Mansambo > Foto falante 36 - IV série
1. Texto e Fotos Falantes (IV Série) do nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69) para integrar os seus "Nós da memória".
NÓS DA MEMÓRIA - 14
(…desatemos, aos poucos, alguns…)
10 – O Percevejo e o Flautista
Foto a merecer legenda mais alongada.
Nela já se vêem bem os balneários, a zona de protecção ao poço e parte de um abrigo caiado de branco. Esse pormenor é que motivou esta recordação.
O abrigo, em parte caiado de branco, e aquele lavatório eram um luxo. Recordar a importância que tinha para nós aquele poço, aberto muitos meses depois do início da construção do aquartelamento, e os balneários. Antes toda a água vinha da fonte e os banhos eram lá tomados e com segurança à volta. Não só por uma questão de segurança mas, isso sim, porque era muito mais natural a higiene ser feita assim com normalidade. Além disso, quase toda a água vinha dali e tinha qualidade.
Aquele luxo, de uma bacia de plástico colocada em cima de uma cadeira e o fundo de branco caiado, ficou a dever-se aos percevejos. Não era um local qualquer. Na metade daquele abrigo em L era o comando, messe de oficiais e sargentos, bar, centro de convívio e muito mais. Parece é um espaço exíguo. Pois com certeza que podia assim considerado mas, com engenho e boa vontade virava a Salão Diamante. Até um frigorífico a petróleo tinha, com um contra. Este frigorífico tinha um vidro circular a proteger a chama. Se os obuses 10.5 trabalhavam e o vidro não tivesse sido retirado, ia para o caneco. Uma maçada.
Porque apareceu ali uma parede caiada? Devido a uma praga, a uma infestação de percevejos.
Apareceram silenciosamente. Viajaram, um dia, em alguns velhos colchões de palha que acompanhavam, indevidamente, digo eu agora, os verdes colchões de espuma.
Em pouco tempo, devido a um afrodisíaco qualquer ou porque eram mesmo assim, reproduziram-se e espalharam-se pelos abrigos. Instalaram-se nos buraquitos dos blocos de cimento, nas camas, mosquiteiros e onde lhes fosse mais confortável. Eram os senhores dos abrigos.
Não era nada confortável, para os humanos, a partilha do espaço. Eram bichos de ataque nocturno, para isso já tínhamos os mosquitos e outros bem mais fortes para lá dos arames. Estes, os percevejos, sugavam o sangue. Eram esmagados facilmente. Só que o cheiro a coentros e a pasta deixada era incomodativa. Aberta uma luz rapidamente desertavam. Curta deserção pois voltavam ao ataque mal a escuridão voltasse. Uns sem vergonha.
Para conter ou acabar com ataques sugadores vieram gentes peritas em desinfestações. Foi uma balbúrdia mas a bicharada desapareceu. Parecia, se bem me lembro, um milagre. Como isto de milagres é controverso ainda pensei que tinha sido alguém que atacara pela calada. Porque não, como na lenda, um Flautista de Hamelin e, á falta de ratos – que os havia mas fazendo parte da mobília – tocara o Flautista a sua flauta e os percevejos atrás dele caminharam até á fonte ou acampamento IN. Porque não?
O interior dos abrigos foi bem caiado. Certamente sobrou cal, para futura eventualidade de regresso de tão incómodos bicharocos. Foram então caiados alguns locais mais. Os menos visíveis, claro, ou tínhamos alvos para alinhamento de pontaria IN. Para isso já bastava a enorme árvore por onde eram alinhadas as armas pesadas, sem grandes resultados depois dos 10.5.
Eu vos digo que a cal tornou tudo mais bonito. Pareciam casas. Só as víamos em Bambadinca ou Bafatá, principalmente em Bafatá. Casas com portas e janelas, de branco e outras cores pintadas e com homens, mulheres e crianças. Gentes com sorrisos e vestidos com roupas de cores diferentes do verde-azeitona ou do camuflado.
Eu vi também muitas em Bissau quando ia de férias. Desanuviava e ria feliz. Mas questiono eu? E os soldados que não tiveram essa oportunidade e estiveram 23 meses no mato? Um fulano ficava atormentado ou pior.
Não será assim?
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Março de 2012 >
Guiné 63/74 - P9582: Nós da memória (Torcato Mendonça) (13): Mansambo - Fotos falantes IV