domingo, 25 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9655: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (21): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte III)



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Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BART 2917 (1970/72) > Máquinas da TECNIL operando na construção da estrada Bambadinca-Xime. Numa delas (foto de cima), lê-se: "Deus Te Guie BX 1970"...Na última foto, forças da CCS do BART 2917 montando segurança aos trabalhos de construção da estrada.


Fotos: © Benjamim Durães (2010) / Legendas: L.G. Todos os direitos reservados




1. Mensagem de António Rosinha, com data de 6 do corrente, enviando-nos a III (e última) parte de um texto sobre a ascensão e queda da TECNIL, empresa de obras públicas portuguesa que operou na Guiné-Bissau, antes e depois da independência:


De: António Rosinha


Data: 6 de Março de 2012 20:57


Assunto: Como desparece em Bissau a empresa TECNIL e é substituida pela Soares da Costa


Um dos últimos trabalhos de que fui incumbido pelos meus patrões da TECNIL, foi uma «ordem» de Luís Cabral.

Este homem era muito dinâmico em questão de investimento em obras públicas e angariação dos respectivos financiamentos. E denotava gosto por tal actividade e tinha muitos engenheiros nacionais e cooperantes a mexer em tudo.


Luís Cabral pretendia reformular uma residência bastante moderna que foi propriedade de um antigo cólon que eu não conheci, para sua residência, penso eu. Essa residência ficava a traz do gabinete do primeiro ministro, e tinha uma portaria que era preciso adaptar, na cabeça de Luís Cabral, para receber o Volvo presidencial, bem junto à porta da residência.


Só que havia um pedaço de jardim e duas colunas à entrada da residência que era preciso derrubar construir noutra disposição, e isso Luís Cabral não queria.

E, agora vou falar em nomes de gente muito simpática e não quero de maneira nenhuma fazer «politiquice» nem com as pessoas nem com a atitude das mesmas nem do momento.

O ministro das Obras Públicas era Tino Lima Gomes que era arquitecto e ainda chegou a dar uma vista de olhos na portaria mas sem qualquer solução.

Mas a esposa dele,  a camarada Milanka, de nacionalidade jugoslava, arquitecta nas Obras Públicas é que foi encarregue de descalçar a bota, e eu no campo executar o impossível. Só que a camarada Milanka não tinha coragem de dizer ao presidente que era impossível executar como ele queria, e eu descarreguei o meu fardo para o meu patrão Ramiro Sobral que se encontrava em Bissau. Onde ia mês sim,  mês não.

E o velho de 75 anos, e muitos anos de África, habituado a resolver casos bicudos, analisou e solucionou:
- Senhora Dona Millanka, (toda a gente dizia camarada Milanka), sabe porque ando nesta vida com esta saúde aos 75 anos? Porque à porta da minha casa em Viseu tem 3 degraus. E subir e descer esses 3 degraus dão-me imensa saúde. Convença o senhor presidente que com 3 degraus resolve o problema e dá-lhe imensa saúde para daqui a muitos anos continuar com o meu dinamismo.

Passados uns instantes já só comigo no automóvel, Ramiro Sobral como que a falar para os próprios botões, previa:
- Com degraus ou sem degraus não vais envelhecer aqui, não.


Talvez uns 15 dias depois, dá-se o golpe a 14 de Novembro de 80 que derruba Luís Cabral.


Visto hoje a 32 anos de distância, sem dúvida que Luís Cabral que fazia muita falta à Guiné, para mim era uma pessoa muito honesta, mas esqueceu-se da política, do povo e dos «inimigos» que arranjou na Guiné, e foi esquecido e isolado pelos «amigos» da Caboverde, e o meu patrão já via isso tudo.

Os guineenses do partido e os congéneres caboverdeanos já tinham abandonado o «trilho» de Luís Cabral há muito tempo, e quando apareceu o precipício não estava lá ninguém para lhe dar a mão e quando chegou lá abaixo era o vazio. Quem estava em Bissau relembrou-se muito do que aconteceu a Amílcar, e ouvia-se muito " só agora é que somos independentes".

Claro que Ramiro Sobral, digo agora a esta distância, já estava também a ver o fim dele próprio naquela terra. E com o fim de Luís Cabral piorava tudo, como se viu até hoje.

Só que com Luís Cabral, havia as chamadas "engenharias financeiras" e os dinheiros iam aparecendo ou com atraso ou parcialmente. Com a fuga de quem sabia essas contabilidades, aí foi mesmo o fim de tudo.

E a TECNIL acaba passados mais ou menos meio ano com todos os bens, máquinas, armazéns, residência em tribunal à ordem dos Tribunais e da vontade da polícia, do ministro das Obras Públicas e dos humores dos engenheiros directores das Obras Públicas, que já nenhum era caboverdeano, os novos ninguém tinha compromisso em respeitar nada.

A TECNIL tinha recentemente como director da empresa um engenheiro Máximo que havia sido capitão de engenharia pouco antes da independência. Esse engenheiro Máximo teve que sair na TAP, clandestinamente, porque já tinha a residência vigiada e seria preso em qualquer altura porque não havia dinheiro para pagar nem salários do pessoal e naquele «comunismo» não havia advogados, e corria mesmo perigo até podiam pegar por ter sido militar tuga.

Estas peripécias já me são contadas cá pois vou a tribunal de trabalho como testemunha do engenheiro Máximo para a TECNIL lhe pagar o que lhe ficou a dever.

Mais tarde há negociações entre o Governo de Nino e a Soares da Costa, que estava como sócio no Liceu com a TECNIL, e esta empresa do Porto, já com gente «actualizada» para a nova realidade da vida, recuperou e lutou por substituir a TECNIL e parece que conseguiu alguns objectivos.

Como não tinha rotina colonial a Soares da Costa recorreu a alguns dos que já tínhamos andado por lá pelas Áfricas desde Moçambique a São Tomé, engenheiros, chefes de mecânica, encarregados de obra e de laboratórios, era uma equipa de "retornados".

Atenção,  que grande parte dos engenheiro portugueses que trabalhavam e eram directores de obra dessas empresas que iam para o ultramar, a seguir às independências, eram em maioria ex-estudantes da Casa do Império que não fugiram para Paris nos anos 60.
Trabalhei com dois da terra do Pepetela que eram relacionados com dirigentes do PAIGC, o que lhe valeu algumas vantagens em concursos de obras.

Para terminar este" fim de uma empresa colonial", tenho a dizer que "paguei para ver". E o próprio velho Ramiro Sobral, bem lá no fundo,  também pagou para ver. Sempre tive curiosidade o que é que os "tais ex-estudantes da Casa do Império" iam conseguir realizar com as independências. 

Só me foi possível satisfazer a curiosidade suportando o "pesadelo TECNIL". Conheci e trabalhei com alguns que não foram para Paris e para a luta e depois conheci ou trabalhei com alguns que foram para a luta. Como alguns desses estudantes ou foram filhos de Chefes de Posto ou de velhos comerciantes ou já estava destribalizados por missionários cristãos, ou filhos de funcionários públicos, queria ver o grau de relacionamento com os povos após a independência.

Tal como se previa por quem conhecia um pouco da realidade africana em geral, qualquer chefe de posto colonial sem armas na mão, conseguia mais apoio popular e unanimidade dos diversos povos, do que Luís Cabral conseguiu. O inicial entusiasmo pela juventude e o fim da guerra era natural, assim como cá em Portugal com o 25 de Abril; assim como o entusiasmo com o derrube de Luís Cabral e um certo entusiasmo exagerado de alguns, até parecia trazer expectativa.

Só que o resultado é sempre negativo porque não é assente em bases definidas, eram apenas facções do mesmo caldeirão partidário a sobreporem-se.

A guerra que discutimos dos 13 anos da nossa guerra do Ultramar é apenas um pequeníssimo flash do péssimo que se passa em África desde 1960 devidamente apoiado pelas Nações Unidas e pela Europa democrática em particular.

E paguei para ver: a Tecnil não cumpriu comigo durante 1 ano, estive em bichas de pão com gorgulho, substitui com vantagem as batatas à mesa por inhame, vi formas de racionamento de sabão, que já não existia, e vi gente que não podia chorar em público os familiares assassinados.

E isto tudo testemunhado e apoiado pelas Nações Unidas e por toda a Europa, e assistido por mim que também ficava calado.

E como ao fim de 40 anos, está em curso um complexo processo de apagamento, ou diluição, ou esbatimento, de certas tribos nalguns países, podemos imaginar as coisas que a Europa e as Nações Unidas são capazes de promover em África, com assentimento dos seus dirigentes.

Hoje, sinto que pertenci a uma geração de portugueses que durante 13 anos Portugal teve uma opinião própria, contrária à maioria da Europa que hoje pouca opinião tem. Será que as pessoas de agora acreditam que tenha sido verdade? Opinião própria emitida em Plenas Nações Unidas, mensalmente em Nova Iorque ?

Para terminar, digo que conheci "um velho de Viseu" que não pensava como os "velhos do Restelo".


Um abraço
António Rosinha
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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9561: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (20): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte II) 

Guiné 63/74 - P9654: Parabéns a você (395): Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67)

Para saber mais sobre o Rui Silva, clicar aqui.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9649: Parabéns a você (394): Braima Djaura, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 19 (Guiné, 1972/74)

sábado, 24 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9653: O nosso Blogue na Antena 1 pela voz de Luís Graça, no programa Emoções de João Paulo Diniz (Carlos Filipe Coelho)

1. Ainda a propósito da entrevista que Luís Graça deu ao jornalista, e nosso camarada, João Paulo Diniz, difundida hoje no programa Emoções, da Antena 1, recebemos esta mensagem do nosso camarada Carlos Filipe Coelho (ex-Soldado Radiomontador da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74):

Carlos Vinhal,
Se desejarem descarregar isto que eu fiz, podem fazê-lo sem problema.
Está no meu canal YouTube:

Cumprimentos.
Carlos Filipe


Entrevista telefónica de Luís Graça dada ao nosso camarada jornalista João Paulo Diniz, difundida hoje de madrugada no programa "Emoções" da Antena 1. Vídeo editado e alojado no Youtube por Carlos Filipe Coelho.

Ao nosso camarada Carlos Filipe o nosso muito obrigado porque assim todos terão acesso à gravação, que mandada por mensagem à tertúlia, por condicionalismos técnicos teve muitas devoluções.

Guiné 63/74 - P9652: In Memoriam (114): José Mexia Alves, irmão do nosso camarada Joaquim Mexia Alves (Editores / Joaquim Mexia Alves)

A notícia chegou ao nosso Blogue, primeiro por mensagem de Joaquim Mexia Alves e depois através da Tabanca do Centro por intermédio do nosso camarada Miguel Pessoa.

Acaba de falecer um dos irmãos do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves. O José, com 68 anos de idade.

Sendo o Joaquim o mais novo de 9 irmãos, terá que ir passando por estas horas difíceis. Cada irmão que nos morre é um bocado de nós mesmos que se vai. Idos os pais, os irmãos são o último repositório da memória de um núcleo familiar que se vai desfazendo.

Em nome da Tabanca Grande, e sem prejuízo de possíveis contactos posteriores dos restantes editores, apresentei, via telefone, ao Joaquim as nossas maiores condolências. Instado sobre a data e hora do funeral do seu irmão José, o Joaquim, que ia em viagem a caminho da Lousã, disse que o mesmo se efectuará amanhã naquela localidade às 15 horas.

Ficam aqui e agora as mensagens relacionadas com este funesto acontecimento, com a devida autorização do Joaquim:

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves dirigida ao Blogue hoje mesmo:
[...]
Hoje de manhã faleceu o meu irmão Zé com 68 anos.

Tenho a minha irmã Filomena no hospital "ligada às máquinas" e o meu compadre, pai do meu genro em muito risco de vida.

E Deus é grande!

Um grande e amigo abraço
joaquim


2. A título pessoal enviei esta mensagem ao nosso camarada enlutado:

Caro Joaquim
Os meus sentidos pêsames pela morte do teu irmão, um pouco mais velho do que nós, logo chamado muito cedo ao Criador. As limitações do Homem não impedem que a natureza cumpra a sua ordem e os desígnios de Deus (para os crentes) são incompreensíveis para nós, simples mortais.

Se o problema de saúde da senhora tua irmã for irreversível, o mais certo é dentro de dias ou horas desligarem-lhe as máquinas que lhe sustentam a vida. É dramático para a família viver estes momentos. Não tenho palavras para te consolar neste momento tão difícil para ti. És um homem crente, de Fé e tens pensamentos para além desta vida terrena que sabemos ser efémera. Espero que encontres forças para enfrentar estes momentos dolorosos, apesar de veres partir aqueles que são o sangue do teu sangue.

Tão ínfimo que me sinto sem te poder ajudar, ao menos com palavras, envio-te um abraço sentido, que vou renovar em 21 de Abril. 

Força companheiro.
Carlos


3. Entretanto recebíamos da Tabanca do Centro estas mensagens:

Camarigos
Estou certo de estar a falar em nome de toda esta nossa família ao dizer que a Tabanca do Centro está de luto pela morte do irmão do nosso camarigo Joaquim.

Fomos hoje informados da morte do seu irmão, José Mexia Alves, de 68 anos, após doença que pela sua gravidade já prenunciava este desfecho.

Caro Joaquim, sabes que podes contar connosco neste momento de dor e desejamos que possas estar connosco no nosso próximo Encontro, em 28 de Março. Compreendo que te poderá faltar o ânimo para estares presente, mas também sabes que é nestas situações que os amigos são importantes - e eles certamente contarão com a tua presença para demonstrarem a sua solidariedade.

Em nome do grupo,
Miguel Pessoa

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Caros editores
Estando incluídos na lista de envio da Tabanca do Centro, tiveram oportunidade de receber a notícia do falecimento, após doença prolongada, do irmão do Joaquim Mexia Alves, o José, de 68 anos.

Pela consideração que lhe merece a Tabanca Grande e os seus editores, o Joaquim pediu-me que para além dessa distribuição geral eu lhes fizesse chegar a título pessoal esta notícia.

Com um abraço
Miguel Pessoa


4. AO MEU IRMÃO ZÉZINHO

Agora,
meu irmão Zézinho,
começa o tempo do amor perfeito.

Tu que tanto amaste,
e tanto te deste,
conheces agora o amor,
o verdadeiro,
o sem limites,
aquele que não deixa dor,
porque é só em tudo amor.

Fica a saudade,
que não é nada,
por sabermos que Deus ama,
os que amam,
e que junto d’Ele,
lhes concede a felicidade.

Vai,
meu irmão Zézinho,
e junto a Ele,
vai preparando caminho,
para nós,
que te havemos de seguir,
quando Deus quiser,
amanhã,
ou no porvir.

Descansa agora,
nos braços do Criador,
adormece em paz
e na serenidade,
(que a tua cara espelha),
agora que afastada a dor,
já liberto da humanidade,
vives o completo amor.

Adeus,
meu mano querido!

Lembras-te,
meu mano querido
que é moda em Monte Real,
quando nos encontramos à chegada,
dizer o adeus,
que os outros dizem
à despedida?

Por isso adeus,
Zézinho
porque agora aqui chegaste,
ao fundo do meu coração,
de onde nunca partirás.

A Deus,
o que é de Deus,
e tu amor doado,
deixas agora os teus,
para os levares em recado,
aos braços,
do nosso Deus.

Marinha Grande, 24 de Março de 2012
JMA

(In Que é a Verdade?)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9596: In Memoriam (113): Ex-Soldado de Cavalaria José Aldeia Soares da CCAV 1748, pela sua morte ocorrida em 29 de Fevereiro, ex-sem abrigo de Odivelas (José Martins)

Guiné 63/74 - P9651: Blogoterapia (203): O Meu Pai (Joaquim Mexia Alves)


1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492/BART 3873, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73), fundador da Tabanca do Centro, com data de 20 de Março de 2012:

Para os meus camarigos
A propósito do dia do pai, partilho convosco este texto.
Um abraço do
JMA


O MEU PAI

O meu pai era um homem alto, forte, uma figura que chamava a atenção, tanto mais que tendo nascido em 1899, não havia muita gente do seu tamanho, naquele tempo.

Se bem me lembro nunca o vi fazer uso desse seu tamanho para impor fosse o que fosse, mas era antes um homem calmo, ponderado, de quem emanava uma forte autoridade, sustentada por um testemunho de vida coerente com tudo aquilo em que acreditava.

Tendo servido cargos de Estado, nunca se serviu deles, (até por eles terá sido prejudicado), tal como nunca foi contra os seus princípios, sendo um homem livre e independente, nunca permitindo que as suas obrigações colocassem em causa a sua coerência de vida.

Não me lembro de o ouvir alguma vez gritar, mas impunha-se pela sua presença e autoridade imanente.

Embora lhe tivesse um enorme respeito, um quase temor reverencial, sempre senti nele, apesar da austeridade de tratamento, um amor forte, profundo, paternal, que me fazia sentir seguro não só no momento, mas também no futuro.

O meu pai “transformava-se” nas festas de família, sobretudo no Natal e na Páscoa.

Parecia-me que nesses dias se aproximava de mim, (“falo” por mim, mas julgo que o que escrevo poderá ser subscrito pelos meus irmãos), se tornava mais perto, mais terno, mais carinhoso, mais pai de amor, embora e sempre educador.

Muitos diriam ou pensariam que com um pai assim, austero e educador intransigente, a minha infância teria sido dura ou menos feliz.

Estão completamente errados, pois tenho saudades imensas da minha infância, da minha adolescência, do meu crescer suportado nos seus ensinamentos, em palavras e testemunho de vida.

Julgo até que seria impossível ter sido mais feliz!

Mas uma das suas características mais marcantes, para mim, era a profundidade da sua Fé!

Ainda a Igreja, (suponho eu), não tinha falado da família como “igreja doméstica”, e já, olhando agora para trás, eu vejo como o meu pai, (sempre com a minha mãe, claro), moldava a sua/nossa família como uma “igreja doméstica”, sobretudo nesses dias de festa religiosa.

Haveria tanta coisa para escrever, para testemunhar sobre o meu pai, que não pararia de escrever e tornaria este texto de tal maneira longo, que perderia o sentido que lhe quero dar: uma homenagem ao meu pai, para lembrando-me dele, novamente aprender com ele a ser pai nestes tempos tão difíceis que a família agora atravessa.

Mas uma coisa não posso deixar de testemunhar, pois é algo que ainda hoje em dia me toca profundamente.

Sendo, como afirmei no inicio, um homem “imponente”, quando entrava numa igreja para rezar, para participar na Eucaristia, tornava-se “pequeno”, como que desaparecia aos olhos dos outros, e durante todo aquele tempo nada o perturbava, numa comunhão intima com Deus, numa profundidade de oração que ainda hoje me toca e gostaria de imitar.

Hoje, apesar da minha idade, sinto falta da sua segurança, sinto falta da sua presença forte e conselheira, mas sei, no íntimo de mim mesmo, que tenho a sua contínua intercessão no Céu, junto de Deus, que foi a sua razão de viver, que foi o “segredo” da família que criou e moldou, de tal modo, que apesar dos tempos que se vivem, a marca de Deus pelo meu pai deixada, contínua viva no coração de todos nós, sua família, até naqueles que não vivem a fé no seu dia-a-dia.

Louvado seja Deus, pelo pai que me deu, pela mãe que me deu, pela família em que me fez crescer, e pela família que colocou nas minhas mãos de pai e avô.

Marinha Grande, 19 de Março de 2012

Nota:

O meu pai e eu.
Fotografia tirada em 1 de Dezembro de 1971, 20 dias antes da minha partida para uma comissão militar na Guiné.

JMA

(In Que É A Verdade?, página do nosso camarada Joaquim Mexia Alves)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9597: (Ex)citações (177): Relembrando, em Mato Cão, no dia dos meus anos, a presença do então maj art José Faia Pires Correia, oficial de operações do BART 3873 (Bambadinca, 1971/74) (Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 23 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9647: Blogoterapia (202): Louvo e peço a benção de quem vela por nós (Ana Paula Ferreira, filha do ex-1º cabo Fernando Ferreira, o cabo 14, da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió e Cachil, 1964/66)

Guiné 63/74 - P9650: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (15): Promessas

1. Em mensagem do dia 19 de Março de 2012 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:

Outras memórias da minha guerra (15)

Promessas

Aproxima-se o fim do ano de 1966. Já é noite escura. Ela saiu da fábrica de papel e em passadas fortes vai directamente para casa. Tem 44 anos. Ficou viúva há sete, com 6 filhos, entre 1 e 15 anos. Agora, estão dois na escola primária, dois a trabalhar nas fábricas de cortiça (a Emília de 13 anos e o Francisco de 16) e dois estão na tropa. Mal entra em casa, vê que o Mário está a tirar dúvidas de tabuada à irmã mais nova.

- Vieste cedo, filho! Mandaram-te embora? – perguntou a “Ti Ana do Rusga” ao filho, que está a cumprir o serviço militar. E como ele demorou a responder-lhe, acrescentou:
- És órfão de pai, tens quase ano e meio de tropa e como o teu irmão já está em Angola há uns meses, é justo que te deixem vir para casa, ajudar os teus irmãos.
- Mãe, quantas vezes já lhe disse que vivemos numa ditadura e que a justiça deles não é igual à nossa? – respondeu o Mário.

A Ti Ana estremeceu, olhou preocupada a porta ainda aberta e lamentou-se:
- Lá estás tu, filho, com essas coisas de hereges e do comunismo na cabeça. A Sra Dona Julinha, está sempre a dizer-me que devias largar os livros e que não podes andar com os filhos do Dr. Baptista, porque esses qualquer dia vão morrer na cadeia, como o Ferreira Soares*. Sabes bem que tem de haver ricos e pobres e que se Deus Nosso Senhor nos fez pobres é porque é essa a sua vontade.
- Pois é, mãe, os ricos é que lhes metem essas coisas na cabeça e o nosso padre Inácio também ajuda. – respondeu o filho, que continuou:
- A mãe tem trabalhado sempre e nós, saímos da escola e vamos logo trabalhar. Andamos nas fábricas a fugir dos fiscais. Temos que suportar tudo por uns tostõezitos, porque quem for despedido, não é aceite pelos outros patrões. Temos vivido miseravelmente e a mãe não tem onde cair morta.

E, a seguir, interpela:
- Sabe qual foi a primeira ajuda do Salazar? Foi tirar-nos a Assistência Social e o direito ao abono de família, quando o pai morreu, precisamente na altura que mais precisávamos. Ninguém nos ajuda e ainda nos perseguem no trabalho. Há ricos que não vão para a guerra e nós, órfãos e necessitados, vamo-nos lá juntar os dois, que poderiam ajudar a família. Olhe, mãe, vim mais cedo porque vou mudar para o quartel de Gaia. E de lá seguiremos para a Guiné.

A Ti Ana começou a chorar e a lamentar-se:
- Ai, Nossa Senhora de Fátima que tens de me ajudar! Não me abandones! Cuida dos meus filhos e não os deixes ficar por lá.

E, de repente, reage a gritar:
- Oh meu Deus, que mal eu fiz para me castigares tanto? Eu não te peço para mim! Eu não rezo para ser santa! O que mais te peço é que me ajudes a criar os meus filhos! Tem dó desta desgraçada!

E, voltando-se para o filho, em tom mais sereno, continuou:
- Oh rapaz, tem temor a Deus e tem muito cuidado com o que dizes. Deus não gosta dessas heresias e pode castigar-nos. Olha que não podemos viver sem o respeito pelas autoridades e patrões e a bênção de Deus.
- Mãe, - respondeu o filho - essa gente trata-nos como escravos e ainda temos que lhes agradecer. Eu não posso aceitar isso, toda a vida. E Deus, se existisse, como exemplo supremo de bondade e com poder infinito, não deixaria haver tanta injustiça. Ele não deixaria sofrer e morrer tantos inocentes. E aproveito para lhe dizer já que não vale a pena fazer promessas a Fátima ou a outros santos, por minha causa. Eu, se escapar, não vou cumprir nada. Não acredito nesses “negócios”.

Estávamos na Quaresma de 1967. O Mário saiu de casa, a meio da manhã, sem se despedir. Passou pelo cemitério e foi contemplar a foto do pai, aposta numa placa de mármore, sempre acompanhada por lindas flores naturais. Ele não sabia se regressava. Ao recordar o pai, deixou cair algumas lágrimas de saudade e balbuciou:
- Pai, vou para a guerra. Sabia que eu era patriota mas agora não sinto vontade nenhuma de combater quem não me fez mal. Se tiver que matar é para não morrer. Prometo que tudo farei para regressar. O que mais me preocupa é a nossa família que continua destroçada. Vivemos consigo grandes privações mas após a sua morte, as coisas pioraram. Sentimos muito a sua falta.

As lágrimas redobravam, acusando, agora, a manifesta incapacidade e a revolta que sentia, pensando na má sorte que o perseguia. Um turbilhão de questões saltava na sua cabeça:
- Pai, porque quis tantos filhos? Porque acreditou nas promessas do Salazar? Não vê a situação em que ficámos?

As respostas eram evidentes e o Mário parecia estar a ouvi-las:
- Oh rapaz, os filhos são a bênção de Deus. A tua mãe dizia que era pecado evitá-los. Temos que ser tementes a Deus. Mas, não gostas dos teus irmãos? Não os abandones, especialmente os mais novos. - Olha que eu não gostava do Salazar. Morri cedo devido à fome e miséria que passei, em miúdo. Sabes bem disso.

Na Guiné, o Mário esteve muitas vezes debaixo de fogo. E, tal como os outros militares, passava horas e horas em silêncio durante a progressão na mata. Ali, apesar dos momentos intermináveis de tensão, tudo que era afectivamente mais próximo, ocupava-lhe desordenadamente o cérebro. E a questão principal ressaltava a cada momento: será que voltarei a vê-los?

Outras vezes, eram as noites mal dormidas, por tanto pensar ou por tanto e tão grande pesadelo.
Morreram-lhe vários militares amigos e companheiros. Um deles, nos seus próprios braços. Porém, por ele, ninguém sabia o que por lá se passava.
No aquartelamento, sempre se preocupava em escrever para casa e para os amigos, enviando fotografias, preferencialmente à civil, e contando sempre que estava a passar umas ricas férias.


Quando se aproximou o 13 de Maio de 1969, já os dois filhos mais velhos da Ti Ana haviam chegado sãos e salvos. Agora era preciso pagar as promessas. A Ti Ana vivia dias felizes, de bem com Deus e com todos os santos, a quem prometera sacrifícios até ao fim da sua vida. De sua casa partiram em conjunto mais de 20 pessoas, com destino a Fátima, a pé. Entre elas, seguiam vários jovens vestidos de camuflado como o faziam lá na guerra, nas Operações Militares. Um deles, estava numa cadeira de rodas. O Mário, que cumpria a sua promessa pela negativa, abeirou-se do rapaz e perguntou:
- Também vais até Fátima?

Ele respondeu:
- Sim, com ajuda da malta e da N.ª S.ª de Fátima que, graças a ela, aqui estou salvo, lá chegarei. E tu, não vais?
- Eu, não. Não fiz promessas e tive sorte. Pelo contrário, tive amigos que lá ficaram e tinham prometido ir a Fátima, Arcozelo, Peneda e Sameiro.
- Pois, tiveste sorte, é porque alguém pediu muito por ti. – respondeu o rapaz

Vinte e cinco anos depois, a Ti Ana, já com uns 70 e tal anos, deixou de poder cumprir a promessa, indo a pé. Confessou a sua impossibilidade ao padre das Missões, onde passou a colaborar, e “renegociou” as suas Promessas: passaria a organizar 2 excursões anuais, em autocarro, mobilizando mais de meia centena de seguidores de N.ª S.ª de Fátima.

Com a mãe a aproximar-se dos 90 anos, o Mário resolveu dar-lhe a alegria de ir a Fátima numa dessas excursões, que era, agora, ajudada na organização, pela filha mais nova. Ele gostou imenso daquele ambiente popular e alegre e prometeu ir lá mais vezes.

Quando, estavam em Fátima, o Armindo interpelou a Ti Ana, na frente do Mário:
- Como é que conseguiu que este herege viesse a Fátima?
- Olha, menino, quanto mais velha, mais feliz me sinto. Hoje estou a cumprir a minha promessa mais difícil. Há mais de 40 anos que a estava a dever à N.ª S.ª de Fátima!

Silva da Cart 1689

(*) Sobre o Dr. Carlos Ferreira Soares vd. Blogues:
Histórias da Minha Terra e Sobre o Risco

- Foto do Santuário de Fátima retirada da página Farol de Luz, com a devida vénia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9567: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (14): O Tininho da feira

Guiné 63/74 - P9649: Parabéns a você (394): Braima Djaura, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 19 (Guiné, 1972/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9618: Parabéns a você (393): José Armando F. Almeida, ex-Fur Mil TRMS da CCS/BART 2917 (Guiné, 1970/72)

sexta-feira, 23 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9648: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (4): O stresse pós-traumático de guerra, em estudo na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL)




1. Mensagem de Luís d'Almeida Viçoso, Investigador Assistente na Universidade Autónoma de Lisboa, deixada no nosso Facebook, hoje, dia 23 de Março de 2012:

Exmos. Senhores,

Em colaboração com o CEAMPS (Dr. António Correia e Dr. Carlos Anunciação), encontra-se o departamento de Psicologia da Universidade Autónoma de Lisboa a conduzir um estudo que abrange a população Ex-COMBATENTE BEM COMO A CIVIL*.

Venho por este meio solicitar se nos poderiam auxiliar, nomeadamente de duas formas:

(i) a publicação na vossa página do facebook do pedido de colaboração abaixo exposto;

(ii) assim como a possibilidade de colocação do mesmo num espaço visível da vossa página web, dado o alcance que ela tem junto dos ex-combatentes.

Qualquer pedido adicional de esclarecimentos não hesitem em me contactar;

Atenciosamente;
Dr. Luís Viçoso

2. Pedido de colaboração (texto):


Exmo.(a) Senhor(a)

No seguimento de uma parceria levada a cabo pela Liga dos Combatentes (LC) com a Associação Nacional dos Prisioneiros de Guerra (ANPG) e o Departamento de Psicologia e Sociologia da Universidade Autónoma de Lisboa (DPS/UAL), encontra-se a decorrer um estudo que abrange todo o espaço Lusófono.

O seu objectivo é o de tentar compreender de que forma a experiência de guerra, ou de um outro acontecimento traumático, influencia a forma de se ver a si mesmo e a forma de lidar com os problemas, pretendemos contar com a sua preciosa colaboração através do preenchimento do questionário on-line que se aplique á sua situação pessoal!

Tente ser o mais sincero possível nas suas respostas, pois não existem respostas certas ou erradas estando seguro de que serão sempre salvaguardados o anonimato da identidade e a confidencialidade de todos os dados fornecidos.

Se é Ex-Combatente siga o link: https://www.surveymonkey.com/s/Ex_Combatentes

No caso de população Civil (Não Ex-Combatente): https://www.surveymonkey.com/s/Pop_Civil
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9378: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (3): O stresse pós-traumático de guerra, em estudo da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), em colaboração com a Liga dos Combatentes (Hélder Sousa / João Hipólito)

Guiné 63/74 - P9647: Blogoterapia (202): Louvo e peço a benção de quem vela por nós (Ana Paula Ferreira, filha do ex-1º cabo Fernando Ferreira, o cabo 14, da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió e Cachil, 1964/66)

1. Mensagem da nossa amiga Ana Paula Ferreira*, filha do ex-1.º Cabo Fernando Ferreira (mais conhecido por Cabo 14, da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió e Cachil, 1964/66) [, foto à esquerda], com data de 16 de Março de 2012:

Peço verdadeiras desculpas por não seguir o protocolo, que só existe para facilitar a comunicação entre todos. Tenho lido vários postes. Vivo em Braga e aqui existe uma "subsidiária" da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra. Deixo o meu apelo: não hesitem recorrer a esta associação.

Em primeiro lugar,  a minha mãe recebeu mil e tal euros, pelo tempo que o meu pai passou na Guiné (para ela, uma verdadeira fortuna). Temos também, como sócios, à nossa disposição e por 10 Euros, psicólogo, psiquiatra e assistência jurídica. Eu tenho usufruído da ajuda de um psiquiatra, que, quando lhe falo da Guiné, não tenho que esmiuçar. Posso ficar calada. Ele sabe do que falo e meus amigos, eu nunca estive na Guiné (isto só conseguiria ser explicado com postes  anteriores).

Louvo e peço a benção de quem vela por nós, pelo trabalho exaustivo que fazem por todos nós, veteranos e filhos de veteranos. A mim trouxeram-me o conforto da partilha (de forma detalhada também): tentei, em vão, como já disse anteriormente, e, agradeço do fundo do coração, a quem retransmitiu a mensagem que enviei, comunicar com os colegas do meu pai. Os que atenderam o telefone... são almas tristes e frustradas: os filhos abandonam sem compreender ou então nem sequer admitem terem estado onde estiveram, na altura em que estiveram.

Lamento profundamente a falta de ajuda que estes homens tiveram. Ou continuam a ter. Nem todos têm um computador, ou a alma gentil de alguém que os guie por estas terras menos conhecidas e muito menos perigosas do que algumas vezes enfrentaram, mas a ingratidão e ignorância grassam e asfixiam. Sei que não tenho de dizer mais.

Concluo. A todos aqueles que se julgam ignorados: Não são e nunca o serão,  enquanto pessoas como eu existirem... e são muitas.

A todos os que desistiram e amarguram: Há outros como vocês, que falam do mesmo, queixam-se do mesmo, acreditem, não estão sozinhos. Nunca estarão.

Vivam todos aqueles que,  obrigados,  viram as suas tvidas ransformadas para sempre, sem recurso, nem apelo. Bem hajam os que nunca aceitaram a morte.

Os meus cumprimentos mais respeitosos,

Ana Paula Ferreira, filha de Fernando das Neves Ferreira , intrépido Cabo 14, cujo coração desistiu a 23 de Janeiro de 1991, com apenas 48 anos. Saúdo-te pai e todos os teus colegas de armas e de coração. Alguns de vocês ainda por aí, mas sem quererem "falar no assunto". Eu sei. Dói. A mim também. De forma diferente, já sei, não estive no mato. De corpo e alma, não, só de alma.

Bem hajam.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7731: Blogoterapia (176): Assinar a petição dos ex-combatentes e lembrar tempos difíceis de meu pai (Ana Paula Ferreira)

Vd. último poste da série de 16 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9615: Blogoterapia (201): De Nova Iorque com saudade e camarigagem (João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/66)

Guiné 63/74 - P9646: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (22): A guerra das vacas


1.   O nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem. 


A Guerra das Vacas

Acreditem! É pura verdade! 

A C. Caç. 675 foi (e ainda é), sem sombra de dúvida, uma unidade militar fora do comum; não me canso de o afirmar com a certeza de que era mesmo assim. 

Fomos a unidade do mato mais badalada em toda a Guiné entre 1964 e 1966. Com grande frequência, os relatórios das nossas operações eram mandados distribuir por todas as unidades operacionais para que “aprendessem” a minúcia, a inteligência, a destreza e a perfeição com que as nossas acções eram planeadas e executadas. O mérito, porém, era, indubitavelmente, do excelso capitão que nos comandava; nós tínhamos apenas a missão de executar na companhia dele o que ele sabiamente tinha planeado. 

Na véspera de cada saída, depois do jantar, o capitão apresentava o seu plano aos oficiais que iam actuar, quase sempre com ele, na madrugada seguinte. O planeamento era apresentado sempre com tanta clareza, com tantos pormenores com tanta sapiência que quase não cedia abertura para qualquer comentário da parte dos subalternos. 

Lembro-me que na vésprea da nossa primeira e ousada “visita” à célebre base de Sambuiá – ocorreu dia 5 de Janeiro de 1965 – ele transmitiu-nos os detalhes da operação; quanto ao regresso declarou: - “agora ou as viaturas vão recolher nos onde nos largaram ou voltamos a pé até Cufeu; na 1ª hipótese teremos, com toda a certeza, numa mina, sempre perigosa, no percurso”. 

Tomei a palavra, declarando apenas: 

- Regressamos a pé até Cufeu! 

- E o pessoal aguenta? Perguntou o capitão plenamente consciente das dificuldades daquela caminhada que se sabia ser longa e penosa. 

- As nossas vidas estão em jogo! Em meu entender, aguentaremos mais esse esforço desmesurado... custe o que custar! Mas seremos recompensados! 

Na verdade o Homem tinha razão! 

À última hora, pouco antes da chegada a Cufeu, o Capitão ordenou que a coluna de viaturas avançasse cerca de 1km; a mina lá estava à nossa espera mas não foi acionada pelas viaturas. Como não dispúnhamos de sapadores, o capitão fê-la deflagrar no local. 

O esforço para chegar às viaturas foi enorme, descomunal; o cansaço foi tal que o soldado “Dentinho” de seu nome Fernando Marques da Silva, caiu desfalecido com princípio de insolação e foi transportado em maca; felizmente já faltava pouco para entrar nas viaturas. 

Não resisto a contar mais um caso para que todos possam aquilatar das imensas qualidades do enorme Cap. Tomé Pinto. 

O inimigo já havia sido desalojado da região de Sanjalo, a ponta nordeste da nossa zona; mas eles tinham necessidade imperiosa daquela base de apoio; reocuparam-na e começaram a “flagelar-nos” sempre que passávamos na estrada de Farim. Os tiros eram disparados a grande distância e sempre entre o rio Caur e o rio salaquinhé, limite este da nossa zona. 

Temendo que algum dia eles viessem a disparar mais de perto, causando estragos, eu sugeri ao capitão que “batêssemos” a região a partir da fronteira e um G. Comb. faria a espera na berma daquela estrada; eles cairiam na armadilha! 

O capitão respondeu com poucas mas sábias palavras: 


- “Ainda não é hora! Ainda não entrei na cabeça daquele gajo!” (“gajo” talvez seja da minha lavra). 

Cerca de duas semanas mais tarde ele planeou uma emboscada perfeita a qual foi superiormente executada: os nossos soldados tiveram sangue frio e paciência; “permitiram” que o inimigo entrasse na chamada zona de morte: Cairam que nem tordos!
Voltemos ao princípio. 

Poderíamos até não ser absolutamente a melhor companhia entre as melhores mas no mínimo éramos diferentes. Vejamos: pelo que realizámos no mato, em combate; na recuperação e apoio às populações que “fizemos” regressar do Senegal; pela pavimentação de ruas, bebeficiação de estradas, reconstrução de pontes; construção de duas pistas de aterragem; a disciplina, o aprumo e o respeito manifestados pelos nossos soldados em toda a parte; pelas aulas regimentais que funcionavam nos intervalos da guerra – e mais de 30 militares fizeram a 4ª classe de adultos em Farim; limpámos completamente a nossa zona (400km2) e – cereja no topo do bolo! – pelo que temos vindo a realizar depois da passagem à disponibilidade, especialmente as confraternizações anuais (com ínicio logo em 1967, não falhando ano algum) bem como as mini-reuniões; a colocação de lápides nas sepulturas dos nossos mortos (dos que perderam a vida em combate e dos que já morreram e vão falecendo no pós-guerra). Enfim! Continuamos a ser os autênticos elos de aço fino daquela corrente simbolizada no nosso emblema, aço que o tempo ainda não conseguiu corroer. 

Arribamos à Guiné a 13 de Maio de 1964, numa época de descrença generalizada; só se falava de mortes ocorridas mesmo dentro de quarteis; poucos penetravam profundamente no mato. 

As únicas unidades de que se falava pela positiva eram: o batalhão 645, os célebres “águias negras” sediado no Oio e o Bat. Cav. 490, principalmente pela muito propalada mas inconsequente “batalha do Como” a qual já foi apelidada de “batalha sem fim”. 

Desembarcámos em Binta em 29 de junho e ao anoitecer assinalámos a nossa presença incendiando umas “moranças” abandonadas a 3/4km do quartel – fogueiras de S. Pedro! 

A guerra propriamente dita iniciou-se a 3 de Julho. No dia seguinte, e com base também em informações colhidas na véspera na aldeia de S. João (mas não só) colocámos a pedra-chave na nossa actuação com o cerco e destruição da tabanca de Leuquetó, onde os chefes guerrilheiros da zona estavam reunidos para planear “o que haviam de fazer à tropa de Binta”; dali trouxemos 39 prisioneiros. 

A partir daqui tudo se tormou... quase... mais fácil! Ninguém mais segurou a C. Caç. 675!
Apelidaram-nos de “tropa do capitão do quadrado” porque nos deslocávamos pelas matas quase sempre “em quadrado”; tínhamos poder de fogo em todas as direcções e “os turras não conseguiam descortinar qual seria o nosso objectivo. 

No meio da mata, a deslocação de dois G. Comb. “em quadrado” não era tarefa fácil... mas era eficazmente segura. Os nossos soldados da frente do quadrado abriam “apenas” dezasseis trilhos durante 20, 30 e mais km num só dia. Apesar de tudo, a eficiência e segurança do nosso dispositivo era tal que (todos o reconhecíamos), por vezes eram os próprios soldados que, insensíveis ao cansaço, sugeriam que se “passasse ao quadrado” mesmo quando os oficiais entendiam que não seria “ainda” necessário. Em escassos segundos e sem confusão passava-se da “bicha de pirilau” ao quadrado – tal era o treino e a vontade de andar com a máxima segurança. 

A fama do nosso quadrado foi tal que até o insigne D. Nuno Álvares Pereira teve conhecimento dele e utilizou-o com excelência na famosa e ousada batalha de Aljubarrota de que tanto nos orgulhamos; até o Condestável aprendeu com a C. Caç. 675! 

Até fins de Junho de 1964, o inimigo deslocava-se livre e impunemente dentro da zona que veio a ser-nos confiada; durante o mês de Julho, apesar da nossa entrada de rompante e da nossa vontade férrea e indomável de inverter a situação a favor das n.t. (nossas tropas) o “inimigo” conseguiu, apesar de tudo, ter mais iniciativa de fogo do que nós (disparou primeiro mais vezes); a partir do início de Agosto, a iniciativa de combate passou definitivamente para o nosso lado; eles perderam terreno a olhos vistos e, em breve, perderam-no na totalidade. 

Depois de um ano de Guiné, circulávamos “livremente” na zona... sempre com as cautelas devidas. Os nossos soldados asseveravam garbosamente: “inimigo cá tem! 

Daqui se depreende que montámos muitos emboscadas – algumas com sucesso notório -; atacávamos de surpresa os seus esconderijos, utilizando “as suas armas” (a sua maneira de agir); cercávamos o objectivo (tabanca ou acampamento) sem que se apercebessem da nossa aproximação – quando abriam os olhos... já a casa ardia. 

Só assim foi possível afirmar, convictamente, que, se alguém aterrasse no local mais remoto do nosso terreno, nós já ali tínhamos estado ou tínhamos passado 30 ou 40m ao lado. 

Devemos informar que naquela época, e na nossa zona em especial, não havia por onde escolher: quem não pretendia a guerra (e eram muitos) refugiou-se no Senegal; os restantes estavam predispostos a matar ou morrer; não havia meio termo, o que, de certo modo, facilitava a nossa tarefa; no entanto havia para nós um ponto de honra: em mulheres ou crianças bem como em homens desarmados ninguém atirava. 

Naquele tempo, na Guiné, era uso (ou abuso) dar nomes pomposos a algumas ações militares banais. As nossas inúmeras batidas e patrulhas, golpes de mão e emboscadas não eram geralmente “batizadas”; só em casos especiais ou quando atuávamos em conjunto com outras unidades fora da nossa zona era dado nome a tais operações; no nosso território ninguém atuou mesmo connosco. 

Depois deste longo introito, hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer nome – nem houve tempo para tal! Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt. do navio Lira que patrulhava o Cachéu naquela data, chamou-lhe “operação vaca”, nome que aceitámos... à posteriori. 

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em Março de 1965. 

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu G. Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois G. Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage. 

O Cap. Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente: 

- Sr. Capitão! Sr. Capitão! 

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam. 

- O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio. 

A proposta partia do Comdt. Baptista Lopes, um grande amigo da C. Caç. 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada, por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a M. Iglésias e o A. Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes! 

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva. 

O cap. Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas. 

- Por vaca... eu vou até ao inferno! 

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (lancha de desembarque médio) para cruzar o rio... na ponta da unha. 

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?! 

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava. 

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas. 

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa. 

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda! 

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A C. Caç. 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhan. 

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”. 

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela C. Caç. 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela C. Cav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres! 

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança. 

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt. do Bat. Cav. 490, a equipa de futebol da C. Cav. 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cachéu. 

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da C. Caç. 675 e da C. Cav. 487; os infantes triunfaram por concludentes 3x0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira! 

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armázens de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar... a qualquer preço... e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes! 

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na C. Caç. 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo... para ele... vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”! 

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas). 

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “aguardente”! (era percetível) Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguem que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto) embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. 

Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”! 

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt. do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística! 

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cachéu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt. do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “operação vaca”. 

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt. B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser. 

Uns dias mais tarde a C. Caç. 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas; não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades; exigiam apenas 42,5 vacas! 

O cap. Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cáculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia; como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap. Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu. 

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou! 

O próximo comandante, R.V.V. e Sa´Vaz, a patrulhar o Cachéu trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza. 

O cap. Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na! 

Por fim o comdt. Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): - A C. Caç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava). 

O cap. Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer” não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido. 

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não. 

A ganadaria da C. Caç. 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata. 

Fez-nos um jeitão do caraças! 





Lisboa, 20 de Março de 2012
Belmiro Tavares
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Vd. último poste da série de 12 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9476: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (21): O Oio, Visita de cortesia