comportamento que dignificava a diplomacia e a Nação Portuguesa.
Este relato é de leitura compulsiva, sentimos todos uma ponta de orgulho pelo comportamento deste nosso confrade.

Um abraço do
Mário


Crónica dos (Des)feitos da Guiné (1)

Beja Santos

Francisco Henriques da Silva foi alferes miliciano, pertenceu à CCAÇ 2402 (BCAÇ 2851) combateu em regiões como Có, Pelundo, Bissorã, Mansabá e Olossato (1968-1970). Em 1997 regressou, desta feita como embaixador de Portugal. E a roda da fortuna permitiu-lhe viver na primeira pessoa páginas de ouro da vida diplomática portuguesa. Assistirá e terá um desempenho relevante no conflito político-militar que eclodiu em 7 de Junho de 1998. Sobre o que observou e viveu resolveu passar a escrito com um título esclarecedor: “Crónica dos (Des)feitos da Guiné” (Edições Almedina, 2012). O mínimo que se pode dizer é o que o seu testemunho constitui um contributo incontornável para o estudo da Guiné-Bissau neste período tão conturbado em que os militares deram o sinal que estavam acima das instituições e já não dependiam do sistema político ou da ordem constitucional.

Entrou em funções em Outubro de 1997. Foi-se apercebendo das diferenças abissais na Guiné que conhecera cerca de 40 anos antes, e como se estivesse a escrever num diário foi anotando a degradação do Bissau Velho, a corrupção latente em toda a sociedade, as aproximações oportunistas, os equívocos da cooperação, um país com o Estado ausente. Aqui e acolá, vai pontuando as suas observações com pilhérias que deixam o leitor a conter a gargalhada com relatos assombrosos, como este, à volta de um jantar que deu na sua residência para receber o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Portugal, José Lamego, e para o qual convidou dois ministros guineenses, o dos Estrangeiros e o da Justiça, para além de outros altos funcionários. Seriam dez da noite quando um empregado da residência lhe disse estar lá fora o Dr. Kumba Ialá. Segue o relato:
“Com o seu inconfundível barrete vermelho, a necessitar urgentemente de uma lavagem, suando e a tresandar a álcool, com um sorriso de orelha a orelha, irrompe pela sala Kumba Ialá. Olha ostensivamente para o relógio de pulso e num tom de voz estentórico diz:
– Meu caro embaixador, desculpa lá eu vir tarde, já passa das dez, mas não tenho fome. Ena, pá, tanta gente! Alguns eu conheço…
– Oh, dr. Kumba, isso não tem a menor importância – disse eu, sem me desmanchar, perante os olhares meio sorridentes dos dois Ministros presentes – Diga lá, o que é que que tomar?
– Um sun-sun (aguardente de caju) – retorquiu.
– Bom, isso não há, mas tenho algo de parecido. Lá pedi ao Augusto que lhe servisse um conhaque ou um brandy e deixei-me ficar por perto. Entretanto, José Lamego aproximou-se também.
– Ora, cá está o Secretário! Sabe quem é este gajo? – e aponta com um dedo esticado para Delfim da Silva, enquanto emborcava o conhaque – Este foi um dos que roubou os meus votos, por isso é que eu perdi as eleições. Sorriso amarelo por parte do visado e dos circunstantes que se entreolharam um tanto embaraçados.
– Mas este ainda é pior – e vira-se, então para o Ministro da Justiça, Daniel Ferreira – Este é que é um dos responsáveis pelos 20.000 votos que perdi nos Bijagós. Estes é agora Ministro da Justiça, secretário! Ouça o que eu lhe digo, esta gente do Governo não é séria! Mas vocês dão-lhe confiança”.

É um diplomata que envia regularmente para as Necessidades informações sobre a tensão crescente na Guiné-Bissau: o rumor do profundo descontentamento da Forças Armadas, onde já não se excluía a confrontação, e vivendo a bipolarização entre os antigos combatentes (os indefectíveis do PAIGC e maioritariamente apoiantes de presidente Nino Vieira) e os novos quadros, homens que frequentaram ou estagiaram em estabelecimentos de ensino militar no estrangeiro, gente na casa dos 40 anos, não só letrada mas com uma vivência concreta de outros países; um caos económico decorrente de uma adesão ao franco CFA que correu bastante mal na fase de arranque; a rebelião do Casamansa que levou ao tráfico de armas e à pressão internacional para impedir qualquer forma de apoio aos rebeldes dessa região; um 6º Congresso do PAIGC que revelou fissuras profundas mas também uma grande incapacidade para se inserir numa sociedade multipartidária um antigo partido único; enfim, a tríade presidente da República-militares-PAIGC, outrora um elemento constitutivo indispensável do país estava em franca desagregação. É neste quadro que Nino Vieira demite Ansumane Mané enquanto uma comissão da Assembleia Nacional Popular dá como provada a isenção do brigadeiro e responsabiliza altos quadros do PAIGC por envolvimento no tráfico de armas. Acresce que nessa mesma linha apareceu uma carta-panfleto dos Combatentes da Liberdade da Pátria, proferindo ataques pessoais ao presidente e acusando a alta hierarquia da Forças Armadas por prática de várias irregularidades e até ilícitos criminais. É neste contexto com grandes incógnitas para o aprofundamento da democracia na Guiné, e logo a seguir à exoneração de Ansumane Mané que estala o levantamento militar, logo a seguir Bissau vai tornar-se numa inacreditável carreira de tiro.

Aos primeiros rebentamentos, o embaixador desloca-se para a chancelaria e agarra-se ao telefone, na aparência as forças fiéis ao presidente da República controlavam a situação mas começaram a surgir notícias que na região de Brá-aeroporto as forças amotinadas estavam a receber apoio popular. Os combates prolongaram-se durante todo o dia, imediatamente se pôs a questão de como garantir a segurança dos portugueses que, aliás, começaram a bater à porta da embaixada. Como proteger os portugueses? Até que surge uma chamada telefónica providencial, o comandante do cargueiro “Ponta de Sagres” propõem-se deslocar-se para Bissau para recolher refugiados. Iniciam-se as negociações para uma possível evacuação, isto enquanto Nino Vieira já pedira a intervenção direta da Guiné Conacri e do Senegal, as forças rebeldes afinal não tinham sido controladas, o fogo de obus começava a atingir o centro de Bissau, mas também a área das embaixadas, as granadas caiam mesmo no porto do Pidjiquiti. Bissau era uma cidade sitiada, aqui moviam-se à vontade às forças leais ao presidente. Do perímetro militar de Brá, do aeroporto de Bissalanca e dos bairros periféricos de Bissau, a junta militar bombardeava as posições governamentais, enquanto as baterias de artilharia destas últimas, muitas vezes nas imediações de igrejas, hospitais, embaixadas estrangeiras e de outros edifícios civis, disparavam a eito sobre o dispositivo rebelde, escreve Henriques da Silva. A embaixada portuguesa é pequena para acolher tanto português. O embaixador escreve: “Comia-se onde calhava e o que calhava; faziam-se as necessidades em determinados lugares que rapidamente se tornavam insalubres e viveiros de todo o tipo de bactérias e doenças”. Felizmente que a embaixada tinha adquirido arroz para as comemorações do 10 de Junho. E durante 4 dias, até à evacuação pelo cargueiro “Ponta de Sagres” comeram “arroz com 10 de junho” ou “massa com 10 de junho”, servia-se em pratos de cartão com um ou dois croquetes, pastéis de bacalhau, rissóis de camarão ou uma fatia de fiambre. Felizmente para todos, chegou a hora da grande evacuação, em 11 de Junho.

(Continua)
____________

Notas de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10679: Notas de leitura (429): "Da Guiné à Angola O Fim do Império", pelo Coronel Piçarra Mourão (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10693: Parabéns a você (498): Mário Miguéis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné, 1972/74)

____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10678: Parabéns a você (497): José António Viegas, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 54 (Guiné, 1966/68)