1. Tudo começou no final do ano passado, com a receção, na caixa de correio da nossa Tabanca Grande, de mensagem, datada de 4 de dezembro, com a assinatura do nosso querido amigo e camarada Manuel Joaquim, hoje professor do ensino básisco reformado e ex-fur mil ap armas pesadas inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (*).
Essa mensagem já foi aqui reproduzida (**), bem como a nossa resposta, entusiástica, acolhendo a ideia de se publicar uma seleção das "cartas de amor e guerra" do nosso Manel e da sua amada... Ao longo do mês fomos trocando ideias e afinando o modelo... Aqui vai a resposta do Manel, na mesma data, 4/12/2012:
Olá Luís, muito boa tarde! Estou a ouvir, em repetição, o 1º andamento da sinfonia nº 6 de Mahler, "vivendo" diversas interpretações e regências orquestrais. "Saí" do Haitink com a Orq. Sinf. Chicago, agora passa Berstein com a O.Sinf.Viena.
Nem de propósito: amor e guerra. As "cartas" de Gustav Mahler são as partituras que deixou. As quais, 100 anos depois da sua morte são minha companhia imprescindível. A esposa de Mahler, Alma Schindler, disse que este 1º andamento tinha sido inspirado na vida do casal, e que o seu doce 2º tema musical a representa.
Esta sinfonia é para mim como que catártica, nela perpassam os momentos felizes e trágicos da vida, as pulsões do amor, da guerra e da morte. É conhecida como "trágica" mas Mahler nunca a "batizou". Adoro a música de Gustav Mahler. Gosto tanto de Mahler que ainda ontem não resisti a rever (no Youtube.) o filme "Mahler" (1974), um trabalho sofrível e "folclórico" de Ken Russel que vi na altura da estreia, julgo que no Tivoli. Fraco filme que no entanto me escancarou as portas da música de Mahler.
Quanto à nossa correspondência de guerra (minha e da minha esposa Deonilde) vale o que vale, pouco com certeza para outros que não nós, os dois protagonistas. Não posso ceder os originais porque as minhas filhas não deixam! Tenho é algumas cartas (poucas) de outras correspondentes que posso mais tarde ceder. A quase totalidade desta correspondência por mim recebida na Guiné (muita) foi eliminada quando casei! Hoje tenho pena de o ter feito mas naquela altura não quis correr riscos de poderem surgir malentendidos, "nunca se sabe o que se passa na cabeça das mulheres!".
Concordo contigo. Quanto de diferente seria a História se não se tivessem perdido os chamados documentos pessoais dos seus intervenientes!
Voltando ao assunto, vou cumprir a minha promessa, irei enviando conforme for completando as transcrições. Penso numa coisa: não ficará "massuda" a sua publicação sem que os textos sejam acompanhados por elementos "decorativos", por ex. imagens?
Vou pensar nisso e sempre que tiver à mão fotos ou outras imagens que ache poderem complementar os textos, mandarei. Depois os meus queridos editores decidirão da justeza, ou não, da sua publicação.
E pronto. Eu cá continuo com a 6ª do Mahler, deixei passar para além do 1º andamento, tem 1h 26m de apaixonante música que me acompanhou nesta redação.
Um grande abraço, querido amigo, cá do
Manel
2. O editores e o Manel trocaram várias mensagens até se chegar ao seguinte consenso: o Manuel Joaquim, que tem cerca de 175 cartas escritas por ele e a sua amada, durante a comissão de serviço militar no TO da Guiné, será o editor da série "Cartas de amor e guerra". Aqui vai mais uma mensagem do editor L.G., de 14/12/2012:
Manuel: És um homem superiormente inteligente e, mais do que isso, sábio... As tuas cartas conterão, seguramente, dados sensíveis. Terás que te proteger, a ti e ao amor da tua vida... Há coisas, episódios, pensamentos, desejos, pequenos segredos, etc,. que não vais querer partilhar na caserna e na parada...
O teu gesto - partilhar a tua correspondência íntima - é de uma grande nobreza, e eu espero que seja recebido com apreço e gratidão por todos os leitores do blogue (só este ano, vamos ultrapassar o milhão e 200 mil visitas!). É um serviço que prestas à Pátria, a tua terra, aos teus filhos e netos, aos teus camaradas, ao tempo e ao lugar em que nos coube nascer. Poucos de nós terão um acervo tão rico como o teu, em matéria de correspondência íntima, ao fim deste século!... Além disso, eras professor, já trabalhavas, tinhas namorada, tinhas outra maturidade que muitos não tinham quando foram para a tropa (, nomeadamente os milicianos).
Em suma, faz todo o sentido a nossa proposta: tu é que vais ser o editor da tua série "Cartas de amor e guerra" (título provisório)... Talvez que um dia se justifique até a sua publicação em livro...As filhas do António Lobo Antunes fizeram.no, depois da morte da mãe (que tinha os aerogramas todos guardados do marido, e agora escritor famoso)... Não sei se conheces o livro: limita-se a reproduzir na íntegra, sem rasuras nem censuras, todas as cartas mandadas pelo ALA à esposa recém casada... Mas aqui, para além do gesto de amor filial, havia também a uma "estratégia de marketing"...
No blogue, publicares as cartas todas na íntegra, a seco, seria uma "seca"... tens que selecionar o que achares de interesse geral, para os nossos leitores, e para ti... No fundo, as cartas são parte da tua história de vida, e da relação com a tua mulher...Há coisas, nas entrelinhas, que só tu podes explicar. Por certo, que não contavas tudo, de maneira explicita, nomeadamente coisas do foro militar (operações, etc.). Tens a agora a oportunidade de enriquecer esse material epistolar com pequenas introduções e notas...A ordem cronológica parece-me bem, embora às vezes os assuntos possam ser interligados: o natal no 1º ano, o natal do 2º ano... Tens toda a liberdade para organizar os postes... Convirá é manter uma certa regularidade, no mínimo semanal (...).
Bom, entende isto como sugestões apenas. Tens muitos graus de liberdade... Um xicoração meu e dos coeditiores. Um alegre Natal para ti e toda a família. Mantenhas para o Zé Manel. Um beijinho para as tuas queridas mulheres (que eu conheci em Monte Real). Luis Graça.
4. Com mensagem de 4 do corrente, enviada pelo Manel, ficávamos com a certeza de que a série "Cartas de Amor e Guerra" iria arrancar cno início do ano da graça de 2013, e que viria a ser muito bem recebida por todos os nossos amigos e camaradas da Guiné:
Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Junto envio o que poderá ser o primeiro poste da minha possível série "Cartas de amor e guerra".
A minha primeira ideia, que vos comuniquei, foi a de vos entregar todo o meu acervo de correspondência do meu tempo de guerra (são à volta de 180 cartas) a fim de poder ser publicado no blogue seguindo o vosso critério de escolha sobre o que publicar.
Na sequência da troca de ideias vi que tal ideia, por motivos editoriais e até pessoais (meus), não tinha pernas para andar, "o que é demais parece mal!". E assim, se o projeto for avante, irei paulatinamente compondo os postes com excertos das minhas cartas de guerra. Por princípio seguirei a ordem cronológica pelo que estou a enviar o 1º trabalho tendo como base as duas primeiras cartas.
Prevejo compor cerca de uma dezena de postes", quer dizer, poderia fazer muitos mais mas temo que não seja, editorialmente, uma boa ideia.
Sou de opinião de que toda a correspondência de guerra é importante, qualquer que seja o seu tipo e a sua qualidade e muito mais o será conforme o tempo vá passando e a memória viva dos seus intervenientes se vá apagando. Será sempre um contributo importante para, no futuro, se formar uma mais correta visão histórica sobre os factos.
Aguardo a vossa opinião, se for caso disso, sobre este assunto. O tema deste 1º trabalho é simples de tratar , é universal, nunca traz novidades, é o momento da despedida de dois seres que se amam e que partem separados para um futuro incerto onde, sobre as suas cabeças, pairam as sombras do sacrifício e da morte. (...)
CARTAS DE AMOR E DE GUERRA (Manuel Joaquim) (1): A separação e a partida
Imagem de excertos dos originais da 1ª carta de cada um dos namorados, escrita após o meu embarque.
Foto nº 1 > Lisboa, 31/07/1965 > Num cais do Tejo, a dolorosa despedida. O “Niassa” prepara-se para partir, carregando dois batalhões com destino à Guiné (BCaç 1856 e BCaç 1857).
Lisboa, 31/VII/1965
Meu amor:
Quando nas horas mais amargas, de maior dor, de desespero, as forças te abandonarem, chama por mim, recorda os belos tempos que passámos e os muitos momentos felizes que nos esperam e sentir-te-ás mais forte, capaz de vencer os maiores sacrifícios (…).
Nunca estarás só, meu querido. Eu espero-te, (…), certa de que hás-de regressar. (...) Vive, querido, na certeza de que ao regressares me encontrarás, (…). A dor da partida será sobejamente compensada pela alegria, pela felicidade do regresso.
A nossa separação, com a tua partida, é mais uma prova com que o destino quer presentear o nosso Amor. Mas ele é bastante forte, está bem alicerçado para resistir, para sair ileso dessa prova. A dor torna mais fortes, mais indissolúveis os laços que nos unem (…).
(…) Minha jóia, feliz viagem e feliz regresso. (…). A sempre tua, N.
Foto nº 2 > Lisboa, 31/07/1965 > A ponte sobre o Tejo começava a tomar forma. Uma imagem que também nos marcou a partida, seguramente.
Estas fotos (1 e 2) são de António da Silva Pinheiro, sold da CCaç 1419, e foran retiradas, com a devida vénia, da página do Facebook “Guerra Colonial Portuguesa 1961-1974”.
A bordo do paquete Niassa, 1/Agosto/65
“A viagem tem corrido da melhor maneira, meu amor. Aparte ainda a forte e angustiante impressão da despedida de ontem, conservo-me relativamente bem disposto. A vida a bordo é boa, somos bem tratados e o ambiente proporciona bons momentos de distracção.
Aqui estou contigo, pesaroso na distância, feliz na certeza do nosso amor. E eu confio no meu regresso. (…). E daqui a dois anos estarei livre de tudo isto.
Há algo que me preocupa acima de qualquer dificuldade: a minha Mãe. Ontem foi mais um sentimento de dor que me envolveu do que de saudade, ao vê-la, completamente esgotada, chorando-me. Espero que ela se acalme, que se conforme e que tenha forças para aguentar tudo isto (…). (…) mas a saúde dela preocupa-me.
Minha querida N. (…) espero que leves a vida normalmente, (…) confiante (…). Vão ser dois anos um pouco difíceis de passar mas tornar-se-ão mais difíceis ou mais fáceis conforme nós nos interessarmos pela correspondência. E, penso, como já estamos acostumados a este modo de contactar (…) não há problema de maior, a não ser talvez evitar a saturação. Esta, se aparecer não é para estranhar. O que interessará, no momento, é vencermos essa saturação. Eu prometo-te, minha querida, escrever-te o mais frequentemente possível. (…).
(…)teu M.
Foto nº 3 > Viagem Lisboa / Bissau > N/M Niassa Lisboa, 6 de julho de 1973 > "Recordação do Niassa: "Adeus terras da Metrópole / Que eu vou p'ró Ultramar / Não me chorem, mas alegrem-se / Que eu hei-de regressar"... Postal que se vendia a bordo. Imagem: fonte desconhecida.
Foto nº 4 > O “Niassa” todo bonitinho em 1978, arranjadinho e pintadinho de azul. (Imagem retirada, com a devida vémia, do blogue “TóZé Silva, Crónicas dum Tempo” > 14 de julho de 2009 > Os (nossos) antigos senhores dos oceanos
Nota sobre o navio Niassa (MJ):
O “Niassa” (1955-1979) pertencia à frota da Companhia Nacional de Navegação (CNN) e, por portaria governamental de 4 de março de 1961, foi o primeiro navio de passageiros a ser afretado como transporte de tropas e de material de guerra para o Ultramar. [A primeira viagem do Niassa, nesta nova função, foi quatro dias depois, a 8 de março de 1961, o transporte de um contingente de 1355 militares para a Índia, onde ficariam todos prisioneiros no final desse ano...LG]
Acabada a guerra colonial, o navio foi alvo de trabalhos de conservação e restauro e, “todo bonitinho”, voltou à actividade para a qual tinha sido construído mas esteve pouco tempo ao serviço da CNN. Foi abatido ao efetivo da frota em 1979.
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 3 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4774: Tabanca Grande (167): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissorã e Mansabá (1965/67)
(...) Fui professor do ensino básico (Escola Gago Coutinho/Amadora) e director da Escola Profissional de Recuperação do Património/Sintra. Estou aposentado e perto dos 68 anos (1/9). Sou sócio da "Ajuda Amiga-Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento", muito ligada à Guiné. (...)
(**) Vd. poste de 5 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10763: As mulheres que, afinal, foram à guerra (19): O que fazer com a nossa correspondência, estimada em mais de 300 milhões de aerogramas e cartas, enviados e recebidos ao longo da guerra do ultramar ? (Manuel Joaquim / Luís Graça / Alice Carneiro)