1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2010:
Queridos amigos,
O nome de Calos Lopes enquanto cientista social é incontornável no panorama das ideias da Guiné-Bissau.
Este trabalho de índole científica é de uma imaturidade e fanatismo incríveis. Não sei se o autor já repudiou o que escreveu ou se, sobretudo, clarificou a teimosia (e fatuidade) do seu pensamento na juventude.
Um abraço do
Mário
Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau
Beja Santos
O ensaio “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, do sociólogo guineense Carlos Lopes (Edições 70, 1982), foi inicialmente apresentado em provas científicas pelo autor no Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento, em Genebra e só depois publicado em língua portuguesa.
O investigador que acompanhou este trabalho justifica a sua necessidade para encontrar uma explicação que nos permita compreender como é que uma luta de libertação nacional acabou por conduzir ao controlo do poder político e económico pela burocracia do aparelho de Estado. O ensaio de Carlos Lopes, diz o investigador, é uma peça de “literatura comprometida”, faz-nos partilhar as interrogações e críticas do pesquisador o que, sem desvirtuar os rigores da investigação, acaba por ser uma originalidade em trabalhos científicos desta índole. Acresce que Carlos Lopes procurou ter em consideração as formas tradicionais dos antigos Estados Africanos no quadro da problemática actual do Estado. Comprova-se que existe um conflito entre as duas lógicas e lança-se a questão de como é que o Estado actual pode fazer-se triunfar ultrapassando-se as contradições das formas tradicionais, até da vida tribal. Nessa óptica, este texto é encarado como um simples “ponto de espera” ou uma primeira etapa de toda a tese de investigação que Carlos Lopes se propôs fazer em Genebra.
Estou convicto que no essencial Carlos Lopes, hoje um funcionário altamente credenciado das Nações Unidas, repudiará a generalidade das opiniões que aqui registou, na crítica que faz à actuação do PAIGC enquanto Partido vanguarda da Guiné-Bissau, entre a independência e os acontecimentos dilacerantes de Novembro de 1980, que levaram à ruptura na Direcção do PAIGC e à cisão Guiné – Cabo Verde.
Carlos Lopes parte da constatação de um conflito profundo entre duas formas de organização social altamente diferenciadas: a conjugação interétnica originada na luta armada e a ideologia do aparelho de Estado nascido após a independência. Foram duas lógicas que se confrontaram com resultados explosivos. Como nota introdutória, Carlos Lopes diz defender uma concepção marxista para a definição da situação a que se compromete estudar, e apela a que outros, defensores ou opositores das suas teses, continuem a apreciação que ele enceta neste esforço de análise.
Primeiro, enquadra o Estado, indo da origem dos povos guineenses, passando pela génese do movimento de libertação nacional e sintetizando as principais etapas da luta armada até ao reconhecimento jurídico efectuado em 1974.
Segundo, espraia a sua observação sobre a relação entre a etnicidade e o modo como se expressa o poder. O autor recorda que algumas etnias, caso dos Fulas e dos Mandingas, se mostraram como aliados incondicionais dos portugueses e que mais tarde participaram na construção do novo Estado. Carlos Lopes descreve minuciosamente a evolução histórica dos fulas, o sentido da sua hierarquia e contra-propõe com as inovações desencadeadas pelo factor político das regiões libertadas que, segundo o autor, teriam contagiado as etnias mais reticentes em colaborar com o PAIGC. No fundo, a colaboração prestada por algumas etnias ao colonialismo português tinha a ver com a procura de segurança na manutenção de privilégios, na perpetuação de uma economia semi-feudal e numa aliança de conveniência para que as estruturas tradicionais não fossem tocadas. O modo de produção capitalista fez uma introdução incipiente no século XIX e só encontrou estabilidade depois das chamadas guerras da pacificação. Para o autor, o Estado africano emanado do PAIGC era profundamente democrático com os seus diferentes órgãos participativos: Conselho Superior da Luta (Comité Central), Conselho de Guerra (secretariado geral) dirigido por uma comissão permanente. O partido, a partir de 1964, tinha posto em marcha estruturas administrativas dignas de um aparelho de Estado. O Governo era compósito, com cabo-verdianos e guineenses de diferentes etnias. Era a Assembleia Nacional Popular quem nomeava o conselho de Estado e o conselho dos comissários de Estado. No plano dos princípios, democracia não faltava.
Terceiro, o novo Estado foi-se deixando submergir por falhas imperdoáveis: falta de conhecimentos em matérias de administração, nepotismo e clientelismo, adopção de projectos megalómanos, lutas no interior do Partido entre aqueles que eram favoráveis à radicalização da experiência da luta e os partidários de uma solução próxima do neocolonialismo. Em escassos anos de independência, a orientação política passou a andar completamente à deriva, avançava-se e recuava-se na industrialização, abraçaram-se projectos transnacionais sem o mínimo de qualidade. A situação do camponês na Guiné-Bissau degradou-se. A ajuda exterior foi mal gerida e o comércio passou a favorecer alguns quadros partidários. A Guiné-Bissau continuou sem infra-estruturas.
Quarto, tudo conjugado, importa analisar pormenorizadamente a decadência do Partido vanguarda. Para o autor, o grande falhanço do PAIGC foi ter-se acomodado à vida da capital colonial, ter esquecido a vida dura do movimento de libertação e as experiências de uma economia autosustentada no mato. Os governos do presidente Luís Cabral passaram a privilegiar projectos favoráveis à região de Bissau e a desinteressar-se do equilíbrio inter-étnico. Carlos Lopes socorre-se de um discurso agressivo falando de dirigentes corruptos, traidores, reaccionários. Nunca questiona como é que um movimento político, ideológico e militar com as características do PAIGC mudou radicalmente de postura, mal chegou a Bissau.
Responsabiliza os antigos funcionários coloniais, atribuindo-lhes participação em tal processo deletério, sem nunca explicar quem eram tais antigos funcionários coloniais. O militantismo relaxou-se e a mobilização das massas desapareceu. Carlos Lopes recomenda que se volte a analisar a obra de Amílcar Cabral e se debata a dialéctica entre a luta de libertação nacional e a cultura que serviu de base à consciencialização dos militantes, selando a chamada unidade nacional. Para o sociólogo, a pequena burguesia, que tinha comandado o processo revolucionário durante a luta armada, tinha agora dois caminhos possíveis: trair a revolução ou assumir-se enquanto tal.
Protegido por esta linguagem redutora, Carlos Lopes recorda o papel do Estado no desenvolvimento e a necessidade de criar uma classe dirigente aberta aos desafios da integração nacional. O Estado é indispensável ao processo de desenvolvimento mas a contradição etnia-Estado continua presente (em 1982, claro) e terá um papel importante na evolução desta formação social.
Este estudo é uma profunda decepção, um exercício imaturo, simplista e cruel. Toda a realidade foi muito mais complexa e, goste Carlos Lopes ou não, o movimento que dá pelo nome de PAIGC devia ter apreciado a tempo e horas as responsabilidades da governação, o processo duradouro da convivência inter-étnica e o uso responsável dos dinheiros públicos. É inadmissível esquecer as próprias responsabilidades doutrinais de Amílcar Cabral, no caminho que se seguiu e que desembocou com a chegada da direcção do PAIGC a Bissau, em Setembro de 1974.
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Notas de CV:
Vd. poste de 3 de Outubro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7073: Notas de leitura (153): Memórias e Reflexões, de Juvenal Cabral (II) (Mário Beja Santos)