quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3344: PAIGC - Instrução, táctica e logística (18): Supintrep, nº 32, Junho de 1971: O temível helícóptero (A. Marques Lopes)

Tancos > Base Aérea nº3 > 1967 > 1º Curso de Pilotos de Helicópteros, onde pela 1ª vez também foram incorporados milicianos, segundo informação do Jorge Félix, aqui, junto a um Allouette II, no meio dos seus camaradas, onde se inclui o Duarte Nuno de Bragança.


Os primeiros pilotos milicianos de helicópetros da FAP > 14 de Março de 2008 > "Éramos oito milicianos (Eu, Antolin, Cavadas, Melo, Baeta, Pinto e Duarte) e três da Academia Militar (Braga, Afonso e Costa). O Pinto faleceu em Outubro de 2007, em Lisboa, vítima de doença. O Oliveira faleceu no acidente de aviação em Tancos, em 72 ou 73. Estes dois companheiros estiveram comigo na Guiné. O Melo anda em sítio incerto na Venezuela (vou saber pormenores da 'chatice' que foi a vida dele por lhe terem roubado um Allouette III da FAP). O Baeta faleceu em Gago Coutinho, Angola, Março de 1969, num acidente, voo nocturno, Heli. O Cavadas também já faleceu em acidente de Heli, andava nas pulverizações, no Alentejo. O Antolin está de perfeita saúde, Comandante da TAP reformado, a viver em Lisboa. O Duarte é... Sua Alteza D. Duarte Nuno de Bragança, esteve em Moçambique e vive em Lisboa. O Pinto, também reformado da TAP, faleceu há quatro meses. Do Braga, Afonso e Costa, sei muito pouco (...). Jorge Félix".

Foto (e legenda) de Jorge Félix, ex- Alf Mil Pil Av Heli Allouette III (BA 12, Bissalanca, 1968/70) > Cortesia de:
Blogue do Victor Barata > Especialistas da BA 12, Guiné 1965/74.




PAIGC > Figura 1 > O helicóptero > "Helicóptero quer dizer: uma coisa que tem asas (ptero) em forma de hélice ou ventoinha (héli). Na verdade o helicóptero não tem asas como o avião, tem três partes principais: O corpo – com a carlinga onde está o piloto; o rabo – que também tem uma hélice (hélice propulsora); as hélices – grandes, acima do corpo e que se consideram como sendo as asas do helicóptero (ver desenho)"


Continuação da publicação do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, documento classificado na época como reservado, de que nos foi enviada uma cópia, através de mais de um dúzia de mails, entre Setembro e Outubro de 2007, pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, Cor DFA, na situação de reforma.

O Marques Lopes foi Alf Mil na CART 1690 (Geba ) e CCAÇ 3 (Barro) entre 1967 e 1969.

PAIGC: Instrução, táctica e logística (18) > INSTRUÇÕES SOBRE A ACTUAÇÃO CONTRA HELICÓPTEROS [Transcrição de documento, interno, do PAIGC] (1)

Revisão e fixação de texto: AML/LG

INTRODUÇÃO

Desesperados diante do progresso da nossa luta, do aumento crescente das nossas forças armadas, os colonialistas portugueses tentam usar contra nós todos os meios modernos de que podem dispor, para ver se conseguem parar a marcha vitoriosa do nosso Partido. Nos devemos estar prontos para responder com coragem a todos os crimes dos colonialistas. Os combatentes das nossas forças armadas, principalmente os responsáveis do nosso Partido, devem enfrentar com calma e coragem todas as iniciativas criminosas dos colonialistas portugueses, devem estudar bem as suas manobras e os meios que usam contra nós, para poder manter bem alto o espírito combativo dos nossos militares armados, reforçar cada vez mais o apoio do nosso povo à luta armada e infligir novas e mais pesadas derrotas às tropas colonialistas.

Desde meados de 1966 que os colonialistas têm vindo a usar contra nós os helicópteros. Já usavam antes os helicópteros, mas apenas para abastecimento dos soldados isolados, para retirar mortos e feridos dos campos de batalha e para abastecimento.

Agora os colonialistas estão a usar helicópteros armados nas operações contra nós, principalmente contra as tabancas das regiões libertadas, para fazer mal ao nosso povo mas também em operações combinadas e para acções de surpresa contra certos sectores da nossa luta. Já nos fizeram algum mal e poderão fazer muito mais, se não tomarmos as medidas necessárias para responder com coragem e força a esta nova tentativa criminosa dos colonialistas.

Para conseguirmos votar ao fracasso esta nova iniciativa desesperada dos tugas, todos devem saber bem o que é o helicóptero, para que serve e como se usa, quais são as suas forças e as suas fraquezas, como combater contra os helicópteros e contra as armas transportadas por helicópteros. Os responsáveis do Partido devem saber isso, todos os combatentes devem saber isso, mas também as nossas populações, homens, mulheres e jovens devem saber isso. Os helicópteros nada podem contra um povo unido e pronto a lutar corajosamente para a sua liberdade. Assim como temos derrotado as forças colonialistas com as suas armas modernas e aviões, assim também derrotaremos os helicópteros que agora estão a usar.

Para fazer este documento, tomou-se como base, fundamentalmente, a grande experiência do povo heróico do Vietname na luta contra os helicópteros, tendo em conta as condições próprias da nossa terra.


I - RAZÕES, OBJECTIVOS E CONDIÇÕES DE USO DOS HELICÓPTEROS NA GUERRA COLONIAL


1. Porque é que os tugas usam os helicópteros contra nós



Os colonialistas portugueses já usaram contra o nosso povo muitos meios, quase todos os meios de que podem dispor para nos fazer mal. Manhas e intrigas, escravatura, armas de fogo antigas para conquistar a nossa terra; chicote, pontapé, bofetadas, palmatória e trabalho forçado no tempo do colonialismo; prisões, torturas, assassinatos, armas de fogo modernas, aviões com bombas de todas as espécies, carros blindados, etc., para destruir o nosso Partido, meter medo ao nosso povo e parar a nossa luta de libertação. Agora usam os helicópteros, convencidos de que assim poderão realizar os seus objectivos criminosos. No princípio da luta armada, os tugas vinham de carro. Nós destruímos os carros e passaram a tentar vir a pé. Nós matámo-los nas estradas e no mato em grande número, não conseguiram avançar de surpresa, porque eram descobertos pelas nossas patrulhas. Agora resolveram vir de helicóptero, para chegarem mais depressa, com surpresa, para também poderem fugir mais depressa, e para tentar retomar a iniciativa da luta.

Os tugas usam os hlicópteros para tentarem realizar combates e retirarem-se rapidamente, antes de os liquidarmos. Usam os helicópteros porque já sabem que não podem entrar a pé profundamente nos nossos matos, porque só com helicópteros poderão entrar nas nossas tabancas situadas junto das bolanhas e das matas onde é perigosa para eles andar a pé. Usam helicópteros, porque querem causar surpresa nos seus ataques contra as nossas populações e combatentes, querem ter iniciativa. Porque querem tentar liquidar-nos com ataques rápidos e seguros, para se retirarem rapidamente depois. Usam os helicópteros, porque também estão convencidos de que, como não conhecemos bem os helicópteros, ficamos com medo e não podemos agir.

Mas a razão principal porque os tugas usam agora os helicópteros, é porque todas as táticas e técnicas usadas contra nós até agora não deram resultado para eles. Estão desesperados e usam agora os helicópteros na esperança de que assim poderão mudar a situação. Por isso mesmo, nós devemos fazer frente aos helicópteros, atacá-los, botá-los abaixo, atacar e liquidar as tropas que transportam. Fazendo isso, votando ao fracasso essa nova tentativa desesperada dos tugas, vamos matar uma das suas últimas esperanças na nossa terra e, portanto, conseguir uma vitória decisiva para a expulsão dos tugas da nossa terra.


2. O que os tugas fazem e querem fazer com os helicópteros


Como se disse, os tugas usaram antes os helicópteros só para retirar os feridos e mortos dos campos de batalha e para abastecer ou apoiar as suas tropas tanto nas casernas como nos postos do mato.

Agora, os tugas, além disso, transportam tropas nos helicópteros para fazerem ataques terrorristas contra as nossas populações, para tentar atacar as nossas bases guerrilheiras, para tentarem estabelecer pontos de apoio em certas zonas. Portanto, para tentar destruir as nossas forças. Os helicópteros armados atacam as nossas aldeias e lançam chamas para queimar as nossas culturas.

Os tugas querem, com os helicópteros, com helicópteros que esperam receber dos seus aliados americanos, alemães, ingleses e franceses, desejam fazer grandes ataques contra nós, em operações combinadas com a infantaria, a aviação e a marinha; pensam poder lançar as suas tropas em várias direcções com muitos ataques rápidos, para tentar destruir as nossas forças e tomar o nosso material; esperam poder atacar cada vez mais as populações das regiões libertadas para matá-las ou forçá-las a fugir, para assim nos retirar o apoio do povo, indipensável para a marcha vitoriosa da nossa luta.

Para tentar fazer tudo isto contra nós, os tugas têm de vencer grandes dificuldades. Por isso, procuram aplicar na nossa terra os conhecimentos dos imperialistas americanos e outros, nomeadamente as tácticas e técnicas do uso dos helicópteros pelos americanos, contra o povo do Vietname.


3. Casos em que o tuga usa ou pode vir a usar os helicópteros contra nós


a - Assaltos de surpresa em terreno plano

A Guiné é em geral plana, pelo que não é difícil usar os helicópteros, salvo nas áreas de floresta com muitas árvores. Já em Cabo Verde, onde o terreno é montanhoso, será mais difícil de usar os helicópteros para ataques deste tipo.

Neste caso, o helicóptero é usado apenas como transporte de tropas, não sendo apoiado por fogo de armas pesadas ou por aviões. O objectivo desses assaltos é de prender pequenos grupos guerrilheiros ou gente do Partido. O inimigo procura tirar o maior efeito da surpresa, procura chegar ao local do ataques sem ser esperado. Mas só usa este tipo de ataque, quando sabe que as nossas forças são fracas. Por isso mesmo, na fase actual da nossa luta, em que temos em grande forças em todos os lados, o inimigo não pode usar muito este tipo de ataque dos helicópteros.


b – Assaltos a bases de guerrilha

Para fazer este tipo de assalto em helicópteros, o inimigo precisa de informações dadas pelo serviço de espionagem, pelos traidores ou por prisioneiros que lhes dizem onde estão exactamente as nossas bases, a força que temos nelas as armas que temos, o nosso sistema de defesa, etc. Por isso é preciso muito cuidado om os espiões e com os traidores, e, quando uma pessoa (da população ou combatente) que conhece bem uma base é presa pelos tugas, devemos sempre mudar a base.

Este tipo de assalto tem de ter um apoio aéreo (de aviões), para nos obrigar à defensiva, de maneira a sermos apanhados de surpresa pelas tropas transportadas por helicópteros.

Os helicópteros têm de partir de longe (por exemplo de Bolama para atacar no Cubisseco ou no Como) a fim de não sabermos antes que os tugas vão vir de helicóptero.


c - Desembarque de tropas para ocupar um lugar ou para fazer ataques de envergadura

Este é uso principal dos helicópteros que o IN [Esta abreviatura deve ser vício profissional do tuga que passou o texto à máquina. Não acho que usassem a mesma expressão que nós, o que, aliás, se vê em todo o SUPINTREP - A. Marques Lopes] pode querer fazer na fase actual da nossa luta. Exige bastante preparação, boas informações sobre as nossas forças, apoio de aviões e de fogo de armas pesadas, e, em alguns casos, apoio de tropas vindas por mar e por rio.

Vamos ver mais adiante o caso de desembarque de tropas transportadas por helicópteros.


4. Como é que o inimigo usa os helicópteros

No uso do helicóptero, o inimigo usa o seguinte método de trabalho:


A) – Faz o plano de combate

O plano é traçado de acordo com os métodos de combate da infantaria (as tropas só têm armas ligeiras). Para isso, o inimigo toma em conta o tipo de terreno, o método de desembarque e o número de helicópteros necessários para a peração. O chefe dos helicópteros e o chefe da infantaria reconhecem a situação e traçam o plano.


B) – Faz o plano para o transporte

Para isso toma em consideração:

- o número de soldados

- a quantidade de helicópteros

- a distância até ao lugar do desembarque

O chefe de infantaria indica a direcção do voo, e o chefe dos helicópteros indica como os helicópteros devem formar-se em voo.


C) – Faz o plano de fogo de apoio

Durante o voo dos helicópteros, são combinados três tipos de fogo: Artilharia, bombardeamento e metralhagem por aviões e fogo dos helicópteros que têm canhões e voam separados dos helicópteros que transportam tropas.

Antes de começar o voo e durante o voo, a artilharia e os aviões bombardeiam a posição a atacar, para enfraquecer as nossas forças. Durante o combate continua o fogo de apoio com artilharia e aviões, mas também com morteiros para permitir a saída dos soldados e a retirada dos helicópteros.


D) – Realização do desembarque

O desembarque é feito por fases, porque, em geral, os helicópteros não podem descer (aterrar) todos ao mesmo tempo no mesmo terreno. O primeiro grupo que desembarca é o grupo de protecção. Logo que o helicóptero toca a terra, os soldados saltam ou descem dele. A disposição do inimigo é a mesma que a das tropas de infantaria. Devem estar prontos para combater logo que tocam a terra.


5. Como é que o inimigo prepara um ataque com helicópteros


a - Faz reconhecimentos com aviação

Isto é para conhecer bem: a posição das nossas forças, o número de homens, as condições do terreno, as condições do tempo, etc. Este tipo de reconhecimento toma em geral bastente tempo, mas é muito fácil nas regiões planas como a nossa terra.


b - Faz ensaios de desembarque

Isto é para conhecer as dificuldades que pode encontrar no combate. Faz isso porque não é fácil aterrar e necessita de boas condições.


c – Escolhe o ponto de partida

É preciso para isso que a unidade da infantaria não esteja muito longe do desembarque, e que a caserna ou o posto em que se encontra seja uma base segura. A distância de voo deve ser em geral de cerca de 40 a 50 Km. Quando há muitos aeroportos, eles servem de ponto de partida (Bolama, Catió, Farim, Bafatá, etc).


d – Concentra (junta) os helicópteros e as tropas no ponto de partida

Quando é preciso mudar as tropas do quartel para o aeroporto, faz isso rapidamente, no máximo de uma hora, porque tudo deve estar pronto para partir, uma ou duas horas antes do desembarque.

e – Faz manhas para desviar a nossa atenção, para nos enganar

Pode fingir que está a reconhecer outro lugar em vez daquele que vai atacar, fingir que vai desembarcar noutro lado, lança boatos (notícias falsas) dizendo que vai atacar noutro lado, lança panfletos (cartas com propaganda) para nos desmoralizar e no fim atacam o lugar que sempre tinham em vista atacar.


6. Como é que o inimigo faz o desembarque


a) Fogo de apoio

Quando começa o fogo de apoio, os helicópteros saem do local de partida. O fogo de apoio dura todo o tempo de voo, de modo que quando chegam os helicópteros para o desembarque pára o fogo de apoio. No momento do desembarque o fogo de apoio recomeça, mas muda para as zonas próximas do local de aterrisagem, com o fim de cobrir o desembarque. Antes do desembarque o inimigo pode lançar paraquedistas falsos para, conforme a nossa reacção, conhecer melhor as nossas posições no terreno. Para o fogo de apoio, usam, como se disse, artilharia e aviões de combate. Os aviões fazem voos razantes (baixos) para fazer muito barulho com o fim de cobrir o ruído dos motores dos helicópteros.

Em geral as tropas que desembarcam e os aviadores de helicópteros pedem fogo de apoio. Mas isso faz com que nós podemos desconfiar do ataque, a surpresa fica diminuída ou sem efeito. Isto acontece porque as tropas colonialistas têm baixo espírito de combate, querem agir com maior segurança.


b) Tipos de desembarque

O inimigo desembarca grupo por grupo, mas se o primeiro grupo é atacado, volta a fazer fogo de apoio. Há três tipos de desembarque:

1º tipo – O helicóptero aterra e os soldados saem. Fazem assim em terrenos planos.

2º tipo – O helicóptero não aterra, fica suspenso no ar a pequena altura, lança uma escada e os soldados saem. Fazem assim nas zonas montanhosas principalmente.

3º tipo – O helicóptero não aterra, fica no ar a uma altura muito baixa, e os soldados saltam dele. Fazem assim nas zonas pantanosas (bolanhas, lalas com água, lama).


c) Tempo que dura o desembarque

O desembarque dos soldados de um helicóptero dura em geral 3 minutos; o desembarque de uma companhia (20 helicópteros) [Não me parece que na Guiné tivéssemos tantos helicópteros. Há-de ser uma ideia colhida junto dos vietnamitas - A. Marques Lopes] dura 10 a 15 minutos.


d) Como ataca o inimigo depois do desembarque

O inimigo age exactamente como fazem as tropas de infantaria, que estamos habituados a enfrentar.


II – BASES PARA A LUTA CONTRA OS HELICÓPTEROS


A nossa luta é uma guerra popular (de todo o povo). Por isso, a luta contra os helicópteros deve ser uma luta de todo o povo. Na luta contra os helicópteros, o trabalho principal é: mobilizar todas as forças armadas (exército e guerrilha), mobilizar todo o povo (população e milícia popular) par combater conra os helicópteros.

Para realizar este trabalho é preciso ensinar às massas populares e a todos os combatentes o que é um helicóptero, quais são as vantagens (forças) desvantagens (fraqueza) dos helicópteros; mostrar que temos capacidade para atacar e botar abaixo os helicópteros, criar e reforçar a confiança do povo e dos combatentes na sua capacidade diante dos helicópteros; aproveitar as nossas próprias experiência e as experiências dos outros, levá-las aos combatentes e às massas para poderem ser aplicadas em grande escala.

Conhecer o helicóptero, estar sempre pronto para lutar contra os helicópteros esta é a condição principal para derrotarmos os helicópteros na nossa terra.

1. O que é um helicóptero

Um avião é um meio de transporte que anda no ar, em geral com grande velocidade, mais epressa que os barcos e os carros. Mas o avião, para levantar voo (descolar) ou assentar na terra (aterrar) precisa de um grande espaço, duma pista (terreno plano, seco e firme) que tem várias centenas de metros e às vezes atá alguns quilómetros (avião a jacto). Por exemplo: um avião não pode descolar nem aterrar num quintal, num terraço, numa lala com água, num monte ou na lama. O avião não pode também parar no ar, nem perto da terra nem a grande altura: tem de estar sempre a andar.

O helicóptero é também um meio de transporte aéreo (que anda no ar), tem emgeral uma velocidade mais pequena do que a do avião, mas pode levantar voo ou aterrar numa porção pequena de terreno (um quintal, um campo de futebol, um terraço, etc.). Isso é possível porque o helicóptero não precisa de correr para levantar voo e porque pode parar no ar, mantendo o motor a trabalhar. O helicóptero levanta voo ou aterra muito devagar, e na vertical, quer dizer no sentido de um tronco de palmeira como quem sobe ou desce uma palmeira. Além disso, porque o helicóptero pode parar no ar, mesmo muito perto da terra, ele pode transportar pessoas e até carga para qualquer terreno: com pedras, com água, com lama, sem ser plano (monte) etc. Basta para isso que ponha uma escada ou um guindaste, e as pessoas ou as cargas descem ou sobem. Esta é a diferença principal entre o helicóptero e o avião: o helicóptero serve para qualquer terreno e até para trabalhos por cima da água, enquanto que o avião precisa de terreno especial para ser utilizado.

Helicóptero quer dizer: uma coisa que tem asas (ptero) em forma de hélice ou ventoinha (héli). Na verdade o helicóptero não tem asas como o avião, tem três partes principais [Vd. Fig 1, acima]:

O corpo – com a carlinga onde está o piloto

O rabo – que também tem uma hélice (hélice propulsora)

As hélices – grandes, acima do corpo e que se consideram como sendo as asas do helicóptero (ver desenho [, no cimo deste texto] )

Como os aviões, os helicópteros são feitos de metal ligeiro (alumínio) e de outros materiais leves, para diminuir ao máximo o seu peso. Como tudo o que voa, o helicóptero se é atingido seriamente ou se fica muito avariado não tem outro caminho senão cair no chão.

2. Quais são as vantagens (forças) dos helicópteros


São as seguintes:

a) – Dão uma grande mobilidade (movimentos rápidos) às tropas que podem assim deslocar-se mais depressa do que a pé ou de carro ou de barco, para qualquer terreno. Tem um raio de acção de 150 Km e uma velocidade de 160 Km/hora.

b) – Raio de acção – capacidade de voar sem receber mais gasolina. Por exemplo: pode ir de Bissau a Bissorã e voltar sem meter mais gasolina (em linha recta).

c) – Levam as tropas e abastecimento (material de guerra, comida, etc) para qualquer terreno e pode retirar tudo isso, assim como feridos e mortos de qualquer terreno.

d) – Causam surpresa tanto na ofensiva como na defensiva, porque chegam rapidamente, muitas vezes sem nós esperarmos e sobre qualquer terreno.

e) – Podem mudar de direcção de ataque rapidamente, dentro dum limite (distância máxima de 20 a 30 Km).

f) – A infantaria não precisa de muito treino para saber desembarcar dos helicópteros. Bastam em geral 5 a 6 minutos de treino para aprender a subis a descer do helicóptero. Logo a seguir ao desembarque podem começar o combate.

g) – Podem ter um grande apoio de fogo de armas pesadas.

h) – Podem ser armados para atirar contra os combatentes e contra a população.


3. Quais são as desvantagens (fraquezas) dos helicópteros


Os helicópteros têm muitas desvantagens (fraquezas).

São as seguintes:

a) – A cobertura de fora dos helicópteros é muito fina. Balas de calibre maior de 7 milímetros poem furar o casco dos helicópteros.

b) – A velocidade dos helicópteros não é grande. Por isso não é difícil fazer fogo contra os helicópteros quando estão em movimento, no ar, ao levantar-se ou a descer.

c) – Os helicópteros têm muita dificuldade em voar com mau tempo. Por isso só podem agir no tempo seco, os seus movimento são muito prejudicados (dificultados) pelo vento e pelas chuvas.

d) – Os helicópteros exigem muita conservação (tratamento). Assim, por cada hora de voo devem ser revistos e tratados durante cerca de três horas. Além disso, o motor dos helicópteros só tem uso em condições durante cerca de 300 a 500 horas.

e) – Os helicópteros gastam muita gasolina. Por exemplo, um helicóptero qie trabalha durante um dia gasta em médi mais de uma tonelada de gasolina.

f) – Quando os helicópteros se juntam num lugar de desembarque de tropas, formam um bom alvo para tiro fácil.

g) – O som do motor é muito forte, e por isso torna difícil ao IN [certamente mais um deslize do tuga escriturário...] de dar ordens de comando e também diminui ou impede a surpresa no momento do desembarque se nós estamos vigilantes.

h) – As tropas que vigiam os helicópteros não podem levar armas pesadas, e precisam de apoio de fogo de outras forças de apoio, o que nem sempre é fácil.

i) – Para usar os helicópteros, o inimigo deve sempre fazer primeiro um reconhecimento e usar fogo de apoio para desembarque, o que tira a surpresa à operação, desde que estejamos com atenção.

j) – O IN [novamente...] pode ter muitos helicópteros, mas não pode usar muitos num mesmo lugar ao mesmo tempo. É obrigado a repetir [é capaz de ser repartir...] os helicópteros por diversos lugares ou então fazer o desembarque por partes, o que torna mais fracas as suas forças.


4. Quais são os pontos mais fracos dos helicópteros

Os pontos mais fracos dos helicópteros são a carlinga, onde se enconta o piloto, e as hélices que fazem voar o helicóptero.

É, portanto, principalmente contra esses pontos que devemos fazer o tiro com a arma que temos. O tiro contra a carlinga tem a vantagem de poder atingir o piloto, deixando o helicóptero sem comando; além disso pode detruir aparelhos importantes sem os quais o helicóptero não poderá continuar a andar. O tiro nas hélices é o mesmo que umtiro nas asas de um pássaro: não poderá voar mais e cai, desde que o tiro seja bem dado.

- Alturas e distâncias

A altura em que está o helicóptero (distância entre o atirador e o helicóptero) pode ser avaliada com a vista. Assim:

Quando o helicóptero está a 100 metros mais ou menos, podemos ver claramento o helicóptero, a cara do piloto, a antena de rádio, e a boca da arma do helicóptero (canhão).

Quando está a 200 metros, vemos apenas a porta, as letras escritas no corpo ou no rabo, a carlinga, a cabeça do piloto.

Já quando está a 300 metros, só vemos o corpo do helicóptero a sua cauda ou rabo.

Para atirar contra um corpo em movimento é preciso mandar a bala para a frente desse corpo. Por isso é preciso conhecer a distância adiantada a que se deve mandar o tiro.


- A distância adiantada é calculada por fórmula:

DTA (distância) – TP (tempo que leva a bala a chegar ao alvo) x (vezes) VA (velocidade do corpo em movimento)

Suponhamos que o helicóptero está a 200 metros. A bala, para correr 200 metros, leva 0,31 segundos, portanto TP=0,31. O helicóptero anda a 50 m/segundo, portanto VA=50 m/segundo donde DTA=TpxVA=0,31s.x50=15m

Devemos portanto mandar o tiro para 15 metros à frente do helicóptero quando ele está a uma distância de 200 metros do ponto onde nos encontramos.

Fazendo cálculos parecidos com este, vemos que a distâncias adiantadas são as seguintes, para as distâncias do helicóptero a seguir indicadas conforme as armas (em metros).

Distâncias adiantadas (em metros)




Estes números indicam aproximadamente distâncias de tiro adiantadas, tiro isolado (um só atirador). Conforme o resultado do primeiro tiro, regulamos a distância para melhor acertar.

Devemos ter em atenção o seguinte:

Quando disparas várias armas ao mesmo tempo, devemos dobrar a distância de tiro adiantado, para formar à frente do helicóptero uma cortina de fogo com maior possibilidade de acertar.

Devemos ter em atenção o seguinte:

Quando usamos armas automáticas, de rajadas, devemos também dobrar a distância do tiro adiantado.

Antes de disparar, devemos sempre considerar uma distância adiantada maior do que a boa para podermos regular bem a distância que queremos, enquanto o helicóptero avança (em geral toma-se o dobro da distâcia necessária).






6. Como fazer tiro?


Pode-se dar tiros nos helicópteros com espingardas (Mauser), carabina russa ou outra espingarda semi-automática, espingarda metralhadora (G3 ou outra), com sub-metralhadoras como a AK10 (chinesa ou soviética) ou qualquer metralhadora ligeira.

a) – Graduar a alça da arma (regular a distância)

Isso depende da distância a que está o helicóptero sobre o qual se atira. Mas para agir rapidamente, convém ter a alça regulada antes do momento de ataque. Em geral escolhe-se a alça 3, quer dizer 300 metros de distância.

b) – O ângulo de tiro (posição da arma em relação ao solo)

Deve ser de 40º, o que permite um alcance de tiro de 1.200 metros em linha recta (trajectória rasante). Deve-se disparar quando o helicóptero está a uma altura do alto abaixo de cerca de 500 metros.

c) – Escolher o ponto de tiro

Quando o helicóptero está a uma altura igual ao do ponto em que nos encontramos (por exemplo, se estamos em cima de uma árvore, duma casa ou dum muro), atiramos contra ele directamente (tiro directo, ver figura 2).

Quando está no ar parado ou quando está muito perto e avança lentamente atiramos directamente (ver figura 3).

Quando está em voo, em linha recta, artiramos sobre o seu eixo (linha de voo) com tiro adiantado (tiro indirectyo), (ver figura 4).


5. Preparação e organização de combate contra os helicópteros



a) – Apreciar bem a situação do inimigo

Como se sabe, isto deve fazer-se para todos os casos de combate. Combater sem conhecer a situação do inimigo é o mesmo que entrar num quarto escuro cheio de obstáculos, é o mesmo que andar às cegas num caminho perigoso (ver palavras de ordens gerais, no que respeita à necessidade de fazer reconhecimentos antes dos combates).

Para conhecer a situação do inimigo devemos organizar uma rede de informação na zona do inimigo, para obter quaisquer indicações dos movimentos dos colonialistas, que mostram que se preparam para nos atacar em helicópteros.

Devemos saber a quantidade aproximada dos helicópteros que o inimigo vai empregar e apreciar a sua capacidade de combate. O inimigo pode desembarcar desde pequenos grupos de soldados até um ou mais batalhões. Em geral é difícil transportar mais e um batalhão, sobretudo para os tugas que não têm muitos helicópteros.

Devemos apesar disso estar preparados para combater contra o máximo de forças do inimigo, pois assim temos a segurança de poder derrotar essas forças.

Devemos também estudar quais são as forças de apoio que agem em coordenação com os helicópteros (fuzileiros, paraquedistas, etc.) e também qual o fogo de apoio que podem receber.

b) – Estudar o terreno

Com uma boa apreciação (conhecimento e atenção) podemos determinar o lugar onde é possível o desembarque, antes da chegada dos helicópteros. Apesar de que na nossa terra, que é em geral plana, haja muitos lugares para os helicópteros aterrarem, devemos conhecer bem os terrenos à volta das bases, das arrecadações e das tabancas, para fixar aqueles em que é mais fácil poisarem os helicópteros, que são melhores para o desembarque do inimigo.

Em cada Sector de luta e em cada base, devemos marcar esses terrenos. Isso permite-nos pôr obstáculos nesses terrenos (pedras, troncos de árvores, fogo, paus fincados na terra, minas, etc.) para evitar que os helicópteros aterrem, mas também para obrigá-los a aterrar lá onde nos convém melhor para o combate.

Para isso devemos ter em conta:

- O que queremos com o combate, o seu objectivo, quer dizer, se é para dar um golpe no inimigo, para evitar que desembarque ou para o aniquilar (detruir totalmente).

- A forma de combate que vamos utilizar, quer dizer, se combatemos em emboscada (esperando o inimigo no local de desembarque) ou se atacamos em movimento (avançar para o local do desembarque, e atacar o in imigo depois de desembarcar).

- A capacidade (as forças) do inimigo. Conforme essa capacidade, assim organizamos as nossas forças.

- As posições que devemos tomar no terreno.

- A sincronização (quer dizer: acção ao mesmo tempo) com outras forças nossas (guerrilhas, povo armado).

- A distribuição das tarefas (repartição dos tabalhos) durante o combate, o que deve ser feito claramente sem confusões.

- A organização dum sistema de vigilância e de comunicação (vigias, uso de bombolons ou de rádio para comunicar o movimento dos helicópteros), a fim de evitarmos a surpresa.

Quando estamos acampados, devemos prever um possível assalto com helicópteros. Por isso devemos ter um plano de defesa, cavar trincheiras e fossos, tomano posições favoráveis. Isso deve ser feito tanto nos pontos de apoio (acampamentos) como nas bases de guerrilha e também junto das tabancas.


8. Tipos de combate

O tipo de combate contra os helicópteros depende principalmente das forças de que dispomos e das armas que temos. Na fase actual da nossa luta se mobilizarmos e instruirmos (ensinarmos) bem as massas populares e os combatentes para a luta contra os helicópteros, podemos fazer qualquer tipo de combate contra eles. Temos todas as armas n ecessárias.


a) – Combate disperso

É a forma do combate popular, pois pode fazer-se em todos os lugares, os casos e a qualquer momento. Para poder fazer o combate disperso devemos:

- Criar grupos de caçadores de helicópteros formados de guerrilheiros e povo armado. Escolher para isso os bons atiradores.

- Convencer a população e os combatentes (nas horas vagas) a preparar cibes para fincar nos lugares bons para desembarque.

- Semear ou plantar plantas nos lugares em que não há, para nos servir de esconderijo donde faremos fogo contra os helicópteros e o inimigo.

- Nos grandes campos, combinar estacas fincadas no chão com minas anti-pessoais e anti-aéreas que devemos preparar.

- Não arrancar as árvores para fazer lenha, mas cortar apenas a parte dos ramos deixando os troncos no chão (como nos terrenos de queimada).

- Manter grupos de atiradores, devigilância, para darem tiros contra os helicópteros ainda quando estão a voar. Estes grupos devem estar em lugares situados na trajectória (linha de voo) que os helicópteros podem fazer e são a base para as nossas posições.

- Organizar comandos (grupos fortes) para atacar os aeroportos e bases inimigas com o fim de destruir os helicópteros.


b) – Combate concentrado

Este tipo de combate deve ser feito em geral com as forças principais (unidades do Exército e guerrilheiros bem armados). Podemos usar neste tipo de combate as tácticas seguintes:

- Combate de emboscada – Concentramos as nossas forças no lugar ou nos lugares previstos para o desembarque, e esperamos que cheguem os helicópteros. Neste caso, é em geral necessário atrair (chamar) o inimigo ao local da emboscada. Por exemplo: pôr obstáculos em todos os sítios bons para desembarque, menos naqueles que nos convém para combate; atacar um posto de uma caserna inimiga, para provocá-lo, e ficar depois à sua espera no lugar ou lugares bons para desembarque e situados próximos das nossas posições; dispor de forças em todos os lugares.» (2).
_________________

Nota de L.G.:

(1) Vd. último poste da série > 8 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3284: Instrução, táctica e logística (17): Supintrep, nº 32, Junho de 1971: A formação do soldado das FARP (A. Marques Lopes)

(2) Para saber mais sobre o helicóptero, vd. por exemplo os seguintes sítios:

Wikipédia > Helicóptero

Wikipédia > Portal: Aviação

Blogue do Victor Barata > Especialistas da BA 12, Guiné 65/7

Aproveito para saudar o Victor, que é também membro da nossa Tabanca Grande e tem ido aos nossos encontros nacionais, e desejar-lhe boa sorte e perseverança neste combate, que nem sempre é fácil, de reunir as antigas tropas, agora tresmalhadas, e que no caso dele não eram de terra nem do mar, mas do ar... No seu sempre activo blogue, têm aparecido além dos Melec (técnicos de manutenção aeronáutica, como ele), outros camaradas, como os pilotos e os pára-quedistas... Boa saúdede e bom trabalho para o Victor e os camaradas da FAP que a Guiné juntou e uniu. O Victor está, além disso, a organizar uma viagem de saudade à Guiné, a realizar em Fevereiro do próximo ano.

Guiné 63/74 - P3343: O Nosso Livro de Visitas (39): Luís Faria, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72

Emblema da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, cujo lema era FORÇA.

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791, Guiné 1970/72, com data de 21 de Outubro de 2008:

Assunto: Adesão

Luis Graça
Cumprimentos e parabéns pelo Blogue que de há uns tempos para cá tenho visitado com agrado.

Quem me deu a dica foi o Jorge Fontinha, meu grande amigo e camarada de armas na mesma CCAÇ 2791 (FORÇA)

Vi também que o Júlio César, meu amigo, também camarada de armas e conterrâneo, faz parte da Tabanca. Óptimo

Sou : Luis Miguel C Sampaio Faria
- Furriel Miliciano
- CCaç 2791
- Mobilizado para a Guiné: Outubro 1970 / Setembro 1972 (embarque a 19 de Setembro no Carvalho Araújo)

Na esperança de poder fazer parte da Tertúlia e assim contribuir modestamente com episódios/estórias que poderão ajudar a recordar a História, um pouco esquecida, dos ex-combatentes da Guiné.

À espera da vossa decisão

Saudações
Luis Sampaio Faria


2. Foi enviada esta resposta ao Luís Faria:

Caro Luís Faria: Obrigado pelo teu contacto.

Em nome do Luís Graça, estou a dar-te as boas vindas ao nosso Blogue. Na verdade os dois camaradas que referes,  são nossos tertulianos activos, o Jorge Fontinha, um pouco mais recente que Júlio César.

Só não precisavas de pedir para entrar na nossa Tabanca Grande. Estamos abertos a toda a colaboração vinda dos camaradas que combateram na Guiné. Considera-te integrado. Só te peço para logo que possas, envies uma foto do teu tempo de tropa e outra actual para fazer parte dos nossos arquivos, até activarmos a nossa fotogaleria, em obras há imenso tempo, que também servirão para personalizar os teus trabalhos, como aliás já deves ter reparado. Se puder ser, envia estas fotos em ficheiro JPEG e formato tipo passe.

Podes desde já começar a dar trabalho aos editores, que o mesmo é dizer começar a mandar as tuas histórias, acompanhadas de fotos, legendadas preferencialmente.

Recebe um abraço dos editores e da tertúlia toda que te deseja tudo de bom.
Carlos Vinhal
Co-editor
__________________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3339: O Nosso Livro de Visitas (38): José C. Pereira, ex-1.º Cabo de Serviço de Material, da CART 2773/BART 2924, Jabadá, 1970/72

Guiné 63/74 - P3342: O meu baptismo de fogo (15): Estrada de Buba-Aldeia Formosa, 22 de Julho de 1968 (José Teixeira)


Em Buba, o Zé Teixeira com o Mário Pinto e o Luís “Lousada”, ambos da CCaç 2317.

O meu baptismo de fogo
por José Teixeira


A caminho

Tinha chegado no anterior a Buba, vindo de Ingoré no norte. Partimos logo cedinho, seguindo até ao fim da pista de aviação. Embrenhámo-nos na mata serrada, ora com árvores gigantescas, ora capinzal descoberto. Espaços entre os homens bem medidos. Silêncio absoluto, quebrado longe a longe pelo piar de uma ave que nos sobrevoava intrigada, ou por um galho partido, descuido de algum camarada, que logo se penitencia, perante o olhar áspero do comandante. Um caminhar lento e cauteloso, de ouvido atento e olhar prescutante centrado na floresta virgem ou no movimento que a brisa matinal impunha ao seco capim.

Mal o Sol aparece a dar-nos os bons dias, logo a temperatura se eleva e a camisa começa a colar-se ao corpo. A marcha continua sem parar. Ouvem-se ruídos estranhos, parece ser uma matilha de cães. Logo à frente um grande bando de macacos saltava de árvore em árvore, numa dança sem fim. Um espectáculo de vida em movimento, indiferentes ao nosso penoso e lento caminhar, ora por entre a vegetação, ora enterrados na lama ora embrenhados na densa floresta.

Quase sem me aperceber, encontro-me de novo na pista, às portas de Buba, lá ao fundo o grande Rio de Buba convida-me a um mergulho. Respiro fundo, enquanto a mente me lembrava que para já tinha escapado.

Depois do tardio e saboroso almoço, não pela qualidade, mas pela fome que trazia, ousei ir dar o merecido mergulho nas águas quentes do rio, mesmo depois de me terem lembrado que uns tempos atrás choveram balas vindas da margem oposta, atiradas por alguém, que gosta de pregar sustos. Seguiu-se um tempo de descanso.

Depois...foi tempo de paragem, de encontro comigo mesmo em busca do Zé que deixou parte de si em Portugal, mais propriamente no Porto. Um pequeno grupo de colegas convida-me para rezar por ser Domingo. Foi preciso lembrar-me, hoje é Domingo...

Tinha saído às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de um sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado....

Só ao fim da tarde, quando a noite surge e porque um colega me recorda, verifico que é Domingo!...É verdade, Senhor, é o teu dia, o dia que Tu instituíste para te louvarmos... e a minha Missa foi mais uma coluna. Rezei. Aceita, Senhor, o meu cansaço como sacrifício neste dia.

22 de Julho de 1968

Começou a guerra a sério para mim. Ainda esgotado pelo esforço de ontem, saí, de novo, às seis da manhã para esperar a coluna vinda de Aldeia Formosa (Quebo). Às oito embosquei junto à "ponte interrompida" no rio Bolola, e por volta das doze recebi ordem para avançar para lá do cruzamento de Sinchã Cherno, local em que a picada se divide, seguindo uma para Empada e outra para Aldeia Formosa, por Bolola e Missirá. A coluna aproximava-se.

Um banho comprido ou os minutos mais longos da minha vida

Ouvi dois rebentamentos e fiquei preocupado... será que a coluna foi atacada?...

Cerca das dezassete deu-se o encontro de forças e soube então que detectaram cinco minas anti-carro, duas das quais rebentaram. Todos alegres, voltamos a Buba com o simples café, a camisa molhada de chuva e suor à mistura.

Ainda mal tínhamos chegado quando o IN apareceu a baptizar a Companhia atacando de canhão sem recuo, morteiro e costureirinha. Tentou durante cerca de 15 minutos, os minutos mais longos da minha vida, arrasar Buba, com fogo cruzado vindo de ambas as margens do Rio de Buba que ali se reparte em dois, formando uma espécie de Y. Não conseguiu por fraca pontaria ou porque não quis.

Disse-me em Fevereiro passado, durante o Simpósio de Guiledge, um dos comandantes de guerrilha com pude conversar um pouco e que pelo menos nos cruzamos por três vezes no tempo que por lá andei:
- Nós o que queríamos é que vocês se fossem embora, muitas vezes íamos só na chateia.

Dezenas de homens faziam fila, completamente nus, para tomar o refrescante banho. Na operação estiveram envolvidos três grupos de combate da CCaç 2381 (a minha), dois grupos de combate da CCaç 2382, estacionada em Buba, dois grupos de Combate da Lenços Azuis, um grupo de combate de Caçadores Africanos comandados pelo terrível Alferes Aliu Candé, de Aldeia Formosa, e mais um pelotão de milícia de Buba.

Para ganhar tempo, enquanto uns se molhavam, outros ensaboavam-se e outros esperavam. Eu estava a ensaboar-me, quando a “festa” se inicia. Num ápice toda aquela maralha se despeja na vala que existia, mesmo ao lado, uns por cima dos outros.
- Ai!...Ui!...
- Chega para lá, filho da p...
- Este gajo está todo borrado! - (Ãlguns na confusão da fuga foram de empurrão e como estavam molhados ficaram cheios de terra).
- Ai Nossa Senhora de Fátima, vamos morrer aqui todos!

Guiné-Bissau > Buba, 2008 > A minha antiga caserna transformada agora em escola.

Três frentes de fogo; as duas deles e a nossa, faziam um estrondo de arrepiar. E cerca de metade dos homens estavam a ser baptizados. Para completar a cena, desaba uma tromba de água, cuja descrição me dispenso de escrever, pelo conhecimento que têm os queridos leitores deste fenómeno na Guiné.




Buba 1969. Vê-se a bifurcação do Rio de cujas margens exteriores fomos atacados no dia do meu baptismo de fogo. Era um dos locais preferidos pelo IN para nos atacar. Foto do Alferes Miliciano Médico Dr Azevedo Franco.



Buba, 1969 – vendo-se um dos braços do Rio e uma pequena reentrância pela terra dentro, onde alguns de nós montávamos “emboscadas” aos peixes quando estava a maré a vazar com uma rede improvisada, permitido uma fuga à fome, ou ao repetitivo arroz com Chispe, na falta de outra coisa melhor. Foto do Alf Mil Médico Dr Azevedo Franco.

Eu era dos que estava completamente nu a ensaboar-me, quando ouço um estrondo seguido de tiros de armas ligeiras, logo outro e outro. As minhas pernas começaram a tremer de forma inexplicável, o coração a bater descompassadamente, vejo toda a gente a fugir e a desaparecer na vala, que eu tinha visto antes, mas não me tinha apercebido da sua utilidade, pois no norte em Ingoré, não havia nada disso. Os estrondos das saídas das bocas dos canhões, dos rebentamentos das granadas por todo o lado, das rajadas de G-3, mais os estouros das costureirinhas deixaram-me atarantado, até que alguém na fuga me empurrou e dou por mim enfiado na vala, rodeado de homens nus, que com a preocupação de se protegerem baixavam a cabeça, encostando-a ao rabo do camarada da frente, que por sua vez estava em posição idêntica. Nenhum de nós estava protegido com uma cuecas de folheta, por exemplo, mas que se conste ninguém foi desvirginado nessa dia.

Encharcados até aos ossos pela carga de chuva que se aliou ao inimigo, ali aguentámos o embate, com o coração aos saltos, até que, o fogo foi diminuindo, ficando as nossas armas a cantarem sozinhas por algum tempo, pois o IN afastou-se tal como surgiu rápido e pela calada, se afastou depois de deixar a carga mortífera que trazia, na mata, nas águas do rio e suas margens. Dentro do quartel caíram uma ou duas canhoadas que não fizeram estragos e creio que a população ficou incólume.
Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos nus) encharcados, mas alegres, saíam das valas...A chuva fez de chuveiro e limpou os que estavam ensaboados, mas fomos todos de novo limpar com água o medo que nos atravessou a alma. Mais uma vez escaparam... escapámos. Escapei.

Encontrei, vindos de Aldeia Formosa, três colegas de recruta. À noite, vieram procurar-me. Encharcados pela chuva, cansados da coluna, com receio de novo ataque, queriam dormir e não tinham onde... não havia espaço coberto, nem camas.
A odisseia continuou no dia seguinte.


Na picada para Aldeia Formosa (Quebo)

Saí de Buba no dia vinte e quatro de Agosto de 1968 às seis da manhã e cheguei a Aldeia Formosa no dia vinte e cinco às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades. Cerca de trinta quilómetros de marcha que se fariam em cerca de 3/4 horas, numa situação normal, pela picada levou-nos cerca de trinta horas de marcha. A picada estava num estado lastimoso; buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros foram percorridos em oito horas e meia. A coluna seguia lentamente, cautelosamente. Os “piras” concentrados. As mãos de alguns, integrados no grupo de “picadores”, agarravam febrilmente as varas de ferro com que picavam a terra à procura de algo mais duro que indiciasse uma caixa de madeira ou chapa metálica, onde poderia estar a perigosa mina assassina, que muitos de nós nunca tínhamos visto nem imaginávamos como seriam.

Ouvidos atentos aos sinais toc, toc que se repercutiam na terra e ao mais pequeno som diferente, logo ordem de paragem. Ninguém mais se mexia. Uma insistência, o rebuscar da terra envolvente. Por vezes uma raiz ou uma pedra provocava um respirar aliviado e a marcha continuava. O olhar atento que se desdobra em todas as direcções; o caminho que se vai trilhar em busca de sinais de terra remexida de fresco; a mata cerrada que nos cerca, onde o inimigo pode estar, aguardando o melhor momento para atacar e matar. Roubar a vida a quem ama a vida, obrigando a uma partida prematura, deixando o futuro cheio de saudades de quem parte e quem assim parte leva imensas saudades do futuro.

As abelhas também entram na guerra

O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo e, a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado, me arrastou para o meio de uns arbustos ali ao lado na mata. Ele foi a “mão de Deus” que me protegeu das picadas das abelhas. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela cor que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante de toda a gente que protegia a coluna de viaturas naquele sector. Se o IN tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada.

Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo. Inimigo cobarde! Frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores. Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem? Que culpa tenho eu? A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.

Estava a comunicar via rádio com Buba a informar o que se tinha passado numa zona considerada perigosa, o entroncamento da estrada de Aldeia Formosa com a estrada que seguia para Empada em Sinchã Cherno, sem qualquer dano, quando a viatura em que seguia accionou uma mina anti-carro. Era a quinta viatura, a mais frágil das que tinham pisado a estrada. Aparentemente estava livre de perigo das minas, dado que as anteriores viaturas eram extremamente pesadas, quer pela carga que traziam, quer pelos sacos de areia que substituam os bancos. Logo atrás vinha o primeiro obus de 14 que se destinava a reforçar a defesa de Aldeia Formosa. Ouso pensar que o condutor talvez se tivesse desviado um pouco do rodado feito pelas viaturas antecedentes, sem pôr de parte a hipótese de a mina estar programada, para o carro do rádio ou eventualmente para o obus. Dos três camaradas atingidos foi o que aparentemente menos sofreu.

Não apresentava ferimentos externos. Do estado de choque em que caiu, rapidamente foi recuperado. Pouco tempo depois começou a sentir falta de forças e a cor da pele que reflecte a vida começou a fugir da sua face. Sede. Muita sede e o corpo a arrefecer. A angústia e o desespero começaram a tomar conta dele e de nós, os enfermeiros, que nos apercebemos da situação, sem lhe poder valer. Com a queda tinham rebentado vasos sanguíneos internos, o que implicava internamento urgente para ser operado a fim de se localizar a origem e se poder estancar a hemorragia. As forças fugiam a cada momento. Passado algum tempo gritava desesperado: já não vejo! Já não vejo! Vou morrer. Eu não quero morrer, salvem-me!

Impunha-se uma evacuação urgente, mas como?

Os dois aviões que nos tinham acompanhado até aquele local e batido a zona, tinham-se ido embora. As comunicações foram destruídas pela mina. Que raiva, meus Deus! De nada valeu a água que esgotamos, o soro que lhe demos, o carinho e talvez as orações de alguns. A morte veio matar o futuro daquele jovem. A vida fugiu-lhe rodeada de amigos que nada puderam fazer.

O destino marcou no tempo, aquela hora, aquela viatura, aquela vida cheia de vida, que deixou de ser vida. Partiu para sempre cheia de saudade de um tempo a que tinha direito a viver e nem sequer teve tempo para conhecer, porque o seu futuro deixou de existir.

A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho. Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h.) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra... dura guerra!

Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o R.T. morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caiu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino, nada pudemos fazer.

Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçámos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.

Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate, mal chegou para o primeiro dia. À frente havia INs, "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas. Havia minas, só não havia comida.

Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bigrupos esperavam-nos. Felizmente a milícia comandada pelo Aliu Sada Candé que protegia os flancos descobriu-os e sem compaixão, pôs as suas máquinas de guerra a funcionar. O meio e a retaguarda da coluna embrenhados no mato, aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da retaguarda, onde eu me integrava a ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.

Foi aqui, neste primeiro encontro a sério com o inimigo, que eu me zanguei com a G-3 ou a Dona G3rtrudes, como eu lhe chamava, abandonando-a para sempre.

Na quinzena de campo (IAO) que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que afirmaram me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade acompanhar-me-ia até ao caixão. Era uma G3 ou a G3ertrudes. Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

1º Trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que, a baba ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

2º Pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos

3º Sempre travadinha para não fazer asneiras

4º Nunca a abandonasse, pois, se perdida, dava origem a no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com uma G3ertrudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável. Pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro. Deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN, ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo, não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos.

Cantei de alegria, quando soube que “as sortes” me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas. Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.

Na azáfama de tratar os feridos no dia anterior, esqueci-me da G3ertrudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Era preciso procurá-la. Aonde? Tinha-lhe perdido o lugar. Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Foi uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o inimigo à espreita.

Chegou a manhã e com a ela a primeira emboscada, que para quem vinha na retaguarda da coluna foi apenas um estar atento e esperar o silenciar das armas lá na frente. Os guerrilheiros recuaram, voltou o duro silêncio de morte e a vida continuou por momentos. Reinicio da marcha lenta e dolorosa, com sono, fome e sede, um camarada cadáver e três feridos, mas uma vontade gigantesca de sair daquele buraco. Logo depois, apareceram na retaguarda em força.

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos.

A G3ertrudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado directamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima. Ah! G3ertrudes de um raio! Anda cá.

Apontar, disparar e… um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho. À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão. Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

O Soldado Salvaterra

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o empecilho que me salvou a vida. Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado “abandonada” pertencia ao Salvaterra Bernardes, natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental que assassinos (não encontro nome mais apropriado), apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCaç 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

Pobre Salvaterra que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o "quico", ás botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido,"mal assentado". Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas. Na "ordem unida" tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis.

Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada.

A arma na mão deste homem, não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas. Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e…talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me. Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída logo que cheguei a Aldeia formosa e para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma “porrada” se me apanhasse sem a minha G3ertrudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.




O Zé junto a um dos obuses, já colocado em Aldeia Formosa, que tanto esforço e trabalho, sofrimento e dor deu na viagem de transporte desde Buba.

A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses de 14mm, entre outro material).

A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de heli. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.


Sare Tuto (Tabanca Lisboa) a cerca de 5 Quilómetros de Buba. Antigos guerrilheiros aí estacionavam em 1968 e donde partiam para nos atacar.



Em 2005 e 2008 tive a feliz oportunidade de trilhar de novo, alguns destes caminhos agora voluntariamente e sem o perigo de encontrar o IN, bem pelo contrário, nalgumas situações em 2008 foram meus companheiros de viagem. Recordo o Braima Cassamá que me atacou em Aldeia Formosa, tentou entrar em Mampatá Forreá em Novembro de 1968 pelas duas horas da tarde, chegando a estar dentro do arame farpado, segundo me disse (é verdade, que chegaram a entrar, mas logo tiveram de fugir, e, ele foi um dos que ousou penetrar). Como sapador participou na montagem em Changue Laia a caminho de Ponte Balana um campo de minas, cerca de setenta –, a CCaç 2317 caíu lá e teve cinco mortos, a minha Companhia levantou vinte e sete, uns dias depois, sendo as restantes detectadas pelos Páras, entretanto chamados à zona.


Guiledge 2008 – O Zé, contador de "Estórias".

Em Fevereiro, quando soube que eu tinha estado por aquelas bandas, procurou-me, conversámos, revivemos as nossas aventuras em campos opostos e outros, apresentou-me outros camaradas, em tempos idos INs e baptizaram-me como “ermon” (irmão).

Zé Teixeira


Fotos, legendas e texto: © José Teixeira (2008). Direitos reservados

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Notas de vb:

Artigos relacionados em
19 Outubro 2008 > Guiné 63/74 - P3329: O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3341: Controvérsias (7): Era possível evitar-se a Guerra (Leopoldo Amado)


Posicionamentos opostos e inconciliáveis

Texto enviado pelo Leopoldo Amado, Doutor em História Contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa (Faculdade Letras de Lisboa), sob a temática “Guerra Colonial da Guiné versus Luta de libertação Nacional (1961 – 1974)"; membro da nossa tertúlia; editor do blogue Lamparam II.


Com o fim da Segunda Guerra Mundial e com o subsequente surgimento da Organização das Nações Unidas e o chamado Terceiro Mundo, o regime do Estado Novo enfrentou um novo tempo de adversidades. Os países que dela passaram a fazer parte da ONU assinaram a sua Carta e aceitaram os seus princípios dos direitos do homem e o das nações, que seriam tratadas de igual forma, sendo grandes ou pequenas, adentro do espírito do princípio da autodeterminação dos povos.

Em Bandung, na Indonésia, Portugal viu nascer em 1955 um dos movimentos que mais o contestariam: o Movimento dos Não Alinhados, onde se juntavam jovens nações afro-asiáticas e movimentos de libertação que ansiavam pela independência dos seus povos. Com efeito, só no ano de 1960 – ano que ficou para a História como o ano de África – o mundo viu nascer 17 países africanos independentes. Era o ruir de velhos sistemas coloniais dos grandes impérios europeus, enquanto Portugal insistia em manter o seu império, apesar de os seus próprios aliados desprezarem claramente essa visão, tendo mesmo sofrido, da parte desses aliados, um embargo que teve sérias consequências para o rearmamento do seu Exército, numa altura em que tinha de responder em várias frentes de guerra em África.

A reacção do regime de Oliveira Salazar, perante esta nova ordem internacional, seria a de se fechar sobre si próprio, acabando, apesar disso, por entrar para as Nações Unidas, em 1955, e para a NATO, em 1949, permitindo esta última que Salazar apesar de que a adesão à Aliança Atlântica tivesse permitido a Salazar recolher grandes vantagens e alguns silêncios, sobretudo devido à extraordinária posição geoestratégica do arquipélago dos Açores. Assim, o Estado Novo foi formalmente instituído com a constituição da República de 1933, a qual rezava que Portugal era um Estado com uma comunidade cristã, um país muito consciente do alto valor da sua independência, com elevado sentido do passado e dos símbolos da sua História de nação de navegadores, o que atribuía desde sempre aos portugueses a prossecução de uma missão pelo Mundo, com um Estado unitário, centralista, solidário, fazendo parte da sua essência a necessidade de manutenção dos territórios ultramarinos.

Aliás, o Acto Colonial que integrava a Constituição (só revogado em 1951 para fazer face às crescentes críticas internacionais), reflectia já essa ideia da descentralização e da indivisibilidade do Império, considerada de resto fulcral, pois atribuía-se-lhe, entre outras preensas virtualidades, a faculdade e o dever de possuir e colonizar domínios ultramarinos, bem como o de “civilizar” populações chamadas indígenas.

É essa ideologia, digamos assim, que explica em grande medida a obsessiva recusa de Portugal em se sentar à mesa das negociações com os emergentes movimentos de libertação e, igualmente, a sua opção pela guerra colonial.

O PAIGC e outros movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas, não obstante terem inicialmente proposto negociações com vista à resolução pacífica do diferendo que os opunha a Portugal, no fundo, tinham já feito a sua opção pela guerra. Não apenas orque do seu ponto de vista era inquestionável a ntransigência com que o regime do Estado Novo lidava com a questão "colónias", mas igualmente porque era intrinsicamente doutrinária a convicção segundo a qual deviam responder com violência à violência colonial, a qual, aliás, consideravam própria e intrínseca ao sistema colonial português.

Aliás, por parte dos movimentos de libertação, a opção pela guerra é igualmente corroborada pela adopção das disposições internacionais que visavam legitimar aquilo a que Amílcar Cabral denominou “supremo recurso”, ou seja, o direito à revolta e ao recurso de todos os meios -violentos inclusivamente -, para fazer valer os direitos consignados da Resolução de 14 de Dezembro de 1960 das Nações Unidas. Uma resolução que, inequívoca e sintomaticamente, reconhecia o direito dos povos colonizados a disporem de si próprios pela via da concessão da independência dos territórios sob domínio colonial.

Em jeito de conclusão, podemos aferir, portanto, da inevitabilidade da guerra colonial/guerra de libertação, não apenas porque era enorme a influência geoestratégica introduzida pela partilha do Mundo pelas duas superpotências da altura, com a proliferação das chamadas “guerras por procuração”, mas igualmente porque quando se colocou na agenda internacional a questão da autodeterminação e da independência dos territórios sob domínio colonial, o posicionamento de dos movimentos de libertação e de Portugal (como potência colonial) revelaram-se diametralmente opostos e mesmo inconciliáveis, interpondo entre eles, inclusivamente, uma lógica de exclusão e uma clara opção pela guerra que ambos assumiram.

Aliás, não podia ser de outra maneira, na medida em que o discurso colonial, anacrónica, insistia paradoxalmente no direito/devermissão de “civilizar” (entanda-se colonizar), enquanto os emergentes movimentos de libertação aludiam, entre outros aspectos libertários – com maior ou menor razão – a necessidade de um regresso à história africana e a independência, com tudo o que de idílico ou de utópico esse sonho comportou e, emcerta medida, ainda comporta.


* Públicado em Os Anos de Salazar, nº 20 - "A guerra estende-se à Guiné e Moçambique, Plenata DeAgostini, Lisboa, 2008.

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Nota: ver artigo de

5 de Outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3272: A novíssima literatura da Guerra Colonial (Leopoldo Amado)

Guiné 63/74 - P3340: Os nossos camaradas guineenses (1): O meu tributo (José Martins, ex-Fur Trms, Nova Lamego e Canjadude, CCAÇ 5, 1968/70)


Foto Google – Zona Leste – Sector L 3 (a zona a sul do Rio Corubal foi abandonada em 6 de Fevereiro de 1969, durante a Operação Mabecos Bravios).


Tributo aos Combatentes Africanos

por José Martins

Após terminado o 2º ciclo do CSM (Curso de Sargentos Milicianos), promovido a 1º Cabo Miliciano em 18Abr68, apresentei-me no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2, em Torres Novas e, no regresso de umas breves férias intituladas “da Páscoa”, recebi a ordem de mobilização, gozei as férias da ordem e, após alguns adiamentos, em 28 de Maio de 1968 embarcava rumo à Guiné, a bordo do N/M "Alenquer".

Desembarcado a 2 de Junho de 1968 apresentei-me na Companhia de Caçadores nº 5, uma das três companhia africanas existentes na altura, no dia 9 desse mês, após uma viagem a bordo dum avião Dakota, até Nova Lamego (Gabu; 12º 15’ N 15º 35’ W).

Dois ou três dias depois enverguei o meu camuflado, ainda a cheirar a novo, para efectuar a minha primeira operação, integrado numa coluna militar que, a 15 de Junho, retirou a guarnição de destacamento de Beli (11º 55’ N 14º 12’ W) para o destacamento de Madina do Boé (11º 46’ N 14º 12’ W).

Não terminei a operação, já que fui evacuado, do Ché-Ché (11º 55’ N 14º 12’) para Nova Lamego, de helicóptero, com a primeira crise de paludismo.

Mas a nossa intenção não é contar a história de um dos muitos militares que estiveram num dos teatros de operações na época. Pretendemos, sim, prestar homenagem àqueles que, mesmo querendo, não conseguem fazer ouvir a sua voz ou publicar os seus escritos, talvez mais extensos do que outro qualquer militar metropolitano: os Militares Africanos.

Mas, na realidade, a referência às unidades do Exército, não esquecendo os outros ramos das Forças Armadas, deve-se à impossibilidade de referir todos e cada um dos cerca de 7.500 militares africanos que combateram ao lado dos metropolitanos. Também há que referir as unidades de milícias, uma força paramilitar mal armada e muitas vezes mal instruída, assim como os caçadores civis, os guias, os carregadores, os assalariados e outros, que também prestaram uma valiosa contribuição no esforço de guerra junto das unidades militares.

Quando passei por aquela terra, na unidade em que servi, conheci soldados cujo número mecanográfico terminava em 61, ou seja, tinham sido alistados em 1961 e, há poucos anos, ao ler relatórios sobre a minha companhia, datados de 1973 e 1974, lá constavam soldados alistados naquele ano. Isto quer dizer que houve homens – soldados africanos - que cumpriram 13 anos de tropa o que equivale a 13 anos de guerra, e que, na realidade, é muito tempo.

Em 1959/1960, com a nova orgânica das unidades nos territórios ultramarinos, foram atribuídas à Guiné três companhias de Caçadores Indígenas e um Grupo de Artilharia de Campanha, no que concerne a tropas operacionais.

Em 1960 já estavam criadas a 1ª CCaçI e a 4ª CCaçI, assim como o Grupo de Artilharia de Campanha 7. A 3ª CCaçI foi criada em Agosto de 1961. Estas unidades eram constituídas por praças africanas, enquadradas por oficiais, sargentos e praças especialistas europeus. Estima-se que nesta altura haveria cerca de 1.000 elementos africanos nas forças armadas

Com a chegada de unidades de reforço à província, muitos militares do recrutamento local foram atribuídos a essas unidades, transitando para as que vinham substituir as anteriores.

A partir de 1966, os africanos foram chamados a uma intervenção mais activa no esforço de guerra. Foi iniciada a constituição de Pelotões de Caçadores Nativos (Pel Caç Nat) tendo sido formados sete pelotões numerados de 51 a 57. Estas unidades eram comandadas por um oficial com a patente de alferes, coadjuvado por furriéis e praças especialistas europeias, uma estrutura adaptada à sua dimensão - entre 30 a 40 homens. Neste ano subiu, para 3.952, o número de tropas locais em serviço.

O ano de 1967 foi um ano de viragem. As companhias de Caçadores existentes foram redenominadas e transformaram-se nas CCaç 3 (ex-1ª CCaçI), CCaç 5 (ex- 3ª CCaçI) e CCaç 6 (ex- 4ªCCaçI), além da formação de mais um Pel Caç Nat, o nº 58.

Em 1968 foram criados 11 novos Pel Caç Nat, a quem foram atribuídos os números de 59 a 69, e em 1969 foram criadas as CCaç 11, 12, 13 e 14, a partir das CArt 2479 e CCaç 2590, 2591 e 2592, que já tinham uma constituição igual às anteriores companhias existentes do recrutamento local ou foram adaptadas.

No período entre 1970 e 1973 foram constituídas mais sete companhias de recrutamento local, as CCaç 15, 16, 17 e 18 (em 1970), a CCaç 19, (em 1971) e as CCaç 20 e 21 (em 1973). Em 1973 foi, também, constituído o Pel Caç Nat 70.

A partir das antigas equipas de comandos, nas quais já se integravam muitos militares africanos, foi constituída a 1ª Companhia de Comandos Africanos (1969) seguida da 2ª CCmds (1971) e 3ª CCmds (1973), constituindo, neste ano, o Batalhão de Comandos da Guiné.

Esses foram os verdadeiros heróis que, batendo-se nas mesmas condições de que qualquer militar metropolitano, já lá se encontravam quando chegávamos e lá continuaram quando partíamos, e a maioria lá ficou quando, ao abrigo do Acordo de Alvor, datada de 26 de Agosto de 1974, entregaram as armas [artigo 17º do anexo ao Acordo:

As forças armadas portuguesas obrigam-se a desarmar as tropas africanas sob o seu controle (A Republica da Guiné-Bissau prestará toda a colaboração necessária para o efeito) e, receberam um punhado de dinheiro [artigo 24º do anexo ao Acordo: A Delegação do PAIGC regista a declaração do Governo Português de que pagará todos os vencimentos até trinta e um de Dezembro de mil novecentos e setenta e quatro aos cidadãos da Guiné Bissau que desmobilizar das suas forças militares ou militarizadas, bem como aos civis cujos serviços às forças armadas sejam dispensados.]

...tiveram que regressar às tabancas e iniciar uma vida para a qual não havia, e provavelmente ainda não há, futuro promissor.

Foram estes homens que, vivendo com as famílias a seu lado, se despediam delas sem saber se voltavam da operação de combate em que iam participar. Foram estes homens que faziam amizade com “o branco”, mas este terminada a sua comissão de serviço regressava, mas ele “o preto” ficava e continuava a luta.

Foram destes homens que se ouviu, muitos anos depois, frases como a que Assumane, um “mecânico de bicicletas” em Bissau, que tinha percorrido toda a região do Gabú quando foi soldado respondeu, quando lhe perguntaram porque não continuou no exército depois da independência: “Eu jurei bandeira do português, não pode jurar duas bandeiras”.

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O Autor




Nascido em Leiria em Setembro de 1946, foi recrutado em Julho de 1967 tendo frequentado o Curso de Sargentos Milicianos.

Foi mobilizado e embarcou para a Guiné em Maio de 1968, onde foi integrado na Companhia de Caçadores nº 5, unidade do recrutamento local do C.T.I.G., até Junho de 1970, data em que regressou, passando à disponibilidade no mês seguinte.



1968/1970 – Furriel Miliciano de Transmissões de Infantaria – Nova Lamego e Canjadude - Guiné.

2008 – Técnico Oficial de Contas – Grande Lisboa

Guiné 63/74 - P3339: O Nosso Livro de Visitas (38): José C. Pereira, ex-1.º Cabo de Serviço de Material, da CART 2773/BART 2924, Jabadá, 1970/72

1. Mensagem do nosso camarada José Carapinha Pereira, ex-1.º Cabo de Serviço de Material, CART 2773/BART 2924, OS POE-TE A PAU, Jabadá, com data de 21 de Outubro de 2008:

Nome: José Carapinha Pereira
1.º Cabo de Serviço de Material
CART 2773/BART 2924
Local Jabadá
Embarque para a Guiné no UÍge a 23 de Setembro de 1970 e regresso a 19 de Setembro de 1972.

Foi o 1.º Batalhão a fazer o IAO em Bolama. Tenho algumas fotos, só que neste momento tenho de as procurar.

Dei uma vista de olhos no vosso Blog, mas gostaria de ter mais conhecimentos sobre o que foi a guerra na Guiné, até porque estive em 1997 de visita com o Senhor Presidente da República General Ramalho Eanes, foi talvez dos maiores desgostos que tive.

Gostaria de poder conviver com mais pessoal que esteve na Guiné. Tenho pensado um encontro a nivel Nacional de todos os que connosco estiveram na Guiné.

Obrigado.
Cumprimentos aguardo resposta.

2. Foi enviada resposta ao nosso camarada nos seguintees termos:

Caro José Pereira
Muito obrigado pelo teu contacto.

Para responder à tua pergunta sobre os convívos, tens duas hipóteses.
Costuma haver um convívio organizado pelo camarada Isaías Peralta, destinado a todos os ex-combatentes da Guiné. Este ano foi no Pombal. Se quiseres podes contactá-lo pelos telefones 966 003 293 ou 232 183 926.

A outra hipótese é o encontro anual da Tertúlia do nosso Blogue que é aberto a quem quiser aparecer, desde que inscrito previamente, como é lógico. Podes ir acompanhando depois as notícias do próximo encontro que terá lugar lá para Abril ou Maio de 2009.

Com respeito a saberes mais sobre a guerra na Guiné, um bom meio é precisamente o nosso Blogue, onde as histórias são contadas na primeira pessoa e nunca no sistema de eu digo porque me disseram que alguém disse.

Poderás tu também fazer parte dos contadores da historia da guerra colonial na Guiné, utilizando este nosso espaço, onde sem excepção, desde soldados a generais, dos menos aos mais letrados, todos podem colaborar.

Se quiseres fazer parte da família do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, envia uma foto do teu tempo de tropa e outra actual, em ficheiro JPEG e formato tipo passe, e começa a mandar os teus trabalhos acompanhados das fotos que tens.

Recebe um abraço da tertúlia.
Carlos Vinhal
Co-editor
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Vd. último poste da série de

Guiné 63/74 - P3338: O cruzeiro das nossas vidas (11): Viagem para a Guiné em época de Carnaval no N/M Alfredo da Silva (Jorge Picado)

N/M Alfredo da Silva pertencente à Sociedade Geral, Grupo CUF

Foto retirada do site Navios no Sapo (que já não existe), com a devida vénia.



1. Mensagem do nosso camarada Jorge Picado, ex-Cap Mil da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, com data de 10 de Outubro de 2008, com um trabalho para a série O cruzeiro das nossas vidas (1).

Amigos

Aproveitando a onda revivalista que me atingiu, não sei por quanto tempo, deitei cá para fora esta prosa das minhas lembranças sobre a viagem de ida para a Guiné, um pouco fora do que era normal.

Se julgarem que tem interesse, apresentem-na aos camaradas.

Abraços
Jorge Picado.


MOBILIZAÇÃO E VIAGEM PARA O TO DA GUINÉ

por Jorge Picado


Tendo terminado o CPC/QC, entrei de licença registada em 21 de Dezembro, regressando para junto da Família em Ílhavo e ficando a aguardar as nefastas notícias que, mais tarde ou mais cedo haveriam de chegar, indicando-me qual o prémio que a tômbola da sorte me atribuiria.

Dado que já trabalhava nos Serviços Agrícolas em Aveiro, retomei as minhas funções civis, mantendo assim o espírito ocupado com os problemas fitossanitários que atormentavam os agricultores, procurando dar-lhes as respostas adequadas, ao mesmo tempo que bloqueava a esfera militar. Posso acrescentar que ainda me desloquei em serviço pelos concelhos de Vila da Feira, Oliveira de Azeméis, Oliveira do Bairro, Anadia e aos ensaios que mantínhamos nas terras arenosas da Vagueira e em freguesias de Aveiro.

Ao mesmo tempo tive de acelerar assuntos pessoais relacionados com um processo de empréstimo que tinha desencadeado para a remodelação dum prédio antigo que tinha comprado cerca de um ano antes de saber que ia ser chamado para o curso de Capitão, assunto que se arrastava face às demoras burocráticas de então.

Por isso, quando na sexta-feira 16 de Janeiro, recebi a nota para me apresentar na minha Unidade de origem – Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa de Queluz (RAAF-Queluz) – a fim de levantar a guia de marcha, já sabia que tinha chegado a minha vez de ir enfardar, mas não para onde.

Disso só tive conhecimento três dias depois, segunda-feira, quando me apresentei na secretaria dessa Unidade e recebi o escrito onde me comunicavam que tinha sido mobilizado para servir no CTI-Guiné, nos termos da Nota n.º 1503-P.º-HC, da RO/DSP/ME, de 15/01/70, para fazer parte da Companhia de Caçadores 2589/RI15. Ia pois em rendição individual, substituir o respectivo Capitão, algures na Guiné.

Logo ali me informaram de que entrava imediatamente na situação de licença a que tinha direito, para preparar a trouxa, tratar dos aspectos administrativos e da parte clínica no Hospital do Ultramar – actual Egas Moniz – de forma a embarcar no dia 9 de Fevereiro, em plena época carnavalesca.

Mas que grande partida de Carnaval me pregaram!!!

Assim que o Sargento da secretaria me deu a conhecer a nota de mobilização, fiquei como que em estado de choque.

Lembrei-me logo de certas aulas ministradas no referido curso (mais do género de, entra por uma porta um civil já com meia barriguinha enfarpelado de Tenente Miliciano e sai por outra quase na mesma, mas então enfarpelado de garboso Capitão Miliciano), onde vários instrutores nos tinham dado conhecimento que o pior que nos poderia acontecer era irmos malhar com os ossos para o célebre Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), pois aí se vivia o pior cenário militar das três Frentes da Guerra Colonial.

Foram tão honestos ao apresentar-nos os três possíveis cenários de guerra que iríamos enfrentar, sim só 3, que valha a verdade até eles não tinham dúvidas que para nós apenas Angola, Guiné e Moçambique contavam como destino de mobilização, que não tiveram pejo em usar as cores mais negras da paleta para pintar o da Guiné.

As razões eram simples: guerrilha bem preparada, melhor apetrechada, mais activa e aguerrida, circulando praticamente por todo o território (podendo dizer-se que não havia zonas livres de turras), até a capital já tinham atacado e o facto é que proporcionalmente às suas dimensões era onde se registava o maior número de baixas.

A acrescentar a tudo isto, informavam-nos que as condições ambientais eram as mais inóspitas, pois com um clima muito quente tinha apenas 2 estações – uma muito húmida e a outra seca -, a que se aliava um terreno muito baixo e alagadiço, proporcionando uma situação sanitária muito desfavorável para nós, metropolitanos nada habituados a estas extremas condições ambientais, onde as febres e o paludismo atacavam com maior intensidade do que nas outras duas Colónias.

Só faltava dizer-nos abertamente que uma mobilização para aí correspondia a um certificado de óbito... mesmo que este não resultasse de causas militares.

Portanto a sorte estava ditada. Logo havia de me ter calhado o pior TO.

Tinha apenas 20 dias até ao embarque para tratar das coisas e preparar-me mentalmente para o degredo como os antigos condenados…

Dei logo conhecimento telefónico à Família do meu destino e, ainda que fossem tão poucos os dias que entretanto me restavam para estar junto deles – estava casado há pouco mais de 8 anos e tinha já os meus 4 filhos, respectivamente com 7; 6; 5 e 2 anos –, não regressei antes de tratar de adquirir o enxoval e satisfazer os procedimentos burocrático-administrativos.

A parte clínica só a pude concretizar numa fuga a Lisboa, a 2 de Fevereiro, onde me ministraram as vacinas obrigatórias – varíola (revacinação) e febre amarela, já que contra a cólera, julgo pelos dados que possuo, fui vacinado e revacinado na Guiné em 3SET e 3OUT/70, 23MAI e 23NOV71 – e me forneceram os comprimidos de Daraprin com a indicação de que tinha de tomar 1 por semana.

Uma vez que o embarque era na segunda-feira de Carnaval, dia 9 de Fevereiro de 1970, tive de abalar para Lisboa no dia anterior onde pernoitei.

As despedidas ocorreram no almoço desse domingo em minha casa onde reuni toda a Família mais chegada. Afinal, ainda que não manifestássemos, não sabíamos se voltava-mos a rever-nos.

Chegada a hora e depois de todos fazerem das tripas coração como se costuma dizer, para não haver fracos, meti-me no carro dum tio de minha mulher (que por ironia do destino até fazia parte do colégio que elegia então o Presidente da República... por isso vejam lá com que prazer ele levaria o sobrinho que ia defender aquilo em que ele acreditava!!!), juntamente com o meu sogro e os meus 2 rapazes de 6 e 5 anos (já que o de 2 anos ainda era muito novo) e abalámos para Lisboa.

Viagem demorada e cansativa naquela época, pois ainda não havia as auto-estradas, desembarcando já ao anoitecer no Largo dos Restauradores, junto da Pensão do mesmo nome do largo, onde pernoitei.

O corte com os familiares foi feito logo ali no passeio, para não haver mais embaraços e retive a imagem que até hoje ainda não se apagou e muito me impressionou, da reacção estranha, para a idade, do meu filho de 6 anos, Jorge como eu, que depois de o beijar se atirou para dentro do carro a chorar. Não posso dizer o que sentiu ou o que pensou, mas julgo que soube que algo de anormal se iria passar com o Pai, isto porque ele estava habituado às minhas ausências, apenas por dias, sempre que tinha de ir em serviço para Lisboa.

Embarcado no N/M Alfredo da Silva da Sociedade Geral (Companhia de Navegação do Grupo CUF), no Cais da Rocha de Conde de Óbidos, pela manhã, conheci então vários camaradas que seguiam o mesmo destino, em rendições individuais como eu, com excepção dum Destacamento de Fuzileiros que se destinava a Cabo Verde. Julgo porém que, quanto a graduações, éramos 2 os Capitães, sendo o outro do QP da Arma de Transmissões destinado ao respectivo Serviço em Bissau e ocupávamos o mesmo camarote, com 2 beliches, havendo outros graduados de postos inferiores, mas que não posso já precisar.

Sendo este navio misto, isto é, de carga e passageiros e deslocando-se numa viagem normal, era como se fossemos em viagem de cruzeiro e portanto com bom tratamento. Pelo menos os graduados, porque em verdade não sei como iam instalados os Fusos.

N/M Alfredo da Silva pertencente à Sociedade Geral

Foto retirada do site Navios no Sapo (que já não existe), com a devida vénia.


A largada ocorreu cerca das 12h15m e pouco depois, já na saída do Tejo, foi servida a 1.ª refeição (almoço), das muitas que se revelaram um verdadeiro tormento.

Explique-se desde já o motivo. Sou um mártir com o enjoo. A viagem fi-la toda sob o efeito de fortes doses de comprimidos contra o dito mal, mas mesmo assim não podia observar o mínimo movimento oscilatório, sem correr o risco de lançar carga ao mar como se diz nesta minha terra de marinheiros. Para mal dos meus pecados à mesa das refeições apanhava com uma vigia pela frente (na realidade, com excepção dos lugares de cabeceira todos tinham a mesma vista), para a qual não podia olhar porque, ao fazê-lo, dava logo conta do movimento oscilatório do barco.

Mas, como ia dizendo, logo após essa 1.ª refeição foi com grande admiração que ao chegar à sala de estar, depois do repasto, verifiquei pela posição do navio que este não se dirigia para Sul, mas sim para Norte.

Sim, constatei logo este facto, mas não sei se os restantes deram conta disso. Se não fosse conhecedor das questões marítimas, apesar de ter traído as Gentes da minha terra e porque não, da própria Família, poderia julgar que os Deuses estavam loucos e tinham transferido a Guiné para qualquer região do Norte da Europa... só então compreendi o motivo. Inicialmente, como não vi qualquer civil como passageiro, julguei que o barco seguia como transporte de tropas, mas agora dava conta que ia numa das suas viagens normais e portanto não nos dirigíamos directamente para Bissau

Naquela época ainda estava bem a par das viagens deste tipo dos N/M da SG e em especial daquele em que me tinham embarcado e sabia bem que o seu trajecto era: Lisboa-Leixões-Cabo Verde-Guiné-Cabo Verde-Lisboa.

Por outro lado se fosse supersticioso até tinha encarado como bom augúrio o facto da minha viagem de ida para aquela guerra se efectuar naquele meio de transporte. E sabem porquê? Porque o meu irmão (uns anos mais velhos do que eu) tinha sido Piloto neste navio antes de 1954 e foi até por isso que tive de explicar ao Telegrafista de bordo, mal me sentei para o almoço, que de facto o meu nome (ele leu-o na respectiva placa identificativa que usávamos ao peito) não lhe era desconhecido.

"Era de facto irmão daquele que ele pensava e conhecia e, para maior espanto dele, também eu o conhecia de nome e sabia ser originário dos Açores, pois toda a minha estadia em Lisboa enquanto solteiro tinha habitado na mesma casa particular em que ele habitou durante a sua frequência da Escola Náutica".

Enfim coincidências da vida.

Saí portanto de Lisboa em plena época carnavalesca e como já o disse ao amigo Carlos Vinhal em plena doca de Leixões, considerei que me pregaram uma grande partida de Carnaval não me proporcionando mais 2 dias de vida familiar. Sabendo que morava em Ílhavo, logo, mais perto de Leixões, mandavam-me embarcar apenas na Terça-feira Gorda à tarde, neste porto e o trajecto até era muito mais curto.

Vista aérea do Porto de Leixões, reconhecendo-se as povoações de Leça da Palmeira e Matosinhos, respectivamente a Norte e a Sul da zona portuária.


A viagem foi tranquila, pois Neptuno apiedou-se da minha nula apetência marítima e decretou tréguas, subordinando-se igualmente Eolo, de modo que durante os dias que sulcámos os mares, tanto as ondas como o vento foram mandados para outras paragens onde, quiçá, navegava gente mais afoita... e assim, ao som do barulho continuo do motor, que mesmo a dormir me martelava a cabeça, passando as horas a jogar às cartas ou a ler, dando umas espreitadelas à monótona paisagem exterior onde nem uma simples embarcação se cruzou para animar os passageiros, apenas fomos surpreendidos uma vez ao cruzarmos uma zona onde apareceram peixes voadores. Apenas este acidente nos manteve cá fora durante mais tempo, observando a elegância dos saltos e planagens durante o curto e rápido voo feito por estes pequenos peixes, à frente e ao lado do navio.

Lá fomos passando o tempo o melhor que pudemos, apesar da disposição não ser lá muito boa e assim atracámos antes da meia-noite do dia 15 no cais do Mindelo, na Ilha de S. Vicente.

Panorâmica do Mindelo, Ilha de S. Vicente, Cabo Verde

Foto retirada do site Cabo Verde


O dia seguinte foi dedicado à visita da cidade, almoçando em terra juntamente com alguns dos camaradas tendo a maioria aproveitado para percorrer as casas comerciais à procura do material fotográfico e de cinema de origem japonesa, que naquele tempo era muito mais barato do que na Metrópole. Houve quem se alambazasse nas compras, não só das máquinas fotográficas, mas também de filmar e projectar e, das duas uma, ou tinham já encomendas ou eram para negócio.

Tendo largado durante a noite de 16, após poucas horas de viagem aportámos à cidade da Praia, na Ilha de S. Tiago, cerca das 9 horas do dia 17. Aqui não havia cais e o navio fundeava ao largo, fazendo-se as cargas e descargas para pequenos barcos, que tivemos de tomar para passar o dia em terra.
Foi este o destino (pelo menos desembarcaram aqui) do Destacamento de Fusos que seguia a bordo e que, além deste escrevinhador, certamente outros invejaram.

Juntamente com o camarada das Transmissões e julgo que mais 2 outros, alugámos um carro e demos uma pequena volta pela ilha, visitando os lugares de Trindade e S. Domingos, almoçando durante o percurso e passando ainda por um Posto de Experimentação Agrícola, um autêntico oásis no meio daquela terra semi-árida, agreste e pobre.

No fim do dia lá abalámos para a última etapa, sabendo desde então que menos de 2 dias nos separavam da tão indesejada Província da Guiné, de modo que a partir da manhã do dia 19 começou o frémito e a ansiedade de observar no convés superior, a principio através duma ligeira névoa e depois já com limpidez, o aparecimento das ditas paragens.

A verdade é que só depois do meio da tarde nos foram apresentados os primeiros contornos de terras, quando navegávamos numas águas que há muito tinham perdido a transparência e a cor azul escura do oceano e passado, não digo a barrentas, mas meio leitosas talvez. Possivelmente já seria o Rio Geba.

Para mim foi uma surpresa quando, mais próximo, dei pela aproximação a um cais, sem que tivesse dado conta duma verdadeira entrada numa barra, como estava habituado a ver na minha terra ou mesmo em Lisboa. Começou aqui o meu espanto.

Desembarcámos no cais do Pidjiguiti cerca das 18h30m do dia 19 de Fevereiro de 1970, data a partir da qual o tempo de serviço militar começou a ter um aumento de 100%.


Zona portuária de Bissau. Foto de Carlos Silva


Havia já viaturas militares que nos aguardavam, não me recordando se todas para o mesmo destino. Sei que segui num jeep, juntamente com o Cap de Trms, directamente para o QG do CTIG no alto de Santa Luzia, onde após a apresentação me foi comunicado que ficaria a aguardar transporte para o destino, a tal CCaç 2589, pertencente ao BCaç 2885, com o SPM 5858 e sediada em Mansoa, que não fazia a menor ideia onde se situava, mas também não se deram ao trabalho de me dizer.

Só depois nas instalações do Clube de Oficiais, onde me alojei, alguém tratou de informar o periquito que estava tramado. Ia para o mato (que era o lugar indicado para os piras) onde a coisa estava preta. Era a psico a funcionar para os recém chegados lá do puto.

Entretanto devo confessar que logo após o desembarque sofri o verdadeiro primeiro choque civilizacional.

Apesar dos primeiros contactos com a realidade ultramarina no Mindelo e na Praia, aqui na Guiné é que se deu o verdadeiro choque. A diferença para pior, posso dizer que era enorme.
Descalços e praticamente nus assim se me apresentaram os nativos que trabalhavam na estiva. Mas não só. E as mulheres, jovens ou de idade, nuas da cintura para cima pseudo vestidas nas partes baixas com uns panos que em alguns casos mais se assemelhavam a trapos?

Foi a primeira machadada (ainda que não fosse virgem nestes conhecimentos, pois antes de 1954 já tinha ouvido o tal meu irmão contar em casa que, nas suas viagens pelos Portos Ultramarinos – e ele conheceu-os todos até Macau – distinguiam-se estes, de todos os outros das antigas Colónias Inglesas ou Francesas, precisamente pelo aspecto miserável que os nossos africanos apresentavam comparados com os outros. Mas isso tinha sido há mais de 16 anos antes!) nos célebres 800 anos da gloriosa gesta colonizadora Portuguesa. Se alguma admiração tivesse pela situação começaria aí o descrédito. A verdade é que não tinha, mas mesmo assim nunca julguei observar tal coisa e afinal Bissau era apenas o levantar... do véu. Maior estupefacção seguir-se-ia depois.
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Nota de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2533: O cruzeiro das nossas vidas (10): Fui e vim no velho e saudoso Niassa (Manuel Traquina)