segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19253: Notas de leitura (1127): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
Contrariando a opinião de outros investigadores, incluindo René Pélissier, Joshua Forrest entende que todo o período de pacificação e ocupação não permite admitir que a potência colonial tenha ficado numa posição dominante e altamente interventiva nas sociedades rurais - estas, segundo ele, continuaram à margem, refutando os impostos, mantendo o seu próprio comércio, rivalidades e formas de cooperação multiétnicas. Os representantes da administração eram escassas centenas, tirando a CUF e a Casa Gouveia os outros interesses económicos eram assumidos por ponteiros e madeireiros, obrigados a estabelecer relações cuidadas com as populações locais. A administração colonial portuguesa manifestou-se frágil como o Estado pós-colonial continuará a manifestar-se frágil.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau:
O Estado é frágil, as sociedades rurais são a alma da nação (4)

Beja Santos

A I República foi confrontada com as repetidas sublevações das diferentes etnias guineenses, basta recordar o grau de intensidade a que estas se manifestaram entre 1890 e 1909. É neste momento que se decide, custe o que custar, a que o governo de Bolama estenda a sua autoridade fora das praças e presídios e que toda a região se torne segura, obediente e que os nativos paguem impostos. Foi encontrado um oficial experimentado, o Capitão João Teixeira Pinto que, antes de mais, quis conhecer o mato rebelde. Encontrou em Vasco Calvet de Magalhães um aliado extraordinário, arranjou-lhe auxiliares fulas e apresentou-o ao mercenário senegalês Abdul Indjai, em Bafatá. Teixeira Pinto apercebeu-se que Indjai estava à frente de um grupo bem preparado de mercenários, quase todos eles equipados com espingardas de cinco tiros.

A campanha inicia-se no Oio, os povos locais mantinham-se intransigentes, recusando a tributação e não aceitando as ordens de Bissorã. Teixeira Pinto põe-se à frente dos seus auxiliares e confronta-se com os Balantas, de finais de Março a princípios de Abril. Os Oincas atacam Bissorã e é nesse momento que entra em ação o corpo de mercenários de Abdul Indjai. São destruições sem conta, por onde passam incendeiam, pilham e trazem escravos. Em Junho o Norte do Oio rende-se. No fim do ano de 1913 foi morto um oficial português na região de Cacheu. Segue-se uma expedição violentíssima contra os Manjacos de Pelundo, Basserel e Churo, não faltarão destruições e massacres. Um pouco como um castelo de cartas, a resistência é sufocada ou apaziguada. E Teixeira Pinto, sentindo que o Oio, Cacheu e Mansoa já não oferecem luta precipita-se sobre a península de Bissau, bombardeia Nhacra, entra em Antula, Intim e Bandim. Os principais fulcros da sublevação foram estancados, as operações na região do Cacheu, S. Domingos, Farim, Oio, Mansoa, Geba e Porto Gole trouxeram o compromisso de que as populações iriam pagar a tributação. O grande rei Manjaco de Basserel viu o seu território reduzido e os Papéis da região de Bissau viram igualmente a sua estrutura quebrada.

Mas graves problemas vão subsistir: em Canhambaque haverá rendição em 1918, mas será fogo de pouca dura; e a autonomia de Indjai, que passa a ser o senhor do Oio e do Cuor, salda-se num período de terror, que obrigará Bolama a decretar uma expedição sangrenta e que culminará com o exílio de Indjai em Cabo Verde. Ficarão bolsas de resistência que irão sendo temporariamente silenciadas. Graças à tributação, mesmo com altos e baixos, a administração entra no interior do território. Joshua Forrest insiste de que comunidades rurais aceitaram superficialmente acatar o poder colonial, não dispõem de capacidade perante o armamento do exército e da armada portuguesa. Mantém-se uma resistência ao pagamento da tributação e as lutas em Canhambaque prolongar-se-ão em 1925 até terem o seu termo no período de 1935 e 1936. Haverá sublevação em Nhacra em 1924 e o autor repertoria hostilidades em Bolama, Farim, Gabu e permanentes estados de revolta dos Balantas, como aconteceu em Maio de 1944, em Catió. Na década de 1930, houve que sufocar as resistências dos Felupes em Suzana-Jufunco. O Capitão Velez Caroço entrou em Suzana em 1 de Novembro de 1933, destruiu tudo e dois dias depois Jufunco. O tratamento dos resistentes é implacável. O autor observa que são décadas de uma palpável não-aceitação da soberania portuguesa. Mesmo os Fulas e os Beafadas nem sempre foram completamente fiéis à potência colonial, exigiam melhores pagamentos pela sua prestação ao lado das dezenas ou centenas de soldados regulares. Também considerando o que se passou nas sociedades rurais durante estas décadas do século XX, o autor mostra casos de rejeição de chefes impostos pelas autoridades portuguesas, uma vincada manutenção das práticas animistas, caso dos Manjacos, e a manutenção de políticas de relação entre etnias para a vida em assentamentos. Ganhou normalidade a criação de povoações com diferentes etnias, mesmo mantendo as tabancas separadas: esta situação ganhou total visibilidade até ao início da luta armada, Manjacos, Beafadas, Fulas, Mandingas, Balantas, entre outros, aceitaram viver uns ao pé dos outros, cultivando a terra em áreas separadas. O autor mostra o caráter multiétnico da região do Cacheu e cita António Carreira que ali foi administrador, ele registou o bom relacionamento entre Papéis, Balantas, Cassangas, Banhuns e Brames, mas também Manjacos aderiram a viver em comum com as outras etnias, não haverá mesmo conflito com os islamizados, as práticas animistas de uns e dos islamizados por outro lado serão acatadas. Mas tornou-se indiscutível que eram os grupos animistas que ofereciam mais resistência na Guiné, os Fulas e os Beafadas eram mais cooperantes com as autoridades coloniais e num campo de certa indecisão estavam os Mandingas.

Analisando a essência do Estado colonial, Joshua Forrest recorda que o grande atrito passava pelos impostos e pela inexistência de grandes grupos económicos, eram as comunidades rurais as detentoras da terra, eram eles que escolhiam os termos da exportação, nomeadamente o amendoim. O comércio transfronteiriço passava à margem do controlo alfandegário, os guineenses atravessavam a fronteira senegalesa, comerciavam com djilas ou faziam trabalho temporário tanto no Senegal como na Guiné Francesa.

O sistema administrativo era deficiente e corrupto, refere o autor. Na década de 1930 havia na Guiné um total de 359 funcionários, mas os próprios relatórios dos governadores referiam uma quase paralisia por falta de dinheiro, daí a falta de produtividade e a bancarrota moral do funcionalismo. O autor é minucioso na apresentação de dados sobre a recolha da tributação e o trabalho forçado. E diz que o Estado colonial era de uma enorme fraqueza, uma tal fragilidade que impedia uma presença constante nas sociedades rurais, deixando-as autónomas.
No próximo texto far-se-á referência à mobilização multiétnica destas sociedades rurais tanto no período da luta armada como depois no Estado pós-colonial.

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 30 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19246: Notas de leitura (1126): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (62) (Mário Beja Santos)

domingo, 2 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19252: Blogpoesia (597): "O render da Companhia...", "As carências" e "Magnos retrocessos...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


O render da Companhia...

Hora feliz da rendição.
No Cachil em guerra.
Duzentos presos em liberdade.
Era o fim.
À frente a mata.
Tanta incerteza,
Com o inimigo à espreita
E sem fim à vista.
Tanta hora de medo,
Nervos em franja,
Arriscando a vida.
Não há quem resista.
Até que, um dia,
No segredo dos deuses,
Chega uma LDM,
Com gente fresca.
Para a rendição...
Ó alvoroço!
Foi uma festa.
Pegámos nas trouxas,
Para Catió,
Outro mundo,
Terra com gente.
Cafés e lojas,
Uma igrejinha branca,
Muitas cubatas,
Tantas famílias.
Vivendo a vida.
Parecia o céu...

Berlim, 27 de Novembro de 2016
10h35m
JLMG


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As carências

Nosso motor de propulsão.
Sem elas se ficaria apático e sem sentido.
Duas fontes.
Do corpo e da alma.
A fome a sede.
O calor, a dor e o frio.
Sempre a gritar, até morrerem.
Para muitos, a razão da luta.
Bem piores são as da alma:
A solidão.
A indiferença.
O esquecimento.
A ingratidão.
A injustiça.
Vêm de fora.
Dependem da sorte.
De quem vai connosco.
Não está à mão o seu remédio.
Quantas vezes é inglória a sua luta.
Só uma ideia-força.
Uma crença sólida nos dão paz
E o sentido à vida...

Bar Edeka, em Berlim, 1 de Dezembro de 2018
16h6m
JLMG

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Magnos retrocessos…

Magnos retrocessos na senda da cultura ocidental a partir do século XX.
Quando o homem chegou à lua e passou a velocidade supersónica.
Se ligou a humanidade por emaranhadas redes sociais.
O que se passa aqui chega logo a todo o lado.
Se alcançaram métodos de perscrutar nosso organismo sem verter uma gota de sangue.
E o computador quase ultrapassa o cérebro humano.
E, depois destas maravilhas, o mundo inteiro vive em guerra permanente e sanguinária
E a riqueza deste mundo está nas garras de meia dúzia de famílias.
Enquanto mais de metade da humanidade passa fome de pão e de justiça…

Berlim, 1 de Dezembro de 2018
9h45m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19230: Blogpoesia (596): "Nossa terra, nosso País", "Negra e só nas terras d'África..." e "Sé de Lisboa", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19251: Parabéns a você (1533): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art das CART 2771 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19248: Parabéns a você (1532): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

sábado, 1 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19250: Os nossos seres, saberes e lazeres (295): Viagem à Holanda acima das águas (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
De há muito que o viandante ambicionava ver a Holanda noutra perspetiva: conhecer a vida de uma pequena cidade, saborear a viagem pelos canais, conhecer a Sinagoga Portuguesa de Amesterdão, visitar o Rijksmuseum depois das obras, há quem viaje a Paris para ver no Louvre a Vitória de Samotrácia ou a Gioconda, no Rijks o viandante quer deleitar-se em frente da Ronda da Noite, um impressionante Rembrandt, passear despreocupadamente entre a cidade e o campo, observar o movimento nas praias, enfim, a eterna ilusão de que durante uma semana se vê um fluxo de gente com uma certa profundidade, gente que tem uma história comum, andaram atrás do nosso comércio na Guiné, deram-nos guerra no Brasil e na Insulíndia, há um aspeto que o viandante gosta de vincar, na admiração que tem por este povo dos Países Baixos: a relação entre a terra e o mar, entre a arquitetura moderna e a antiga, entre a competência no trabalho e o folguedo, já tão presente na preciosa pintura holandesa do século XVII.
Foram umas belíssimas férias.

Um abraço do
Mário


Viagem à Holanda acima das águas (1)

Beja Santos

O viandante encontrou uma solução económica, partindo do aeroporto de Lisboa até Alphen aan den Rijn, nos Países Baixos: viagem low cost até Bruxelas, de comboio até Roterdão, transferência para outro comboio até Gouda, depois um autocarro até Alphen, será o local de onde se irradiará nos próximos sete dias.



O viandante só tem boas recordações das suas passagens fugazes por Haia, Amesterdão, Eindhoven, Hilversum, Utrecht, Groningen, e pouco mais. Viu museus, passou sobre pontes de muitos canais, viu diques e pólderes; ficou especado com tanta bicicleta e ciclistas de todas as idades, nas cidades e campos; gosta do caráter arquitetónico, há um enorme respeito por aqueles edifícios que vêm do passado, mas há arrojo na nova arquitetura, pôde contemplar edifícios impressionantes em Haia como Roterdão. Há gente a viver nas embarcações, o holandês pela-se pelo convívio, os bares a partir do meio da tarde, estão repletos. Pasma igualmente o viandante com a preservação e o ordenamento, há um cuidado esmerado com o mundo floral, os moinhos, não há casas arruinadas. A primeira proposta de passeio foi visitar Leiden ou Leida em português, cidade bem antiga, os batavos deram luta feroz às hostes do Império Romano, na Idade Média há referências de Leida no início do século XII, hoje tem pouco mais de 120 mil habitantes, mas está rica de história, museus e teatros, o seu centro histórico é vibrante e a sua universidade goza de fama mundial. Vamos esquecer os sofrimentos padecidos pela população ao tempo dos exércitos de Filipe II. O viandante recebe a sugestão de cirandar despreocupadamente e centrar a sua atenção no chamado bairro latino onde se situa uma jóia arquitetónica, a Pieterskerk de Leiden, é uma bela proposta para um dia ensolarado, anda tudo em mangas de camisa, os holandeses queixam-se do estilo prolongado, estes campos da Holanda do Sul estão um tanto amarelados, os agricultores preveem dificuldades acrescidas.




Mesmo no bulício das zonas mais movimentadas, entre o shopping frenético e os cafés à beira dos canais, em torno das árvores, a Holanda é muito mais que uma fábrica de túlipas, é o gosto de dialogar com a Natureza, de matizar o urbano com a flora. E sempre com grande sucesso.






Ciranda-se despreocupadamente, dá gosto, neste sábado de manhã, ver os holandeses matinais, captar o seu movimento, os pontos de lazer, o transporte aquático, apanhar a imagem da fachada da sua Câmara Municipal, renascentista, destruída por um incêndio em 1929, bem reconstruida, ufanando-se esta gloriosa fachada de um carrilhão de 49 sinos, os alemães confiscaram todas aqueles toneladas de metal, os holandeses não desarmaram, reconstruiram-nos no fim da guerra. Os alemães destruíram Roterdão, os holandeses reconstruiram, está ali arquitetura moderna que não embaraça ninguém.


A caminho de Pieterskerk e do chamado bairro latino, irresistível ao viandante não fotografar esta montra arte-nova, já confessou mil vezes ser canhestro a fotografar, no caso vertente procurou um ângulo favorável para não fazer parte da foto. Esse ângulo não existia, paciência, ali está ele, como assombração, mas estava felicíssimo da vida com esta descoberta de Leida, prometedora de férias felizes. Como foram.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19227: Os nossos seres, saberes e lazeres (294): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (13): À despedida, uma sentida homenagem a Toulouse-Lautrec (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19249: Fauna & flora (16): as aves e as superstições dos guineenses: ainda é frequente o fenómeno de ataques e de mortes por feitiçaria nas comunidades étnicas das zonas rurais (, aconteceu em Biombo no mês passado) (Cherno Baldé, Bissau)

1. Comentário de Cherno Baldé, nosso colaborador permanente, que vive em Bissau, ao poste P19242 (*):


Caro amigo Mario Beja Santos,

Este trabalho de Antonio de Almeida, publicado na década de 40 do século passado e que foi baseado numa pesquisa feita junto da população indígena da Guiné,  conseguiu, de facto, captar a parte narrativa e comportamental da cultura indígena dos povos da Guiné (dita Portuguesa), da sua relação com o meio envolvente e das crenças e superstições que resultavam dessa interação e, no caso, relativamente as aves no imaginário colectivo, estando bem ancoradas nas suas diversas tradições e culturas que ainda, em grande medida, subsistem. 

Essas manifestações sócio-culturais fazem do homem africano em geral e guineense em particular, na sua essência e sobretudo um homem supersticioso. A superstição engendra o medo do desconhecido e tudo que seja esquisito aos seus olhos o que, finalmente, leva o africano tradicional a ter um respeito profundo e quase sagrado do meio natural onde ele convive com a parte do mundo invisível e que alimenta e povoa o seu espírito ainda “primitivo”.

Todavia, não me parece que tenham conseguido tocar o fundo da questão que seria de procurar as respostas sobre os porquês.

A titulo de exemplo:

(i) porque é que, nas sociedades islâmicas e não só, à mulher não é permitida proceder ao sacrifício dos animais ou matar e repartir uma galinha ?

(ii) porque é que o indigena que vai para uma viagem não deve cruzar-se, no seu caminho, com uma cegonha gigante das savanas de cor preta ? 

(iii) porque é que determinadas linhagens das famílias tradicionais têm como parente totémico a galinha de (mato) angola ou a perdiz ? 

(iv) qual a origem da superstição sobre a feitiçaria que empresta aos homens e mulheres (sobretudo os velhos /as da aldeia, eternos culpados) a extraordinária capacidade de metamorfosear-se em aves nocturnas (moços e corujas) a fim de se apoderar das almas e corpos das vitimas ? Porquê ... ?

Mas, a dinámica social,  não sendo estanque, certamente, mesmo se o fundo desses fenómenos sociais ainda se mantêm quase intacto nas comunidades tradicionais do meio rural, as suas formas sofreram evoluções ou deixaram de ser sentidas e manifestadas da mesma forma que antigamente em função das mudanças sociais e culturais que, entretanto, vão aparecendo com o fenómeno da urbanização e a vida nas cidades, cosmopolitas e multiculturais, assim como a democratização do ensino oficial e a contribuição das influências externas derivadas da mundialização e da penetração/expansão das diferentes religiões dentro das comunidades «gentílicas ». 

Na Guiné-Bissau, ainda é frequente o fenómeno de ataques e de mortes por feitiçaria nas comunidades étnicas das zonas rurais (aconteceu em Biombo no mês passado) e, não raras vezes, ouvem-se tiros, durante a noite, para expulsar uma coruja mais atrevida que ousase importunar, com os seus agourentos gritos, nos Bairros de Bissau. 

Enfim, ainda tudo se mantem quase intacto, mas nada é como no antigamente.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
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Guiné 61/74 - P19248: Parabéns a você (1532): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19233: Parabéns a você (1531): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Guiné, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Guiné, 1971/73)

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19247: In Memoriam (331): O Tenente-General de Infantaria José dos Santos Carreto Curto, ex-Comandante da CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63), faleceu hoje, 30 de Novembro de 2018, no Hospital das Forças Armadas de Lisboa

IN MEMORIAM


Tenente-General José dos Santos Carreto Curto
Ex-Capitão, CMDT da CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63)


1. Mensagem de Ana Filipa Curto, filha do Tenente-General José dos Santos Carreto Curto, com data de hoje, 30 de Novembro:

Olá, muito boa noite,

O meu nome é Ana Filipa Curto e sou a filha mais velha do Tenente-General José dos Santos Carreto Curto. Encontrei os vossos endereços de email no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e estou a contactar-vos no sentido de vos comunicar a notícia de que o meu pai infelizmente faleceu hoje de manhã no Hospital das Forças Armadas em Lisboa.


Como sei que o meu pai tinha uma ligação muito forte com a Companhia 153 da Guiné, gostaria igualmente de solicitar a vossa ajuda no sentido de contactar os seus camaradas para lhes transmitir esta triste noticia, bem como pedir os contactos telefónicos daqueles que gostariam de assistir às cerimónias fúnebres que irão ter lugar muito brevemente (amanhã à hora do almoço já terei mais pormenores que vos transmitirei igualmente via email).(*)

Agradecendo desde já a vossa vossa atenção, ajuda e gentileza, despeço-me cordialmente,

Ana Filipa Curto


Vila Real  > RI 13 > Agosto de 1963 >  CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63) > O regresso a casa... Na foto, o 1.º pelotão... Repare-se no fardamento, o caqui amarelo... O Comandante era o então Cap Inf José dos Santos Carreto Curto,  Ten-General reformado, natural de Castelo Branco, que faleceu ontem em Lisboa. O então Cap Inf José Curto foi o primeiro Comandante da CCAÇ 153, e era contemporâneo do George Freire (e do seu curso da Escola do Exército), que deixou a carreira militar e emigrou para os EUA. Seu nome completo: Renato Jorge Cardoso Matias Freire,  esteve na CCAÇ 153 - mas também comandou a 3.ª CCAÇ Indígena (a antecessora dos Gatos Pretos) e a 4.ª CCAÇ Indígena, antecessora da CCAÇ 6, sediada em Bedanda.

Foto: © João Baptista (1938-2010), autor do blogue Fulacunda.  Todos os direitos reservados [Edição e legendagem:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Já aqui falámos do primeiro grande revés que o PAIGC sofreu, com a morte de Vi(c)torino Costa, Vitorino Costa foi morto, numa emboscada em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153, comandado pessoalmente pelo Cap Inf José Curto, na região de Quínara, nas proximidades de Darsalame. (**)

Victorino Domingos Costa e o seu irmão, Manuel Saturnino da Costa (, futuro primeiro-ministro da República da Guiné-Bissau), foram dois  dois dos históricos militantes enviados para a China para receber treino político-militar, juntamente com João Bernardo Vieira (Nino), Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Domingos Ramos, Rui Djassi, Osvaldo Vieira e Hilário Gomes, tendo sido recebidos pelo "grande timoneiro", Mao Zedong, em 1961.

Infelizmente temos poucas referências, no nosso blogue, ao Cap Curto (8) e à  sua CCAÇ 153 (17). E não temos nenhum camarada vivo, registado como membro da Tabanca Grande. Apresentamos à filha e demais família e amigos, bem como aos camaradas, ainda vivos, da CCAÇ 153, as  nossas condolências pela morte de mais um bravo da Guiné.


3. Actualização da notícia:

Mensagem recebida hoje, 1 de Dezembro, no nosso Blogue:

Caro Carlos Vinhal,
muito obrigada desde já pelas suas condolências e pela sua disponibilidade.
Agradeça em meu nome aos Editores da Tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

O meu pai estará em Câmara Ardente na Capela da Academia Militar em Lisboa hoje a partir das 18h30 (entrada pelo Paço da Rainha), sendo que amanhã dia 02 de dezembro será celebrada missa de corpo presente pelas 16:00 Horas, prosseguindo depois para cremação no Cemitério do Alto de São João.

Muito obrigada desde já e até breve,
Ana Filipa Curto
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Notas do editor

(*) Último poste da série de 11 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19089: In Memoriam (330): Diamantino Gertrudes da Silva (1943-2018), ex-comandante da CCAÇ 2781 / BCAÇ 2927 (Bissum, 1970/72), "capitão de Abril", escritor (Carlos Matos Gomes)

(**) Vd. poste de 25 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11005: Efemérides (119): A morte do comandante Vitorino Costa, um revés para o partido de Amílcar Cabral, em 1962, ainda antes do início oficial da guerra

Guiné 61/74 - P19246: Notas de leitura (1126): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (62) (Mário Beja Santos)

Sede do BNU - Lisboa


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Abril de 2018:

Queridos amigos,

Muito tem para dizer o gerente de Bissau, nesta fase que já preludia a subversão. O Ministro Adriano Moreira fez uma curta visita, os comerciantes aguardavam-no com expetativa para resolver o problema dos cambiais, problema eterno, nem novas nem mandados; estão a chegar efetivos à Guiné, os edifícios aprestam-se com medidas de segurança, o BNU mandou instalar em todo o quarteirão luzes elétricas, Bissau é patrulhada, e a questão cabo-verdiana vem claramente ao de cimo, um grupo rival do PAIGC, o Movimento de Libertação da Guiné, capitaneado pelo manjaco François Mendy anuncia em panfleto que nada tem a ver com Amílcar Cabral nem com a sua litania de unidade Guiné – Cabo Verde. O que há de verdadeiramente curioso neste panfleto que diz ser de março de 1951 mas era de março de 1961 é que se apresentava com alguma civilidade e etiqueta, deu provas com o que fez em Susana e Varela de vandalismo puro.

Desses e de outros acontecimentos falaremos seguidamente.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (62)

Beja Santos

Na documentação avulsa constante nos arquivos do BNU, merece todo o relevo o conteúdo da carta enviada em 8 de junho de 1961 de Bissau para Lisboa, conforme se pode ler:

“Conforme os desejos manifestados por V. Ex.ª, fazemos a seguir um relato resumido da situação geral da Província.

O acontecimento que nos últimos meses mais agitou a população, foi, sem dúvida, a visita do Sr. Ministro do Ultramar. Em especial o comércio (e não há outra actividade marcante no sector privado) alimentou esperanças de que Sua Ex.ª resolveria o mais melindroso problema económico que preocupa a Guiné – o problema cambial.

Não havia, porém, razões para tão eufórica expectativa. O problema cambial desta Província entronca-se noutros problemas igualmente complexos, que possivelmente só podem ser examinados e solucionados num vasto plano de conjunto.

Não era crível Sua Ex.ª o Ministro estivesse, na sua curta visita, apetrechado com as soluções que, no caso específico, o comércio infundadamente aguardava.

Outros e mais importantes problemas preocupavam, na altura dessa visita, estamos em crer, o espírito esclarecido de Sua Excelência. E foram certamente esses problemas que determinaram a sua presença nesta terra.

No aspecto político, a situação é estacionária. Os efectivos militares na Província têm aumentado, constando que são actualmente de 4 mil homens. Este efectivo deverá ser aumentado dentro de dias com mais 500 homens. Esta tropa está repartida pela área fronteiriça, com mais densidade na área da vizinha República da Guiné, havendo também fortes guarnições nas principais cidades (Bafatá, Farim e Bolama).

Em Bissau, além das forças de reserva aquarteladas, as de Polícia Militar, PSP e PIDE asseguram a ordem. Pelo que sabemos de fontes autorizadas, está completado o sistema defensivo com vista não só ao perigo exterior (incursões armadas penetrando pelas fronteiras) como ao perigo interno (acções subversivas com núcleos de terroristas civis).

Naturalmente que não conhecemos em pormenor o dispositivo de defesa e como ela se articulará. Temos, porém, informações que nada aconteceu, por hora, mas conta que do lado da República da Guiné se notam concentrações de gente indígena e de chineses. Internamente, em todas as cidades e vilas de maior importância, são rigorosas as precauções e nelas têm colaborado entusiasticamente a população civil e as empresas.

Nalgumas vilas mais distantes, organizaram-se milícias que policiam dia e noite e esta actividade é ‘coberta’ por patrulhas móveis de tropa. Aos que não dispunham de armas, o Comando Militar forneceu-as.

Na cidade de Bissau, as precauções são mais importantes. A Casa Gouveia, por exemplo, contratou na Metrópole paraquedistas de reserva, adquiriu armas automáticas em quantidade, além de isolar todas as suas instalações erguendo muros e montando novos sistemas de luz. A Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosas & Cta. tomaram providências semelhantes.

No que se refere ao nosso Banco, como V. Exas. sabem, o nosso edifício e terrenos apenas tinham guarda da PSP das 19 horas às 8 da manhã. Só o edifício principal tinha lâmpadas de segurança. Todo o resto do terreno (pavilhões de pessoal, garagem, etc.) permanecia na mais completa escuridão. Por força das circunstâncias e da urgência, mandámos instalar em todo o quarteirão luzes eléctricas, e para esta despesa pedimos o acordo de V. Exas.

Ao mesmo tempo, oficiámos ao Governo da Província, através da Direcção de Fazenda, pedindo o reforço da guarda. Sua Ex.ª o Governador deu imediatas instruções ao Comando da PSP e o sistema defensivo ficou montado. Porém, há um óbice em tudo o que se conseguiu: os muros que, a partir da área do edifício principal são da altura de 1,20 metro, permitem a passagem de toda a gente. Impõe-se o levantamento desse muro, sem o que as precauções policiais tomadas não terão qualquer eficiência, de modo que toda a propriedade fique isolada, fazendo-se o acesso só pelos portões.

Pedimos ao construtor A. F. Parente um orçamento. Por indicação do Comandante da PSP, tivemos de adaptar uma parte dos baixos do Pavilhão n.º 1 para servir de caserna para 6 guardas, em caso de emergência. Iniciámos já esta pequena obra, mas temos de adquirir 6 camas de ferro completas. Também para este dispêndio solicitamos o acordo de V. Exas.”

A exposição muda agora de azimute, o gerente de Bissau vai informar Lisboa da subversão em marcha:

“A avaliar pelas impressões que temos colhido de pessoas responsáveis, a ideia dominante é a de que o indígena do interior está totalmente alheio a qualquer movimento de subversão e não mostra disposições para aceitar e acolher propagandistas.

Porém, nas cidades e vilas de certa importância existe em evolução um movimento clandestino de independência, dirigido de Conacri e de outros pontos fronteiriços pelo chamado Comité de Independência de Guiné e Cabo Verde, cujos mentores são na realidade cabo-verdianos, como cabo-verdianos são os cabecilhas-médios e propagandistas que têm sido presos pela PIDE, entre os quais figurava um empregado da Filial, já demitido por V. Exas.

Raros são os guineenses que estão no ‘movimento’, à parte o chamado ‘calcinha’, fauna de vadios que vive à custa da família e não quer trabalhar. Infelizmente a acção repressiva sobre esta gente tem sido muito tolerante, em obediência a conceitos e directivas de nível superior que, pessoalmente, consideramos prejudiciais. E assim pensa quase toda a população europeia.

Merece registo que a população nativa da Guiné de todas as raças detesta profundamente os cabo-verdianos. Há evidentes provas disso. Este facto, felizmente, contribui para tornar mais difícil a actuação criminosa dos homens do ‘movimento’, e concorre poderosamente a nosso favor. Como demonstração dessa má vontade dos guineenses pelos cabo-verdianos, parece ter-se criado já um outro ‘movimento’ exclusivamente guineense. Anexo encontrarão V. Exas. um panfleto clandestino que há dias foi enviado, por correio, a muitos cabo-verdianos na Província”.

É evidente que o tom usado pelo gerente no seu documento confidencial é de amenidade e confiança. Mas termina a sua carta não iludindo que começara um certo êxodo europeu:

“Desde Abril e mais intensamente em Maio estão a abandonar a Província quase todas as mulheres e crianças europeias. Têm seguido em aviões militares, em navios, que partem cheios. É um desgraçado sintoma do pânico que impera na Guiné. Também têm seguido alguns comerciantes, após terem liquidado os seus negócios ou deixando-os entregues a empregados interessados.
Este êxodo tem criado um agravamento da crise cambial, pois todos os que partem pedem transferências de dinheiros e a fixação de mesadas.”

A próxima missiva para Lisboa anunciará, em 21 de julho, o ataque a S. Domingos. E em junho de 1962 toda a documentação vai referir com clareza quem é o movimento que está a pôr a região Sul em turbilhão: o PAIGC.

(Continua)




Sala no BNU em Lisboa.
____________

Notas do editor

Poste anterior de 23 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19225: Notas de leitura (1124): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (61) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19243: Notas de leitura (1125): 38.ª COMPANHIA DE COMANDOS "Os Leopardos" - A História, coordenação de João Lucas (Belarmino Sardinha)

Guiné 61/74 - P19245: Em bom português nos entendemos (19): "quarteleiro", "fiel da arrecadação", "cabo de manutenção de material"...


Guiné >  Região de Bafatá >  Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > A equipa de futebol de onze, composta por "pretos de 1ª classe"... (As praças eram todas do recrutamento local; os graduados e os especialistas eram oriundos da metrópole).

Na primeira fila, da esquerda para a direita,

(i) o "Paranhos", natural do Porto,  padeiro;

(ii) Francisco Magalhães Moreira, capitão da equipa (alf mil op esp, cmdt do 1º Gr Comb, vive em Santo Tirso);

(iii) António Manuel Carlão (alf mil at inf, cmdt do 2º Gr Comb, destacado depois para a equipa do reordenamento de Nhabijões; vive em Fão, Ermesinde);

(iv) Abílio Soares, 1º cabo at inf, que vivia em Lisboa, já falecido;

e (v) Arlindo Teixeira Roda (fur mil at inf, 3º Gr Comb, natural de Pousos, Leiria, vive em Setúbal);

na segunda fila, de pé, também da esquerda para a direita:

(vi) guarda-redes João Rito Marques (1º cabo manutenção de material, vulgo "quarteleiro"; vive no Souto, Sabugal);
(vii) Fernando Andrade de Sousa (1º cabo aux enf, vive na Trofa);

(viii) Arménio Monteiro da Fonseca (sold at inf, natural da Campanhã, vive no Porto);

(ix) Eduardo Veríssimo de Sousa Tavares (1º cabo escriturário, vivia em Oliveira do Douro, faleceu em 29 de agosto de 2015) (*);

(x) Manuel Alberto Faria Branco (1º cabo at inf, vive na Póvoa do Varzim);

e (xi) Ernesto A. M. Rocha, 1º cabo at inf, 4º Gr Comb, que veio substituir o 1º cabo at inf António Pinto, também evacuado para o HMDIC; morada atual desconhecida.


Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados [Legendagem: Fernando Sousa / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. Mais um exemplo de um vocábulo,  desta feita do léxico castrense,  "quarteleiro", que vem grafado no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa,  sendo citado o seu uso no nosso blogue (Luís Graça & Camaradas da Guiné) (*)

quarteleiro | s. m. | adj.

quar·te·lei·ro
(quartel + -eiro)

substantivo masculino

1. Militar que nas unidades tem a seu cargo a arrecadação do armamento, material de guerra e uniformes.

adjectivo

2. Relativo a quartel (ex.: revolta quarteleira).

"quarteleiro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/quarteleiro [consultado em 29-11-2018].

Esta palavra em blogues Ver mais

... Cabo Quarteleiro, António Joaquim de Castro... Em Luís Graça & Camaradas da Guiné

...João Rito Marques (1º cabo quarteleiro , ou Manutenção de Material;... Em Luís Graça & Camaradas da Guiné

"quarteleiro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/quarteleiro [consultado em 29-11-2018].


II.  Esta é uma das dezenas de  "histórias da CCAÇ 2533",  constante da brochura,  editada pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, com fotografias). 

Já aqui foram reproduzidas essas histórias no nosso blogue com a devida autorização do editor e autores, a  partir de um ficheiro em formato pdf que nos chegou às mãos por intermédio do Luís Nascimento.  Recorde-se que a CCAÇ 2533, companhia independente, esteve sediada em Canjambari e Farim, região do Oio, ao serviço do BCAÇ 2879, o batalhão dos Cobras (Farim, 1969/71).

Hoje, para ilustrar a figura (e as agruras do) "quarteleiro", fomos repescar o texto da autoria do ex-1º cabo Silva, o "arrecadação" (sic), que foi destacado da "ferrugem" para exercer "ad hoc" as funções de responsável da arrecação de material ... [Parece que era prática corrente, no CTIG,  ir-se buscar um CAR - Condutor Auto Rodas, para exercer essas funções: um 1º cabo e, nalguns casos, também um soldado, para o auxiliar; pelo menos, foi a solução encontrada, por exemplo,  pelas subunidades de quadrícula do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), as CCAÇ 2404, 2405 e 2406.]

A designação mais corrente era "quarteleiro", mas também podemos encontrar no nosso blogue expressões equivalentes: "fiel da arrecadação", "1º cabo de manutenção de material"... Não sabemos se havia uma especialidade própria... Em geral, a função era ocupada por um 1º cabo, podendo haver um soldado "auxiliar de quarteleiro".

É um texto, delicioso pelo humor e a ironia...   Para poder embarcar para a metrópole, e regressar a casa, o Silva, o "responsável máximo" do material,  teve de pagar do seu magro bolso o valor de 15 cantis que faltavam no inventário  final (pp. 107-108). (**)


Memórias de um cabo quarteleiro



Todos sabem que eu fui nomeado para cabo quarteleiro da [CCAÇ] 2530.

Já em Chaves as coisas, para a minha parte, não estavam a correr muito de feição, pois algo me dizia que iria ter problemas de relacionamento com alguns superiores.

Eu já tinha 13 meses de vida militar e, portanto, não era um novato. Mas fui sempre um otimista. Como quarteleira, era responsável por grande parte do material operacional, desde armas a colchões…

Quando chegámos a Viana do Castelo, foi-me perguntado por uma mala que continha munições, e da qual eu desconhecia totalmente. Indagados os meus superiores, chegou-se à conclusão que ela tinha ficado em Chaves e, portanto, era necessário ir buscá-la.

E lá fui eu, já não me recordo com quem mais, até Chaves e, depois de uma viagem atribulada, lá conseguimos regressar a altas horas da madrugada à capital do Minho.

No embarque e durante a viagem no “Niassa”, nada mais de anormal ocorreu.  Chegados a Canjambari, lá me foram atribuídas as minhas responsabilidades, sempre debaixo das ordens de um sargento "trabalhador" e de um 1º sargento muito “atencioso”.

Tudo foi rolando com maior ou menor esforço até à altura de haver necessidade de se fazer um balanço, essencialmente dos cantis: faltavam quinze no stock!

Aqui foi a altura da porca torcer o rabo. Fez-se uma reunião na parada e vistoria às casernas, para pesquisar onde pudesse ter sido escondido esse precioso instrumento. Mas, depois de todo este aparato, nada foi detetado.

E, pronto, nesse dia voltou tudo ao normal, tudo ou quase tudo, pois eu como responsável máximo (, eu digo máximo pois abaixo de mim estavam o 1º e o 2º sargentos,) daquilo que tinha sido distribuído a todos os operacionais, tive como prémio ir um mês para o "mato" e, no final desse mês, fui deslocado para a "ferrugem", local de onde eu tinha sido deslocado em comissão de serviço.

Interessante foi quando fui escalado para fazer a minha primeira coluna. O nosso furriel foi ao meu lado para me dar o "consentimento". Foi lindo para mim esse dia de liberdade operacional.

Até irmos para Bissau, as coisas correram maravilhosamente bem. A equipa [de CAR] era muito boa: O Figueiras, o Alentejano, o Bigodes, o Duarte (ou o Rebenta-Minas), o Carneiro, o Nogueira,o Avelino, o Maurício… Deixei propositadamente para último o furriel Conceição [, furriel miliciano mecânico auto Nuno Mário Borges da Conceição].

Chegados a Bissau, fui confrontado com a necessidade do pagamento dos valores dos cantis desaparecidos. Ainda hoje me vem à memória a desculpa que tive de inventar para o meu Pai me mandar o dinheiro através de Carta de Valor Declarado para eu poder embarcar.

Enfim, coisas da nossa vida de militares.

1º Cabo Silva, Arrecadação


[transcrição em word, fixação e revisão de texto: LG; o 1º cabo Silva deve ser o 1º cabo condutor auto rodas (CAR) Joaquim Franscisco Santos Silva, de acordo com a relação nominal do pessoal da CCAÇ 2535]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19241: Em bom português nos entendemos (18): "Chabéu" e não "xabéu"... (= fruto, dendê, e prato de peixe ou carne confeccionado com óleo de palma)

(**) Vd. poste de 29 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16427: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXXIV - Memórias de um pobre cabo quarteleiro que teve de pagar, do seu magro bolso, o valor de 15 cantis que faltavam no inventário...

(***) Seleção de postes com referências ao "quarteleiro":

11 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17958: Tabanca Grande (451): António Joaquim de Castro Oliveira, ex-1.º Cabo Quarteleiro da CART 1742 (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), 760.º Tabanqueiro

29 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16427: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXXIV - Memórias de um pobre cabo quarteleiro que teve de pagar, do seu magro bolso, o valor de 15 cantis que faltavam no inventário...

5 de agosto de  2014 > Guiné 63/74 - P13463: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XIX: A guerra dos colchões em que também esteve envolvido o Carlos Simôes, ex-fur mil op esp

13 de novembro de  2012 > Guiné 63/74 - P10665: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (2): Ainda a morte do Lajeosa, o nosso quarteleiro, vítima de tuberculose pulmonar

4 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10619: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (1): A morte do quarteleiro

10 de fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5799: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (30): Força Carlos

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19244: Fotos à procura de... uma legenda (111): Ainda o sorriso da bajuda do Gabú... (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74)


Mulher himba, uma minoria étnica que vive no sul de Angola e na Namíbia (foto recolhida na Internet por Jorge Costa, 2010)

"A verdadeira riqueza de um país é o seu próprio povo. Aqui estão representados uma minoria dos grupos étnicos que constituem a identidade cultural angolana. Himba, Mucubal, Mumuílas, Herero, Hotentotes "Kosan"(bushman), Cabindas." (Jorge Costa, 2010, vídeo "Angola: Riqueza Étnico-Cultural)


1. Comentário do nosso grã-tabanqueiro Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535  (Angola, 1972/74) (*):

De um modo geral, estou de acordo com o nosso amigo Cherno Baldé (**). Nota-se que a moça não está muito à vontade a mostrar o peito aos militares portugueses, mesmo que ande habitualmente com ele a descoberto entre a sua gente. Nota-se constrangimento e até desprezo na sua expressão.

No norte de Angola, onde eu cumpri o serviço militar, as camponesas não costumavam andar de peito descoberto, mas não se coibiam de o descobrir diante de quem quer que fosse para dar de mamar, por exemplo. No fim, voltavam a cobrir-se. Mas quando trabalhavam em lavras situadas em locais mais afastados, onde não era habitual aparecerem estranhos, elas chegavam a despir-se quase completamente, ficando apenas com um minúsculo pano entre as pernas, em jeito de penso higiénico. 
Aconteceu-me uma vez passar por uma lavra onde algumas camponesas trabalhavam nesta situação e elas não esboçaram o mais pequeno movimento para se taparem. Apenas interromperam a sua tarefa por um momento para me cumprimentarem em português: «Bom dia!». Eu respondi em quicongo, «Kimbote!», elas fizeram-me um rasgado sorriso e continuaram a trabalhar.


Virgílio Teiexetia e a bajuda do Gabu (2018) (**)
No sul de Angola, já o peito descoberto era e é completamente banal em diversas etnias, sobretudo do sudoeste. Mesmo quando desciam à cidade, as camponesas destas etnias andavam pelas ruas, praças e avenidas com os seios ao léu. Para estas moças e senhoras não era vergonha mostrar o peito; vergonha era, isso sim, mostrar o traseiro.

No Youtube existe um vídeo em que se vêem imagens de pessoas pertencentes, quase todas, às etnias mais nuas de Angola: muílas ou mumuílas, mucubais, himbas ou muhimbas, muhakaonas, khoisan ou bosquímanos, etc. Independentemente do exotismo dos trajos e adornos e da sensualidade dos corpos, que são patentes no vídeo, o que mais ressalta dele é a pureza dos olhares, a cristalinidade dos sorrisos, a franqueza dos rostos, a pureza dos corações. É impossível não gostar de gente assim. 
O vídeo é este: 
https://www.youtube.com/watch?v=VDg75ocaHTU  
[Alojado no You Tube, na conta de Jorge Costa, 2010, duração 9' 49''. Título: Angola, Riqueza Étnico-Cultural. Imagens recolhida na Internet; música da African Tribal Orchestra]
Fernando de Sousa Ribeiro

PS - Sobre o povo himba, que vive na fronteira entre a Namíbia e Angola, e cujo futuro está seriamente ameaçado, vd. o sítio de Carla Mota e Rui Pinto, "Viajar entre viagens". (LG)
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Notas do editor:
(*) Vd, poste de 11 de novembro de  2018 > Guiné 61/74 - P19183: Tabanca Grande (469): Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCaç 3535 / BCaç 3880 (Angola, 1972 / 74); nosso grã-tabanqueiro, nº 780.
(*) Vd, poste de 27 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19239: Fotos à procura de...uma legenda (110): O sorriso da bajuda... (Virgílio Teixeira / Cherno Baldé)

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19243: Notas de leitura (1125): 38.ª COMPANHIA DE COMANDOS "Os Leopardos" - A História, coordenação de João Lucas (Belarmino Sardinha)



1. Mensagem do nosso camarada  Belarmino Sardinha  (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74), com data de 20 de Novembro de 2018:

A Razão do Meu Comentário

Dado o meu empenhamento em ter este livro, pediu-me o amigo Amílcar Mendes para comentar ou fazer uma apreciação ao mesmo. Aceitei, como amigo e leitor e por ter estado presente no mesmo espaço físico nos meses iniciais das nossas comissões, em Mansoa.

Depois de ter lido o que foi escrito, penso não ter a acrescentar nada de importante que não esteja referido nas suas páginas, a não ser que conheci e conheço alguns dos intervenientes e tornei-me seu amigo, uns por serem Alentejanos, como eu, outros por serem apresentados por estes e outros ainda por residirem na zona onde morava.

Permitam que me desvie um pouco do livro e fale do meu relacionamento com esta gente, camaradas inesquecíveis com quem era fácil fazer amizade a 3000 Km de distância de casa e metidos num quadrado que apenas permitia conhecermo-nos uns aos outros um pouco melhor.

Lembro o Jorge Brito, que figura na parte de trás da capa e como foi aprofundada a nossa amizade. A recuperar de uns estilhaços com que foi brindado logo no início da comissão, possibilitou confraternizarmos no bar da 38.ª de Comandos bebendo uns copos. Essa amizade, forçada por um interregno involuntário após regressarmos, viria a ser retomada com a ajuda do Amílcar Mendes, que me facultou o seu contacto e assim nos reencontrámos e convivemos até que nos deixou em 2017.

Do Alentejano e grande amigo Luís Barreiras, que cedo nos deixou, situação referida nas páginas deste livro, tenho imensa saudade, tive o privilégio de com ele privar algumas vezes e ser por ele convidado a almoçar no refeitório criado e destinado exclusivamente para a 38.ª Companhia de Comandos em Mansoa. Diga-se que a ementa destes militares, em quartel, nada tinha que ver com a praticada no refeitório do Batalhão 3832.

Mas recordo igualmente outros camaradas e amigos Alentejanos como o Pateiro, companheiro inseparável do Barreiras, tinham sido companheiros no curso de Regentes Agrícolas que ambos tiraram quando juntos decidiram alistarem-se nos Comandos. Quem sabe não ajuda isto a explicar muita coisa, mas isso fugia ao livro e não interessa aqui para o caso, outros houve como o Carreira ou o Silva, este infelizmente também nos deixou logo no início da comissão, facto também assinalado nesta obra, ou o Simão, que me foi apresentado pelo Barreiras e que fatidicamente teve o seu fim no mesmo dia que este. Outros houve de quem não estava tão próximo, mas de qualquer forma, foram demasiados amigos que vi partir apanhados pela figura negra com a gadanha.

Julgo terem sido estas algumas das razões que levaram o Amílcar Mendes a pedir-me para comentar este livro sobre a actividade da 38.ª de Comandos, livro de que já ouvia falar há muito tempo, sempre que com eles me juntava, mas nada via escrito de concreto.

Por tudo que já referi e pelo que obriga a reviver, confesso que o fiz em alguns momentos com os olhos rasos de água e com a interrogação, valeu a pena? Justificou-se tanto esforço, quando a situação podia ter sido resolvida de forma diferente se o político assim quisesse, por um País onde os medíocres e incompetentes, os desonestos e inúteis, utilizando artes e manhas vão singrando contrariando o que por direito devia pertencer aos empenhados e competentes?

Se com a idade vamos ficando sem visão, não é menos verdade que vamos vendo melhor, com maior nitidez e objectividade tudo que vai acontecendo à nossa volta.

Gostava de dar uma aqui uma achega e uma ajuda para esclarecer os que não percebem ou não querem perceber o que se passa com os antigos combatentes. É que, por muito distantes que estejamos, que as convicções sejam outras e mesmo sem contacto uns dos outros, temos muitos pontos que nos unem, de tal forma fortes, que pouca importância têm as diferenças que nos separam, essa é a verdadeira razão para gostarmos de estar uns com os outros e de convivermos.

Entrando um pouco mais no aspecto do livro, não considero tratar-se de uma obra literária propriamente dita, mas também não me parece ter sido essa a razão e a vontade de quem participou na sua escrita, foi sim a procura de resguardar a memória dos acontecimentos, onde os nomes e os factos são lembrados e/ou recordados por quem os viveu na primeira pessoa, e assim os escrevem fazendo história.

Tratando-se de uma narrativa de acontecimentos, merecia uma melhor revisão de texto para correcção de gralhas desnecessárias, embora essas em nada retirem o mérito que o livro tem.

Diz o provérbio que "quem não se sente não é filho de boa gente" não se espera por isso desta gente se não a crítica directa e frontal, como se lê na narrativa do desfile inicial onde a primazia foi dada ao Batalhão de Cavalaria, arma do então Governador da Guiné General António de Spínola em detrimento da 38.ª Companhia de Comandos.

Quando no livro é referido que foram bem aceites pelo comandante do Batalhão em Mansoa e que passaram a ocupar o serviço à porta de armas, é bom lembrar que também o foram pelos militares, quer os do Batalhão 3832 quer os de rendição individual, porém a sua recusa em aceitarem que lhes chamassem "periquitos" levou a situações de alguma hostilidade. Lembro uma outra situação que se prendeu com as saídas para o exterior da unidade, que até então se faziam com algum rigor mas sem nenhuma obrigação especial[1], e que a partir daí impunham que se saísse fardado como se estivéssemos em Bissau[2]. Claro está que um dia foi feita uma formatura com farda n.º 1[3] e pedido de revista pelo oficial de dia antes da saída para o exterior. Com o clima quente a ficar escaldante, demasiado tenso entre todos, foi desanuviado por quem de direito voltando tudo à normalidade.

Outro acontecimento ocorrido antes contribuía para a degradação do ambiente entre uns e outros, um deles, nunca esquecido, foi a morte, nas instalações do quartel, do militar Ilídio Moreira logo após a chegada. Tudo isto era o que levava a um mal estar entre os militares de elite e os já cansados com mais de dezoito meses de comissão.

Facto idêntico é relatado também aqui pelo ex-Alferes Comando Mendes da Silva, vivido num outro aquartelamento e igualmente por causa do termo "periquito" chamado pelos mais velhos a todos aqueles que chegavam de novo.

Tratando-se de uma obra que faz história, julgo importante assinalar alguns destes factos que, embora referidos no livro, são vistos com outros olhos que não os dos seus autores. Contudo, em nada tiram o mérito a esta valorosa companhia que, tal como é referido pelo Coronel Paraquedista Calheiros no seu livro A Última Missão "foi pau para toda a obra".

É igualmente assumido pelos intervenientes na escrita do livro, em especial o seu comandante Ferreira da Silva, não só as boas intervenções operacionais, como as menos conseguidas e explicadas as razões por que aconteceram. É pois um livro escrito com verdade e que evita que se escrevam ou contem sobre estes operacionais coisas menos verdadeiras quando não mesmo inventadas.

Não só aos meus amigos vivos mas a todos os elementos da 38.ª de Comandos o meu abraço e agradecimento pela vossa amizade bem como pelo convite para me pronunciar sobre a vossa companhia e o vossa história de vida na Guiné, onde só partilhei alguns meses, os iniciais passados em Mansoa.

Não competindo aos que escreveram este livro, história da 38.ª Companhia de Comandos outros relatos que não os seus, permito-me deixar aqui outro ponto de vista que corrobora, em muito, o descrito no livro e acrescenta mais alguma coisa sobre a realidade ou o inferno de Guidaje.

Uma outra visão dos acontecimentos em Guidaje, sobre o que é descrito pelo Amílcar Mendes, quando diz terem encontrado militares escondidos ou a chorar sem nada fazerem é o que a seguir escrevo, retirado da cópia de um livro que possuo, escrito, mas ainda não publicado, por um ex-furriel miliciano da Companhia de Caçadores 3518, que faleceu, salvo erro, durante o ano de 2015, Daniel Matos e que integrou a escolta da coluna para Guidaje em 14 de Maio de 1973.

Os Marados de Gadamael, com 13 meses foram para Brá (Combis) e foram fazendo diferentes serviços, entre eles escoltas às colunas de transportes. Numa dessas colunas, inicialmente prevista para ir, apenas e só, até Farim, chegados ai foram mandados seguir como reforço até Guidage, onde a progressão da coluna sofreu tudo o que é relatado no livro da 38.ª de Comandos e onde foram obrigados a permanecerem mais de uma semana. Nesse período tiveram 4 mortos (no abrigo do Obus) e vários feridos. Esta escolta era formada com vários soldados que nunca tinham sido operacionais, devido às suas especialidades, cozinheiros, padeiros etc, mas como, em princípio, era só até Farim e não oferecia grande perigo tiveram que alinhar.

Podemos fazer um juízo de como e do porquê de muitas coisas acontecerem ao enviarem militares para missões que lhes eram destinadas e para as quais não estavam preparados nem física nem psicologicamente e onde apenas a boa vontade e a destreza não chegavam.

Tenho o privilégio de ter uma cópia deste livro ainda não publicado, espero que possa ver a luz do dia para igualmente poder ser alvo de análise e comentário e mais do que isso, do conhecimento de todos e fazer parte da história que uns parece pretenderem fazer esquecer, outros que contam vaidades, feitos inexistentes ou, ainda, heróis do desconhecido.

É importante para a verdade do que se passou em Portugal, especialmente no período de 1961 a 1974, que estes relatos sejam feitos por quem os viveu e na primeira pessoa, mesmo que existam alguns pormenores que se contradigam, por razões do tempo passado e da memória, essas contradições só ajudam a corroborar e/ou a esclarecer a verdade dos factos.

Notas:
[1] - Normalmente composta por Camisa aberta no colarinho, Calções, Meias curtas, Botas de lona e Boina ou Boné.
[2] - Camisa e Gravata presa no espaço da camisa antes do cinto, Calções, Meias altas, Sapatos e Boina.
[3] - Utilizado apenas na Metrópole - Camisa, Calças compridas, Botas de cabedal, Blusão e Boina.

Belarmino Sardinha
Ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM
___________

Ficha técnica do livro:

Título: "38ª Companhia de Comandos 'Os Leopardos' - A História"
Coord: João Lucas
Editor: Fronteira do Caos
Local: Porto
Ano: 2018
Nº pp. 348 (ilustrado)
Dimensões: 23,5 cm x 16cm
Pvp: 16 €
ISBN: 989-54148-1-9

Guiné 61/74 - P19242: Fauna & flora (15): As aves em algumas superstições indígenas da Guiné - “Portugal em África, Revista de Cultura Missionária” (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2018:

Queridos amigos,

Quando confrades guineenses, como o nosso avisado Cherno Baldé, lerem este trabalhinho de alguém que foi professor da Escola Superior Colonial, é capaz de contestar os elementos apresentados como curiosos aspetos folclóricos ou casos etnológicos ultrapassados. Aqui se fala de superstições com galinhas, os íbis sagrados, a galinha-do-mato, o grã-duque cinzento, os jagudis, aves de mau presságio ou perniciosas, inevitavelmente há referências aos jagudis e, segundo o autor, os Beafadas consideram-nas almas dos seus antepassados. Mas será que ainda assim é, ou já deixou de ser?

A palavra é dada à confraria guineense.

Um abraço do
Mário


As aves em algumas superstições indígenas da Guiné

Beja Santos

“Portugal em África, Revista de Cultura Missionária”, que teve duas séries, a segunda percorreu um período da década de 1940, revela-se uma publicação de consulta obrigatória para quem pretenda estudar sobre os mais diversos ângulos a História da Colónia. Veja-se, a título de curiosidade, o trabalho publicado por António de Almeida, professor da Escola Superior Colonial e bolseiro do Instituto para a Alta Cultura, intitulado "As aves em algumas superstições indígenas da Guiné e de Cabo Verde", para se avaliar a importância de muita pesquisa que urge fazer e publicitar.

Convém não perder de vista que estes trabalhos datam de há cerca de 75 anos, muita água correu debaixo das pontes, muitos comportamentos se alteraram, pois claro.

Começando por nos descrever a importância do culto de animais nas primícias da civilização, logo vai centrar a sua análise na Guiné e Cabo Verde dizendo que a criação das aves domésticas desperta escassa atenção aos naturais destas duas colónias. Diz adiante que a carne de algumas delas faz parte dos seus repastos:  

“Se os incultos Bijagós e Balantas estimam comer galinhas mortas por doenças ou em estado de putrefação – por vezes, mal assadas e com intestinos e penas – já aos indígenas muçulmanos é interdito servir-se de despojos destes animais sem que, previamente, os hajam sangrado, de harmonia com a liturgia corânica. Porém, nenhuma mulher Mandinga, Fula ou Biafada ou de outra tribo, fiel sectária da religião de Maomé, se aventuraria a matar uma galinha ou sequer a repartir-lhe o corpo em pequenos pedaços, para não adoecer gravemente, abortar ou tornar-se estéril”, observa depois que “Entre os Manjacos e Brames, os pitéus de galinha reservam-se para mimos, a oferecer aos hóspedes de elevada condição social”. 

E logo suscita um comentário de índole religiosa: 

“Nenhum Manjaco se ausenta para fora do seu chão sem previamente haver consultado o Irã, ocasião em que lhe sacrificam um galo; analogamente, os Bijagós, quando constroem gamboas imolam uma galinha em honra de Nodô ou Uindô”.

Diz igualmente que não se observam nem na Guiné nem em Cabo Verde os combates de galos e entre o gentio da Guiné parece não verificar-se a crença nos poderes mágicos dos galos. Referindo-se ao piar das aves, acrescenta:

“Como na Metrópole, também em Cabo Verde e na Guiné, os cantos da coruja e do mocho suscitam temor supersticioso, por prognosticarem morte ou desgraça iminentes. Para os Mandingas, os feiticeiros gentílicos podem metamorfosear-se em mochos a fim de se apoderarem do corpo e alma das pessoas; evita-se este grave perigo prendendo ao pescoço ou cozendo às vestes das gentes talismãs ou amuletos protetores.

Outra ave bastante temida na Guiné é o grã-duque cinzento ou fraque, espécie de cegonha. Em Cabo Verde, na Guiné, como na Serra da Lousã, há abutres. Tinha-se por criminoso quem abatesse um abutre. Facilmente domesticáveis, continuam a ser agentes de limpeza, apanham os restos e dejectos humanos. Atribuem-se ao corpo desta espécie ornitológica miríficas propriedades terapêuticas; com fel destilado preparam-se mezinhas para as dores dos ouvidos, constituindo a bílis infalível antídoto do veneno das serpentes e escorpiões.

Quem se lavar na água em que, anteriormente, se tiver banhado a umbreta do Senegal, fica, fatalmente, afectado de erupção cutânea; quando se atira às abetardas aves, igualmente conhecidas entre os Fulas pelo nome de galinhas do Faraó, e não sendo atingidas, a espingarda utilizada rebentará irremediavelmente.

Mas nem só as aves de mau presságio vivem na Guiné e Cabo Verde; o martelo ou espécie de popa, o cuco indicador ou pássaro-do-mel, o pombo da Guiné e o pelicano são animais muito queridos dos naturais. A garça-bovina, o pica-bois e a alvéola-amarela também suscitam afecto devido aos bons serviços que prestam aos mamíferos domésticos, defendendo-os dos parasitas.

Na Guiné, os pombos, domesticados ou não, suscitam grande consideração aos prosélitos de Maomé. O profeta, perseguido pelos seus inimigos, refugiou-se numa gruta, aberta em rochedo escarpado, à entrada da qual uma pomba chocava num ninho e que não se assustou com a sua presença.

Entretanto, chegaram os perseguidores e a ave espantou-se; entenderam não entrar na gruta porquanto, concluíram, se o profeta se houvesse acolhido aí, certamente que a pomba tivera deixado o ninho… 

Os pelicanos frequentam as correntes de água da Guiné. Grandes bebedouros de água – absorvendo cerca de dez litros de uma vez – os pelicanos são figuras de relevo no folclore muçulmano.

Na Guiné, os Beafadas nunca comem nem molestam jagudis, aves parecidas com os perus, porque as consideram almas dos seus antepassados, nem permitem maus tratos a quaisquer aves que pousem nas árvores vizinhas das suas palhotas, tomando-as como seus hóspedes.

Ignoramos se a carne de grou é aqui tida como remédio de longevidade. Tucanos igualmente se mostram na Guiné Portuguesa.

Lindos colibris ou beija-flores, tão abundantes no Brasil e nas Guianas, também há muitos na Guiné Portuguesa.

Na Guiné Portuguesa é vulgaríssimo o papagaio-cinzento, ao qual os árabes denominam ave-homem.

E não poremos termo a este artigo sem citar outra ave interessantíssima: o avisador do crocodilo – designação que lhe impuseram os árabes; trata-se de uma pernalta a que os Fulas chamam ave-da-areia. Quando o réptil se expõe ao sol, o passarito sobrevoa-o e, célere, introduz-se sem medo nas fauces hiantes e hediondas do monstro; entra na boca escancarada do sáurio com o fito de retirar-lhe de entre os dentes as partículas de carne e apanhar os vermes que as infestam. O crocodilo nunca importuna o seu comensal; é que este, além de ser agente de limpeza bucal, ao pressentir qualquer animal perigoso para o réptil, salta rapidamente para cima das mandíbulas e não se cansa de as picar enquanto o lagarto não se precipitar nas águas fundas do rio. Também a tarambola armada do Senegal, ave odiada pelos caçadores, dá sinal da presença deles aos animais da selva.”



Jagudis, os melhores varredores de lixo da Guiné-Bissau…
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18426: Fauna & flora (14): quando os animais emigram para o vizinho Senegal... (Cherno Baldé)