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segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (252): O Hospital Real de Todos os Santos (1504-1770): da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo - Parte I

 




Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI  (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço (3) e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus (2), ao fundo,  e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito (1). O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira, com a frente virada para poente (para o que é hoje a praça do Rossio). Ver aqui um documentário de 5' 18'' sobre o Hospital, da autoria do Museu de Lisboa.

O Paço dos Estaus (ou Palácio da Inquisição) ardeu em 1834. No mesmo sítio, irá constrruir-se, dez anos depois, o Teatro Nacional Dona Maria I.



Museu de Lisboa > Hospital Real de Todos-os-Santos > Mestre "P.M.P."> MC.AZU.0074 > Inícios do Séc. XVIII > Dimensões: Altura: 1, 140 m x Comprimento: 3,430 m > Material: cerâmica. Vd, aqui zoom.
@ José Avelar/Museu de Lisboa









"Painel de azulejos de oficina de Lisboa, da 1ª metade do século XVIII, existente no Museu da Cidade, Lisboa, onde no primeiro plano aparecem tipos populares a comercializarem bens de consumo e, no lado esquerdo é representado o Chafariz de Neptuno, equiparado ao dedicado a Apolo, existente no Terreiro do Paço. 

"O Hospital Real de Todos-os-Santos tinha fachada virada para o Rossio e fora mandado erigir por D. João II em 1492, mas a sua construção só terminou no reinado de D. Manuel I, nos primeiros anos do século seguinte. Edifício de vanguarda na época, acolheu os primeiros internamentos em 1502, com regimento e estatuto de Escola de Medicina e o número de enfermarias foi crescendo ao longo do tempo: 3 (1504), 16 (1520) e 25 (1715). 

"O Hospital Real de Todos-os-Santos foi desactivado na sequência do Terramoto de 1755, ocorrido a 1 de Novembro desse ano, o qual foi responsável pela destruição quase completa da cidade de Lisboa e foi substituído depois pelo Hospital Real de São José, no que restou do colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus. (Rui Carita)
Data: circa 1740".


Foto (e legenda): Fonte: Museu de Lisboa | Wikimedia Commons (com a devida vénia...)


Índice:

Parte I

1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade

2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"

3. O movimento de concentração hospitalar

Parte II

4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O Provedor

4.2. O Almoxarife

4.3. O Hospitaleiro e o Vedor

4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

5. Diferenciação Socioeconómica do Pessoal Hospitalar

Referências bibliográficas


Originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor, Saúde e Trabalho > Textos > 59. Graça L- (2000) - O Hospital Real de Todos os Santos. Parte I.


 O Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade  do príncipe ao génio organizativo

Parte I


1. O hospital monumental renascentista: 
A ostentação da caridade


Se o leitor do nosso blogue passar um dia destes por Lisboa, convido-o a visitar o excelente Museu da Cidade, polo Palácio Pimenta, ao Campo Grande. Aí poderá ter uma ideia da Lisboa pré-pombalina, através de uma magnífica maqueta da urbe e, inclusive, admirar a maqueta do antigo Hospital Real de Todos os Santos (abreviadamente, HRTS), para além de dois ou três admiráveis conjuntos de azulejos onde está representado o HRTS.

Embora a maqueta do HRTS seja uma reconstituição, feita na década de 1950, o que salta à vista é a sua arquitectura - a arquitectura monumental renascentista, reflectindo a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade.

Assistia-se então, no início do século XVI, a um movimento de concentração dos hospitais e demais estabelecimento assistenciais até então existentes, tendo o poder real um papel decisivo nesse movimento.

Às misericórdias caberá, posteriormente, a responsabilidade da sua administração durante mais de 400 anos. até ao período de 1974/76 (no caso do Hospital de São José e seus anexos, até 1836). Estima-se que o número de pequenos hospitais e outros estabelecimentos do género chegasse às cinco centenas, totalizando cerca de 2500 camas.

A política de fusão e concentração dos hospitais, seguida por de D. João II e D. Manuel II, tem de ser entendida no contexto do longo e sinuoso processo de luta secular do poder régio e, depois, do Estado contra a Igreja. 

Essa luta - muitas vezes cínica e surda - acentuar-se-á com o Marquês de Pombal e culminará com a legislação liberal de Mouzinho da Silveira (1832) e Joaquim António de Aguiar (1834), completada depois com a da República (1910), tendo-se traduzido na secularização da maior parte do fabuloso património fundiário da Igreja (os chamados bens de mão-morta, que estavam fora do mercado imobiliário, não podendo ser alienados) e na drástica redução dos privilégios do clero.

É sobretudo a partir de D. João II (1455-1495) e, portanto, já em plena época dos Descobrimentos, que surgem as grandes instituições de assistência, sob a forma de hospitais gerais: Lisboa (1492-1504), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520), Goa (1520-1542), etc.,  em resultado da própria concentração do poder político e económico na figura do rei. 

O Hospital Real de Todos os Santos   é disso um exemplo paradigmático.

Como diz Correia (1984), no prefácio à primeira edição do respectivo regulamento (feita em 1946, por iniciativa de um laboratório farmacêutico, e reproduzida pelos Hospitais Civis de Lisboa, em 1984), "nunca em Portugal houvera hospital tamanho e, pela sua grandiosidade, ganhou fama de ser um dos maiores do mundo", ombreando com os outros grandes hospitais quatrocentistas e quinhentistas da Cristandade, tanto em Itália (Florença, Siena, Roma) como em Espanha (Santiago de Compostela, Toledo).

Contrariamente ao seu congénere medieval, o hospital dos séculos XVI e seguintes é monumental e sobretudo urbano, reflectindo as novas necessidades e problemas de saúde de uma população que tende a concentrar-se nas cidades com o declínio do feudalismo, o desenvolvimento do modo de produção artesanal, a economia mercantil, a expansão do comércio marítimo e a complexificação do tecido social (em particular, das camadas populares).

Por outro lado, e como já acima referimos, a arquitectura do hospital renascentista exprime a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade. Uma e outra são possíveis, no nosso caso, devido à enorme acumulação de riquezas, resultantes do comércio ultramarino, e nomeadamente da exploração comercial do ouro da Mina e da pimenta da Índia.

O HRTS estava localizado na cerca do Mosteiro de S. Domingos, onde é hoje a Praça da Figueira. A sua construção foi iniciada em 1492, a 15 de maio, com o lançamento da primeira pedra, juntamente com algumas moedas de ouro, na presença do próprio D. João II,  depois da indispensável (mas morosa) autorização papal (Bula de Sisto IV, 1479, e Breve de Inocêncio VIII, 1942) para reunir o património dos diversos estabelecimentos (mais de quatros dezenas!), existentes na cidade de Lisboa, "cujos proventos não excedessem trezentos florins de ouro" (Goodolphim, 1908, cit. por Basto, 1934. 46).

O hospital só será concluído doze anos depois, em 1504, sendo por isso anterior ao de Santiago de Compostela (1499-1515), mandado fundar pelos Reis Católicos Isabel e Fernando. Na construção do edifício, ou pelo menos da igreja e da sua fachada manuelina,  terá havido a intervenção do  "mestre de obras do reino", Diogo Boitaca (c. 1460-1527), arquiteto de origem francesa, consideradio uma das referências do estilo manuelino.

De 1504 data também o seu notável regulamento (Regimento), outorgado por D. Manuel I (1469-1521), como testamenteiro de seu primo, cunhado e antecessor, D. João II.

É, sem dúvida, um documento de grande interesse histórico, na medida em que nos permite:

(i) ter hoje uma visão global da organização e do funcionamento do hospital renascentista;

(ii) bem como reconstituir a representação dos diferentes cargos ou funções (ou papéis socioprofissionais, como diríamos hoje), do director (provedor) ao médico (físico), ou, pelo menos, dos papéis prescritos pelo outorgante;

(iii) é, sobretudo, é a expressão mais acabada da vontade do poder político de intervir no domínio da assistência, pondo em causa o papel até então hegemónico da Igreja e respondendo, ao mesmo tempo, às necessidades de uma população em que, à subnutrição e à peste endémica, se vêm pôr novos problemas de saúde, novas doenças (até então desconhecidas)  como resultado da concentração urbana e da mobilidade espacial, decorrentes da expansão marítima.

Acrescente-se que D. Manuel I seguiu a mesma política diplomática do seu antecessor, tendo nomeadamente conseguido por bula de Alexandre VI, de Outubro de 1501, a faculdade de incorporar as rendas dos pequenos hospitais de cada terra numa único hospital. O mesmo papa concedera-lhe semelhante autorização (Breve,  de 23 de Agosto de 1499) para proceder à concentração dos hospitais de Coimbra, Évora e Santarém (Basto, 1934. 168).

Voltando ao citado Regimento, deverá dizer-se que ele não é inteiramente original, tendo sido inspirado, pelo menos, parcialmente, nos estatutos dos hospitais italianos (Santa Maria Nova, de Florença, e Santa Maria, de Siena).

Outros documentos notáveis dessa época chegariam, de resto, até aos nossos dias, como por exemplo o Compromisso do Hospital Termal das Caldas da Rainha (1512), considerado o mais antigo estabelecimento do género em todo o mundo. Num caso e noutro, dois homens da Igreja terão participado na sua elaboração: o cónego Estêvão Martins e o Cardeal Alpedrinha, respetivamente. O cónego será, de resto, o primeiro provedor do HRTS, por nomeação régia (Correia, 1984. 10-11).





Maqueta do Hospital Real de Todos os Santos. Maqueta dos anos 50. Fonte: Museu de Lsboa,com a devida vénia. Fotograma de vídeo. Ver aqui um documentário de 5' 18'' sobre o Hospital, da autoria do Museu de Lisboa

Deve-se a Irisalva Moita (Benguela, 1924-Lisboa, 2009), arqueóloga,  olissipógrafa, criadora do Museu da Cidade de Lisboa, no Palácio Pimenta,a primeira intervenção arqueológica de uma vasta área das ruínas do HRST, aquando da construção do metro, em 1960/61. Quatro décadas depois, em 1999/2001, na sequência de um projeto de reabilitação e requalificação urbana da Praça da Figueira, foi feita uma intervenção de fundo, uma das maiores (e exemplares) levadas a cabo em Lisboa.


2. "Couza tam grande, 
e de tão grande maneo"


Passava-se, entretanto (e isso é que é um facto assinalável para a época) dos estabelecimentos de meia dúzia de camas no máximo, e sem qualquer estrutura organizativa (simples hospícios, portanto), para os grandes hospitais de 100 e mais camas, de arquitectura monumental (o esprital solemne), com uma diferenciação hierárquica e funcional já perfeitamente definida, com um órgão de gestão que era nomeado pela (e responsável perante a) tutela régia, distinto da direção técnica, e dotado, além disso, de mecanismos de controlo patrimonial, contabilístico e financeiro.

Segundo o Capítulo III do Regimento do HRTS,  a área de influência do estabelecimento cobria:

  •  a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte", 
  • além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".


Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo ter
ror da peste.

Ainda de acordo com as indicações do próprio regimento bem como de diversos documentos literários e iconográficos do período que vai da sua construção ao terramoto de 1755, o HRTS era uma das mais importantes obras do equipamento urbano da cidade; tinha dois pisos, situando-se a sua área coberta no que é hoje a Praça da Figueira (vd. iamgem da maqueta acima :

  • a frontaria estava voltada para o Rossio e deveria medir cerca de 100 metros;
  • o corpo do edifício estendia-se para norte, com uma arcaria contrafortada que encostava ao Convento de S. Domingos;
  • a meio, sobrelevada e com uma escadaria de acesso, erigia-se a igreja, de fachada manuelina, com uma imponente escadaria de 21 degraus;
  • a planta do edifício era em cruz, com a torre da igreja ao centro;
  • no piso superior, três grandes enfermarias (a de S. Vicente, a de Santa Clara e a de S. Cosme) constituíam os braços da cruz, dispostas em volta do altar-mor;
  • esta estrutura cruciforme permitia aos doentes internados acompanhar diariamente os ofícios religiosos (e nomeadamente as duas missas, uma das quais celebrada por alma do fundador);
  • no piso térreo, situavam-se os alojamentos do pessoal residente (cerca de meia centena de funcionários, incluindo o provedor);
  • no piso inferior, ficaria ainda muito provavelmente a albergaria (ou casa dos pedintes andantes, com cerca de quarenta camas para ambos o sexos) e os demais anexos do hospital, incluindo a casa dos expostos, o refeitório, a botica, a casa da fazenda (ou secretaria), a cozinha e o forno;
  • no seu vasto logradouro, encontravam-se as demais instalações e equipamentos necessários ao funcionamento do hospital: os lavadouros, as latrinas, as atafonas (ou moinhos), o pombal, a capoeira, a arrecadação da lenha e a horta;
  • o hospital tinha ainda claustros com poços de água potável e cemitério privativo.

À semelhança do hospital árabe e bizantino, os doentes eram repartidos por secções em função da sexo e até da patologia: das três grandes enfermarias, uma era destinada a mulheres e as outras duas a homens, sendo uma de medicina e a outra de cirurgia.

O regulamento faz ainda referência à casa das boubas, uma casa apartada onde eram tratados os doentes com morbo gálico (isto é, gaulês ou francês), designação que englobava então todas as doenças sexualmente transmissíveis (e nomeadamente, a sífilis) mas possivelmente também outras do foro dermatológico.

Estas unidades de enfermagem para internamento de doentes do morbo gálico seriam das mais antigas que se conhece, o que é tanto mais interessante quanto, na época, "o mal de boubas era tido como doença vergonhosa e inconfessável, e os seus portadores reputados merecedores do castigo de Deus e não da piedade dos homens" (Basto, 1936. 343).

Segundo diversas fontes dos séculos XVI e seguintes, compulsadas e citadas por Lemos (1991), o número de efetivos do pessoal do HRTS foi aumentando, tal como o número de doentes a que ele recorriam, a começar pelos doentes portadores de sífilis (morbo gálico). Assim, ao tempo do andaluz Ruy Diaz d'Ysla, e ainda no reinado de D. Manuel I, havia já dois físicos e dois cirurgiões além de um "mestre que curava o morbo serpentino" e que era o próprio Ruy Diaz (cit. por Lemos, 1991, Vol. I. 133).

Haveria ainda uma casa de doidos (segundo documentos posteriores ao regulamento de 1504), além de um banco de urgência e de instalações privativas para pessoas nobres

Competia ainda ao hospital receber todas as crianças abandonadas da cidade (expostos), que depois eram entregues, até aos três anos, ao cuidado de amas externas. No reinado de D. João III o número anual de expostos já andaria pela centena e meia.

Entre doentes, crianças, peregrinos e mendigos, calcula-se que o hospital teria inicialmente capacidade para alojar mais de 250 pessoas (incluindo o pessoal residente, em número superior a meia centena) . Fala-se mesmo em 400 camas. O movimento anual de doentes rondaria então entre os 2500 e os 3000, sendo já porém insuficiente a sua capacidade hoteleira nos finais do Séc. XVI (Correia, 1984; Neto, 1981). À época do terramoto, o hospitak chegaria a fornece mil refeições diárias.

Apesar dos sucessivos incêndios que o destruíram total ou parcialmente (em 1601, 1750 e 1755), o HRTS foi-se alargando em termos de instalações e equipamentos, sendo referenciada, por volta de meados do Séc. XVIII, a existência de doze enfermarias, cada uma das quais com o nome do seu santo patrono, além da "casa das feridas e convalescentes, casa da anatomia, enfermaria de mulheres feridas e doidas, casa de doidos, casa dos mortos, casa dos banhos ou das tinas" bem como das casas dos cirurgiões do banco (Correia, 1948. 12). Pelo número de enfermarias existentes, calcula-se que, por volta de 1750, o hospital tivesse já mais de meio milhar de camas. Será completamente desativado em 1775, vinte anos depois do terramoto.

Embora no regimento original não se faça nenhuma referência a qualquer sala de operações, bloco operatório ou equivalente, sabe-se que o HRTS foi a primeira 'grande' escola de anatomia e cirurgia da qual se destacaria, entre outros, o nome de Manuel Constâncio (1725-1817).

A administração deste hospital foi da responsabilidade régia até 1530 (ou até 1557, segundo outras fontes). Os provedores eram recrutados entre gente da casa real ou da confiança, pessoal e política, do rei. De 1530 (ou apenas de 1557) a 1564 a sua gestão esteve entregue aos padres da Congregação de S. João Evangelista (ou Lóios), para, finalmente, por carta régia de 1564, passar para as mãos da Misericórdia de Lisboa.

Durante dois séculos, até destruição do HRTS pelo terceiro (e último incêndio, na sequência do terramoto de 1755), a figura do provedor passa a ser designada por enfermeiro-mor (provavelmente uma corruptela do termo irmão-maior). Essa designação chegará até 1974.

No Quadro 1, em anexo, faz-se uma tentativa de reconstituição do seu hipotético quadro do pessoal inicial, de acordo com as disposições do Capº I do regimento ("Titolo de quantos oficiaes ha no esptall e seus mantymentos que ham daver") (Graça, 1994).

"A superioridade e cura das couzas da Igreja" são explicitamente apresentadas pelo outorgante como razões primordiais, pelo menos, no plano político e ideológico,  para dar toda a ênfase, logo no Capº II, ao serviço religioso, cometido a dois capelães residentes e seus "dous moços" (Regimento do HRTS, 1984).

Não se estranhará, por isso, que logo à cabeça do regulamento sejam minuciosamente discriminadas as funções de capelania, a primeira das quais é a de "menistrar a todos os pobres enfermos sãos, e doentes, (...) todos os sacramentos (...) e todas e quaesquer outras couzas necessárias à saúde das almas" (p. 25).

Cuidar das almas e, acessoriamente, cuidar dos corpos dos doentes pobres, é (e continuará) a ser a missão do hospital quinhentista. Aliás, no Capº III (Título do proveador, do esprital, e o regimento e maneira em q hade servir o dito seu officio), é claramente patente a motivação intrinsecamente religiosa (e, naturalmente, política) do poder régio ao fundar o hospital e criar a figura do percursor do hodierno director e/ou  presidente do conselho de administração dos nossos hospitais.

A fundação deste hospital é, sobretudo, uma pia causa. No intróito do regimento, o seu fundador, como príncipe cristão, é descrito como tendo sido "movido com boa intenção, por q os Pobres, e pessoas Miseraveis tivessem algum mais certo Recolhimento, e Remedio de suas necessidades em esta cidade do q nella para elles até então havia".

Daí o pedido de autorização ao papa (quando D. João ainda era príncipe) para que na cidade de Lisboa, "a Principal destes Regnos, e de grande Povo", fosse edificado um "Esprital solemne" que, além do mais, agregaria o património dos pequenos estabelecimentos existentes (cerca de quatro dezenas de hospitais, grande parte deles ligados às confrarias de ofícios e cada um com o seu santo padroeiro). E daí, também, a feliz e sábia designação que foi encontrada, a contento de todos: Hospital Real de Todos os Santos.

Nessa época, Lisboa passa dos 60 mil habitantes (em 1422) para os 85 mil em (1528), atingindo os 100 mil em 1551, dos quais 7 mil seriam estrangeiros residentes ou de passagem (Ferreira, 1981. 464).

Dando resposta às crescentes necessidades de saúde da população, o HRTS conheceu um crescimento exponencial ao longo dos seus 270 anos de existência, não obstante os vários grandes incêndios (que foram seguidos de reconstruções e ampliações): o número de enfermarias / serviços passou de 5 (em 1505), 9 (c. 1550), 19 (c. 1620), 22 (1715), 21 (1755-1758) e 22 (1759-1775) (Pacheco, 2008). 

Aquando do grande incêndio de 1750, no HRTS estariam internados 723 doentes, muito mais do que a capacidade instalada. Vinte e tal anos depois, em outubro de  1774, alguns meses antes da transferència de doentes e serviços para o "novo" Hospital Real de São José, o número de doentes internados em 17 enfermarias seria de  843  (um média de c. de 50 doentes por enfermaria, o que nos parece excessivo) (Alberto et al, 2021).


3. O movimento de concentração hospitalar


Um outro grande hospital da época era o hospital termal das Caldas da Rainha, como já atrás referimos, construído por iniciativa e a expensas da Rainha D. Leonor, mulher de Dom João II e irmã de Dom Manuel I, com início das obras em 1485 e conclusão por volta de 1497. 

Tinha cerca de 120 camas (80 para doentes de ambos os sexos; 20 para o pessoal religioso e pessoas honradas; e mais 20 para peregrinos e pessoal de apoio), além de médico privativo, consulta médica obrigatório, farmácia (botica) e estatuto próprio (Correia, 1981).

De entre os oficiais que deviam reger e governar o novo estabelecimento assistencial, doado pela rainha D. Leonor, destaque-se a figura do almoxarife. Notável é, de facto,  o painel de 13 por 12 azulejos (incompleto, pintado a azul e branco, e datado de 1667-68), que ainda hoje pode ser observado na copa do edifício, e que constitui um exemplar único no nosso país e um documento interessante para a historiografia e museologia hospitalares: "a tábua do almoxarife";

Trata-se de um curioso algoritmo então usado para calcular a quantidade de carne a fornecer aos enfermos, conforme o seu número: "Taboa do (ca)rneiro q se da aos enf(erm)os ao iantar tres quartas a ca hum de resam".

Entretanto, o movimento de concentração dos pequenos hospitais e estabelecimentos similares estende-se a outras cidades e vilas (Évora, Santarém, Estremoz, Beja, Braga, etc.) nas primeiras décadas do Séc. XVI, e inclusive aos territórios de além-mar. O Hospital Real de Goa, por exemplo, irá desempenhar um importante papel na assistência aos milhares de portugueses, soldados, aventureiros, mercadores, missionários e funcionários régios, que aportam à Índia e demais terras do Oriente.

A sua fundação deve-se à iniciativa de Afonso de Albuquerque em 1510, depois da conquista de Malaca (Ferreira, 1990. 121). Em 1520, o seu secretário, António da Fonseca Ormuz, publica o regimento do hospital. A designação de Hospital Real de Goa (ou d’El-Rey) só aparecerá, contudo, mais tarde, em 1542, ano em que passa a ser administrado pela Misericórdia que, além disso, mantinha em Goa, o Hospital dos Pobres.

Em 1565, o orçamento deste hospital era de 1300$000 réis. A sua administração terá sido disputada pela Misericórdia e pela Companhia de Jesus, a avaliar por dois documentos de 1584 e 1591, citados por Ferreira (1990.122). De qualquer modo, nos finais do Séc. XVI, as dificuldades que enfrentava eram muitos, sendo nomeadamente manifesta a sua incapacidade para dar resposta ao número crescente de doentes e a sua insuficiência de meios financeiros. 

Nessa época o vencimento anual do físico era de 57$600 réis, o do cirurgião 43$200 e o da cristaleira 12$000, traduzindo uma clara diferenciação socioprofissional dos praticantes da arte médica.


Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional

CategoriaUnidadeTotalRemune-ração em géneroPerfil
Pessoal dirigente     
Provedor130$00030$000A"Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo"
Almoxarife112$00012$000A"Homem de bem, e de fiança, e bemcriado"
Escrivão112$00012$000A 
Protonotário1??  
Hospitaleiro112$00012$000A+B"Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança"
Hospitaleira1??A+B"Muito diligente, e destra no serviço"
Vedor18$0008$000A+B"Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber"

Sub-total

7 74$000  
Pessoal de capelania     
1º Capelão16$3006$300A+B 
2º Capelão16$0006$000A+B 
Ajudante22$0004$000A+B 

Sub-total

4 16$300  
Pessoal médico e paramédico     
Físico118$00018$000A 
Cirurgião interno112$00012$000A 
Cirurgião externo16$0006$000  
Ajudante  de cirurgião22$0004$000A+B 
Boticário

1

15$00015$000A"Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado"
Ajudante de boticário33$0009$000A+B 
Enfermeiro- mor   (ou chefe)46$00024$000A+B"Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo"
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar)72$00014$000A+B 
Enfermeira-mor (ou chefe)13$0003$000A+B 
Enfermeira  auxiliar12$0002$000A+B 
Barbeiro- sangrador13$0003$000  
Cristaleira13$0003$000A+B 

Total

25 113$000  
Pessoal operário e auxiliar     
Despenseiro16$0006$000A+B 
Cozinheiro16$0006$000A+B 
Ajudante de cozinheiro33$0009$000A+B 
Porteiro14$0004$000A+B 
Costureira14$0004$000A+B 
Lavadeira14$0004$000A+B 
Ajudante de lavadeira1(a)(a)A+B+C 
Atafoneiro1(b)(b)  
Amassadeira1(b)(b)  
Forneira1(b)(b)  
Outros (eventuais)43$00012$000A+B 

Sub-total

16 45$000  
Total geral52 248$300  

Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário


(Continua)

© Luís Graça (1994). Última revisão: 10/8/2024

Observ.: Importante,  para a revisão que estou a fazer,  o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia.
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Nota do editor:

Último posto da série > 14 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25638: Manuscrito(s) (Luís Graça) (251): Pequenas histórias da História com H grande (I): Thomaz de Mello Breyner (1866-1933): diário de um médico da corte na "Belle Époque" (1905/07), que de manhã via as meretrizes no Hospital do Desterro e à tarde a clientela rica no seu consultório privado da rua do Ouro

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25731: Timor-Leste, passado e presente (11): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte III: A vida de um médico de saúde pública, Dili, 1941 d

 

Uma rua de Dili


Baía de Dili


Ponte-cais de Dili


MIssão católia de Lahane


Dili > Hospital Dr. Carvalho > Farmácia e posto médico


Dili > Hospital Dr. Carvalho > Enfermaria de mulheres

Timor (c. 1936-1940)

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné (2024)


1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


 O livro em apreço é um documento importante para se conhecer melhor este período dramático  da história de Timor durante a II Guerra Mundial, em que o território foi invadido e ocupado pelos Aliados (forças anglo-australianas e holandesas, em 17 de dezembro de 1941) e, depois, em resposta às forças aliadas, pelos japoneses, passados dois meses, em 19 de fevereiro de 1942. (Mas os japoneses vieram para ficar até ao final da guerra, perante a impotência de Portugal para fazer valer não só a sua soberania territorial como o seu estatuto de país neutral naquele conflito.)

Tanto quanto sabemos, o dr. José dos Santos Carvalho seria  natural de Armamar e teria nascido na primeira década de 1910, ou princípios da década seguinte.  Foi colocado em Timor, como médico de 2ª classe, em 1940, ezercendo funções de autoridade de saúde.

 Atualizámos a ortografia e a grafia dos topónimos. O livro foi redigido no principio da década de 1970, sendo uma edição da Livraria Portugal Editora, na Rua do Carmo 70  (que já não existe como editora, segundo julgamos),composto e impresso na Gráfica de Lamego, concelho vizinho de Armamar.


A vida de um médico de saúde pública 1941 (**)

por José dos Santos Carvalho


Em meia dúzia de páginas (15-24), o autor conta-nos como era o quotidiano, rotineiro, de um médico no mais longínquo território ultramarino, administrado por Portugal.  

O tom não é crítico, em relação nomeadamente à penúria de recursos e ao isolamento em que se encontravam os poucos funcionários portugueses que ali trabalhavam, e algumas centenas de desterrados, oriundos quer da metrópole quer de Macau, uns por motivos políticos outros por crimes de delito comum: o mais "ilustre" dos deportados políticos era o dr. Carlos Cal Brandão (1906-1973),  um jovem advogado do Porto, que chegaria a Timor em 1931, acusado de "bombista".

Já foi aqui descrita a atribulada viagem (de vários meses, pela rota do Cabo) do nosso médico para chegar, no final do ano de 1940, e começar no ano seguinte a exercer as suas funções (deve ter sido em meados de 1940 que ele foi colocado   em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial"). 

(i) Ficamos logo a conhecer o corpo clínico do  território (4 médicos!), que o esperava à sua chegada, em 29 de dezembro de 1940:

  • o chefe da repartição de saúde, dr. Alves de Moura;
  • o dr. Correia Teles e sua esposa, a dra. Elvira; 
  • o dr. Arriarte Pedroso; 
  • o dr. Francisco Rodrigues.

(...) Desembarcando na ponte-cais de Díli, todos os médicos de Timor aí se encontravam para me receberem (...)-

(...) [O dr. Francisco Rodrigues],  delegado de saúde da zona leste, havia-se deslocado de Baucau a Díli, por essa ocasião. O Dr. Arriarte Pedroso era delegado de saúde da zona oeste, mas residia em Díli, o que lhe era permitido por dispor de um automóvel que o levava rapidamente à sua área de acção.

(ii) O atraso, o isolamento e o subdesenvolvimento de Timor eram de tal ordem que só havia, em Dili, a capital, um único "hotelzinho":

(...) Fiquei hospedado no hotel do deportado sr. Costa Alves,
único que então havia em Díli, muito modesto mas asseado e
relativamente confortável.


(iii) Seguem-se no dia seguinte os cumprimentos da praxe às autoridades, e logo ali passa a admirar, incondicionalmente, a figura do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho (Porto, 1893 - Lisboa, 1968), oficial de infantaria e administrador colonial, que teve de lidar com a terrível situação da invasão e ocupação de Timor por forças estrangeiras.

(...) Na manhã do dia seguinte fui fazer a minha apresentação à direção de administração civil onde o intendente Sousa Franklin me conduziu ao chefe do gabinete do governador, o capitão Manuel do Nascimento Vieira que, imediatamente, me levou à presença do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho.

Figura desempenada de militar de carreira impecavelmente
fardado de branco, profundamente me impressionou o seu porte de natural distinção,  aliado à evidente amabilidade e compreensão com que acolheu o médico novato no meio colonial, convidando-o a ir jantar à sua residência, num dos dias seguintes.

(v) Ficamos a saber qual era a agenda do autor para os próximos seis meses:  seria o delegado de saúde da zona central da ilha (com sede em Díli e abrangendo o concelho deste nome, a circunscrição de Aileu, o posto administrativo da ilha de  Ataúro e o território do enclave de Oecussi).

(...) Como o dr. Alves de Moura estava de partida para a metrópole, em gozo de licença graciosa, o dr. Correia Teles deixaria a delegacia de saúde da zona central e passaria a chefe da repartição de saúde. 

 
(vi) Para a passagem de ano o nosso médico  foi convidado para os
 dois únicos clubes que existiam, e que tinham de chamar-se, tal como na Guiné desse tempo, Sporting, um, e Benfica, o outro. A escassa elite colonial esteve lá, nestas festas de passagem de ano.
  
(...) Assim, como todos os meus colegas e quase toda a sociedade (sic) de Díli, passei essa noite alternadamente numa ou noutra dessas associações, em ambiente de grande animação e alegria, marcadamente familiar mas cheio de dignidade e simpatia.

Estiveram presentes às festas as pessoas mais gradas da terra, todas acompanhadas da sua família: o Governador, o
dr. Juiz de direito 
[José  Nepomuceno Afonso dos Santos, pai do Zeca Afonso], o dr. delegado do procurador da república, o engenheiro José de Azevedo Noura (sic), diretor das obras públicas, o diretor das alfândegas Monteiro do Amaral, o diretor dos correios Fortunato Mourão, o dr. Tarroso Gomes, o dr. Cal Brandão, o senhor Jaime de Carvalho, etc, etc.




Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp.  Cortesia de Internet Archive.


(vii) Ficamos a saber que havia alguns automóveis na ilha mas que no interior montanhoso, eram de pouco valia,  daí o recurso ao transporte a cavalo. Fala-se tétum no mercado ("bazar"). E é em Lahane, numa encosta sobranceira a Dili, que residem as principais figuras públicas: 

(...) No dia 2 de Janeiro de 1941 iniciei as minhas funções oficiais. Manhã cedo, o dr. Correia Teles foi-me buscar ao hotel com o seu automóvel e saímos da cidade atravessando uma pequena planície onde, perto da estrada, se encontrava em plena atividade o «bazar», isto é, o mercado. 

Senhoras europeias passavam por entre os vendedores de fruta, hortaliça, galinhas, etc, combinando com eles, em tétum, o preço das suas compras.

Passados cerca de dois quilómetros após Díli, começámos
a subir, já na encosta da montanha e logo encontrámos o lugar
de Lahane onde estavam instaladas a missão (um pouco fora
da povoação) e a missão geográfica e tinham a sua residência
o chefe do gabinete do governador, o dr. Juiz, o dr. Francisco
Rodrigues, o director dos correios e outros funcionários.


(viii) Descreve-nos depois o modesto hospital colonial Dr. Carvalho, situado a escassas centenas de metros do "palácio do governador", e que será severamente danificado pelos bombardeamentos japoneses, um ano depois: 
 
(...) Um vasto e bem delineado pavilhão, solidamente construído
de pedra e cal, era o núcleo das várias edificações que o com-
punham. Nele estavam instaladas enfermarias para homens,
quartos de 1ª e 2ª classe, as salas de operações e de tratamentos, a secretaria, etc.

Paralelamente ao pavilhão principal estendiam-se as instalações anexas: cozinha, despensa, arrecadação de géneros, casas de banho e instalações sanitárias.

Próximo do pavilhão principal encontrava-se a casa mortuária, sólida construção em cimento armado.

Para o outro lado do pavilhão principal, em relação à casa
mortuária, existiam um grande pavilhão de madeira e zinco,
utilizado como enfermaria de mulheres e maternidade e outro pavilhão semelhante destinado a doentes indigentes.

Cerca de cem metros mais além, estava a residência do chefe de repartição de saúde e director do hospital.

Colocado em plano mais baixo que o do pavilhão principal
havia um grande edifício de pedra e cal em construção próxima da conclusão (pois já tinha a cobertura e várias portas e janelas), que se destinava a pavilhão de doenças infecciosas. (...)

(ix) Fica-se a saber também que o hospital tinha a sua própria "farmácia do estado" (ou botica, artesanal), a cargo do farmacêutico de 1ª classe, capitão miliciano Mário Artur Borges de Oliveira...  "Semestralmente" (sic), eram fornecidos por Lisboa "os medicamentos, material de penso e cirúrgico, etc. requisitados pela farmácia, os quais se depositavam na grande cave que existe sob o pavilhão central do hospital".

(...) Nesta minha primeira visita aos serviços de saúde fiquei
a saber que a preparação e distribuição de medicamentos para
o hospital e para as enfermarias e ambulâncias das delegacias
competiam à farmácia do estado situada em Díli no mesmo edifício em que funcionava o posto médico, sendo assim designado um posto de consultas e tratamentos para servir a população da cidade em regime ambulatório, dirigido por um dos médicos do Estado que, por isso, recebia a gratificação mensal de cinquenta patacas. (...)

 

(x) Uma nota sobre o seu jantar "à mesa do Estado", ou seja, na casa do governador:

(...) No dia seguinte a este meu primeiro contacto com o serviço público fui jantar à residência do governador, conforme o seu referido convite, sendo recebido com extremos de gentileza e distinção pelo Governador, sua esposa, senhora D. Cora e suas três filhas, alunas do liceu de Díli.

Participou também da refeição, com a sua família, o tenente Francisco José Alves que era cunhado e secretário do governador, e em cuja residência também vivia. Outro convidado foi o chefe de posto Torresão, primo da esposa do governador e meu companheiro de viagem.

(xi) Havia tempo, na colónia, para a prática, então muito "British", do ténis; ao domingo, depois da missa, as famílias iam à praia da baía de Dili:

(...) Durante este jantar surgiu a organização do grupo de jovens que nas tardes das quarta-feiras e sábados, se divertia, jogando ténis, dando passeios a cavalo, jogando o bridge ou, frequentemente, jogando o deck-tennis no pátio da Missão Geográfica onde o coronel Castilho e o engenheiro Canto nos recebiam com toda a benevolência e aprazimento, participando, este último, de muitas das nossas diversões.

Aos domingos, de manhã, após a missa, o ponto de encontro era na praia de Díli onde se passavm agradabilíssimas horas de salutar exercício e distração.

à noite, depois do jantar, havia sempre reunião no Sporting
ou no Benfica, conversando-se ou jogando-se o bridge, pingue-pongue, xadrez, etc, mas sem prolongar o serão pois todos começavam o trabalho de manhã, muito cedo. 


 (xii) Um dia típico de trabalho do dr. José dos Santos Carvalho, autoridade de saúde com funções também de médico-veterinário:

(...) Pelas oito horas da manhã vinha o árabe Abdula buscar-me ao hotel com o táxi de que era chauffeur. Seguíamos para o matadouro municipal, situado em Motael, próximo do farol de Díli, onde eu fazia a inspecção sanitária da carne dos animais abatidos para consumo público, pois Timor não dispunha de médico-veterinário.

Inspeccionada a carne, seguíamos pela estrada que contornava a planura de Díli, para o hospital onde, agora, eu tinha doentes de duas enfermarias a tratar. O meu trabalho ficava concluído cerca de meio-dia e o mesmo táxi me trazia de volta ao hotel. 


(xiii) Como era normal nas colónias, os hospitais eram, para os jovens médicos, uma verdadeira escola pelos casos de doenças, tropicais, infecto-contagiosas com que tinham de lidar, em geral pela primeira vez:

(...) No hospital Dr. Carvalho tive oportunidade de observar casos de doenças exóticas que nunca pudera estudar senão nos livros.

Eram muito frequentes os casos de boubas, uma doença aparentada com a sífilis e que se manifesta pelo aparecimento de tumefacções com o aspecto de toucinho, húmidas e repugnantes.

Felizmente que em Timor esta doença já era, então, facilmente tratada, pois o farmacêutico Oliveira tinha estudado e posto em prática técnicas simplicíssimas de preparar uma suspensão de salicilato de bismuto em óleo de amendoim, a 10%, que se esterilizava pela fervura e que se guardava em garrafas vulgares, também esterilizadas pela fervura. 

Todos os enfermeiros sabiam preparar esta suspensão oleosa que se aplicava em injecções intramusculares, indolores, e que a prática demonstrava não serem mais atreitas a infecções que as das ampolas injectáveis!

Grande surpresa para mim foi o aspecto que nesta terra apresenta a sarna que, quando não tratada, alastra de uma aneira incrível, complicada com lesões impetiginosas que devoram a pele dos doentes e muitas vezes os matam devido a septicémias !

Vulgaríssimos em Timor eram o paludismo, frequentemente de forma perniciosa, e a disenteria bacilar, quase sempre ocasionada pela utilização de fruta não madura, sobretudo mangas verdes, de que os timorenses são muito gulosos.

(xiv) Era uma "pasmaceira", a vida de um médico em Timor em 1941, trabalhando-se em geral apenas de manhã, que o clima (tropical) era violento para u, europeu. 

(...) Os meus serviços clínicos, à tarde, limitavam-se a idas ao
hospital quando, por urgência, era avisado telefonicamente
para aí me apresentar para colaborar em operações cirúrgicas
ou tratar casos urgentes ou quando havia nas enfermarias doentes graves que necessitavam assistência muito frequente.

(xv) Sobrava-lhe tempo tempo para "conhecer Díli, que então era uma simpática e característica cidadezinha, do tamanho duma vila da metrópole, ensombrada por frondosas árvores, algumas das quais seculares, e dominada pelas alterosas torres da sé-catedral"... 

Uma cidadezinha, acrescente,-se, que não seria diferente de algumas da povoações da Guiné desse tempo (ou que conhecemos, vinte e tal anos depois com a "guerra colonial"): Bolama, Bissau, Bafatá, Nova Lamego... Timor e Guiné tinham em comum o facto de terem energia elétrica pública...

(...) As suas ruas rectilíneas cruzavam-se em xadrez e eram mantidas em conveniente limpeza pelo município. A maioria das edificações era construída de madeira e barro, sendo cobertas com telhados de folha de ferro zincado. Dispunham dum só piso, para poderem suportar sem graves danos os tremores de terra que por estas regiões são muito frequentes, atingindo, por vezes, grande violência.

Destinadas, quase todas a estabelecimento comercial e à habitação dos proprietários eram, em regra, pertença de chineses, havendo, somente, um negociante indiano, o muito conhecido Wadoomahl. Duas casas comerciais se destacavam, de longe, em Díli. A da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho e a da família chinesa Mie-Hap.

No melhor edifício particular da cidade, construído de cimento armado e colocado em situação esplêndida na avenida marginal da baía de Díli, vivia o alemão sr. Max Sander, representante duma companhia, a Ásia Investment Company que se havia estabelecido na ilha com o fim de explorar minérios, mas que nunca chegara a desenvolver essa actividade, apesar de ter praticado extenso trabalho de prospecção e instalado um completo laboratório químico.

Na avenida marginal eneontravam-se os principais edifícios
da cidade (o palácio do governo, o liceu Vieira Machado, a casa da alfândega, o colégio das irmãs canossianas, a escola chinesa, a sede da Ásia Investment Company, etc.) e um lindo jardim dentro do qual estavam, situados dois cortes de ténis de piso em betão para poderem ser utilizados na época das chuvas.


(xvi) O autor dá-nos conta também da sua visita à missão geográfica de Timor, instalada em Lahane, e onde viviam "os então já meus amigos, coronel Castilho e engenheiro Canto".

(...) Mostraram-me as suas instalações e descreveram-me as actividades da Missão. Já tinham feito uma campanha, um ano antes e, agora, prosseguiam-na. Estava concluída a triangulação da ilha e, em breve, seguiriam para o seu interior com  fim da elaboração da sua carta, em escala conveniente. Eram auxiliados nos seus trabalhos geodésicos pelo sargento-radiotelegrafista da marinha, Luís de Sousa, pelo deportado sr. Granadeiro e por vários empregados permanentes, timorenses, muito activos e eficientes.

(xvii)  E, claro, não podia faltar uma visita à missão católica:

(...) Outra minha visita foi à missão de Lahane onde o reverendo vigário-geral, padre Jaime Goulart me recebeu com extremos de cortesia e fidalga amabilidade.

A missão central de Timor estava instalada num edifício de madeira e zinco, com primeiro andar, bastante amplo e confortável, dispondo de capela privativa. Em conversa com o padre Jaime fiquei a saber que os sacerdotes de Timor eram formados no seminário de Macau, sendo oriundos do norte da metrópole, dos Açores, da Índia Portuguesa e de Timor.


 (xviii) Vamos agora conhecer o interior da ilha, pela mão do dr. José dos Santos Carvalho:

(...) Assim, logo de início me resolvi a deslocar-me às ambulâncias da área a meu cargo para tomar contacto e conhecimento objectivo dos respectivos serviços.

A primeira visita que fiz foi de automóvel, ladeando a maravilhosa baía de Tíbar e alcançando Liquiçá, Maubara e Bazar-Tete onde fui acolhido pelos respectivos chefes de posto e enfermeiros.

Poucos dias passados desloquei-me à circunscrição de Aileu, sendo a viagem feita quase toda a cavalo pois o automóvel só podia levar-me até à ribeira de Cômoro, ainda bastante longe da sede da circunscrição.

 (...) Chegados à Cômoro, aí encontrámos os cavalos que, emprestados pelo liurai da região, foram aparelhados com os arreios, isto é, selim com estribos, freio e rédeas, que levávamos no carro, pois os timorenses montam em pelo, guiando o cavalo com uma corda que lhe passa na boca.

Recebidos fidalgamente em Aileu pelo administrador Virgílio Castilho Duarte, natural de Cabo Verde, passámos um dia e uma noite na sua residência que, tal como a de outras autoridades de Timor, era cercada por muros ameados, sendo designada, nesta terra, como a «tranqueira».

(xix) Timor continuava, nessa época (1941), a ser terra de encarceramento e de desterro:

(...) Em Aileu, visitei a enfermaria regional e o presídio que, como a "tranqueira", dispunha de um pátio rodeado de muros. Os condenados reunidos neste estabelecimento prisional, eram oriundos, não só de Timor como de outras terras portuguesas, donde tinham vindo cumprir as suas penas de degredo. A maior parte dos condenados era de macaenses ou chineses de Macau.

A etapa seguinte foi até Maubisse onde pernoitámos em casa do chefe de posto sr. Ademar Rodrigues dos Santos, prote-gidos do frio que nestas regiões de altitude se faz nitidamente sentir, por espessos cobertores de lã.

No dia imediato cavalgámos em longa jornada até Same onde ficámos instalados na residência do chefe de posto sr. Francisco Mouzinho.

 
(...) Noutro dia, visitei a ambulância de Laulara, situada num
píncaro não longe de Díli, que só era acessível a pé ou a cavalo,
tendo passado e visitado o colégio de Dare onde as irmãs canosianas instruíam e educavam muitas dezenas de meninas.

Utilizando a ambulância do hospital Dr. Carvalho, fui, um outro dia, visitar a enfermaria do Remexio tendo ocasião de aí conhecer o respeitável liurai coronel D. Moisés, majestosa e nobre figura de timorense, com veneráveis cabelo e barba encanecidos.

(...) Aproveitei, então, o amável convite do dr. Arriarte Pedroso
para, no seu automóvel e em sua companhia visitar as povoações da Ermera e Hátu-Lia, terras de altitude razoável, de temperatura agradabilíssima, onde reina a «Primavera eterna» de Teófilo Duarte e a paisagem é paradisíaca.

(xx) De regresso a Díli, vem agradavelmemte reconhecido por este primeiro contacto com "um povo simples, amável e trabalhador". Faltava-lhe conhecer a ilha de Ataúro e o enclave de Oecússi, só acessíveis de barco.

(...) Em certo dia, o administrador do concelho de Díli, sr. ourenço de Oliveira Aguilar, comunicou-me que iria visitar a ilha de Ataúro e convidou-me a acompanhá-lo, visto eu ser o delegado de saúde.

Assim, seguimos no vapor Oé-Kússi, comandado pelo primeiro-sargento da Marinha, sr. Correia.

Pomos recebidos pelo chefe do posto de Macadade, sr. Napoleão, sargento de infantaria, e tivemos ocasião de observar s curiosíssimos costumes primitivos desse povo de simpáticos e acolhedores pescadores submarinos.


(xxi)  Faltava-lhe também ainda conhecer (e exercer) uma das suas funções, a de autoridade sanitária internacional (fiscalização das embarcações e aviões que passavam por Díli):

(...) Num dado dia, o capitão dos portos de Timor, comandante César Gomes Barbosa, natural de Cabo Verde, telefonou-me a participar-me que estava a chegar ao cais um naviozinho que já tinha arvorado a bandeira amarela a pedir a necessária visita sanitária.

Dirigi-me, imediatamente, para o local designado onde aportara um elegantíssimo veleiro em cujo convés se via um único tripulante, em calções e de tronco nu.

Por esses tempos eram muito conhecidas, pelos jornas, as viagens do navegador solitário Alain Gerbault 
 [1893-1941],  francês que num iate, o Firecrest,  se havia celebrizado por ter atravessado, sem escala e sozinho, o Atlântico, desde a França a Nova Iorque e, depois, vagueava solitário pelos mares do mundo.

Por isso, quando subi ao convés do barco, dirigi-me ao comandante e único tripulante, dizendo-lhe, em francês: "O senhor é um novo Alain Gerbault!" 

O meu interlocutor, sorrindo, apresentou-me então a carta de saúde para eu assinar. O navio era... o Firecrest !.

Alain Gerbault, certamente para evitar os azares da guerra ficou ancorado no porto de Díli, vivendo no seu barco. Assim, tive oportunidade de com ele várias vezes contactar e de apreciar as suas extraordinárias qualidades de homem finamente educado e invulgarmente culto e, sobretudo, de me maravilhar com a sua extrema perícia em jogar o ténis, ele que fora, mais de uma vez, concorrente aos campeonatos de Wimbledon !

(xxiii) Mas já havia petróleo, japoneses e até alemães na ilha:


(...) Por esse tempo, o sr. Kuróki, cônsul do Japão em Díli,
deu uma festa no Sporting, para a qual convidou as personalidades de maior projecção no meio social da cidade. 

Deste modo tomei contacto, pela primeira vez, com essa gente. Desfaziam-se em mesuras e mostravam-se amabilíssimos procurando, certamente, agradar. Porém, evidentemente, não enganavam nenhum dos portugueses presentes. Com excepção do cônsul e do chanceler do consulado, os súbditos nipónicos que se encontravam em Timor trabalhando na Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho eram, provavelmente, espiões e, alguns deles, pelo menos, militares, pois os seus gestos os traiam. 

Em breve soube que o governador os mandava vigiar atentamente e somente lhes permitia as viagens indispensáveis, pois as suas actividades os haviam tornado suspeitos além de que, sem razão plausível, do Japão mandavam frequentemente novos homens a substituir os que se encontravam em Timor, pois não lhes era n permitido aumentarem o seu número.

(...) Na festa do consulado japonês encontrei, também, o australiano, velho colono de Timor Arthur Brian e os dois técnicos da QANTAS, srs. David Ross e Robert Smith que já conhecia das partidas de ténis e que, também, eram com toda a evidência, militares disfarçados.  

(...) Há muito tempo que em Timor tinha sido encontrado petróleo. Uma companhia estrangeira, a Allied Mining Timor Corporation havia feito furos de prospecção que mandara obturar assim que encontravam petróleo, explicando essa determinação pela não existência de depósitos economicamente exploráveis !

Num dado dia chegou a Díli o engenheiro Veiga Lima, nrepresentante duma companhia portuguesa recém-formada, a Companhia Ultramarina de Petróleos, afirmando que os trabalhos necessários iriam imediatamente começar. A verdade é que, logo a seguir, ela apareceu associada a uma nova companhia, holandesa, regressando o referido engenheiro a Portugal e sendo substituído pelo engenheiro-geólogo Brower, de nacionalidade holandesa, que com ele tinha vindo para Timor.

Teve este último engenheiro todas as facilidades para fazer os estudos topográficos necessários para a investigação da existência de petróleo em Timor, pois a carta da colónia feita por fotogrametria interessava, também, para complemento daquela que a Missão Geográfica estava a ultimar.

Assim, foi o piloto holandês do avião da carreira para Koepang que tirou as fotografias sucessivas que, vistas através duma lente binocular davam a sensação do relevo duma maneira flagrante e pude apreciar na Missão Geográfica onde eram revelados os filmes e depositadas todas as provas, conforme o exigido pelo governo de Timor.

Por esse tempo, os japoneses conseguiram autorização
[de Lisboa, não do governador local], para estabelecerem uma carreira de hidroaviões entre Tóquio e Díli, com escala pela ilha de Palau, que não tinha qualquer justificação económica razoável, pois não havia comércio com o Japão e de Palau a Díli os grandes hidroaviões da carreira demoraram, em voos experimentais, nove horas! 

 Assim, obtiveram oportunidade de alargar substancialmente o número dos seus técnicos residentes em Timor, pois as infraestruturas de apoio necessárias ao hidroaviões requeriam a presença inadiável de pessoal competente em mecânica e radiotransmissão.


(xxiv) E eis que chegam, em meados do ano de 1941, novos portugueses, incluindo o capitão Freire Costa:

(...) Já perto do meado do ano, chegou a Díli o novo director da administração civil, intendente dr. João Ferreira Taborda (...). No mesmo barco vieram para Timor o comandante da companhia de caçadores, capitão Freire da Costa e o administrador António Policarpo de Sousa Santos, funcionário do quadro privativo da colónia, que foi colocado em Bobonaro (...).

Entretanto, passaram-se os seis meses do meu estágio de édico que iniciava a carreira em meio colonial, pelo que fui nomeado delegado de saúde da zona leste, em fins de julho de 1941,seguindo para Baucau, a florescente Vila Salazar, no vapor Oé-Kússi. (...)


Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 15/24

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, títuoo, parêntses retos, itálicos  e negritos: LG) 
___________

Notaa do editor:



(**)  "O Hospital Civil e Militar Dr Carvalho foi projectado em 1892 pela Direcção de Obras Públicas do Distrito de Timor, sendo então governador Cipriano Forjaz (1890-1894). 

A proposta da sua construção foi feita ao Ministério da Marinha e dos Territórios Ultramarinos por Custódio de Borja, governador de Macau (1890-1894), a quem estava sujeito o governador de Timor, para substituir o Hospital Militar de Díli, erguido no década de 1870, cuja condição precária não lhe permitia prestar cuidados de saúde adequados à população local. 

Situado em Lahane, nos subúrbios da capital, conhecido pelo seu clima saudável, a construção do complexo hospitalar, que incluía também alojamento para funcionários, foi iniciada durante o governo de Celestino da Silva. Financiadas com recursos locais, as obras demoraram vários anos e o hospital foi finalmente inaugurado em 1906. 

Inicialmente nomeado em homenagem a D. Carlos I, passou a chamar-se Hospital Dr Carvalho após a implantação da República, em homenagem ao Dr. Tomás de Carvalho, que foi o primeiro representante da Província de Macau e Timor na Câmara dos Deputados (Parlamento) em Lisboa. 

A sua planta foi inspirada no modelo tipológico dos sanatórios de montanha então em voga na Europa no século XIX. Tem a estrutura de um pavilhão e assenta num pequeno planalto. Está alinhado com as curvas da encosta, correspondendo seu traçado aos principais serviços hospitalares. Está dividido em módulos autónomos de diferentes níveis para funções auxiliares e serviços de apoio hospitalar. O próprio hospital apresenta uma organização alinhada, com uma galeria de cada lado do corpo central na fachada principal conferindo ao conjunto um desenho simétrico, sendo o eixo realçado por um pequeno frontão curvo. 

O hospital de Lahane, o único em Timor até meados da década de 1930, altura em que se iniciou a construção de um novo em Liquiçá, foi  constantemente melhorado com novas valências. Ali foi inaugurada uma escola de enfermagem em 1920 e uma unidade para isolamento de doentes  com tuberculose foi construída na década seguinte. 

Após a invasão japonesa de Timor em 1942, as forças de ocupação assumiram o controlo do hospital até serem expulsas pelas tropas aliadas três anos mais tarde, mas o bombardeamento resultante deixou o edifício gravemente danificado.

Restaurado após a guerra, forma feitas  vários melhoramentos. Contígua ao edifício principal foi construída uma maternidade e criados um bloco operatório, uma enfermaria pediátrica e um laboratório clínico.

 Esta intervenção privou o hospital da sua traça original, pois foi retirado o frontão curvo, eliminando assim a simetria do edifício e abrindo a galeria a todo o comprimento do edifício. Isto privou o edifício do seu aspecto latino e o hospital assumiu o aspecto de um edifício colonial de origem britânica, segundo modelos utilizados principalmente na Índia e na Austrália por aquela potência".

Edmundo Alves | Fernando Bagulho

Fonte: trad. e adapt. de HIPP - Património de Influência Portuguesa > Dr. Carvalho Hospital  > Dili, Timor > Equipamentos e Infraestrturas (em inglês)

(**) Segundo a Wikipedia, em francês, Gerbault morreu em 16 de dezembro de 1941, em Díli, Timor Leste, de malária, abandonado, e na mais completa miséria. Valeu-lhe a solidariedade dos portugueses, incluindo o governador Manuel Abreu Ferreira de Carvalho.