1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Fevereiro de 2014:
Queridos amigos,
A Tricontinental marcou a atualidade mundial dos anos 1960.
Preparada metodicamente a partir de 1964, recebeu contribuições de personalidades como Ben Barka, Guevara, Allende, Ho Chi Minh. E teve uma singularidade para as coisas que nos irmanam no conhecimento guineense: em 6 de janeiro, um ano depois do encontro havido com Guevara em Conacri, Cabral profere a sua comunicação que surpreende o auditório em toda a linha, o marxismo-leninismo tal como aparecia em todas as vulgatas e cartilhas, é sujeito a um olhar africano, a luta de classes é outra coisa, a vanguarda revolucionária tem outra modalidade de proletariado, a pequena burguesia é imprescindível, a libertação nacional é a reconquista da personalidade histórica e o seu regresso à História. Daí em diante, Cabral torna-se numa figura de proa do movimento revolucionário.
Um abraço do
Mário
A Tricontinental:
Quando Amílcar Cabral se tornou num teórico mundial da revolução (1)
Beja Santos
“Tricontinentale, Quand Che Guevara, Ben Barka, Cabral, Castro e Ho Chi Minh préparaient la révolution mondiale (1964-1968)”, por Roger Faligot, La Découverte, Paris, 2013, lê-se como um thriller portentoso acerca da organização e realização de uma das conferências fundamentais dos anos 1960. A conferência, que se realizou em janeiro de 1966, em Havana, deu origem à Tricontinental, apresentava-se como o reagrupamento das forças anti-imperialistas, de África, da Ásia e da América Latina. A partir dos últimos dias de 1965, foram chegando a Havana delegações dos países descolonizados, de movimentos de libertação afro-asiáticos e formações da guerrilha da América Latina. Chegaram em força chineses e soviéticos, os irmãos inimigos do campo socialista.
Na sua preparação impôs-se um nome fundamental, o marroquino Mehdi Ben Barka, que foi raptado em Paris às ordens do temível general Oufkir, o chefe da segurança de Hassan II. Ao longo de 1965, Ben Barka reuniu com imensos revolucionários como Guevara, Ben Bella, Allende, Ho Chi Minh, Amílcar Cabral e Douglas Bravo. A materialização da conferência era seguida cuidadosamente por vários serviços secretos, a começar pela CIA, estamos numa época em que a guerra do Vietname está a provocar desgastes enormes, na América Latina vive-se num quase barril de pólvora, do Guatemala à Bolívia. E os serviços secretos tinham a oportunidade de filmar os representantes de mais de 80 países irmanados por uma expressão: Terceiro Mundo, compareceram representantes de partidos clandestinos, intelectuais como Alberto Moravia, Mario Vargas Llosa e uma cantora de nome mundial, Joséphine Baker.
Desde a conferência de Bandung que não havia um areópago desta dimensão, em que se depositavam tantas esperanças, parecia que a revolução mundial estava em marcha. Fidel Castro e Guevara faziam tudo para subtrair Cuba ao isolamento perpetrado por Washington. Desde o início da década que os norte-americanos apostavam em golpes de Estado e intervenções militares, basta pensar na Argentina, Equador, República Dominicana, Honduras, Brasil e Bolívia. Prosseguiam as guerras da descolonização e havia em África nacionalistas de prestígio, ao tempo: Nasser, Ben Bella, Nkrumah, Nyerere, Sékou Touré, mas também revolucionários atirados para a fogueira como Félix Moumié, assassinado, Lumumba, assassinado, Mandela, encarcerado. A revolução vitoriosa fora a de Cuba, em 1959. Che Guevara renuncia às funções de Estado e no maior secretismo parte para África, tem a conceção de que o turbilhão congolês irá mudar o mundo. Virá desiludido, o único político que lhe mereceu crédito e onde viu um líder revolucionário de primeira água foi Amílcar Cabral.
Numa narrativa arrebatadora, Roger Faligot descreve o trio Ben Bella, Guevara, Ben Barka, como foram congeminando a partir de 1964 a realização de uma conferência que evocando a solidariedade dos povos de África, Ásia e América Latina, que pusesse termo ao pernicioso conflito sino-soviético, que desse alento a todos os movimentos libertadores e travasse os projetos neocolonialistas. Os acontecimentos descritos por Faligot são pontuados pelo calendário. Por exemplo, as reuniões realizadas em Hanoi, era fundamental que o Vietname do Norte aparecesse em glória, como veio a aparecer em Havana, David estava a derrotar Golias. É neste contexto que aparece Amílcar Cabral, a quem Ben Barka chamava o “Lenine africano”. Cabral não morria de amores pelas teses guevaristas, não era homem de impulsos, apostava no trabalho político, estava nos antípodas do Che. O autor refere o seu bem-sucedido trabalho à volta da conferência das organizações nacionalistas das colónias portuguesas, onde trabalhou com Mário de Andrade, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Eduardo Mondlane, Marcelino dos Santos e Vasco Cabral.
Mário Pinto de Andrade é o segundo à esquerda, tratava-se de uma das muitas reuniões preparatórias da Tricontinental, a fotografia faz parte dos arquivos de Mário Pinto de Andrade, depositados na Fundação Mário Soares
Em 1962, Pedro Pires encontra Ben Barka em Casablanca. A guerrilha guineense irá evoluir favoravelmente a partir de 1963. Pedro Pires é apresentado como adjunto de Cabral que por sua vez envia quadros para França para mobilizar cabo-verdianos. É o caso de Barô, Joaquim Pedro Silva, que fez serviço militar no exército português e que depois partiu para Paris como militante do PAIGC. Intelectuais franceses interessam-se pela luta guineense, é o caso do cineasta Mario Marret e do politólogo Gérard Chaliand. Em novembro de 1964, Cabral está de passagem por Paris, veio do Vietname, e Faligot regista que Barô ficou impressionado com o fato completo de Cabral, os seus sapatos italianos de marca e o seu grande relógio Rolex. Cabral anuncia aos seus camaradas que se prevê no ano seguinte abrir a frente de Cabo Verde e que é fundamental organizar o recrutamento de cabo-verdianos na Holanda na Bélgica e em França. Cabral não se abre em confidências, mas na altura já tudo está a correr de feição para a preparação de guerrilheiros em Cuba.
Em dezembro, Guevara anuncia que se encontrar com Ben Bella e visitar uma série de países africanos e passa à prática, em 19 de dezembro está em Argel, discutem com preocupação o que se está a passar no Congo. Guevara apercebe-se que a realidade do mosaico africano tem uma complexidade bem diferente do que se passa na América Latina, no início do ano chega ao Congo Brazzaville, apercebe-se que está num eixo estratégico, convirá trazer uma brigada cubana para atear fogos e subverter o discreto apoio norte-americano.
Os soviéticos estão em pulgas, querem saber o que Havana prepara para África, as teses da “coexistência pacífica” podem ser comprometidas pela organização Tricontinental que alguns andam a cozer. Em Conacri, Guevara convence Sékou Touré a participar em primeiro plano na Tricontinental e encontra-se com Cabral. Se até agora estes episódios públicos são relatados pela imprensa, a reunião de 12 de janeiro entre Cabral, que se fazia acompanhar de Pedro Pires e Aristides Pereira, é totalmente omitida para a opinião pública. Cabral é preciso nos seus pedidos à ajuda cubana, tem necessidade de 30 camiões e diz onde devem ser entregues, pede armas e formadores e pede igualmente preparação de um grupo de cabo-verdianos que deverão ser treinados em Cuba. Impressionado com o espírito metódico de Cabral, Guevara diz a tudo que sim. Em fevereiro, o “comandante primeiro” está no Cairo e depois volta à Argélia. Está gizado o plano para a Tricontinental. Ben Barka, conhecido na gíria como o “senhor dínamo”, põem-se em movimento. Em março, Guevara está de regresso a Cuba, está a amadurecer o seu plano para regressar ao Congo e despede-se das suas funções ministeriais numa empolgante carta a Fidel Castro.
As armas chegam à Guiné, como chegarão às mãos do MPLA e da FRELIMO. Guevara tem um enorme revés: Ben Bella é afastado do poder. No Cairo, Ben Barka afina as coordenadas da Tricontinental. Na Indonésia, os comunistas vão ser massacrados. Ben Barka é raptado em Paris, perto estava Pedro Pires reunido com Joaquim Pedro Silva e fala-se no recrutamento de Agnelo Dantas, que virá a combater em solo guineense. Em novembro, Guevara retira-se do desastre congolês mas não irá comparecer na Tricontinental, no dia de Natal de 1965 está a repousar na embaixada cubana em Dar-es-Salaam. Os guerrilheiros guineenses chegam a Cuba para receber formação. E as delegações revolucionárias avançam para o sumptuoso Habana Libre, são recebidos em ovação, frequentam cabarés, fumam puros e bebem champanhe. Ninguém sabe onde está o Che. Começam as comemorações do 7.º Aniversário da Revolução Cubana. O jovem guatemalteco Turcios Lima é a grande vedeta, as festas prosseguem, as delegações chegam. Mas tudo vai mudar na manhã de 6 de fevereiro de 1966, no Salão dos Embaixadores, Amílcar Cabral tem tempo de sobra para apresentar uma peça teórica que deslumbrará a assistência, deixando os dogmáticos de cara à banda.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 25 de Agosto de 2014 >
Guiné 63/74 - P13532: Notas de leitura (626): Mário Soares e a descolonização da Guiné (Mário Beja Santos)