segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5709: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (2): A(s) guerra(s) e a(s) maneira(s) de a(s) fazer

1. Mensagem, com data de 15 do corrente, enviada  pelo ainda recente membro da nossa Tabanca Grande, Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), empresário hoteleiro, camarada e amigo do nosso JERO

Assunto - A(s) Guerra(s)

A Guerra é, provavelmente, o alvo mais recriminado pelos Humanos; no entanto ela existe, prolifera e espalha-se intensamente por todos os cantos do mundo. Muitos a contestam, a detestam, a abominam... mas milhões a praticam todos os dias.

Uma coisa é matar para não morrer – uma inevitabilidade. Mais recriminável é matar aos milhares, cidadãos indiferenciados que nada de mal fizeram para que tal lhes acontecesse... apenas estavam no local certo (errado) à hora certa.

A Guerra é, digo eu, a mais antiga profissão do mundo!

Há quem defenda que a mais antiga é aquela outra actividade... a "da perna aberta" ou "à vela" que se praticava (pratica?) largamente na mata de Monsanto e continua abundantemente na margem de muitas estradas deste nosso rectângulo à beira mar plantado.

Os defensores desta são principalmente as "rachistas" que gostam muito de dizer coisas. Eu, porém, continuo a defender a "minha dama" e apresento argumentos.

Vejamos!: Caím, em tempos bíblicos, talvez com um único pontapé, não se sabe bem onde – mas suspeita-se, - enviou o irmão, Abel, para o Jardim das Tabuletas.

Terá sido esta a guerra mais mortífera e a mais curta de que há memória; uma elevadíssima percentagem dos habitantes do planeta foi, naquele momento, prestar contas ao Criador. E nessa altura ainda não havia sido inventada aquela terrível arma devastadora a que se convencionou chamar "coup de poing".

A arte de lutar, porém, evoluiu "rapidamente" durante os milénios que se seguiram. Mais ou menos sequencialmente, usaram-se pedras, facas (de madeira, antes e metálicas, depois) espadas, lanças e setas; no lado oposto apareceram os antídotos: os escudos (primeiro de couro... depois metálicos), elmos, capacetes e as pesadas armaduras que atingiram o auge na Idade Média. Surgem os castelos fortemente resistentes construídos em pontos estratégicos e/ou de difícil acesso.

A cavalaria foi durante séculos a implacável decisora de vitórias e derrotas.

Com a Guerra dos Cem Anos, em França, e a sua ramificação na Península Ibérica (a Luso Castelhana Guerra da Independência) a Infantaria passou a ser – defendem os Infantes – a rainha de todos as armas.

De facto quer em Poitiers e Azincourt quer em Aljubarrota e Valverde a Infantaria dizimou as fortíssimas cavalarias francesa e castelhana.

A evolução acelera com os canhões, as espingardas, os carros de combate (os substitutos das romanas catapultas) e os castelos passaram a ter interesse apenas para o turismo; aparece a aviação, as bombas atómicas e quejandas... e os mísseis; surgem outros antídotos: abrigos, bazucas, ati-aérias e os anti-mísseis.

Quando parecia que tinham sido já inventadas todas as belicosas armas mortíferas e os diferentes modos de as usar... eis que surgem outras variantes: a guerra fria, a psicológica (era a que meu pai – que Deus o tenha em bom lugar – usava comigo – só contarei a pedido) os movimentos autonomistas e emancipalistas que trazem consigo a guerrilha e por fim os homens-bomba. Será o fim? No mínimo é o fim dos que se fazem explodir. Isto não é guerra... é doidice!

É na guerrilha que vamos deter-nos; com ela todos convivemos cerca de dois anos. A guerrilha é mais uma maneira "legal" de matar em que pequenos grupos armados (bate e foge), militarizados ou não, substituem batalhões, divisões e exércitos numerosos.

Na nossa guerrilha não consta que houvesse homens-bomba mas havia minas e armadilhas, armas altamente perigosas e nada selectivas. A diferença é que aqui o seu autor, em princípio, não vai accioná-las.

Na guerrilha (talvez mais que nas guerras de numerosas gentes) a inteligência, a esperteza, a imaginação e o conhecimento do terreno são atributos da maior importância, ultrapassados, talvez e só, pela "posse" da população não combatente – como defendia Mao Tsé-Tung. Como afirmei em texto anterior, pertenci à CCaç 675 e pertencerei até ao fim dos meus dias.

O nosso capitão, além de "secreto" estudioso de Mao, era extremamente inteligente e sabia muito de guerrilha; ensinava-nos quanto podia; não seríamos tão bons receptores como ele era bom emissor; fazíamos o que podíamos.

Normalmente os nossos instrutores da E. P. (Escola Prática) sabiam apenas (ou quase) o que vinha no Guia Oficial Miliciano – creio que era este o nome. Mas também o(s) seu(s) autor(es) pouco mais seriam que aristarcos de outros aristarcos e nós... carne para canhão.

Se seguíssemos à letra o que vinha no livro, na Guiné não poderíamos montar emboscadas segundo aqueles cânones.

Sendo o terreno quase completamente plano (o ponto mais alto – cerca de 220 m – chamava-se Cuntima que significa colina do Norte) não existiam os tais obstáculos na berma da estrada para evitar a fuga de quem era emboscado. Esquecendo as regras ensinadas na E.P. montaram-se muitas emboscadas bem sucedidas.

Lembro aqui um alferes, meu instrutor em Mafra, que, quando chegou à Guiné, em Janeiro de 1966, me perguntou, no QG de Bissau, como reagíamos, lá às emboscadas. Resposta directa:
- Tal como me ensinaste em Mafra! Lembras-te?!

Ao que ele retorquiu:
- Lá, cada um "largava a posta" como podia!
- Havia muitas maneiras de "largar a posta" e tu não respeitavas sequer os teus subordinados, o que molestou muita gente.

De seguida, no café do Bento, contei-lhe como na CCaç 675 reagíamos às emboscadas e outras coisas de interesse... e logo ali o diferendo ficou sanado.

Há varias maneiras de fazer guerra segundo a imaginação e o saber de cada um:

A - Guerra "amorosa" e respeitosa

Um dia aprisionámos uma mulher de 30/40 "chuvas" (esta veio connosco). Dias depois o "capitão, com a necessária e prestimosa ajuda do nosso guia, perguntou-lhe se preferia continuar junto da tropa ou regressar ao mato. Desculpa atrás de desculpa... manifestou vontade de voltar ao seu "chão"... por causa da família.

O capitão ofereceu-lhe cerca de uma arroba de arroz e uns "panos" – manga de ronco – e transmitiu-lhe o seguinte recado:
- Vais dizer ao pessoal que retire os abatises entre Banhima e o rio Buborim (limite oeste de nossa zona); caso tal não aconteça destruirei os vossos acampamentos e não há mais arroz nem panos para ninguém !

Este vosso escrevinhador foi incumbido de transportar a "prisioneira" (ex) até ao primeira abatis. Lembrei-lhe ali o recado do capitão e imformei-a que não podia levá-la mais além porque as viaturas não podiam passar.

Uns dias mais tarde voltámos àquela zona e já não havia obstáculos na estrada; como não podiam retirar as árvores... queimaram-nos no local.

Até Abril de 1966 não houve mais abatises na estrada... mas eles abandonaram a zona.

A isto chamamos "Respeito"!... É bonito!


B – Avisar o Inimigo


Pode fazer-se guerra (não convencional) avisando amável e amigavelmente o IN dos reais perigos que pode encontrar em determinado local.

A cerca de 7 km de Binta, na estrada de Bigene, havia uma pequena ponte de madeira; os independentistas queimaram-na. Sempre que por ali nos deslocávamos (o que era frequente) usávamos pranchas de madeira e/ou as vigas em "U" metálicas das Mercedes para cruzar o ribeiro. Com aquele "toma a viga", "coloca a viga" e "recolhe a viga" perdia-se muito tempo e, com o ruído dos motores, acordávamos o IN fora de horas.

Os independentistas eram muito sensíveis! Por vezes amuavam e até faziam "birra" porque não podiam dormir a sono solto.

Era urgente mudar de rumo.

O capitão incumbiu-me de fazer ali uma ponte para que, sem dificuldades acrescidas, pudéssemos visitar os "turras" nos seus "aposentos" (covis, dizia o Alf Mendonça) enquanto iam permanecendo (por pouco mais tempo) naquela zona.

Como escrevi em texto anterior, na vida militar, especialmente em campanha, éramos "pau para toda a colher" (*).  Desta vez saiu-me na rifa ser engenheiro e empreiteiro de pontes... sem direito a apresentar a conta ao dono da obra.

Mandei rebaixar o piso da estrada cerca de 20 cm nas duas margens; derrubámos cinco palmeiras; cortámos os troncos à medida e com a ajuda do Unimog, colocámo-nos sobre o ribeiro; e qualquer das nossas viaturas já podia passar em segurança e sem mais delongas.

Aqueles troncos eram demasiado pesados para serem removidos à mão.

Na berma da estrada coloquei uma placa de "sinalização" com a seguinte informação com letra garrafal e a vermelho: "Atenção! – há armadilhas!" E desenhei toscamente dois ossos e uma caveira – sinal de explosivos.

Armadilhei apenas a placa com uma granada de mão instantânea de fabrico nacional e outra com retardador, de fabrico canadiano.

O IN passou por ali; achou graça àquela informação... real e sincera; arrancou a placa e... pum-pum... a armadilha funcionou.

Inicialmente não acreditaram na veracidade do aviso mas convenceram-se que haveria ali mais explosivos porque nunca mexeram naquela ponte rústica e obtusa construída por um engenheiro improvisado.

Como se depreende, do que atrás foi dito, a guerra pode ser feita com carinho e respeito – 1º caso e pode ser um aviso e de forma quase lúdica – 2º caso.

Nota: quase quarenta anos depois soube por um guineense (tinha naquela época 7/8anos) que os habitantes de Binta (os naturais e os "retornados" do mato e/ou do Senegal) me apelidaram de "olho de gato" porque as minhas armadilhas funcionavam sempre.

Cumpre informar que eu não tinha o "curso de minas e armadilhas" que era ministrado a um oficial de por companhia durante 3 ou 4 horas de instrução. Pensem nisto! Era mesmo assim!

Sexta, 15 de Janeiro de 2010

Belmiro Tavares (P)
Ten Mil

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]

2. Comentário de L.G.:

Sobre a guerra haverá centenas, milhares, de citações... Gosto de algumas, mais sociológicas e pragmáticas como de Clausewitz (1780-1831), o general prussiano que combateu Napoleão: "A guerra é a continuação da política de Estado por outros meios", o que implica a subordinação do poder militar  ao poder político e primado das questões éticas... Ou se quisermos o objectivo da guerra não é levar à destruição total do inimigo, mas levá-lo à mesa de negociações, onde os termos de troca são sempre mais vantajosos para os vencedores...

Outras definições são mais morais e filosóficas como a do nosso  Padre António Vieira, grande mestre da lusofonia:  “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”. (In: Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, II).

E gosto da definição do Belmiro, pura e dura: "A guerra ?  Há muitas, tantas quantas as maneiras de a fazer....". Alguns dirão que é uma definição "cínica"... Mas, e a guerra de guerrilha e de contra-guerrilha ?  Também aqui vale  tudo ?

A segunda história trouxe-me à memória o debate que ocorreu em França há muitos anos (talvez nos anos 70 ou 80) a propósito de um caso que deu brado na comunicação social, no sistema judicial e no meio político... Farto de ver assaltada a sua casa de campo, um antigo veterano da guerra da Argélia lembrou-se de armadilhar a porta de entrada... Mas não descurou a sinalização de segurança: "Cuidado, entrada armadilhada"... O ladrão seguinte teve azar: não sabia ler...

Um Alfa Bravo, Belmiro. LG
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Nota de L.G.:

Vd. primeiro poste da série de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5336: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (1): Quatro Histórias com Mural ao Fundo

Guiné 63/74 - P5708: Notas de leitura (59): Armor Pires Mota (4): Cabo Donato Pastor de Raparigas (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Depois da jornada de ontem, na Livraria Verney, ouvindo, comovido, as impressões e comentários que o Luís foi transmitindo a uma assistência marcadamente militar sobre os meus livros, regressei a casa a gritar com um ataque de ciática, fui parar à urgência de Santa Maria e aproveitei aquela confusão entre a madrugada e o amanhecer para ler estes dois livros do Pires da Mota.
Li praticamente tudo de pé, as dores não consentiam outra posição. Aproveito para agradecer a presença de muita malta da tabanca grande que veio até Oeiras, para nos escutar.

Um abraço do
Mário



ARMOR PIRES MOTA (4)
Da poesia “Tempo em que se mata mesmo em que se morre” até ao livro de contos “Cabo Donato Pastor de Raparigas


Beja Santos

A comissão na Guiné marca a maior parte das obras de Armor Pires Mota. Já referimos “Tarrafo”, referência incontornável da literatura da Guerra da Guiné (testemunho em directo, publicado no Jornal da Bairrada, um género de diário que, por definição, não podia ter retoques, o repórter estava sempre em cima do acontecimento, o seu teatro de operações, mais ninguém se abalançou a tal temeridade), “Baga-Baga”, uma poesia nostálgica, um suplemento lírico filtrado de “Tarrafo”; e “Guiné, Sol e Sangue”, uma sequência de narrativas e contos em que Pires Mota retoma o seu itinerário de combatente e vem dar algumas justificações ideológicas para a guerra em que participou. Tudo isto entre 1964 e 1968.

Em 1974, volta à poesia, tumultuam na maioria dos seus poemas imagens impressivas da guerra: morros de baga-baga, corpo metralhado, dedo no gatilho, um obus, uma granada, por cada emboscada ganha, a água do tarrafo... ou então

Nos olhos espantados do negro Mamadu de Có
fumega ainda um sangue solene e espesso,
colheu-o a noite de aço, suor e pó

...............................................................................

É inútil fugir, mãe, fugir à sorte
e vou morrendo assim,
de granadas na mão,
morrendo a hora, o capim

................................................................................

companheiros, tombados no tarrafo, de pé,
vêm reunir-se dentro de mim.


O seu livro de poesia “Tempo em que se mata mesmo em que se morre” abraça as recordações do combatente, o sofrimento pela incompreensão de muitos face à guerra em África, adquire tons épicos e uma toada lírica onde não está ausente a sua filiação cristã, a sua fé inabalável.

Cabo Donato Pastor de Raparigas” é uma grande surpresa. De contos se trata, histórias sem conexão em que Armor Pires Mota cede à pilhéria, ao rocambolesco, à sátira política, mas também aos pungentes amores da guerra, a brutalidade de interrogatórios, as façanhas dos boinas verdes.

Tudo começa na antiga sociedade, em eleições de farsa, em que o senhor conde pretende ser deputado da Assembleia Nacional contando com os votos da gente da Silveirinha. É uma paródia completa em que os senhores de antigamente procuram safar os filhos da guerra. “Os diabólicos dias de Mansabá” são seguramente autobiográficos, relatam a dureza de guerra. As melhores páginas vêem no conto seguinte “O insubmisso Vicente”, o eterno drama do jogo duplo em que Vicente não aguenta a tortura do interrogatório e procura suicidar-se. Este data de 1991, o autor perdeu a contenção deixa a prosa correr com o calão, os diálogos curtos e incisivos, o grotesco das imagens. O conto seguinte “O Menino Jesus Era Negro” é de uma enorme beleza, faz realçar uma dominante da obra literária de Armor Pires Mota que é o cruzamento afectivo entre brancos e pretos. Chegamos a “Cabo Donato, Pastor de Raparigas”, um relato de uma enorme intensidade lírica, um homem que jaz agonizante no hospital e que só pensa no seu amor por Sano, vai desfiando o seu rol de pedidos ao furriel Cunha Velho. Mas o estado de saúde melhora, os amantes reencontram-se, o que se passou depois não cabe na história, o importante são os amores que triunfam quando tudo parece caminhar para o naufrágio.

Armor Pires Mota volta aos seus grandes parágrafos. Mas ficam ainda mais surpresas para contar sobre alguém que já leva 50 anos de vida literária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5701: Notas de leitura (58): Armor Pires Mota (3): Guiné: Sol e Sangue (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5707: Estórias do Juvenal Amado (24): O Cafezinho, ou uma história de vida

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 22 de Janeiro de 2010:

Caro Luis, Vinhal, Magalhães, Briote e restante Tabanca Grande

O Cafezinho foi um puto reguila, voluntarioso, sempre a armar confusão mas todos nós miudos gostavamos da sua liberdade e do ter por perto.
Era um valdevinos mas um lider nem sempre nas melhores razões.
Tenho saudade dele, pois faz parte da minha juventude e dos tempos que já não voltam.

Um abraço
Juvenal amado


O “CAFEZINHO”

Amparado pelo enfermeiro, o “Cafezinho” deu dois ou três passos titubeantes na recepção das urgências do hospital de Alcobaça.

Um penso na cabeça denuncia o traumatismo, do qual foi tratado pelos serviços daquela unidade hospitalar. Toda a gente o conhecia. Era uma figura simpática, que nos habituámos a ver passar numa pasteleira enorme, onde se gingava no selim para chegar com os pés aos pedais. Infelizmente o combustível da bicicleta era tinto normalmente.

Pequeno com ar teatral, abriu os braços e num gesto de quem está num palco cantou com voz pastosa, Tuudo ééé preciso nasss passagens deeesta vidaaaaa!!

O seu nome era José, a alcunha ganhou-a quando foi preso, por contrabandear café durante a guerra civil espanhola. Uns tiveram sorte, ele teve pouca.
O filho que o esperava fora da sala, abananou a cabeça e disse:

- Pois, e agora cantas.

Todos nos rimos e o Cafezinho, aproveitou para tentar logo vender lotaria aos presentes.

Vendedor de jogo de lotaria, era um autêntico vendedor de jogo branco. Eu próprio junto numa sociedade, lhe comprei sempre o mesmo número durante uns anos. Era o 25209 nunca deu nada, até terminações foram poucas. Comecei antes da tropa e só abandonei quando saí da empresa em 1980.

Mas a estória que quero contar é a do filho Zé Café, sim o mesmo, que o esperava naquele dia.
Andámos na escola primária até à quarta classe, embora ele fosse mais velho que eu. Era o que se pode chamar um pardal de calções, fazia toda a espécie de tropelias e arcou com muitas que ele não fez. Uma fisga era uma arma infalível nas suas mãos. Escolhia as pedras com todo o cuidado e voltava da caça com inúmeros pardais á cintura.
Era visita frequente do posto da polícia. Quando não havia culpado à vista logo alguém se lembrava do Cafezinho.

Um dia também fui parar à esquadra, por me ter envolvido à pancada com ele, coisa que me arrependi de imediato, pois levei uma carga de pancada no jardim junto ao campo de ténis.
Quem jogava ténis naquele tempo eram meia dúzia de colunáveis da terra, e pagavam aos putos para lhes apanharem bolas. Ora aí estava um bom ponto de discórdia, entre a canalha miúda.

Entretanto saímos da escola e fomos trabalhar, cada um seguiu uma adolescência diferente.

Voltamo-nos a tornar mais íntimos, quando feita a minha recruta no CICA 4 sou enviado para o RI6 na Senhora da Hora na cidade do Porto. Lá estava ele quase pronto, pois era da incorporação anterior. Eu o Zé Lourenço, que fez a recruta comigo e o Zé Café tornamo-nos inseparáveis. Vínhamos a casa de fim de semana, no regresso o Cafezinho arranjava-nos boleia, nas camionetas dos porcos do senhor Manel Inácio. O cheiro agarrava-se a nós o resto da semana.

Quando chegávamos à porta quartel por volta das três da manhã, já íamos munidos do jornal para em cima dele nos deitarmos, junto ao muro até abrirem a Porta de Armas.

O Cafezinho foi o nosso cicerone pelo Porto fora. Alguns bares na Praça da Batalha e a feira do palácio de Cristal, eram normalmente o nosso destino.
Aí o Cafezinho dava show. Nas barracas de brindes com a espingarda, era cada tiro cada gaio. Era de frente, de lado de costas, ou com um espelho não falhava um tiro. Juntava um monte de gente só para o verem disparar.
Nós três cotizávamo-nos e só ele é que atirava. No fim de cada sessão, lá vinha a prenda entregue de mau modo pelo dono da barraca, que via o negócio ser pouco rentável com gente como nós.

Um dia quando estava a dar-nos uma garrafa de ginja, que tínhamos ganho, perguntou-nos com um ar agastado se nós nunca mais éramos mobilizados.
Respondemos-lhe em ar de gozo, que já tinha passado o nosso número mecanográfico e que íamos acabar a tropa ali mesmo no Porto.

Bem o Zé Café foi para Moçambique, o Zé Lourenço para Angola e eu para a Guiné.

Quando regressamos cada um foi à sua vida, embora sempre que nos encontrávamos, havia sempre dois dedos de conversa a relembrar.

O Zé Cafezinho foi atropelado em Lisboa, esteve entre a vida e a morte, pois ficou todo migado. Nunca mais largou as canadianas, não conseguiu continuar a trabalhar na Crisal e o seu sustento foi buscá-lo à venda de jogo da lotaria, concessão que era do pai. Após a morte do pai a mesma ficou para ele. Continuei a comprar o tal número, que entretanto já não eram os mesmos do inicio a associar-se.

Há dez anos saí de Alcobaça e a morte dele passou-me ao lado. Fiquei espantado quando falei nele e me disseram que ele tinha falecido.

25209. Amanhã vou fazer um totoloto e vou utilizar os mesmos números. Talvez em vésperas de também eu engrossar o fundo de desemprego, vá buscar um pouco de sorte que o Zé Café tentou vender e nunca a teve para ele.

Juvenal Amado
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Notas de CV:

(*) Vd. ´Poste de 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5454: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (15): Tabanca de Matosinhos, Tertúlia do Cozido à Portuguesa e viva a amizade (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5041: Estórias do Juvenal Amado (23): O velho milícia

Guiné 63/74 - P5706: Em busca de... (113): Procuro reactar contactos com Amigos da CCAV 3364 (Capito Joaquim)


1. O nosso Camarada Capito Joaquim, ex-Sold. Radiotelegrafista da CCAV 3364, Ingoré - 1971/73 -, enviou-nos de França, com data de 24 de Janeiro de 2010, a seguinte mensagem:

APELO
Pessoal da CCAV 3364
Batalhão de Cavalaria 3846 (CCS, CCav 3364, 3365 e 3366)

Camaradas,

Vivo em França desde Maio de 1973 e acabei de descobrir que este blogue sobre a Guerra da Guiné, existe.
Foi com muita alegria que o descobri, pois também estive lá entre 1971 e 1973, na CCAV 3364, como soldado radiotelegrafista, em Ingoré.

Nunca mais encontrei ninguém desta minha companhia.

Sou Alentejano, de Selmes, uma freguesia de Vidigueira, perto de Beja.

Obrigado gostava tanto de encontrar os meus amigos da companhia, como o Pinela, o Arganaça, o Gameiro, ect.
Para todo e qualquer contacto, o meu e-mail pessoal é: capisat-santana@hotmail.fr

Um abraço,
Capito Joaquim
Sold Radioteleg da CCAV 3364

Emblema e guião de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Deste batalhão temos notícias no poste P2601, do programa do seu Encontro Anual de 2008, através do nosso Camarada Delfim Rodrigues, que a certo momento diz:

"Para qualquer dúvida ou esclarecimento necessário poderão contactar:

Alberto Toscano - 912381293 - albertotoscano@sapo.pt

Carlos Conceição (Xina) - 919489378 - carlos_m_novoa@hotmail.com

T.Col. Bernardino Laureano - 966452001 - laureano@netmadeira.com"

Cremos que seria um bom início de busca dos seus Camaradas e Amigos da Companhia, o Capito Joaquim contactar, via telemóvel ou e-mail, estes três seus Camaradas do batalhão, que poderão ter boas notícias sobre aqueles que ele procura contactar.

(*) Vd. último poste da série em:

domingo, 24 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5705: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (21): As diversas formas do medo

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2010:

Caro Carlos:
Em anexo mando a estória n.º 21 para a série A Guerra Vista de Bafatá.

Estive hoje na Tabanca de Matosinhos. Estavam lá 50 camaradas.

Um abraço, boa noite e até para a semana (espero).
Fernando Gouveia



A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

21 – O Medo


Recordo com saudade quando um dia, com os meus sete ou oito anos, fui com o meu pai à caça lá no meu Nordeste Transmontano e no regresso, já noite pois era Inverno, nos sentámos numa fraga a retemperar forças para chegar à aldeia.

Ali naquela escuridão o meu pai deve ter achado, com alguma razão, que eu estava com medo e num gesto que nunca mais esqueci, sem nada me dizer, pegou na espingarda e deu-ma para eu pegar nela.

Podiam vir todos os lobos, todos os monstros, tudo o que podia meter medo, mas aquele gesto apagou todos os meus receios ficando com uma paz interior que me fez esquecer todos os papões.

Outra recordação, agora da instrução em Mafra (Maio ou Junho de 1967): Ensaiávamos um exercício que constava em saltar, com a arma, de uma viatura em andamento. Pois bem, um camarada cadete não conseguia saltar, nem com a camioneta a andar lentamente. Os instrutores fizeram de tudo e disseram de tudo (até da mãezinha) para ele saltar e nada. Por fim pararam a viatura e mandaram-no saltar. Tremendo como varas verdes, não saltou. Isso já era medo levado ao extremo.

Também, e agora já na Guiné, recordo-me de ouvir por mais de uma vez, aqueles episódios de camaradas que no desencadear de uma emboscada IN se escondiam atrás de troncos de árvore, com sete ou oito centímetros de diâmetro. Isso seria medo totalmente descontrolado.

Já noutra estória descrevi a penúria de armamento, aquando da minha estadia em Madina Xaquili. Nunca lá senti medo. Também quando lá entrei numa operação em que cruzámos trilhos IN, daquele dia ou do anterior (era fácil a datagem por o capim ter um palmo), não senti medo. Em ambas as situações era eu que as controlava.

Pessoalmente e que me lembre, como adulto só senti medo por duas vezes e, na Guiné, de forma algo caricata. Considero que tive medo exclusivamente por não ser eu a controlar as situações.

Senti medo, quando chegado à Guiné e colocado na 2.ª REP do CG (onde estive quinze dias no ar condicionado, antes de ir para Bafatá), ao fim de quatro ou cinco dias fui escalado para Oficial de Ronda. A ronda consistia em ir num jeep com um furriel e dois soldados, percorrer os subúrbios de Bissau, por zonas de picadas, sem luz, e algum mato. Como era periquito limitei-me a seguir as indicações do Furriel, requisitando para o efeito uma pistola. Se lá continuasse a fazer esses serviços levaria armamento mais adequado e tentaria convencer os superiores a colocarem à disposição pelo menos dois jeeps. Não gostaria nada de ser apanhado à mão, o que naquele caso era simples. Senti medo sim.

O meu quarto (8 camas) durante os quinze dias em que estive colocado na 2ª REP do CG.

“A Santa Catarina” de Bafatá. A rua principal de comércio, com o cinema, o mercado, etc.

Em Bafatá a um mês ou dois de terminar a comissão, estando depois de jantar à conversa com o médico do Batalhão (comandado pelo Ten Cor Banazol), resolvemos ir à caça, no jeep que ele tinha à disposição. Fui buscar a caçadeira, e na viatura fomos andando pela estrada velha de Nova Lamego (uma picada) esperando que nos aparecessem uns coelhos (que por acaso eram lebres). Muitos já tinha matado dessa maneira, mas dessa vez não aparecia nada e o médico lá ia conduzindo. Um quilómetro, dois, quatro, sete, uma infinidade de quilómetros. Comecei a achar que já tínhamos ido longe de mais. Não dei parte de fraco. O médico então disse que era melhor voltarmos pois não havia nada. Era do que eu estava à espera. Aguentei firme, mas cheguei a ter medo. Mais uma vez não era eu a controlar a situação e continuava a não gostar de ser apanhado à mão.

Até para a semana camaradas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5566: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (20): Memórias paralelas

Guiné 63/74 - P5704: Humor de caserna (19): Mansambo no seu melhor (Parte III) (Carlos Marques dos Santos, CART 2339, 1968/69)



Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) >  Foto 10 >  "Vamos entrar na marcha, pergunta-se ?"




... Foto 11 > "Começa a marcha. Nem as mesas escapam."




... Foto 12 > "Em bicha de pirilau”.



... Foto 13 > "E no final porque não cantar um fado de Coimbra ?"


Fotos e legendas: © Carlos Marques dos Santos (2007). Direitos reservados



1. Terceira e última  parte do texto e imagens enviadas pelo Carlos Marques dos Santos (ex-Fur Mil, CART 2339, Os Viriatos, Mansambo, 1968/69), em 18/3/07 > O bunker de Mansambo no seu melhor, uma noite de alegria colectiva, aí por volta de Novembro de 1968, um ano antes o regresso a casa, à doce casa...


Epílogo:

As noites longas de Mansambo. Rentabilizar o tempo entre guerras era a palavra de ordem.

Nota final:  fotos pessoais.  Os figurantes são pura ficção e aparecem porque estavam no âmbito da focagem.

As fotos foram conseguidas por acção de uma Olimpus Pen e reveladas em Mansambo (o fotógrafo e o técnico de fotografia eram residentes).

Os slides foram revelados em Barcelona, porque na Metrópole ainda não havia o conceito das novas tecnologias. Estávamos orgulhosamente sós e por aí continuámos mais uns anos.

CMSantos
Ex-Fur Mil

2. Comentário de L.G.:

Em 14 de Abril de 2006, o Carlos interrogava-se, a ele próprio, e interpelava-nos:

"(...) Fico, às vezes, espantado com a fluência de histórias que aparecem contadas e, muito mais, vividas. Eu que estive sempre, mas sempre, entre quatro arames farpados, que estórias tenho para contar!? Nenhumas.

"Nada, rigorosamente nada, a não ser, o ter comido mancarra verde para matar a fome de três dias, mandioca apanhada da terra, água dos charcos das picadas, feijão frade durante um mês, a ração de combate deitada fora porque era doce e salgada ao mesmo tempo.

"Sede. O banho, aproveitando a água das chuvas. Ou, então, sem água durante um mês em destacamentos isolados. 5 ou 10 litros de água bebida em sofreguidão quando chegava ao aquartelamento." (...).

Carlos:

Quem te disse que não tinhas histórias para contar ? Viveste meses e meses a fio a constuir um aquartelamento, os bunkers de Mansambo, de pá e pica na mão... Dormiste meses e meses nesses bunkers... Sobrevivestes meses e meses a fio, neste sítio que não vinha no mapa... Tu e milhares e milhares de camaradas, ao longo de anos, em dezenas e dezenas de bu...rakos como este... A CART 2339, unidade de quadrícula do Sector L1,  no famoso triângulo Xime-Bambadinca-Xitole,  cumpriu a missão que lhe atribuiram, que era manter aberta a estrada Bambadinca-Xitole...

Quantos Mansambos não houve na Guiné, de norte a sul, de leste a oeste ?... Era um universo concentracionário... Não cometeste nenhum crime para seres condenado a um tal degredo, a não ser teres nascido porventura no ano errado e no país errado... Sobreviveste, não enlouqueceste,  roubaram-te uma parte da tua vida, da tua juventude, dos teus sonhos...

A tua foto-reportagem sobre uma noite de Mansambo (para quê adjectivar ? louca ? longa ? absurda ?...) é um notável documento que um dia os teus netos irão  ver e ler com outros olhos que não os nossos... E seguramente compreender:
- Um dia o meu avô foi para a guerra, lá longe, na Guiné-Bissau,  e teve meses e meses a fio a viver e a dormir debaixo de terra como os ratos, as toupeiras... Ao todo dedicou 3 anos à sua Pátria como soldado... Eu tenho orgulho no meu avô que foi um homem digno...

Carlos, obrigado pelas tuas fotos e legendas: este também é o outro lado (oculto e, muitas vezes, ocultado) da guerra... Não vamos ignorá-lo, nem escamoteá-lo, nem branqueá-lo. Não vamos vitimizarmo-nos, mas também não vamos pormo-nos em bicos de pés. Simplesmente estivemos lá, em Mansambo e em tantos outros bu...rakos da Guiné! ... E sabíamos uma coisa importante: que o nosso país não poderia continuar a estar ou sentir-se orgulhosamente só...

Nós estávamos sós, nos Mansambos da Guiné, mas não orgulhosamente... Batemo-nos, com dignidade, para que o poder político de então encontrasse uma saída,  histórica,  para a nossa solidão... Podes achar que as histórias de Mansambo não tiveram nada de exaltante nem muito menos de heróico: deixemos os heróis no Olimpo, junto dos deuses; retomemos o nosso lugar entre os homens... neste pequeno rectângulo do mundo que nos coube em sorte. 

Espero que esse coraçãozinho continue a bater forte, meu amigo e camarada Carlos Marques... Um beijinho à tua Teresa. E até ao nosso próximo encontro.  Luis

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores da série:

16 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5654: Humor de caserna (18): Mansambo no seu melhor (Parte II) (Carlos Marques dos Santos, CART 2339, 1968/69)

 3 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5585: Humor de caserna (17): Mansambo no seu melhor (Parte 1) (Carlos Marques dos Santos, CART 2339, 1968/69)

Guiné 63/74 - P5703: O cruzeiro das nossas vidas (15): O dia do embarque (José Marques Ferreira)


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 22 de Janeiro de 2010, a seguinte mensagem:


Camaradas,

Peço desculpa, mas hoje «engatei» a linha de produção, e aqui envio nova estória.

Esta estava prometida há tempos, pois já contei o regresso. Faltava contar alguma coisa sobre o embarque.
A foto pode ser complementada com uma legenda do género: «Maçarico para a Guiné, a bordo de um monte de sucata».

Aliás, é visível!

O DIA DO EMBARQUE


Já o disse aqui e repito-o sem entusiasmo…

Embarquei naquele local conhecido de todos, em Lisboa, no dia 14 de Julho de 1963.

Já pouco tenho gravado na memória desse dia. Não tinha ninguém a despedir-se de mim na Rocha do Conde de Óbidos, ou por ali perto.

Quase que não lembro como foi, talvez psicologicamente “anestesiado”, quase não dei pela minha entrada no barco. Dessa anestesia, ficou-me o desejo, lembro-o hoje, que a poderia ter evitado… não sei. Quase perdi a total percepção dessas coisas.

Há pelo menos uma que fiz e lembro bem, é que nunca apresentei um documento comprovativo das minhas habilitações literárias, ao tempo do ano de 1963, porque tinha receio de ir para a tropa muito tarde e de ir cair a sítios que, naquele tempo, seriam considerados de maior risco, como por exemplo uma das linhas da frente dos combates, em Angola.

Na Guiné, em 1963, as coisas não estariam tão más quanto isso, pois nessa terra vermelha de sangue, suor e lágrimas (Armor Pires Mota), a guerrilha estava em «preparação» e «organização». Não me enganei, embora já existissem zonas de constante actividade guerrilheira.

Voltemos ao assunto, embarque.

E lá entrei no barco, qual carga de gado vivo, que se chamava «Sofala».

Como era preciso cumprir as ordens de Salazar (porra, sempre este nome a vir à baila, quando falamos da nossa juventude toda ela passada sob o síndrome da guerra colonial), que dizia «rápido e em força». Nem que fosse preciso tratar as pessoas como meros animais, que entravam num cargueiro sem condições para transportar o que quer que fosse, quanto mais pessoas!!!

Ele eram porões e mais porões, num cargueiro enorme, “carregado” de milhares de homens uniformizados militarmente, qual quantidade enorme de carne para canhão, ali metidos, tendo ainda, por baixo desses porões, uma quantidade enorme de outros soldados com viaturas, armamento, máquinas e munições… muitas munições.

Quer isto dizer que aquele barco, o «Sofala», que nos levava, com pouca preparação, para um distante, desconhecido e estranho sítio, carregado até mais não poder.

E lá partimos. Iniciava-se, naquela altura, a construção da ponte, que nem o nome que lhe foi atribuído após ser terminada me atrevo a pronunciar (não é que o actual “baptismo” da mesma me seja acomodatício, mas gostaria que um crânio, mais iluminado, lhe tivesse atribuído outra “nomenclatura”).

E lá fomos. Penso que saímos de tarde, ou terá sido de manhã? Não, não estou a brincar, já não me lembro daquele que deveria ter sido o dia que me ficassem gravados, na memória, todos os momentos e acontecimentos.

Sei, é que no mesmo dia, ou no dia seguinte, todo aquele monte enorme de ferro em que eu ia deitado (uma enorme fonte de perigo sujeita a ir pelos ares e a ficar feito em frangalhos a qualquer momento), avariou. Estivemos então à deriva, em pleno alto mar sob balanços constantes, até ao meio da tarde.

Raro foi aquele que não «deitou a carga ao mar». Eu fui um deles.

Logo que a avaria foi consertada, continuamos a agoniante viagem até à foz do Geba.

Já se cheiravam às águas do Geba e das bolanhas, quando fomos sobrevoados por alguns aviões, que certamente vieram ao nosso encontro. Como estávamos perto da costa, asseguravam-se que a «valiosíssima» carga que o navio transportava chegava em boas condições, não fosse o diabo tecê-las.

Como muitos outros já haviam chegado um dia, também aquela abantesma, chegou a Bissau, tendo de ficar aproado no meio do Geba. E de imediato a «descarga» começou…

Fomos transportados para a Escola Primária “Teixeira Pinto”, próxima do depósito de água, no Pilão, e ali permanecemos uma semana. Já aqui contei este pormenor…

Depois, entregaram-nos a «ferramenta» nova (G3) e lá partimos rumo a Ingoré.

Era o momento ideal para terminar aqui esta estória, mas não o quero fazer sem evidenciar, mais uma vez, as miseráveis condições em fomos transportados naquele flutuante e famoso ferro velho, quase apodrecido… no qual cheguei a ir ver a casa das máquinas. Eram indescritíveis as condições de trabalho daquela gente.

Também tive a rara oportunidade de ver no mar, peixes voadores e o «mar chão» que nunca tinha experimentado! Que grandes e belos espectáculos!

O barco em viagem, rasgando as águas marítimas parecia deslizar, qual automóvel em tapete de alcatrão!

Um abraço aos tertulianos e colaboradores que muito prezo,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

10 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5248: O cruzeiro das nossas vidas (14):Queremos o Uíge (António Dias)

Guiné 63/74 - P5702: (Ex)citações (55): Falando de descolonização com António Rosinha (José Brás)

1. Com a devida autorização, estamos a dar conhecimento à Tertúlia de uma mensagem que o nosso camarada José Brás* enviou ao nosso tertuliano António Rosinha em 20 de Janeiro de 2010, versando ainda o tema descolonização:


Meu caro António Rosinha

Antes de mais, a minha sincera afirmação sobre a completa ausência de animosidade entre nós que nem nos conhecemos, mas que tendo nascido na mesma forja histórica, muitas coisas comuns teremos e tais coisas teremos de colocar como fonte de convergência e não as outras que parecem nos separar.

Fartos de divergências deveríamos estar todos nesta longa e inclinada plataforma onde nascemos e onde esperamos morrer, ainda que com certezas seguras quanto ao fim, mas sem qualquer sobre o modo e o lugar e o tempo exactos.
E que não tivéssemos nascido aqui, os dois ou um apenas e outro noutro lugar qualquer do planeta, calhando, aqui mesmo ao lado, em Castela, com quem, pensam alguns de lá e de cá, nunca acertámos verdadeiramente as contas da separação.

Na verdade, tenho para mim que o desejo de ser feliz como foste em Angola, é comum a toda a humanidade, ainda que, em cada lugar, cada povo escolha caminhos lógicos e emparelhados na realidade que lhes deixaram avós.
Entre nós, portanto, não há grandes motivos para divergências tão importantes que possam obstar ao abraço virtual aqui, mas possível em qualquer lugar em que possamos encontrar-nos.
Não acredito que... acredites tu a sério, que em algumas coisas que disseste (e disseste poucas), eu não concorde contigo.

Sobre a barbárie, por exemplo, que foi aquela bagunça que sugeres e que não se exerceu e prejudicou só a brancos e ao seu País de origem mas sobretudo a negros e ao futuro da sua terra.

Sobre o espantoso drama de mais de setecentos mil cidadãos radicados e organizados em famílias, em cidades, em estruturas económicas e culturais crescentes e que de um momento para o outro se viram sem nada. Sem nada mesmo, além da capacidade de respirar, muitos mais desejando que mesmo isso terminasse face ao caos e à falta de futuro e de esperança em que se viram num instante.

Sobre a facilidade com que aquela gente ficou de se matar e destruir; sobre os massacres que cada facção, cada partido, cada grupo étnico (todos eles) perpetuou contra outros grupos, sem piedade e, muitas vezes mais parecendo que apenas por raiva.

E esta minha opinião não é de agora, embora hoje possa estar mais organizada e fundamentada. De facto, foi assim que a discuti em locais onde ela se discutia (mesmo em Luanda) e por isso, também me causei os meus próprios prejuízos, vistos de aqui, hoje, seguramente bem menos lamentáveis que os teus.

Não volto de novo à questão da falta absoluta que fez àquela terra, quem dela sabia muito, na agricultura e nas pescas, na indústria que finalmente começava a tomar alento, nos serviços, na cultura nova que não suprimindo a tradicional, se impunha como necessidade de desenvolvimento, na organização administrativa.
Assisti eu a muitas promessas, a muitas experiências de outra gente que se instalou sob a asa da solidariedade mas que de solidariedade muito poucos tinham como motivo, e mesmo os que tinham, de nada sabiam sobre a terra e nisso esbanjaram meios e esperanças.
E isto são factos que são indiscutíveis como factos, podendo apenas discutir-se as causas que os impôs, a história que os justificou e as perspectivas de modelos alternativos que pudesse dar-lhe outras feições e consequências.

Não julgas tu, nessa afirmação que fazes de que "passaste apenas por Angola, para trazer retornados e pouco mais".

De facto também vi morrer gente branca e gente preta, sendo que os matadores eram todos pretos e, nessa altura, mataram um ou outro branco e muitos milhares de pretos. De facto conheci gente que morreu, gente que matou, gente que morreu por ter matado, sempre ou quase sempre, numa sanha feroz e inqualificável.

Retornados eram para mim gente, seres humanos que construíam Angola como podiam, e se não construíam melhor era porque os seus dirigentes continuavam a ter uma perspectiva colonial e velha, não permitissem o verdadeiro desenvolvimento que a terra poderia ter.
E ajudei a tirar alguns das mãos dos movimentos, algumas vezes em condições dramáticas e de grande risco.

Há uma coisa, portanto, em que discordamos. Dizes que pontos de vista não discutes e... eu penso que é isso mesmo que se pode discutir, mais que os próprios factos em si próprios. Como dizes e eu concordo, cada um de nós tem o direito à sua opinião. Mas ter direito a opinião não quer dizer, ter direito a que discorde alguém e que, discordando, dê replica, sobretudo se o fizer de modo civilizado, melhor ainda, também fundamentando razões.

Os factos, são factos em si próprios, os cadáveres nos passeios de Luanda, a vida boa que portugueses levavam naquela cidade estupenda, o tal feijão com seu cozinhado e panelas, a vida nocturna repleta de casinos improvisados na Ilha e em sítios que já nem sei explicar onde eram mas vi, onde se ganhavam e perdiam somas avultadas numa noite, obrigando noivas viagens que eu sei e tu também, os cabarés, provavelmente ilegais onde a prostituição atingia níveis nunca imaginados aqui.

Ninguém poderá dizer-me que nas noites quentes de Luanda, bebendo a minha cerveja nos terraços dos hotéis, charlando com colegas noite dentro, não ouvíamos os tiros nos bairros da cidade ou que tais tiros eram apenas brincadeirinhas de gente com os copos disparando para o ar.
Pode dizer-se que essa não era a Luanda que vivia e desejava a grande maioria dos seus habitantes, gente de trabalho e de progresso, com famílias e amigos, com convívio são, e na maioria dos casos, provavelmente até capazes de aceitar alguma outra forma de organização social que melhorasse a vida de todos e desse mais igualdade.

Em relação à tua dificuldade de distinguir entre Salazar, Amilcar Cabral, Lúcio Lara, Manuel de Argel, Savimbi, Agostinha Neto, nada posso dizer porque esses são os óculos que conseguiste no penoso processo que te obrigaram a seguir.

Contudo posso dizer-te pelo menos uma ou duas coisas que os distinguem. Por exemplo, Salazar foi o homem que nunca quis universidades em Angola e quando as teve de aceitar eram "Estudos Gerais" e os outros foram gente que teve de vir para Lisboa para estudar na universidade. Por exemplo, Salazar foi o homem que nunca admitiu negociação e os outros foram os que sempre a propuseram antes da luta armada.

Um outro exemplo que nunca vi aqui tratado como a mim me parece que deve ser, que é o da falta de dirigentes brancos locais, capazes de organizar-se para reivindicar de Salazar mais autonomia e outra organização política e administrativa que lhes atribuísse um papel mais activo no processo de desenvolvimento.

Com uma ou outra excepção que não faz a Primavera, sempre se limitaram a ir vivendo no estatuto que era determinado em Lisboa e, com isso, não formaram os seus técnicos, os seus dirigentes, os líderes que poderiam mais tarde defender a sua visão das coisas, alternativas e, quem sabe, melhor futuro para todos.
Sofreram as terríveis consequências da selvajaria desatada no Norte em 61, aceitaram entrada de capitais estrangeiros que iam dividindo o bolo entre si, e acabaram em fuga dramática de 75, perdendo tudo e recusando perder também a vida.

De resto, também acho que apesar das dificuldades que as condições que o 25 de Abril criou para o desfecho da chamada descolonização, muita gente podia com outra atitude, garantir menos drama e mais dignidade na saída e mesmo evitar algumas das consequências que acabaram por desabar.

Não acredito (e isso é a minha opinião que pode ser rebatida) que tivesse sido possível comandar o principal do processo porque esse era já um prato forte só acessível aos patrões de CIA's e de KGB's.

E hoje?

Sabemos que no decurso do regresso, e nos anos que se lhe seguiram, os Governos portugueses cometeram erros graves face às conveniências nacionais dos dois Países. Erros de tal modo graves que obstaram até há muito pouco tempo relações mais concretas e convenientes para as partes. Em nosso lugar (se é justo dizer assim) tem-se instalado uma "cambada" de falsos cooperantes de todos os lugares do mundo, a maior parte apenas no objectivo do domínio estratégico politico e comercial muito do agrado da globalização do mercado.

Como na canção do Xico Buarque "Ai esta terra ainda há-de tornar-se um império colonial", é Angola ou angolanos que compram em Portugal, investem e comandam aqui importantes sectores da economia portuguesa. Esta facto, pelo menos para os que vêm no capitalismo e no mercado o deus do mundo, não deveria causar calafrios, já que, pensando como pensam, sabem muito bem que a internacionalização da economia terá sempre de levar a outras invasões, ainda que com armas aparentemente menos castigadoras. Naturalmente que, aceitando isso, e se nos reclamamos não racistas, não iremos opor-nos agora a que o tal capital estrangeiro venha de mãos negras.

Por mim, verdadeiro bota de elástico, tenho que dizer que sim, que é assustador tudo isso, porque, erradamente, talvez, acho que quem domina a economia... domina o resto e o resto é que me parece o mais importante, sejam brancas ou negras as carteira que investem.

E pronto, aqui me declaro farto do tema que em postes vários já trouxe, apenas com diferenças nas formas e nas vias de abordagem mas dando sempre no mesmo.

Mudarei de tema, se for capaz.

Por mim, não mais, senão o abraço.
José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5696: Controvérsias (61): Ser ou não ser (português), eis a questão (José Brás)

Vd. último poste da série de 17 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5665: (Ex) citações (50): Comentário ao texto de José Belo no Poste 5660 (José Brás)

Guiné 63/74 - P5701: Notas de leitura (58): Armor Pires Mota (3): Guiné: Sol e Sangue (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Estamos longe da prosa vulcânica de “Tarrafo”.
A profissão de fé nacionalista é assumida neste livro, dou comigo a pensar se não foi ela que contribuiu para o manto de silêncio que caiu sobre o autor.

Um abraço do
Mário



Armor Pires Mota:
Guiné: Sol e Sangue


Beja Santos

No mesmo ano em que Armor Pires Mota recebe o prémio Camilo Pessanha pelo livro de poemas “Baga-Baga” (1968), a Editora Pax publica “Guiné: Sol e Sangue, contos e narrativas”. Onde “Tarrafo” é uma descrição pungente, quase em directo, uma brutal descoberta da guerra do mato e das múltiplas insídias que espreitam o contra-guerrilheiro, onde “Tarrafo” é o diário de uma guerra que se desenvolve em espiral e para qual um jovem alferes não pode ter a nítida percepção da força irradiante do projecto de independência que lhe subjaz, fazendo desse libelo uma reportagem de grande alcance histórico, “Guiné: Sol e Sangue” é uma profissão de fé, um testemunho ideológico, uma catilinária sobre aqueles que descrêem do valor da missão que se trava nas matas densas e nas lalas guineenses. Todas as profissões de fé acabam por retocar a realidade, são a “segunda vida” das recordações, o que se pretende transmitir é que há uma fé no duro combate, é indispensável convencer os indiferentes ou os cépticos sobre a justeza daquela guerra.

Daí o tom panfletário logo nos primeiros parágrafos: “O medo é meia derrota. A guerra não se ganha nas trincheiras. Só a coragem vence falsas bandeiras e perdidos ventos. Há uma Bandeira e uma Fé... Não é a floresta tentacular que me curva a alma. É este não saber a terra que piso, a água que bebo, o ar que respiro. É não saber a verdadeira cor do inimigo... Mordido na pele da alma pelo esbrasear frenético das manhãs sangrentas, espapaçadas de suor e capim, estou com os meus soldados onde há um negro a chamar-nos, uma criança a salvar”.

Este livro de contos e narrativas retoma o percurso de “Tarrafo”, são pequenas notas do feitiço africano, o batuque, o tornado, a emboscada, a acção psico junto das populações forçadas ao jogo duplo, os poemas, os ataques de abelhas, os golpes de mão, os comportamentos heróicos, a colocação das minas, por exemplo. Veja-se esta descrição do mercado, qualquer um de nós se pode rever nesta atmosfera:

“O mercado regurgita de gente. Uma autêntica babel: fulas de sabadora branca e turbante alto, de uma estatura invulgar, balantas, espadaúdos e enodoados à flor da pele e mulheres cor de café ou chocolate gingando-se na euritmia sensual das formas de estátuas gregas. Soldados que, num crioulo feliz, compram isto e aquilo para mandarem para a terra. Gilas da Gâmbia que apregoam nossas-senhoras-de-pau-preto, gazelas, de pau sangue, trabalho em osso e couro. E o ar rescendendo a banana, a papaia, a abacaxi, um suave aroma tropical. Ali há de tudo: colares de missanga e âmbar, potes de óleo de palma e aguardente de cana, balaio de arroz e mandioca, peixe seco, ervilhas de gindungo, panos azuis-brancos, terços longos de mandinca, guarda-de-corpo com versículos do Corão, um ror de coisas úteis e bugigangas. E nesta babel vou conhecendo a África irrequieta e misteriosa”.

O autor revisita os campos de batalha, descreve as viaturas destroçadas, o tempo de Natal e toda a sua carga nostálgica, saúda os seus soldados, menciona as práticas da guerrilha. Um exemplo:

“Os terroristas ameaçam, atravessam arames na estrada, armam escaramuças, montam minas e fornilhos, intimidam as aldeias, escrevem irrisórios cartões que penduram das árvores e em francês: “nos fusils tuent tous les blancs”, “nous voulouns la paix”. Cartões irrisórios que o soldado, rindo ao canto do lábio uma ironia e uma raiva indescritíveis, desfazem com a ponta da bota.”

Finda esta viagem à matéria que já utilizara em “Tarrafo”, o autor afoita-se a contos de diferente dimensão. E aqui deixa marca literária de realce, temos aqui imagens que podem emparceirar nas melhores antologias sobre a Guerra de África. Alguns exemplos:

“Uma chuva de balas espinoteou na carroçaria, no chão. Assobios e chicotadas de loucura sob um sol violento que agulhava como serpente o dorso dos homens. E, para não esmagar a criança contra o solo, deixou-se tombar de costas e, rastejando com a inocente sobre o peito contraído, pô-la a salvo atrás do morro de baga-baga, do lado da estrada avermelhada”.

“Arrimados à frescura das paredes, fronte esbagoada em suor, barbas compridas, luzidias, braços caídos ao longo do corpo, os soldados lembravam estranha visão quixotesca. Poeira e suor desfiguravam-nos. E os olhos, inflamados pelo calor e pelas insónias, pareciam querer estoirar dentro das órbitas.

Amoleciam trôpegos de cansaço. Mas já o alferes os chamava à realidade, arrancando-os àquele torpor doentio:

- Vamos às viaturas buscar todas as pás e picaretas. Temos de construir um parapeito em volta da casa com os bidões que se encontram naquele barranco, além”.

“Alapardámo-nos. Demos de chofre com as nossas sombras num pequeno terreiro onde fumegavam restos de brasedo.

Sentinelas rondavam. Apenas duas. Paravam, cochichavam, voltavam ao eterno movimento de vai-vem. Se nos descobrissem, estávamos tramados, ou talvez não, quem sabe. Estávamos postados nos abrigos que o inimigo abrira ao rés do mato. Bastava um tiro para eles se meterem nos buracos. Era apanhá-los à mão ali mesmo. Ai se ao menos fôssemos uns dez!

Longe, rebentou intensa fuzilaria. Seria em Benna Onça? De certo, era a resposta. Tinham força aqueles cães e os chefes arremessavam-nos para a frente como suicidas. Até blufos de tenra idade. Um bom blufo era aquele que fazia história, que matava branco no mato. E os blufos iludiam-se com glória inútil”.

Armor Pires Mota revela o seu talento a descrever perfis como o do soldado Panóias, pouco dado a bravuras, folião e homem de farroncas que numa noite de serviço no posto de sentinela matou um burro, o do Sílvio, especialista de minas e armadilhas e o heroísmo de Almada Zagalo, um verdadeiro entusiasta que a todos galvaniza nas horas mais adversas.

Repete-se que esta experiência literária é uma profissão de fé de alguém que queria mostrar ao mundo a magnitude dos combates na Guiné, há imagens poderosas, mas o todo é um pouco frustre, fica bem aquém desse prodígio que se chama “Tarrafo”.
Armor Pires Mota continuará na poesia e na prosa a falar da nossa Guiné. Como veremos em próximas recensões.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5692: Notas de leitura (57): Armor Pires Mota (2): Tarrafo, o primeiríssimo relato literário da Guerra da Guiné (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5700: Tabanca Grande (200): As razões por que eu gostaria de, mas não posso nem devo, aceitar o vosso convite (Carlos Matos Gomes)




Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2000) > Parte final da comunicação de Carlos Matos Gomes, Cor Cav Ref, antigo combatente português, escritor. Título da comunicação: "Guiné 1973: Quando os portugueses perceberam que chegara o fim"...

Vídeo: 2' 57''. © Luis Graça (2008). Alojado em You Tube > Nhabijoes


1. Mensagem de 17 do corrente, do Cor Cav Ref Carlos Matos Gomes, conhecido estudioso e analista da guerra colonial, investigador e também romancista e argumentista (autor de, entre outras obras, sob o pseudónimo, do romance "Nó Górdio", 1983).

Meu caro Luís, a propósito de uma resposta minha ao post do Jorge Félix relativo ao vídeo da viagem pelo Rio Cacheu Acima (*), fizeste-me uma proposta de integrar esta Tabanca, que me fez reflectir com serenidade antes de ter responder.

A primeira reacção foi: é claro que sim!... Preencho todos os requisitos, tenho ali (na Tabanca) tantos amigos, conhecidos. O local é bem frequentado, isto é, a frequência é de boa gente, são boas as intenções e a finalidade dos que frequentam a Tabanca. Une-me aos que aqui se reúnem recordações de lugares e de tempos e ainda o afecto pela terra da Guiné e das suas gentes. Nada a obstar, antes pelo contrário, tudo me levaria a sentir-me, além de honrado, disponível para integrar este grupo como membro de pleno direito.

Mas… vamos aos mas…

Sou leitor e frequentador assíduo e muito interessado da Tabanca. Tenho um juízo sobre esta Obra. Penso, sem qualquer lisonja, para a qual tenho espinha demasiado rígida e a boca demasiado dura, que este blogue é algo de extraordinário. Um daqueles casos que nos aquecem a esperança e nos incham a alma.

É extraordinário a vários títulos: pela ideia de reunir antigos combatentes num espaço democrático (o que quer dizer de livre expressão de cada um e de obrigatório respeito por todos e cada um dos outros), onde relatassem as suas experiências de há 30/40 anos, revivessem a sua grande aventura dos 20 anos, restabelecessem contactos, amizades e camaradagens, recordassem através da escrita e da imagem os lugares, os acontecimentos e as pessoas com quem partilharam os seus tempos da guerra, que servisse até de veículo de ajuda.

É extraordinário porque tem mantido o diálogo entre pessoas com diferentes visões da guerra e das situações num elevado nível de tolerância, mesmo quando o calor provoca reacções mais ásperas.

É extraordinário porque o colectivo do blogue conseguiu criar um "espírito de corpo" entre os tabanqueiros, que se revêem nas histórias, nos convívios que se vão multiplicando, nas acções que se desenvolvem, seja de solidariedade e ajuda ao povo da Guiné, seja a camaradas em dificuldades, seja ainda a familiares que procuram reconstituir as histórias de parentes seus na guerra.

O bloque e a Tabanca são um espaço de pureza e generosidade.

A pureza do blogue e dos seus tabanqueiros tem a ver com aquilo que é a sua matriz, a sua característica fundadora, o seu ADN: o blogue serve para relatar, contar, descrever, para transmitir emoções, para despejar pesos acumulados.

O blogue é a camaradagem, o que desaconselha grandes reflexões, análises e explicações. Deve continuar assim. É a sua força.

Ora eu, pelos rumos que a minha vida tomou, se ainda mantenho a minha generosidade, perdi a pureza de reviver a guerra colonial. Isto é, eu bebo do blogue, leio o que os homens da minha idade e da minha geração que passaram pelos locais por onde eu passei escrevem sobre ela, tento perceber como, em termos colectivos, a minha geração viveu este período da nossa História. Cada pequena descrição, ou relato, ou fotografia, ou filme, que cada um coloca é para mim um objecto de análise. Não tenho, pois, a pureza indispensável para me intrometer neste ambiente, não me sentiria confortável a fazer de mais um, quando afinal eu era e sou o que está a observar.

Um dos muitos factores de interesse do blogue é ser, além de um extraordinário local de convívio para os antigos combatentes da Guiné, uma futura fonte de conhecimento para a História da guerra colonial. E este conhecimento assenta em informações, por vezes únicas, sobre determinados acontecimentos e só isso já seria muito e bom serviço, mas o mais importante é que este blogue vai permitir aos historiadores e aos interessados do futuro pela História de Portugal, pela história colonial, pela história das forças armadas portuguesas e pela História da Guiné uma visão muito real sobre os actores que estiveram no terreno.

Raramente, na história em geral e na história militar em particular é possível aceder ao sentimento, ao pensamento dos homens comuns que a fizeram. Este blogue dota os futuros estudiosos desse precioso elemento que é o de lhes fornecer o relato em primeira mão do soldado, do sargento, do subalterno, do capitão que estavam no mato, a bordo de navios, nos aviões.

Eu, pelo facto de ter enveredado muito cedo pelo trabalho de análise da guerra colonial, sou alguém que polui essa fonte. Se aceitasse pertencer à Tabanca e aceder ao teu convite, estava a seguir o meu instinto e a fazer o que eu gostaria, mas não estava a prestar um bom serviço à Tabanca (tenderia a apresentar análises e a fazer interpretações que gerariam tensões e desviariam a atenção dos puros tabanqueiros), nem estava a prestar um bom serviço ao futuro estudo da guerra colonial, pois introduziria factores de distorção na análise. Estava a fazer o que gostava, mas não o que devo,

É por tudo isto que aqui tentei resumir e sem ter a certeza de ter sido claro que, meu caro Luís, te peço para me deixares neste lugar de entre.portas, a vaguear pela Tabanca como um estrangeiro adoptado, respeitando os usos e os costumes, falando quando me autorizarem, ou quando me pedirem, saudando os que assumem a responsabilidade de manter o fogo aceso, o gado alimentado, os fracos protegidos. Sendo agradecido pelo muito que o vosso labor me proporciona, pelo que aprendo e pelas amizades que criei.

Um grande abraço

Carlos Matos Gomes.

NB: Desculpa a extensão da resposta, mas não consegui resumir e devia-te, e a todos os membros da Tabanca, uma explicação séria, sem falsas humildades, mas principalmente sem deixar qualquer mal-entendido sobre a recusa a partilhar um espaço como este que, reafirmo, honra todos os que a ele pertencem e me honraria a mim também, se não fossem as razões que tentei expressar.

[ Revisão / fixação de texto / bold / título: L.G.]

2. Comentário do Carlos Matos Gomes, com data de 21 do corrente, a uma mensagem minha em que lhe dava conta de um mesquinho e reles comentário de alguém a um vídeo com o excerto da sua comunicação ao Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008), disponível em You Tube > Nhabijao, em conta associada ao nosso blogue.

Olá, Luís, um abraço. Obrigado pelo envio do comentário às minhas declarações no colóquio. Nada a acrescentar, porque não merece resposta.


Estas afirmações lembram-me sempre uma pequena história passada com o realizador americano John Ford. Quando lhe perguntaram há quanto tempo estava em Hollyhood ele respondeu: não me lembro, só sei que quando cá cheguei, a Doris Day (uma atriz especialista em papéis de ingénua e pura) ainda não era virgem. Isto para dizer que quando andei pela Guiné ainda estes tipos não eram heróis...

Um abraço, Carlos Matos Gomes

3. Comentário de L.G.:

Carlos:

Em meu nome e dos demais editores, o Carlos, o Eduardo e o Virgínio, bem como de todos os demais amigos e camaradas da Guiné que se reconhecem neste blogue, agradeço as palavras que dizes a nosso respeito e que são um estímulo, público, para continuar...

Às vezes, as nossas forças também fraquejam e a gente tem dúvidas, legítimas, sobre o caminho a seguir... Tu bem sabes, da longa e dura experiência dos três TO por onde passaste, a começar pela Guiné, como as picadas pareciam não ter fim... As tuas palavras são um doce bálsamo para as dores do caminho e um bom tónico para prosseguir, apesar de alguns conflitos, incompreensões e escaramuças que, inevitavelmente - e por que não, saudavelmente - surgem neste percurso comum...

E queremos prosseguir, não exactamente por sentido de "missão" (não somos heróis nem iluminados, somos apenas 'common people'), mas pela simples razão de termos criado, quase sem o querer, uma comunidade de desvairadas gentes que têm, como menor denominador comum, uma experiência de guerra e o conhecimento, vivido, de uma terra...

A guerra colonial e a Guiné-Bissau (ou o discurso sobre) não são monopólio de ninguém, nem sequer mesmo dos guineenses... Este período da história comum de portugueses e guineenses está longe de estar encerrado. Vamos continuar a esforçarmo-nos por manter este espaço plural e aberto, e cultivar nosso espírito de partilha, de tolerância e de discrição.

Dito isto, entendo inteiramente as razões por que gostarias de, mas não podes em deves, aceitar o meu/nosso convite para integrar a Tabanca Grande. És uma figura pública, um autor com obra feita sobre a história e a ficção da guerra colonial, não queres com a tua presença inquinar ou enviesar as fontes subterrâneas que alimentam este blogue... É de um grande honestidade intelectual: tu não queres ser o eucalipto que seca tudo em seu redor, os poilões, os bissilões, as cabaceiras, o mangal... da nossa Tabanca Grande.

Em contrapartida, deixa-me aceitar a tua proposta de seres uma espécie de marginal-secante, alguém que está fora e está dentro, que intersecta dois sistemas... Não propriamente esse "estrangeiro adoptado" de que falas, mas sim alguém que ocupa esse "lugar de entre.portas, a vaguear pela Tabanca (...), respeitando os usos e os costumes, falando quando me autorizarem, ou quando me pedirem, saudando os que assumem a responsabilidade de manter o fogo aceso, o gado alimentado, os fracos protegidos"...

Carlos, aparece sempre que te der na real gana, entra e sai: não precisas de bater à porta...

Como bem sabes, nesta Tabanca Grande não há moranças com portas nem janelas, não há bunkers nem abrigos, não há portas de armas nem cavalos de frisa, não há cercas de arame farpado, nem muito menos campos de minas e armadilhas... No dia em que nos impuserem tal, serei eu o primeiro a escolher a picada do exílio...
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5632: Comentando o vídeo do Jorge Félix / Pierre Fargeas, sobre a viagem em LDG entre Bissau e Binta, no Rio Cacheu (Carlos Matos Gomes)

(...) 2. Comentário de L.G.: Dei conhecimento prévio deste mail ao Jorge ("Para teu conhecimento em primeira mão e incentivo para o próximo vídeo")... Quanto ao Carlos, disse-lhe o seguinte:


Carlos: Obrigado pela aplicação no TPC... LDG e não LGD: a culpa é sempre das pressas e da falta de controlo de qualidade... final.


Tudo de bom para ti e para nós em 2010. Já é altura de entrares para a Tabanca Grande, que não tem porta nem janelas...Luís