sábado, 30 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12366: Bom ou mau tempo na bolanha (37): Temos boca, falamos (Tony Borié)

Trigésimo sétimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Nós, os antigos combatentes, às vezes excedemo-nos quando escrevemos algumas memórias, e dizemos o que nos vai na alma e não só, até chegamos ao ponto de dizer coisas que vão ferir a sensibilidade de terceiros. Sim é verdade, mas faz parte das nossas memórias que normalmente, são boas e más, e para sermos honestos, temos que dizer tudo. Já lá vão quase cinquenta anos, quanto mais dissermos, mais ajudamos a nova geração, para que no futuro vejam em nós um exemplo, tanto do lado bom, como do lado mal, para que não cometam os mesmos erros que nós, talvez sem querer, ou por falta de informação, seguindo princípios menos recomendáveis, cometemos.

As novas gerações querem e vão construir um mundo melhor, oxalá que sim, e nós vamos ajudá-los, contando-lhes o que de bom e de mau a nossa longa vida nos trouxe, só assim contribuiremos para um mundo melhor e mais justo, onde todos possam viver em paz, com saúde, trabalho e educação.


O Cifra, quer ver se não guarda nada das suas memórias de guerra e não só, às vezes, as suas narrativas não têm muito interesse, mas sempre há uma frase, ou uma passagem que vai alertar alguém, ou vai fazer lembrar uma história parecida com aquela que viveu, e pelo menos naqueles segundos em que o amigo antigo combatente teve pachorra para ler, se esquece de uma dor em qualquer parte do seu corpo, ou da amargura que essa maldita guerra lhe deixou.


Fala-se em crimes de guerra, sim, poderá haver alguns, nós militares de Portugal, éramos um povo ordeiro, que sofremos ao ter contacto com uma guerra, e com situações, que nunca imaginaríamos que existissem, adaptámo-nos, sobrevivemos, mas não creio que nenhum de nós tenha matado alguém a sangue frio, ou praticado qualquer acção que não estivesse de acordo com as normas e a maneira como fomos educados em nossas casas, seguindo um regime de educação em família. Poderá ter havido alguma conduta menos correta, mas em ambiente de conflito, vendo companheiros agonizando, banhados em sangue, pedindo que alguém lhes dê um tiro de misericórdia e acabe com o seu horroroso sofrimento, muitas vezes o homem deixa de ser homem, por momentos, isso é dos livros, não é nenhuma novidade.
O Cifra arranjou estas fotografias que adaptou ao nosso caso e até parecem sugestivas, portanto reparte-as com todos vocês.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12330: Bom ou mau tempo na bolanha (36): Quem se lembra do Soares da Messe dos Oficiais? (Toni Borié)

Guiné 63/74 – P12365: Memórias de Gabú (José Saúde) (35): Dois camaradas que se separaram na Guiné. Pedro Neves foi para Binta e eu para Gabu. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


As minhas memórias de Gabu 

Dois camaradas que se separaram na Guiné

Pedro Neves foi para Binta e eu para Gabu

Atesta a lonjura do tempo que o rótulo de uma amizade que teima em permanecer imutável entre dois velhos companheiros de armas, atravessam géneses de uma eternizada camaradagem, e predispõem-se de forma clara a tecer comentários vantajosos entre sexagenários que se conheceram nos verdes de uma juventude irreverente, onde a sua condição militar ditou uma estima que se mantém, e manterá, indestrutível.

Reconheço que durante a minha vida militar travei inúmeros conhecimentos com novos camaradas e desse rol de personagens com os quais mantive contatos pessoais nesses velhos tempos, alguns deles existem que permanecem patentes na montra das nossas excêntricas recordações.

José Pedro Neves é um camarada com o qual me cruzei no curso de Operações Especiais/Ranger em Penude, Lamego, sendo que quis o destino que tivéssemos sido no curso seguinte cabos milicianos do 1º grupo de cadetes e o Daniel, um camarada de Cabo Verde que conheci no CISME, Tavira, o aspirante.

Ditou a bolinha do acaso que a fortuna, com a qual fomos contemplados, nos encaminhasse para uma comissão na Guiné. Uma mobilização que, na altura, se apresentava como cruel. Tratava-se, a meu ver, do princípio de uma nova rota militar e que usurpava maquiavélicas coincidências para dois jovens que não conseguiram ludibriar a malvadez do futuro. E lá fomos.

Partimos então para a ex-província ultramarina, designada por Guiné, no dia 2 de agosto de 1973, no mesmo avião que descolou de Figo Maduro, Lisboa, partilhámos o mesmo banco da nave, saboreámos a refeição servida a bordo, bebemos um copo e trocámos ideias sobre a sorte que nos esperava na guerra de além-mar.

Chegados ao aeroporto de Bissalanca fomos depois conduzidos para as instalações militares do QG, em Bissau. A receção foi cordial. Faltaram as passadeiras vermelhas para receber em apoteose os ilustres mancebos acabadinhos de aterrar em terra africana. Os barracões, como se lembram, estavam entolhados de camaradas, na generalidade já velhinhos na guerra, entre outros, e piriquitos que entretanto haviam aportado em solo guineense. Notava-se que o brilho das divisas dos novos guerrilheiros impunham uma hierarquia na plebe.

As camaratas, com camas sobrepostas, sugeriam desde logo o sentimento de uma desolação profunda sobretudo para os recém chegados. Procurámos o poiso, acomodamos a nossa bagagem e envidámos esforços no sentido de uma visita ao centro de Bissau. O objetivo era conhecer as novas paragens. E assim foi.

Entretanto fomos informados do horário das refeições que eram servidas no refeitório da messe de sargentos de fronte às nossas esplendidas “residências”, sendo que pelo meio das amenas cavaqueiras lá surgiam as brincadeiras do “piu-piu”. Sons jocosos emitidos pela velhada que parecia estar de partida para a metrópole depois de uma comissão que não lhes terá dado tréguas.

Lembrando essas famosas camaratas no QG, recordo que eram uma espécie de tudo ao monte e fé em Deus. Algumas das camas eram pomposamente ornamentadas com redes mosquiteiras. A malta de passagem pelas instalações, colocava a artimanha e por lá ficavam. Serviam depois de abrigos para os novos hóspedes. O zumbido agudo noturno dos mosquitos era ensurdecedor. Ali deparamo-nos de imediato com o clamor da primeira batalha.

Chegou o hora da despedida. O Pedro lá partiu rumo a Binta e eu a Nova Lamego, Gabu. Nas minhas novas instalações reencontrei outros dois camaradas que tiraram o curso de operações especiais/ranger comigo em Penude: o Rui Álvares e o Cardoso. Acontece que o Cardoso acabou por demandar para uma outra zona da Guiné, enquanto eu e o Rui permanecemos em Gabu.

Do Cardoso nunca mais tive informações. Perdi-lhe o rasto. Sei que era natural de Moimenta da Beira. Desejo que esta ausência poderá ter um fim em vista se porventura algum camarada que leia este meu pequeno texto me dê alvíssaras desse meu velho amigo. O Cardoso era, e é, um rapaz de estatura baixa. Gostava de reencontrá-lo tal como aconteceu há dois anos com o Rui. Com cabelos brancos, ou com falta deles como é o meu caso, reconhecemo-nos de imediato e lá veio um longo abraço. Ficou a certeza que nos voltámos a reencontrar e os telefonemas são agora constantes.

Interiorizando os contextos de as minhas memórias Gabu, realço a minha passagem pelas instalações do QG, em Bissau, afirmando convictamente que esse espaço foi visitado, e revisitado, por muitos camaradas que fizeram escala na capital guineense ao longo da sua comissão militar na guerrilha da Guiné, como foi o meu caso.

Curioso era a arquitetura dessas instalações. Mas como a sua utilidade era simplesmente casual, a malta acomodava-se como podia e não refilava com o que lhe era colocado à disposição. Lembram-se, camaradas? Toca a desafiar essas recordações e sacar cá para essas velhas lembranças.

Dessas minhas passagens breves pelo QG, recordo que numa das idas para o faustoso “resort”, encontrei um amigo de Beja, furriel dos comandos de nome Chico Dias, que me levou a provar um prato a que chamavam ninho de andorinha. Sei, e recordo muito bem, que o seu tempero era feito na base do muito gindungo africano. Escusado será dizer que o “sacana” do ninho de andorinha levou-nos a refrescar as gargantas com uma boa dose de cervejas. Não me lembro do fim, mas aquilo fez efeito, isso fez.

Camaradas, coisas dos nossos tempos da Guiné e quando éramos jovens com idade para mover montanhas!

Os putos: Eu e o Pedro Neves no dia da nossa chegada à Guiné

Um abraço camaradas deste alentejano de gema, 
José Saúde 
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12364: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (33): Vinte e dois anos a trabalhar para o desenvolvimento integrado e sustentado... Convite e programa das comemorações, Bissau, 11/12/2013 (Isabel Miranda)



Vídeo (9' 24''), "AD Somos Nós" > Alojado no You Tube > ADBissau (2011) >  "Estas caras escondidas, são as que fazem a ONG AD atingir os seus objectivos." (Vídeo realizado, por Demba Sanhá, em 2011, por ocasião do 20º aniversário da AD - Acção para o Desenvolvimento).

É para estes amigos, guineenses e portugueses,  que vão as nossas palmas, na passagem de mais um ano de vida e de trabalho! Alguns deles são membros da nossa Tabanca Grande: Pepito, Isabel Levy Ribeiro, Domingos Fonseca, Tomané Camará. Infelizmente, estamos longe e não podemos estar convosco no dia 11/12/2013,  4ª feira, para partir mantenhas e desejar votos de felicidade e saúde para toda a equipa. Mas fazemo-lo daqui, de Portugal, com un abraço do tamanho da distância, apenas física, que nos separa. (LG)




Programa comemorativo dos 22 anos de atividade da ONG guineense AD - Acção para o Desenvolvimento.


1. Mensagem que nos chega da AD - Acção para o Desenvolvimento, assinada pela sua presidenta, Isabel Miranda, com data de hoje:

Caro Amigo


Por ocasião da celebração do seu 22º aniversário, a nossa organização, “Acção para o Desenvolvimento”, vai realizar-se,  no próximo dia 11 de Dezembro, quarta-feira, pelas 16h00, uma sessão de apresentação de alguns aspetos mais relevantes da sua atividade neste ano.

Com o importante apoio da União Europeia, a AD vai lançar  (i)  o “Guia dos Mamíferos do Parque Nacional de Cantanhez”;  (ii) um CD musical sobre “Cacheu, caminho de escravos”; e (iii) curtos filmes agrícolas sobre os programas em curso.

Nesta ocasião será inaugurado o Salão Nobre “Roberto Quessangue”, em homenagem a quem foi o Presidente da Assembleia Geral da AD e que representa para nós, pela sua estatura moral e cívica, um exemplo e uma referência.

Junto remetemos o programa da sessão, aproveitando a ocasião para o convidar a honrar-nos com a sua presença neste acto que tanto nos orgulha.

Certos de podermos contar com a sua digna presença, subscrevemo-nos com elevada estima e consideração.

Isabel Miranda

Presidente da AD
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P12363: Ser solidário (155): Tabanca Pequena de Matosinhos apoia Associações de Costureiras da Guiné-Bissau (José Teixeira / AD)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2013:

Carlos.
Junto link da AD com mais um projeto da Tabanca Pequena.
Agradeço que seja publicado no nosso blogue se julgares de interesse.
De notar que o objetivo principal deste projeto é fixar as jovens bajudas á sua terra através da criação de associações locais de costureiras que fomentem a aprendizagem e o fabrico de roupa, para as necessidades locais e eventualmente comercializarem para os grandes centros.
Atualmente estão criadas e em pleno funcionamento as Associações de Iemberém, Catesse e Cabedú, onde colocamos no principio deste ano 7 máquinas de costura.
(http://www.adbissau.org/tabanca-pequena-apoia-associacoes-de-costureiras)

José Teixeira


TABANCA PEQUENA APOIA ASSOCIAÇÕES DE COSTUREIRAS

A ONGD portuguesa “Tabanca Pequena” de Matosinhos, Portugal, acaba de conceder novo apoio para reforçar ou criar associações de costureiras na Guiné-Bissau.

Chegaram a Bissau 20 máquinas de costura que serão afetadas a diversas tabancas do litoral sul e norte do país, nomeadamente Iemberem, Catés, Colbuiá, Cacheu, Mata e para o Centro de Formação Rural de S. Domingos.

Realizar-se-ão cursos de formação para iniciadas, de reciclagem para as costureiras com alguma experiência, bem como o apoio à consolidação organizativa das mulheres para a produção de roupa, artesanato e objetos domésticos, que lhes permitirão obter mais recursos financeiros.

Esta metodologia de trabalho é integralmente apoiada pela Tabanca Pequena, que equaciona a possibilidade de vir a conceder ajuda a estas associações para a produção de lençóis, toalhas, fronhas, etc. para as zonas de ecoturismo.





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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12324: Ser solidário (154): Já corre água na Tabanca do Poilão do Leão (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P12362: Convívios (551): I Encontro dos "Errantes" da 3.ª Companhia do BCAÇ 4615/73 (Bassarel, 1973/74), acontecido no passado dia 8 de Setembro de 2013 em Lamarosa (António Tavares Oliveira)




1. Mensagem do nosso novo camarada António Manuel Tavares Oliveira (ex-Fur Mil da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4615/73, Bassarel, 1973/74), com data de 28 de Novembro de 2013:

Amigo Luís Graça
Mais uma luta vencida.
Consegui reunir as minhas tropas.
Levámos a efeito o nosso primeiro Encontro, no passado dia 08 de Setembro de 2013, na Quinta do Sobreiro, Lamarosa, que juntou 41 "Errantes".
Foi um dia memorável, que começou com a concentração, identificação dos presentes, missa e depois o chamado grande convívio, com as pernas debaixo da mesa.
Fomos 91 pessoas reunidas, umas mais comovidas do que outras, mas verificamos que todos e todas ficaram maravilhados com o reencontro.
Dizia uma esposa "realmente não fazia ideia do sentimento que vocês têm uns pelos outros. Vi lágrimas nos olhos de alguns de vocês".
Ficou já agendado o próximo encontro, para o qual já estou a trabalhar e já temos mais gente pronta a avançar.
Agradeço que coloques a foto do I Encontro da 3.ª Companhia do BCAÇ 4615.

Um abraço e até breve
António Tavares
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12350: Convívios (550): Almoço de Natal da Tabanca dos Melros, dia 14 de Dezembro, na Quinta dos Choupos, Fânzeres - Gondomar

Guiné 63/74 - P12361: Blogpoesia (361): "Ilusões" (António Eduardo Ferreira)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 27 de Novembro de 2013:

Amigo Carlos Vinhal
Porque nem só de balas, granadas, minas e outras se fez a guerra de muitos dos que passamos por terras da Guiné, hoje escrevi mais um pequeno texto, que deixo à tua consideração a sua publicação, ou não.

Recebe um abraço, e obrigado pelo trabalho que continuas a desenvolver.




Ilusões

Quando me chamavas amor. 
Não sei se chamavas?…
Também eu, quando dizia com doçura que te amava, não sei porque o dizia. 
Não raramente é ilusão o que nos faz sentir assim. 
O amor pode ser mais do que dizemos, pensamos ou julgamos sentir. 
O nosso, não passava disso mesmo, ilusão. 
O jardim em que supúnhamos viver, nunca teve flores, o sol que nos aquecia não era sol. 
A luz que nos envolvia, não era luz, mas sim o reflexo da ilusão em que nos deixamos enredar. 
Quando me chamavas amor, não sei se chamavas… 
Também eu dizia que te amava… 
Agora sei que não eras o meu amor 
Não renego o meu passado, nem lamento nada do que fiz! 
Mas se pudesse voltar atrás, do que fiz pouco faria, talvez fizesse alguém feliz

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12344: Blogpoesia (360): Quatro Baladas de Berlim, inéditas, com sons e cores de outono (J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)

Guiné 63/74 - P12360: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (3): Diário de bordo - Manhã azul e Deus ao leme

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 3 

DIÁRIO DE BORDO 

Manhã azul e Deus ao leme

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, e Bissau e Jumbembem, 1963/65)

Manhã azul

18 Julho/63

Nunca abrira assim meus olhos tão arregalados para o que me rodeava, o mar ondulando. Ali era um mundo diferente, revoltado em ondas que, ferozes, se batiam até se desfazerem em espuma. Mas, para quê ter medo, se também o homem traz dentro do peito um mar de sargaços e destroços, estrelas e conchas, fundos e naufrágios, e que quer fugir dos litorais estreitos para, liberto, ir mais longe? O homem é um mar.

Menino de palmo e meio, marinheiro pobre do mar em poças de águas podres pelos caminhos ou no tanque da fonte, habituei-me cedo às rotas para mundos desconhecidos, aos naufrágios dos meus barcos, feitos de jornais esquecidos sobre a mesa. E, quando partia contente do regaço de minha mãe, ela me abençoava, a mim e aos meus barcos, com o seu olhar meigamente doce, com a sua esperança. Pelo menos, hoje não tenho medo do mar, porque ele nasceu comigo e me encheu a alma de peixes e limos, também de noites de espanto, e é assim que anda comigo de onda em onda. O mar não é maior do que a minha alma.

Nunca abrira assim meus olhos carregados de azul. A manhã que me veio, já o sol ia alto, não me trouxe andorinhas para pousarem nos ombros doridos do dia-a-dia e das horas soltas e vazias, nem pássaros para o sol da minha janela que ficou fechada aos campos verdes, aos caminhos do pó, ao grito vermelho das papoilas.

Corri o barco todo de ponta a ponta e fiquei a conhecer-lhe os cantos. Do convés admirei sempre o mesmo jogo branco das ondas em malmequeres de espuma e, mais ao largo, a seara imensa do mar, toda lavrada de azul. E subi ao mastro como velho marinheiro em busca de algumas estrelas. E nunca meus olhos ficaram tão cheios de água e azul, foram tão longe e se pegaram tanto ao céu…

(Jornal da Bairrada, 5 Setembro 1964)

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Deus ao leme

Niassa, 21 Julho, 1963

Um enorme tubarão, listrado de verde-escuro, ora levanta o nariz, mostrando a dentuça terrível que não perdoa à presa, ora pinoteia a cauda, quando mergulha.
Seriam irmãos destes que nos abririam a goela, se Deus não pusesse a mão no leme, quando o cargueiro alemão, se ia a atravessar na rota do Niassa.

A noite de ontem era de breu e murada de um denso nevoeiro, tão cerrado que as luzes só a uma insignificante distância se deram a conhecer, conseguindo romper a escuridão medonha. Eram quatro horas da manhã e tudo dormia, uns a pensarem em cobras enroladas às palmeiras, outros a sonharem com macacos, saltando de ramo em ramo, de árvore em árvore, como os mais espertos bichos da terra, até fazendo-nos manguitos. Àquelas horas, seria o fim do mundo para nós, agarrados a alguma tábua de salvação ou de coletes de salvação enfiados nos ombros, ou os nossos restos mortais boiando naquele cemitério azul, agora da cor do nosso sangue. Está visto, a vida é um momento e num segundo se perde como gota de água na sede escaldante de um deserto ou se reganha com muita coragem ou muita sorte.

São três horas da tarde.
Sentados num monte de cordas grossas, jogam às cartas alguns soldados para esmoerem o tempo ou ainda a refeição e talvez, de saudade, falem de raparigas, das gajas boas, do cargueiro alemão e do desastre eminente.
- Se eu voltar, a Dores não me escapa. É uma boneca. Os seus olhos perderam-me – dizia um enquanto olhava, cheio de esperança a sorrir nos lábios, o crucifixo de ouro que trazia ao pescoço e ela lho havia dado na despedida.

- Sabes lá o dia de amanhã, a vida dá tanta volta.

Uma aragem quente, já há ares de África por ali, leva palavra, puxa palavra e põe gotas de água em tudo e quase nos abre a boca toda, porque sufoca, dançando com farrapos de nuvens um pouco por cima dos mastros. Dizem-nos que a Guiné está perto. Alguns põem-se a espiolhar o horizonte. De facto, era verdade. Quando o sol se escondeu, adormeceu tranquilamente por detrás de uma selva de palmeiras e outras árvores de grande porte. Lá longe, por detrás de uma ilha verde.

(Jornal da Bairrada, 19 Setembro 1964)

[Efectivamente, um percalço grave ia acontecendo na viagem no alto mar. Uma noite, o Niassa esteve na contingência de ser abalroado por um cargueiro alemão cujas luzes não conseguiam rasgar o muro do nevoeiro. Gerou-se algum pânico. Alguns chegaram a preparar os salva-vidas, as barcaças, para saltar para a água, mas, no último instante,os comandantes conseguiram evitar o embate que seria fatal para muitas centenas de jovens, entregues aos bichos do mar. A grande maioria, felizmente, só soube da notícia a meia voz no outro dia, neste caso, boa. Iam a dormir pesadamente].

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12351: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (2): Diário de bordo - Ó mar salgado!

Guiné 63/74 - P12359: Notas de leitura (539): "Guiné-Bissau Tera Sabi", Edição Tiniguena (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Por feliz acaso, encontrei este livro numa loja de comércio justo, aqui perto do Saldanha, em Lisboa.
Continuando a lamentar a ausência total de tascos onde possa saborear o meu incontornável pitchipatche, ao menos fico com a sugestão das imagens que melhor me fazem recordar as coisas boas da cozinha guineense. Segundo os autores, estas receitas foram recolhidas por ocasião dos eventos gastronómicos realizados no Bairro Belém e durante as pesquisas da gastronomia tradicional crioula, fula e manjaca promovidas pelo Centro de Recursos do Espaço da Terra.
A apresentação gráfica é inexcedível. É pena que não nos possamos ajuntar à volta de uma mesa com estes sabores…

Um abraço do
Mário


O essencial da gastronomia tradicional guineense

Beja Santos

O livro “Guiné-Bissau Tera Sabi”, Edição Tiniguena, Bissau, 2008 pode ser adquirido nas lojas de comércio justo. Segundo se escreve na introdução, é fruto de três anos de recolha e compilação de receitas da cozinha tradicional, a cargo da organização não-governamental Tiniguena, no âmbito de um projeto em parceria com o CIDAC, o IPAD, Oxfam Novib, Inter Pares e financiamento da Comissão Europeia. O objetivo é dar a conhecer ao grande público os sabores e saberes associados à gastronomia guineense. Do mosaico cultural que é a Guiné foram selecionadas receitas da cozinha crioula, manjaca e fula. A culinária crioula tem uma vocação nacional, é fruto da mestiçagem dos paladares das etnias que povoam tradicionalmente a Guiné-Bissau. Os crioulos estão presentes sobretudo nas cidades e nas zonas que sofreram maior influência da colonização portuguesa, em particular Bissau, Bolama, Cacheu, Farim e Geba. A gastronomia manjaca tem fama, os manjacos habitam predominantemente na zona costeira, no Norte da Guiné-Bissau (região de Cacheu), utilizam muito os frutos do mar na confeção dos seus pratos, onde o óleo de palma é omnipresente. Em contraste, os fulas, mais presentes no interior do país (Gabu, Boé e Bafatá) onde os recursos tendem a escassear, fazem uso de diversos cereais e de uma grande variedade de plantas que cultivam nos quintais ou extraem do mato, tornando a sua alimentação mais rica e equilibrada em termos nutricionais. E que dizer dos sabores? Aqui aparecem o sabor ácido do limão lima e o picante da malagueta, sobretudo. E que receitas? Algumas do melhor que há: do caldo de chabéu com manga verde, à poportada de ostras com carne de porco salgado, brindje de fundo com porco-espinho, badadji di siti ku liti, muni de milho preto, canja de kacry com escalada.

Entre as razões que justificam a Guiné-Bissau não ter graves problemas alimentares decorre da maneira sábia como tudo se aproveita. É o caso dos frutos do mar. As populações que habitam nas zonas costeiras, como os bijagós, balantas, felupes e manjacos, recorrem geralmente aos frutos do mar e ao pescado, consomem-nos frescos, fumados ou secos. Destacam-se o kacry, o caranguejo, as ostras, o combé, o lingron, o gandin, a karmussa. As populações do interior, em particular os fulas, mandingas e oincás, bem como os nalus, beafadas e tandas, recorrem a raízes, tubérculos, folhas, flores e frutos silvestres como complemento nutricional, é o caso do inhame-do-mato e das folhas de cabaceira.

E pronto, cada um que se amanhe, o livro tem sabores para todos os gostos, com ostras, corvina, caranguejo, os deliciosos caldos de mancarra, a bica grelhada, a galinha à cafriela, o caldo de chabéu com galinha da terra, cuscuz e filhoses. As receitas trazem o tempo de preparação, o grau de dificuldade e o modo de preparação, está belissimamente ilustrado, cada uma das receitas é uma tentação. Antes do receituário, há dois textos convidativos para entender o meio e os recursos naturais da Guiné-Bissau e a chave explicativa do paladar tradicional guineense.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12338: Notas de leitura (538): Atlas da Lusofonia - Guiné-Bissau, editado pelo Instituto Português da Conjuntura Estratégica e do Instituto Geográfico do Exército (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12358: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (5): O café do sr. Teófilo (Parte I): um homem reservado, de poucas falas, e com um passado mal conhecido (Manuel Mata / Luís Graça / Humberto Reis / Maltez da Costa)


Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1970 > Rotunda à entrada de Bafatá e o Café do Teófilo (pai da Ritinha), ao fundo. Em frente ao Teófilo, morava o meu camarada e amigo Fernando Gouveia.


Foto (e legenda): © Manuel Mata (2006). Todos os direitos reservados


1. Já aqui temos falado aqui, mais do que uma vez, do Café do Sr. Teófilo, em Bafatá... Alguns leitores poderão querer  saber quem era, afinal,  esse senhor que se cruzou connosco...

Para quem passou pelo leste, e inevitavelmente por Bafatá, em pleno coração do "chão fula", o nome do sr. Teófilo pode dizer qualquer coisa... Mas o seu café, já fora do núcleo central da cidadezinha colonial de Bafatá, à saída para Bambadinca, na Tabanca da Rocha, poderá ser menos conhecido... Não era sítio de paragem de todos os que estiveram em Bafatá, ou iam a Bafatá, em serviço ou em lazer.

Em contrapartida, era frequentado pelo pessoal do setor L1 (Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole), e nomeadamente pelo pessoal metropolitano da CCAÇ 12 que, mais ou menos de mês a mês, conforme a frequência e a intensidade da actividade operacional, ia a Bafatá com três ou quatro  propósitos  simples: (i) comer o seu bifinho com batatas fritas e... "ovo a cavalo", supremo luxo! (em geral na Transmontana, um refeição que custava qualquer coisa como 25 pesos, o equivalente à "diária" de um militar); (ii) visitar as amiguinhas do Bataclã (que às vezes também iam a, e ficavam em,  Bambadinca, em visita de cortesia...); (iii)  fazer compras na Casa Gouveia ou outras casas comerciais; ou simplesmente (iv) distrair a vista pelas montras da civilização...  Enfim, um ou outro andava a tirar a carta na escola de condução local.

Com cerca de 4 mil habitantes (no princípio dos anos 60), Bafatá era a sede de concelho do mesmo nome e a segunda maior cidade da Guiné (passou de vila a cidade em Março de 1970!)... De Bambadinca a Bafatá,  a estrada era alcatroada ... e podia-se acelerar! Uma verdadeira autoestrada de 30 km.!... As preocupações com a segurança eram mínimas e houve acidentes, rodoviários, de maior ou menor gravidade! [vd. foto aérea, à direita, do Humberto Reis, c. 1970]

O Teófilo já foi aqui evocado, em 25 e 26/3/2006,  pelo seu amigo Manuel Mata, ex-1º cabo apontador de CCM47, integrado no Esquadão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71), e que vive no Crato, Alto Alentejo, sendo membro da nossa Tabanca Grande desde essa altura:

 "Café do Teófilo: À saída de Bafatá, na estrada para Bambadinca. Este homem era sobrevivente de um grupo desterrado para a Guiné nos anos 30. No período da guerra era apontado como sendo informador do IN. Foi pessoa com quem me dei particularmente bem, pois tinha pelos alentejanos (em especial de Portalegre) um carinho especial. Era sítio que eu visitava com alguma regularidade, tomava-se uma cerveja gelada, com alguma descrição, acompanhada de uma breve conversa. Era uma pessoa de parcas palavras" (*).

Mandei, nessa altura, em 25 de março de 2006, a seguinte mensagem ao Manuel Mata:

"A história do Teófilo intressa-me. Eu julgo que ele era das Caldas da Rainha, do Oeste (eu sou da Lourinhã). Seria ? Fiquei com essa ideia, das minhas conversas (escassas) com ele... Eu ia lá algumas vezes, recordo-me da filha [, a Rita]. Ele era de poucas palavras (acrescentei eu, à tua legenda).

"Sabes o motivo por que foi desterrado (ou deportado, como se dizia na época) para a Guiné ? Por razões políticas ? Seria ? Terá estado envolvido nalgum movimento de contestação ao Estado Novo nos anos 30 ? Recorde-se que em 1936 foi criado o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, e que entre 1916 e 1939, mais de 15 mil portugueses foram presos e, muitos deles, deportados (para as ilhas adjacentes e colónias) por razões políticas, segundo estimativa do historiador Fernando Rosas (**)...

"De facto, no meu tempo, ele já tinha 40 anos de Guiné [e já deveria ter  cerca de 60 de idade]... Nunca aprofundei essa história. Voltaste a saber dele ? Vou perguntar também ao meu camarada Humberto Reis, da CCAÇ 12" ...


2. Informações adicionais do Manuel 
Mata [, foto à direita, em Santa Magarida,]
sobre o Teófilo, publicadas em 25/3/2006 (*):

No que respeita ao Sr. Teófilo, soube em certa altura, após o 25 de Abril de 74, suponho que por um dos meus amigos de Castelo Branco, donde a esposa do senhor era natural, que a Ritinha e o irmão (furriel na altura, em Bissau) viviam em Lisboa.

Quando cheguei a Bafatá, em Novembro de 1969, alguém me disse:
– O fulano ali do café procura militares de Castelo Branco e de Portalegre. 

Lá fui eu e dois companheiros de Castelo Branco, acabámos por jantar com o senhor. Posteriormente em conversas havidas, recordo de me contar que era sobrinho do Sr. Tapadinhas, proprietário da Tipografia Tapadinhas, em Portalegre.

Contou-me que tinha sido desterrado para a Guiné no inicío dos anos trinta, num grupo de 40 elementos dos quais restavam três à data, estando ele e um outro em Bafatá de quem não me recordo o nome – sei que tinha uma taberna na Tabanca [da Rocha] entre a casa dele e o Hospital, e foi pessoa com quem , de resto, privei algumas vezes, para ouvir os programas em Português da BBC de Londres.

Sei que o Sr. Teófilo tinha vindo à Metrópole apenas duas vezes, tinha uma estima profunda pelos Guineenses, pois foi esse povo maravilhoso que o tratou de inúmeras doenças, e só assim conseguiu sobreviver.

Deu-me muitos conselhos, contou-me muita coisa confidencial, mas nunca quis falar da razão que deu origem ao seu desterro. Sempre respeitei a sua vontade, não o pressionando.

Manuel Mata

3. Comentário de L.G.:

[Foto à esquerda, de Fernando Gouveia: "1970 - A minha casa (pintada de verde) e o restaurante do Sr. Teófilo (junto da camioneta vermelha)]

Esta história é fantástica: o Manuel Mata veio-me refrescar a memória. Lembro-me muito bem do velho Teófilo, que era apontado, no meu/nosso tempo (1969/71) com um caso excepcional de sobrevivência de um europeu às duras condições da Guiné: ele sobreviveu a tudo, o paludismo, a bilharziose, a doença do sono e tantas outras doenças tropicais; enfim, e sobretudo, sobreviveu ao isolamento, ao desterro, ao abandono... 

Como todos os brancos (em especial, comerciantes e poucos) que eu conheci  na Guiné, o Teófilo tinha fama de estar feito com o IN (ou, noutros casos, era-se inevitavelmente suspeito de ser informador da PIDE/DGS, como era o caso de um comerciante de Bambadinca, cuja casa frequentei /frequentámos algumas vezes)...

Devo, contudo, dizer que não me recordo de ter visto os agentes da PIDE/DGS de Bafatá no Café Teófilo... No Restaurante Transmontana, sim...(Mas posso estar a fazer confusão ao fim destes anos todos: numa destas casas conheci um ou mais agentes da PIDE/DGS de Bafatá...  Um deles tinha sido agredido, em serviço, numa tabanca, iam-lhe cortando o nariz, à dentada, e vociferava contra o Spínola e a sua política).

De qualquer modo, o Manuel Mata, que passou a sua comissão em Bafatá (, era seis meses mais novo do que eu...) e, além disso,  era visita da casa do Teófilo, sabe mais histórias sobre este grupo de deportados que não nos quis, na altura,  contar, por razões que eu entendo e respeito... Presumo que se tratava de homens, na altura jovens, que não morriam de amores pelo Ditadura Militar e depois pelo Estado Novo. Como se dizia na época,  deveria ser gente  do reviralho... E daí a suspeita, se calhar injusta,  de pactuarem (ou simpatizarem) com o IN (leia-se: os turras)... Em suma, o sr. Teófilo era visto com reservas pela tropa de Bafatá... Enfim, é pelo menos uma primeira conclusão que eu posso tirar...

Eis, entretanto,  o que o Humberto Reis me esclareceu sobre o café do sr. Teófilo: 

"Do Teófilo apenas me lembro de que era lá que se formava a coluna de regresso a Bambadinca, por isso aí se bebiam os últimos copos. Também me recordo que a filha, Rita, trabalhava nos correios lá em Bafatá e que a balança se queixava, cada vez que ela se punha lá em cima (era uma miúda nova mas já bastante forte para a idade). De resto já não me recordo de mais nada".

Mas há muito mais malta, da nossa Tabanca Grande, que esteve em (ou passou por) Bafatá, que gastava lá o patacão (vd. imagem acima, de uma nota de 50 pesos!), para além do Manuel Mata (Esq Rec Fox 2640), do pessoal da CCAÇ 12 (eu, o Humberto, o Tony Levezinho, o Joaquim Fernandes), do Fernando Gouveia (Comando de Agrupamento nº 2957, 1968/70) (que, de resto, viveu quase dois anos numa casa em frente ao café do sr. Teófilo), etc.

O Teófilo, cuja memória evoco com respeito (hoje se fosse vivo andaria perto dos 100 ou mais), fez-me lembrar-me o caso dos lançados... Eram tipos (desde os condenados pela justiça do rei aos aventureiros, aos judeus, aos ‘assimilados’, etc.) que desde o tempo de D. Henrique eram literalmente lançados, sozinhos, com a missão de explorar, por sua conta e risco, a costa da África Ocidental, os países subsarianos, até à próxima viagem das caravelas ... Eram, na época dos Descobrimentos, em meados do séc. XV, uma espécie de guias e picadores, de espiões, de antropólogos, de embaixadores, de bandeirantes, verdadeiros líderes (no sentido em que iam à frente, para conhecer e mostrar o caminho)… Também eram conhecidos por tangomaus

Nem sempre foram bem vistos pela autoridade régia (que pretendia manter o monopólio do comércio com a África Ocidental, enquanto os lançados também farão, mais tarde, negócios com os ingleses, os franceses e e os holandeses) nem muito menos pelos missionários que os acusavam de estarem completamente cafrealizados, vivendo em poligamia, no pecado, à maneira dos cafres...

Estamos a falar ainda do Séc. XV… Os nossos amigos e camaradas estão a imaginar serem lançados, por exemplo,  na foz do  Rio Corubal, com uma missão (contactar os povos da margem direita do Corubal) e uma promessa sem garantia (a de voltar a casa no ano seguinte ?)

Estas são outras histórias do Império que muitos de nós desconhecem... Sobre os Lançados, vd. Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses (ed lit Luís de Albuquerque). Vol II. Lisboa: Círculo de Leitores. 1994.582-584. Ver também o texto do senegalês Mamadou Mané - Algumas observações sobre a presença portuguesa na Senegâmbia até ao séc. XVII, publicado na Revista ICALP, vol. 18, Dezembro de 1989, pp. 117-125, disponível em formato pdf na página do Instituto Camões. (**)


4. Comentário de Maltez da Costa, ex-1º cabo radiotelegrafista do STM, que esteve nos Esq Rec Fox 2350 e 2640  (Bafatá, 1968/70) (*)

A tabanca do sr.Teófilo, esposa, filho e filha, funcionava como café e restaurante, durante 24 meses (junho/68 a Julho 1970). Era lá que eu gastava as minhas parcas economias e,  quando não havia dinheiro, havia sempre o rol de fiados.

Era uma família simpática! Recordo com muita clareza, embora já se tenham passado 40 anos, as suas fisionomias. Não é verdade que a PIDE/DGS não frequentava o seu estabelecimento, pois foi lá que conheci dois dos seus elementos com quem tive alguns problemas e lá foram resolvidos com a ajuda de um camarada de Guimarães.

Na altura dizia-se que o Sr. Teófilo tinha chegado à Guiné para trabalhar como ajudante de veterinária e só depois da chegada da nossa tropa é que se fixou em Bafatá. Desconheço se é verdade ou mentira. 

Inicialmente eu dormia no Comando de Agrupamento [nº 2957] e trabalhava no posto de rádio junto à messe dos Sargentos. Mais tarde mandaram-me definitivamente para o Esquadão de Reconhecimento Fox (Cavalaria). Quando lá cheguei,  em Junho de 1968, já lá estava um Esquadrão [Esq Rec Fox 2350], quando me vim embora em Julho de 1970, lá ficou outro [Esq Rec Fox 2640]. Em ambos fiz amigos que gostaria de voltar a ver ... de certeza que já não os conheço ... foram 40 anos de separação.

Se alguém se lembrar de mim, que entre em contacto comigo, um abraço a todos e o desejo de uma longa vida na companhia dos filhos, netos e bisnetos. Maltez da Costa, 1º cabo radiotelegrafista do STM (jose.m.costa@sapo.pt)

(Continua) (***)
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Notas do editor

(*) Vd I Série, postes de

25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata)

26 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLIV: Bafatá: o Café do Teófilo, o desterrado
(**) Segundo o historiador Fernando Rosas, o número de deportados nas ilhas e nas colónias, em finais de 1931, meados de 1932, entre oficiais, sargentos praças e civis, era de 1421 (a maior parte em Angola, Timor, Cabo Verde e Açores).

Na Guiné, o número de deportados reviralhistas (opositores ao regime instalado em Portugal depois do golpe militar de 28 de Maio de 1926) era de 46, dos quais 18 oficiais, 5 sargentos, 5 praças e 18 civis... Será que entre estes civis poderia estar o nosso jovem Teófilo ? Recordo-me do Teófilo me ter sempre falado de um grupo original de 40 portugueses que veio para a Guiné, e de que ele era já (em 1969/71) um dos últimos sobreviventes. Julgo que mais tarde (se não mesmo logo em 1932) ele e os seus companheiros de infortúnio terão beneficiado de uma amnistia.

Fonte: História de Portugal (ed. lit. José Mattoso), Vol. 7: O Estado Novo (1926-1974). Lisboa: Circulo de Leitores 1994. 209.

(***) Último poste da série > 28 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12357: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (4): Pista e Tabanca da Rocha (fotos nºs 4, 5 e 8)

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12357: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (4): Pista e Tabanca da Rocha (fotos nºs 4, 5 e 8)

      






Guiné > Zona leste > Bafatá > c. 1968/70 > Foto nº 8 > Tabanca da Rocha


Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados.


FOTO 8 > Parte da Tabanca da Rocha – Bafatá.

1 – Pista.

2 – Alpendre que servia de terminal.

3 – Casa do Sr. Teófilo.

4 – Estrada para Bambadica.

5 – O Bataclã, como agora é referido, ficava numa destas moranças.

6 – Avenida principal.

7 – Comando do Agrupamento.

8 – Esquadrão de Cavalaria.

9 – Posto de meteorologia (sem certeza).



Guiné > Zona leste > Bafatá > c. 1968/70 > Foto nº 5 > Grande parte da Tabanca da Rocha – Bafatá, com a mesquita, por acabar, ao centro, e a rua que vai ter junto da casa do Sr. Teófilo.

Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados.







Guiné > Zona leste > Bafatá > c. 1968/70 > Foto nº 4 > Pista e Tabanca da Rocha

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados.( Legenda: Fernando Gouveia)


FOTO 4 > Foto de Humberto Reis, de grande parte da Tabanca da Rocha – Bafatá.

1 – Pista.

2 – Alpendre que servia de “terminal” do “aeroporto”.

3 – Campo de futebol do Sport Club de Bafatá.

4 – Mesquita.

5 - Trilho (legenda incompleta)

6- Rio Colufe, afluente do Rio Geba


Fotos (nº 5 e 8) do álbum do Fernando Gouveia

[, ex-alf mil rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70;

autor do romance Na Kontra Ka Kontra, Porto, edição de autor, 2011;

é arquitecto, e vive no Porto;

foto atual à esquerda]





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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12343: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (3): Foto nº 3: Parte colonial da cidade (continuação)

Guiné 63/74 - P12356: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (7): Segundo dia em Bubaque, na descoberta do povo Bijagó

1. Sétimo episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU 

A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

7 - O SEGUNDO DIA EM BUBAQUE, NA DESCOBERTA DO POVO BIJAGÓ

Após uma noite bem dormida e um pequeno-almoço frugal (os franceses são uns unhas de fome) a pressa era dar uma saltada até à praia, não longe dali. Toalhas ao ombro e chinelos nos pés, fizemo-nos ao caminho aproveitando para apreciarmos a especial beleza de algumas espécies de flores que fomos encontrando.

Continuando, deparamo-nos com uma construção de aspecto bizarro e de gosto duvidoso, ali virada ao canal que nos separa da Ilha de Rubane. Imagine-se uma casa a quem os alicerces cederam e toda a estrutura ficou tombada, como se as janelas ficassem viradas para o “céu”. Estranhamos o aspecto da vivenda, mas logo percebemos que havia sido construída assim mesmo. Quer a casa, quer os jardins estavam no mais completo abandono. Ao que nos disseram depois, teria sido a casa de férias do primeiro Presidente da Guiné, Luís Cabral. O poder e as suas excentricidades, neste pobre país.

Terá sido casa de férias de Luís Cabral

Continuamos o nosso percurso e chegamos a um conjunto de construções com todo o aspecto de ser uma unidade hoteleira. Tratava-se do Hotel Bijagós, com um grande bungalow central que seria a sala das refeições com cozinha anexa e ainda vários pavilhões de construção térrea, implantados nas proximidades. Esta unidade já existiria na era colonial com a finalidade de ser uma “colónia de férias” para Sargentos e Oficiais das nossas Forças Armadas. À época, devia ser um paraíso, hoje um lugar muito tranquilo e quase deserto.

Um pouco mais à frente, acedemos à praia através de um “trilho” em declive e logo deparamos com um grupo de jovens frequentadores locais. O nosso olhar deliciou-se com a imagem de uma praia magnífica. Estendidas as toalhas na areia finíssima e depois de uns mergulhos nas águas cálidas e com ondulação praticamente inexistente, logo percebemos que éramos os únicos brancos por aquelas bandas.

Alguns coqueiros e outras árvores eram o nosso guarda-sol. A pouca profundidade das águas permitiu-nos um passeio ao longo da praia para apreciarmos a paisagem que nos envolvia. Alguns jovens Bijagós acercaram-se de nós, talvez na expectativa de uma qualquer oferta. Uma grande canoa a motor, de pesca, aportou à praia e era esperada por um adulto que entretanto chegara.
Da canoa, foram arremessados vários peixes para o areal que prontamente foram recolhidos. Das palavras trocadas entre um dos tripulantes da canoa com o adulto que recolhera os peixes, pareceu-nos ter ouvido a expressão “brancos na praia”.
Uma saudação, um comentário ou uma exclamação de espanto pela raridade da presença de europeus por aquelas bandas?

Enquanto a canoa de pesca se ia afastando da praia, os nossos olhares distinguiam no horizonte os contornos de outras ilhas.

Regressamos ao hotel para o almoço e percebemos que um jovem casal nos fazia agora companhia. À conversa com esse casal, durante o almoço, a jovem informou-nos ser filha do proprietário do Anura Clube, um outro empreendimento turístico na região de Bula, e que ali estariam em lua de mel. Após o almoço era tempo do planeado passeio, a pé, pela povoação e tabancas próximas, na procura dos sinais da cultura e das tradições daquele povo.

A caminho da povoação e acompanhados de alguns jovens, fomos visitar um local em que estavam “expostas” uma quantidade apreciável de máscaras, estatuetas e outras obras de arte, executadas em diferentes materiais, e que eram certamente muito antigas. Estávamos perante uma das mais conhecidas expressões de arte deste povo animista e, como em anteriores crónicas já citei, com referências em muitos trabalhos de estudiosos sobre as diversas expressões de arte Africanas.
Quase como quem receia tocar em algo sagrado, perguntamos ao respeitável ancião, guardião daquele espólio, quanto poderia custar uma pequena máscara que nos captou a atenção. Delicioso no trato e com um português perceptível, disparou um valor incomportável para nossas exauridas carteiras em fim de “férias”.

Na impossibilidade do negócio, continuamos até à principal “avenida” da povoação, sulcada de canais em resultado de muitas chuvadas e ausência de reparações, que nos conduziria até ao cais de Bubaque. Este era o principal ponto de ligação do arquipélago dos Bijagós com a parte continental da Guiné. As construções próximas do cais eram precárias, pequenos estabelecimentos comerciais e muito pouco movimento naquela hora.
Inflectimos para outra zona da ilha e fomos ao encontro de uma missão católica dedicada ao apoio a crianças, e não só, dirigida por um religioso italiano. Pelo caminho, conhecemos uma jovem, filha de Portugueses emigrados na Bélgica e que, estando na missão em serviço de voluntariado e a preparar uma tese, nos acompanhou até lá.

A missão estava integrada num conjunto urbano com traço colonial e militar e várias das construções estavam a ser utilizadas, nomeadamente pelos serviços telefónicos. Prosseguimos mais para o interior da ilha ao encontro de uma tabanca. Caminhando, fomos abordados por dois jovens, membros de uma cooperativa de artesanato local e que nos propuseram a compra de algumas das esculturas que exibiam. Deixamo-nos seduzir quer pela beleza, quer pelo preço, regateado, e trouxemos para casa algumas peças, de que destaco a escultura de um Irã que representa o espírito dos animistas nas cerimónias e rituais de ligação à natureza.

Levamos depois as peças à presença de uma autoridade tradicional, que através de um carimbo, certificou cada uma delas como sendo autêntico artesanato dos Bijagós. Satisfeitos com as peças e com o preço pago por elas, continuamos o nosso caminho até uma tabanca próxima. Era ainda a época seca e as hortas estavam por cultivar.

O tempo era já escasso e só permitiu observar visualmente alguns pormenores da vida dos Bijagós. Gente hospitaleira, amiga de conversar e que se desloca para a região de Bissau na procura do trabalho que garanta o sustento da família. Imigrantes na sua própria terra, como em tantos outros lugares do Mundo.

Já na saída da tabanca deparamo-nos com um peixe de grande tamanho secando ao sol, espetado numa esteira que servia de vedação a um terreno de cultivo. Até aqui nada de anormal, não fora o cheiro nauseabundo e a quantidade de moscas que o peixe nos “oferecia”.

Cansados, decidimos regressar ao hotel e, aqui chegados, saímos disparados para um refrescante banho. Reunidos depois na esplanada para uma “loira” fresquinha, a tempo de assistirmos à chegada de mais hóspedes. Eram dois cavalheiros de meia-idade. Um deles, exprimindo-se em francês e substancialmente mais alto que o outro, exibia uns trejeitos efeminados. Não tardamos a concluir que se tratava de um casal de homossexuais.
Este pedaço de terra, perdido na costa ocidental africana, era o local ideal para se fugir a olhares indiscretos.

A hora do jantar confirmou, mais uma vez, que o peixe era a base de quase todas as refeições que degustamos, sendo a barracuda o principal sacrificado.

O sol escondia-se já no horizonte por detrás de uma qualquer daquelas ilhas, anunciando a hora do recolher.
Foi um dia cansativo mas enriquecedor, no contacto com o povo Bijagó.

( Continua)

Na esplanada do hotel em Bubaque

Praia em Bubaque

À descoberta de Bubaque

A minha primeira viagem à Guiné-Bissau - 1998 (5) - Estadia em Bubaque, na descoberta do povo Bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12322: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): Bubaque, a outra Guiné com sabor a férias

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12355: In memoriam (173): Adolfo Barbosa, ex-fur mil, Pel Caç Nat 65 (Piche, Buruntuma, Bajocunda, 1968/70) (João Pereira da Costa, ex-fur mil op inf CCS/BART 2857, Piche, 1968/70)

1. Mensagem de hoje, do nosso camarada João Pereira da
Costa [, foto à esquerda], ex-fur mil op inf,  CCS/BART 2857 (e administrador do blogue do BART 2857, Piche, 1968/70)


Caro camarada Luís Graça, agradecia o obséquio, caso fosse do interesse do blogue,  que publicassem a notícia do falecimento ou da missa do sétimo dia de mais um nosso camarada que esteve na Guiné,  no Pelotão de Caçadores Nativos 65. Poderão utilizar as fotos que estão no Facebook, na página da Tabanca Grande. 



2. Notícia da morte do Aldolfo Barbosa, ex-fur mil, Pel Caç Nat 65, Leões Negros (Piche, Buruntuma, Bajocunda, 1968/70) [foto à esquerda]

Bom dia,  caros amigos e camaradas.

Ontem realizou-se a missa de sétimo dia,  em homenagem ao falecimento do nosso amigo e camarada do Pelotão de Caçadores Nativos 65, Adolfo Barbosa.

Homem honesto, cumpriu a sua missão, por vezes bastante difícil, como membro do Pel Caç Nat 65.  Tantos momentos desagradáveis pelas intromissões e confrontos com o IN, em que este pelotão,  em várias localidades para onde foi chamado, se envolveu, sempre nos primeiro lugar da luta e expulsão do IN. Por toda a Guiné é uma das unidades mais prestigiadas e guerreiras forças.

Outros tantos momentos agradáveis nos convívios onde ele sempre estava presente, com a sua alegria e amizade.
Como seu grande amigo,  recordo estes momentos que farão sempre relembrar a sua figura.
Hoje ausente da vida humana, continua dentro do meu coração e tenho a certeza de todos quantos estiveram com eles.
Descansa em paz no sono eterno. Um dia estaremos todos juntos. Salve, Adolfo Barbosa.


Guiné > Zona leste > Setor L6 > Piche > Pel Caç Nat 65 > 1970 > Os fur mil Adolfo Barbosa e Luis Guerreiro (membro da nossa Tabanca Grande, a viver no Canadá desde 1971), junto a uma viatura blindada White.

Foto: © João Pereira da Costa  (2013). Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12340: In Memoriam (172): António Henrique Teixeira, o "Tony" Teixeira , um "onça negra", da CCAÇ 6, um grande bedandense, um magnífico camarada e amigo (1948-2013)... O funeral é amanhã, às 11h30, na sua terra natal, Espinho.

Guiné 63/74 - P12354: Blogoterapia (244): Quando morre aquela que nos deu o ser... Às mães, recém falecidas, dos nossos camaradas J. Casimiro Carvalho e Lázaro Ferreira (Luís Graça, editor)




Foto: © José Casimiro Carvalho (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

Excerto de uma das cartas enviadas pelo J. Casimiro Carvalho,  de Gadamael, dirigida à "Minha querida mãezinha" e datada de 26/6/73: "Now we have peace", finalmente estamos em paz...  Das cartas enviadas pelo J. Casimiro Carvalho aos pais, a partir de Guileje e Gadamael, em 1973, fizemos uma pequena série, Cartas do Corredor da Morte.


Para:

(i) o José Casimiro Carvalho (Maia),
que perdeu ontem a sua mãezinha,
(ii) o Lázaro Ferreiro (Braga),
que também ficou órfão há um mês 
(em 31/10/2013, perdeu a sua mãe, Alzira da Conceição Dias)
e (iiii) todos demais  camaradas e amigos 
a quem faleceu recentemente a mãe,
aquela que lhes deu o ser... (LG)




Meu querido amigo e camarada:
Soube, pela teu aziago mensageiro, 

que a tua querida mãezinha,
o teu "primeiro amor" 

(que linda e feliz expressão!), 
se despediu hoje desta vida... 
A morte, mesmo quando anunciada, 
é intolerável. 
Procuramos, nestas ocasiões, únicas, 
encontrar palavras de conforto 
para dizer aos nossos amigos em luto. 
Não é fácil. 
Nesta ocasião,todas as palavras são demais, 
estão a mais, 
parecem deslocadas... 
Mas sabemos quanto é bom 
ter um ombro amigo, 
à nossa disposição, 
à nossa altura, 
à altura do nosso ombro,
para estes dias e horas de amargura.

Guarda, meu caro, 
as tuas melhores memórias, 
os teus melhores momentos 
passados com a tua mãe, que te deu o ser, 
que te protegeu, 
que te alimentou, 
amamentou, 
te ensinou a falar, 
que te ensinou a dizer a palavra "mãe",

que te ensinou a ver o mundo, 
a distinguir as cores, 
a descodificar os sabores, 
a destrinçar os sons,

a conhecer as formas....
Que te indicou o norte e o sul, 
o oeste e o leste. 
Que rezou por ti,
para que regressasses são e salvo da guerra.
Que daria a vida por ti, 
se necessário fosse.
Enfim, sem elas, as nossas mães, 
sem elas e sem os nossos pais, 
não passaríamos muito provavelmente 
de uma folha de couve, de uma tábua rasa, 
sem valores, 
sem linguagem, 
sem emoções... 

A morte de uma mãe 
(a par da morte de um pai, de um filho, e do cônjuge)

é, por isso, 
um dos mais terríveis acontecimentos de vida, 
a que está sujeito um ser humano... 
Com a morte da nossa mãe
cortamos o cordão umbilical,
pela segunda e derradeira vez.
Os nossos pais são as nossas raízes mais telúricas,
as que nos prendem à vida e ao mundo.
É por isso que, mais do que nunca,
nos sentimo-nos desamparados,
fisicamente sozinhos no mundo,
quando eles desaparecem.
A orfandade é isso.


Mas teremos, sempre, que fazer o luto. 
No teu caso, eu sugiro que escrevas 
sobre a tua mãe, 
que releias as suas cartas 
(e as que lhe escreveste, 
da Guiné, de Guileje, de Gadamael, de Paunca)... 
Vai te fazer bem. 
E quando fores ao cemitério, 
fala com ela em voz alta,
com a ternura com que lhe falavas 

nas tuas cartas da Guiné,
para que o seu espírito repouse em paz,
e para que os bons irãs a protejam 
e te protejam, a ti e aos teus.
É isso que eu faço 
com o meu pai, meu velho, meu camarada,
que me deixou o ano passado...
Faz-nos bem. 
Far-te-á bem, 
meu bom amigo e camarada.


Um xicoração apertado. 


26/11/2013

Luís Graça

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Nota do editor:

Útimo poste da série >  27 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12353: Blogoterapia (243): Reflexão sobre a amizade (Abel Santos / Alberto Alves)