1. Mensagem de José Brás
(*), ex-Fur Mil da CCAÇ 1622,
Aldeia Formosa e
Mejo, 1966/68, com data de 14 de Julho de 2009:
Companheiro Carlos
Aqui vai mais uma estória a incluir na série “
Vindimas e Vindimados”
A esta irá seguir-se “
Nhala II” e vem do centro de um pequeno
tsunami, parte ocasionado pelo que conheces e já esquecemos, e parte gerado neste processo de chamar de novo imagens e emoções difíceis de esquecer mas também difíceis de recordar por dentro.
Um abraço
José Brás
Nhala I
Que porra é esta pessoal
Éh caraças olhem o tamanho dos clarões
É aqui pertinho, pá
A norte da estrada de Buba
É em Nhala, é em Nhala
Não há problema, já estão acostumados.
Gaita, pá, mas aquilo é de mais, rebentam com tudo
Cala a boca piriquito, não estás é habituado
Deixa que já te habituas
Se não lerpares primeiroGente jovem, um magote de macho, furriéis, sargentos e praças saíam à pressa do bar comum, e outros de suas casernas, olhavam agitados o topo das árvores que no limite do desmatado, para além da soleira sul da pista, fechavam o espaço físico de Aldeia Formosa e deixavam adivinhar um mundo de medos e fantasmas. Ouviam aquele som novo, telúrico e cavo, que mais lhes parecia sair da terra do que das mãos de homens, negros que fossem e do inimigo.
Quinze dias era o que tínhamos desta trampa, e trampa era, aqui para nós, qualquer coisa que não fosse a asa protectora da mãe; trampa, ainda que fosse Aldeia Formosa, um paraíso como havemos de constatar mais tarde quando elas começarem a morder.
Estes quinze dias haviam passado nas calmas, rancho melhor que no puto, cerveja fresca, sorna, serviços como na tropa de Lisboa, guarda, faxina, na fonte a partir mantenha com as bajudas da aldeia, boas como o milho, de mama rija, e atrevidas, sempre nos risinhos umas com as outras, afastando a mão branca que lhes procurava as carnes, dengosas no modo, ”
iiiih pissoal branco, ca põe mão, em mim”, atiçando fogos, levantando pragas contra a mania do Capitão “
já sabem, tenham cuidado com bajudas, estão prometidas e os pais contam com as vacas da troca. Nem em sonhos, malta. Não quero problemas sociais aqui”.
Sociais!? Que raio de porra seria essa, problemas sociais?
Problema social era a calada da noite no sanitário, cada um a contas consigo próprio, em auto-gestão à conta das bajudas.
A Buba, apenas uma ida, em coluna, amparados pelos velhinhos das Fox, caminho a butes por causa das minas, trinta quilómetros, mais ou menos, que na altura pareceram cinquenta e agora me parecem dez, carregar tralha do cais para o dorso de unimog's e GMC’s, voltar pelo mesmo caminho, um calor danado, lama de enterrar carros até à pança, descarregar tudo, empurrar, empurrar até a alma sair pela boca, voltar a carregar, quinhentos metros mais à frente tudo ao princípio.
Ainda era noite quando saímos. Picar estrada a passo de caracol, o Sol a sair da copa das árvores, já vermelhão, pintando de vermelho a terra da estrada, espalhando um bafo de humidade quente, o cheiro intenso de África que se irá colar a cada um até ao fim dos seus dias, sendo que uns irão ter dias curtos, ainda que o não saibam, e outros os alongarão por anos e anos, noutras guerras e diferentes, noutras paragens, remoendo passados, trazendo à memória tais cenas como se houvessem corrido em fita de cinema, cada um, personagem, actor, espectador, do seu próprio filme, envolto e encadeado numa certa realidade irreal, crescentemente irreal.
E sede. Sede como ninguém tinha tido na vida. A falta absoluta de líquido no corpo. Sede bruta que nem aceitava os avisos dos mais precavidos e capazes de a suportar, para beberem pouco de cada vez, um gole, molhar a boca, apenas, poupar na água porque a que se encontrava por ali nos charcos, melhor era nem lhe tocarem.
Gente houve que a meio do caminho já havia bebido a sua e a de outros, olhando os cantis alheios com olhos de carneiro mal morto.
Mas pronto, nem
trolha tivemos em encontros maldosos, como nos haviam prometido os das Fox antes da saída nas conversas de bar da noite anterior, meio a acagaçar novato, meio a sério.
Sarrafusqueta foi, quinze dias antes, no dia da chegada. Pequena, espécie de boas-vindas, parece que habitual na recepção a branquelas acabadinhos de chegar. Uns nomes feios a mães e esposas gritados em bom português, umas rajadas, a malta a olhar-se uns aos outros, ainda incrédulos, demorados no reagir, com medo até de disparar, mas enfim, dando troco, diriam os das Fox que no risco de se aleijarem a si próprios.
Chegar ao quartel, nesse dia, chuveirada, roupa limpa, primeiro copo pago, imposto à velhice, soldados a saírem para a Aldeia em busca de fêmeas, segundo se consta, que também já esperavam por carne tenra e branca e pelos pesos que sempre haviam de dar jeito para alimentar família e comprar ronco no comerciante Fuad.
Seis dias antes estavam ainda em Lisboa, no Cais do Sodré, no Martim Moniz, no Bolero e nas baiucas todas onde se podia comprar sexo disfarçado de cerveja cara ou de whisky falso pago a preço do bom. Um dia não são dias e ninguém sabia já dos seus, para falar a verdade.
Espantava-me, eu, com a corrida daqueles gajos, desembestados, desacordados de sonos velhos, arrastados pelos que já conheciam a praça. Não me cabia na cabeça tal coisa, é certo, mas sempre nesta mania de tudo tentar entender e perdoar a humano jovem mas já muito lixado pela vida, eu remetia as culpas para um País de costumes estritos, de pecados e infernos, onde, ainda por cima, haviam fechado as casas de putas antigas onde o coito custava barato e estava garantido por inspecção médica e fiscalizações.
Naquela noite de estoiros e clarões, quinze dias após a chegada, foi a primeira vez que o pessoal da 1622 se pôs a si próprio a questão mais ou menos assim: “
debaixo daquele fogo? Quem é que aguenta? deve estar o quartel meio destruído. Ainda bem que não me calha a mim”.
Também mais tarde havemos de descobrir que não é bem assim.
O Capitão pira nem precisou de mandar reunir Alferes porque Alferes não faltavam ali no ripanço da messe deles, ouvindo Bach no gira discos trazido do Funchal, acomodado a preceito, pronto, também, para cumprir seu serviço militar nos trópicos, e voltar ao puto, sem traumas, sem febres palúdicas, nem restos de blenorragias.
Dois pelotões! Rápido, porra! Bruno e PG. Imediatamente a dar uma mão àquela gente, montados até Mampatá e à pata depois.
Fox’s à frente, rádio, dois morteiros e duas bazoocas, Mg com o Banharia.
Contacto rádio daqui com Nhala, PRC10, da coluna com o quartel em escuta permanente.
Ala Milhano, ainda que leve mais tempo a executar isto tudo do que a dizê-lo.
Saiu a tropa e mal o havia feito, quinhentos metros, talvez, do quartel de Aldeia, ordem para fazer alto, tudo p’ra trás, acabou a guerra por hoje, informação de Nhala que a mão estendida já não era necessária, que não havia azar, que evitássemos a viagem não fora os gajos haverem montado emboscada ou semeado minas para a eventualidade.
Nada foi aquilo, apenas uma espécie de exercício que o PAIGC nos ofereceu, mais a nós em Aldeia, espectadores do fogo de artifício, que aos de Nhala, habituados que estavam a festas desatas. Ajeitavam almas e corpos para futuros violentos e certos.
E nem falaria disto, não fosse o acaso de querer apresentar-vos Nhala no fito de contar estória mais completa que trago encalhada há muito.
Nhala foi só um posto intermédio, quando íamos a Buba e não queríamos fazer a estrada directa, mais curta, passando perto de Missirá e um pouco antes ainda, entroncamento à esquerda por onde se ia quando o destino era Colibuia ou Cumbijã.
Bolola, logo a seguir, um lugar na carta militar da tropa portuguesa, um lugar no mapa político da Guiné Bissau ainda hoje, provavelmente local de moranças de gentes antes e depois da guerra.
O que era, então, Bulola, pelo menos entre Novembro de mil novecentos e sessenta e seis e Junho de mil novecentos e sessenta e sete?
Que me lembre, nada, se nada era o que encontrávamos no caminho, além de esporádicos e curtos encontros com rajadas, estrondos e vozearia de inimigos que eram e não eram, quando calcorreávamos o caminho de Buba, unimogues e GMC’s, tudo vazio e leve à ida, ajoujados na volta com comes e bebes que abasteceriam a pobre cozinha dos soldados da Companhia durante mais um tempo.
E a messe de sargentos num espaço melhorado em asseio e qualidade de mesa, a messe de oficiais num outro lugar ainda mais recatado, porque nestas coisas de estômagos cada casta tem o seu, nas maneiras de estar à mesa, nas convenções de acesso limitado, no guardanapo de pano, de papel ou costas da mão, copo de vidro, de plástico, púcaro de lata, no gim tónico, umas tapas de queijo antes da refeição, whisky ou conhaque, depois, cadeirão de recosto no fim, tudo respeitando o mais possível hábitos trazidos da mesa da mãe, coisas que em soldados vindos do pastoreio, das hortas, das vindimas, da construção civil, do trabalho de sol-a-sol, não se esperaria, com as excepções devidas à regra geral.
Geral era o refeitório da soldadagem. Rectângulo de alvenaria coberto de folhas de zinco e recoberto por colmo, numa plataforma ligeiramente elevada em relação à inclinação do terreno, três degraus para entrar, mesas corridas, bancos corridos em chão de cimento escuro, prato escasso para a fome de cada um, vinho do barril, baptizado no puto, rebaptizado em Bissau, com um pozinho, dizia-se, para tirar a tesão que pouco jeito dava ali, tempo curto à mesa porque quem pouco sabe depressa o reza, tudo lavado de imediato, a balde e escova rija, faxinagem de escala, duas vezes ao dia o ritual, não falando da refeição da manhã, pequeno-almoço lhe chamavam uns, café da manhã, mata-bicho.
Mampatá era o cruzamento que definia o caminho a seguir. Em frente, directos a Buba, com uma volta larga a Sul, mas a qualquer um sem apoio da carta ou mapa e na falta de referências a olho, dando a ilusão de estrada quase recta.
Ou então, voltando a Norte, por Uane, outra volta larga depois, descendo até Buba, atravessado que fora Nhala, por dentro, uns quilómetros atrás.
Voltemos, então, a Nhala, agora que perdemos tanto tempo às voltinhas a Sul e a Norte, em Buba, em Missirá, em Mampatá, em Uane, em Sare Donhe, se bem que desta nem falámos por se localizar um pouco à esquerda do nosso caminhar, voltemos a Nhala se é de Nhala que quero falar agora porque, se em Nhala comecei este falar, foi porque de Nhala queria fazer centro, hub, como na anglosaxonização (!!!) do falar português, tanta gente diz hoje, hub, querendo dizer de deambulações guerreiras na zona.
Portugal Pequenino e Darsalame eram nomes de tabancas na margem esquerda do Corubal, em linha recta tão perto do Xitole que, emboscados a cerca de dois quilómetros da primeira tabanca, ouvíamos o rio a correr e os motores das viaturas da tropa.
Não mais de quinze dias era o nosso tempo de Guiné, caras ainda enjoadas da travessia no Niassa, marcas do Inverno de Abrantes e Santa Margarida na pele, muitas dúvidas ainda nas cabeças, desconfiadas de que essa coisa da guerra, tirando o troar do ataque na Nhala, era apenas exagero de caçador, nas calmas em Aldeia Formosa com direito a banhos no Saltinho.
Ordem de cima, vá-se lá saber porquê, mandava juntar tropas de Aldeia e de Colibuia para um golpe de mão a Portugal e Darsalme. Coisa fácil, como dizia o Umarú Jaló, jovem mas feito àquelas andanças e permanentemente ansioso por acção. Eram só duas aldeias isoladas de tudo, picada a cortar mata e bolanha a partir de Nhala, coisa de quinze quilómetros.
Coisa fácil seria, apesar do caminho se alongar demais para os nossos hábitos metropolitanos. Seria, se fosse como se previa, sem merdas no caminho, sem encontros malandros, só andar, G3, mantimentos para aguentar a volta de manhã, bornal e o pouco mais que um ou outro acreditava dar jeito, caminho feito de dia, abancar a dois quilómetros do objectivo. Seria, não fora a bailarina que alguém deixara como esquecida, enterrada num chão mole logo atrás de um grosso tronco de árvore decepada por ventos velhos e de haste tripla apontando ao céu.
O João, nativo que fora já elemento do IN e agora vivia no quartel de Aldeia Formosa na sua qualidade dupla de guia de tropa branca e carpinteiro nas horas livres, chegado ao obstáculo, apoiou a mão direita no dorso da árvore, passou a perna esquerda para o outro lado, com a mão esquerda agora também apoiando o movimento, fez força para passar a outra perna.
Morreu ali mesmo, ninho de pássaros de aço, que lhe buscaram o corpo.
O Furriel Bernardes que seguia logo atrás do João, ouviu o estrondo e só descobriu que comera também a sua parte, quando as pernas se dobraram feitas trapo e o deixaram cair enrolado sobre o capim meio podre da picada.
O Alferes Baptista com pê, como sempre dizia a quem calhava apresentar-se, civil ou militar, também levou do mesmo, aliás, carga maior que a do Furriel, ou se menor, mais grave porque lhe tramou bexiga e rim.
Abortar a operação era e foi a solução a tomar, durante a noite o caminho ao contrário, um morto e dois feridos graves no lombo, a confiança abalada, a certeza que o movimento fora detectado, a dúvida se de outro local da mata não sairia alguém a cobrar mais imposto de sangue.
Dia seguinte, reconhecimento ao local, dois pelotões, um de cada Companhia. Sem nada que aparentasse mexidas, um pelotão regressa e outro fica em emboscada na expectativa de romagem à árvore derrubada.
Ficou o pelotão do Ávila e, voluntário na ida, fiquei com ele a experimentar a noite do mato, os ruídos, os cheiros, o sabor do risco, a excitação do novo.
Cada soldado com seu poncho no chão, dormindo à vez, soldado sim, soldado não, naquela correnteza de corpos estiraçados, alerta uns, acordados, alerta outros, mesmo no sono, um olho no burro outro no cigano.
Molhei-me e acordei espantado, duvidoso ainda, um eu racional embaraçado perante o outro eu instinto e descomandado.
Nem houvera sonho! Apenas a memória que navegara por dentro do tempo e do gesto mais fundo guardado em zonas do ser que não me conheço.
Ou, talvez, o sistema nervoso autónomo extravasando das suas funções.
Um orgasmo pleno e perturbador, a meio da noite de um chão duro, a dois passos do objectivo que havia de ser mais tarde, Portugal Pequenino, com o som do Corubal nos ouvidos e os barulhos nocturnos da mata, a mais de quinze quilómetros de Nhala.
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Nota de CV:
(*) Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4658: Vindimas e Vindimados (José Brás) (6): Achamos nós que não nos conhecíamos