1. O nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem.
A Guerra das Vacas
Acreditem! É pura verdade!
A C. Caç. 675 foi (e ainda é), sem sombra de dúvida, uma unidade militar fora do comum; não me canso de o afirmar com a certeza de que era mesmo assim.
Fomos a unidade do mato mais badalada em toda a Guiné entre 1964 e 1966. Com grande frequência, os relatórios das nossas operações eram mandados distribuir por todas as unidades operacionais para que “aprendessem” a minúcia, a inteligência, a destreza e a perfeição com que as nossas acções eram planeadas e executadas. O mérito, porém, era, indubitavelmente, do excelso capitão que nos comandava; nós tínhamos apenas a missão de executar na companhia dele o que ele sabiamente tinha planeado.
Na véspera de cada saída, depois do jantar, o capitão apresentava o seu plano aos oficiais que iam actuar, quase sempre com ele, na madrugada seguinte. O planeamento era apresentado sempre com tanta clareza, com tantos pormenores com tanta sapiência que quase não cedia abertura para qualquer comentário da parte dos subalternos.
Lembro-me que na vésprea da nossa primeira e ousada “visita” à célebre base de Sambuiá – ocorreu dia 5 de Janeiro de 1965 – ele transmitiu-nos os detalhes da operação; quanto ao regresso declarou: - “agora ou as viaturas vão recolher nos onde nos largaram ou voltamos a pé até Cufeu; na 1ª hipótese teremos, com toda a certeza, numa mina, sempre perigosa, no percurso”.
Tomei a palavra, declarando apenas:
- Regressamos a pé até Cufeu!
- E o pessoal aguenta? Perguntou o capitão plenamente consciente das dificuldades daquela caminhada que se sabia ser longa e penosa.
- As nossas vidas estão em jogo! Em meu entender, aguentaremos mais esse esforço desmesurado... custe o que custar! Mas seremos recompensados!
Na verdade o Homem tinha razão!
À última hora, pouco antes da chegada a Cufeu, o Capitão ordenou que a coluna de viaturas avançasse cerca de 1km; a mina lá estava à nossa espera mas não foi acionada pelas viaturas. Como não dispúnhamos de sapadores, o capitão fê-la deflagrar no local.
O esforço para chegar às viaturas foi enorme, descomunal; o cansaço foi tal que o soldado “Dentinho” de seu nome Fernando Marques da Silva, caiu desfalecido com princípio de insolação e foi transportado em maca; felizmente já faltava pouco para entrar nas viaturas.
Não resisto a contar mais um caso para que todos possam aquilatar das imensas qualidades do enorme Cap. Tomé Pinto.
O inimigo já havia sido desalojado da região de Sanjalo, a ponta nordeste da nossa zona; mas eles tinham necessidade imperiosa daquela base de apoio; reocuparam-na e começaram a “flagelar-nos” sempre que passávamos na estrada de Farim. Os tiros eram disparados a grande distância e sempre entre o rio Caur e o rio salaquinhé, limite este da nossa zona.
Temendo que algum dia eles viessem a disparar mais de perto, causando estragos, eu sugeri ao capitão que “batêssemos” a região a partir da fronteira e um G. Comb. faria a espera na berma daquela estrada; eles cairiam na armadilha!
O capitão respondeu com poucas mas sábias palavras:
- “Ainda não é hora! Ainda não entrei na cabeça daquele gajo!” (“gajo” talvez seja da minha lavra).
Cerca de duas semanas mais tarde ele planeou uma emboscada perfeita a qual foi superiormente executada: os nossos soldados tiveram sangue frio e paciência; “permitiram” que o inimigo entrasse na chamada zona de morte: Cairam que nem tordos!
Voltemos ao princípio.
Poderíamos até não ser absolutamente a melhor companhia entre as melhores mas no mínimo éramos diferentes. Vejamos: pelo que realizámos no mato, em combate; na recuperação e apoio às populações que “fizemos” regressar do Senegal; pela pavimentação de ruas, bebeficiação de estradas, reconstrução de pontes; construção de duas pistas de aterragem; a disciplina, o aprumo e o respeito manifestados pelos nossos soldados em toda a parte; pelas aulas regimentais que funcionavam nos intervalos da guerra – e mais de 30 militares fizeram a 4ª classe de adultos em Farim; limpámos completamente a nossa zona (400km2) e – cereja no topo do bolo! – pelo que temos vindo a realizar depois da passagem à disponibilidade, especialmente as confraternizações anuais (com ínicio logo em 1967, não falhando ano algum) bem como as mini-reuniões; a colocação de lápides nas sepulturas dos nossos mortos (dos que perderam a vida em combate e dos que já morreram e vão falecendo no pós-guerra). Enfim! Continuamos a ser os autênticos elos de aço fino daquela corrente simbolizada no nosso emblema, aço que o tempo ainda não conseguiu corroer.
Arribamos à Guiné a 13 de Maio de 1964, numa época de descrença generalizada; só se falava de mortes ocorridas mesmo dentro de quarteis; poucos penetravam profundamente no mato.
As únicas unidades de que se falava pela positiva eram: o batalhão 645, os célebres “águias negras” sediado no Oio e o Bat. Cav. 490, principalmente pela muito propalada mas inconsequente “batalha do Como” a qual já foi apelidada de “batalha sem fim”.
Desembarcámos em Binta em 29 de junho e ao anoitecer assinalámos a nossa presença incendiando umas “moranças” abandonadas a 3/4km do quartel – fogueiras de S. Pedro!
A guerra propriamente dita iniciou-se a 3 de Julho. No dia seguinte, e com base também em informações colhidas na véspera na aldeia de S. João (mas não só) colocámos a pedra-chave na nossa actuação com o cerco e destruição da tabanca de Leuquetó, onde os chefes guerrilheiros da zona estavam reunidos para planear “o que haviam de fazer à tropa de Binta”; dali trouxemos 39 prisioneiros.
A partir daqui tudo se tormou... quase... mais fácil! Ninguém mais segurou a C. Caç. 675!
Apelidaram-nos de “tropa do capitão do quadrado” porque nos deslocávamos pelas matas quase sempre “em quadrado”; tínhamos poder de fogo em todas as direcções e “os turras não conseguiam descortinar qual seria o nosso objectivo.
No meio da mata, a deslocação de dois G. Comb. “em quadrado” não era tarefa fácil... mas era eficazmente segura. Os nossos soldados da frente do quadrado abriam “apenas” dezasseis trilhos durante 20, 30 e mais km num só dia. Apesar de tudo, a eficiência e segurança do nosso dispositivo era tal que (todos o reconhecíamos), por vezes eram os próprios soldados que, insensíveis ao cansaço, sugeriam que se “passasse ao quadrado” mesmo quando os oficiais entendiam que não seria “ainda” necessário. Em escassos segundos e sem confusão passava-se da “bicha de pirilau” ao quadrado – tal era o treino e a vontade de andar com a máxima segurança.
A fama do nosso quadrado foi tal que até o insigne D. Nuno Álvares Pereira teve conhecimento dele e utilizou-o com excelência na famosa e ousada batalha de Aljubarrota de que tanto nos orgulhamos; até o Condestável aprendeu com a C. Caç. 675!
Até fins de Junho de 1964, o inimigo deslocava-se livre e impunemente dentro da zona que veio a ser-nos confiada; durante o mês de Julho, apesar da nossa entrada de rompante e da nossa vontade férrea e indomável de inverter a situação a favor das n.t. (nossas tropas) o “inimigo” conseguiu, apesar de tudo, ter mais iniciativa de fogo do que nós (disparou primeiro mais vezes); a partir do início de Agosto, a iniciativa de combate passou definitivamente para o nosso lado; eles perderam terreno a olhos vistos e, em breve, perderam-no na totalidade.
Depois de um ano de Guiné, circulávamos “livremente” na zona... sempre com as cautelas devidas. Os nossos soldados asseveravam garbosamente: “inimigo cá tem!
Daqui se depreende que montámos muitos emboscadas – algumas com sucesso notório -; atacávamos de surpresa os seus esconderijos, utilizando “as suas armas” (a sua maneira de agir); cercávamos o objectivo (tabanca ou acampamento) sem que se apercebessem da nossa aproximação – quando abriam os olhos... já a casa ardia.
Só assim foi possível afirmar, convictamente, que, se alguém aterrasse no local mais remoto do nosso terreno, nós já ali tínhamos estado ou tínhamos passado 30 ou 40m ao lado.
Devemos informar que naquela época, e na nossa zona em especial, não havia por onde escolher: quem não pretendia a guerra (e eram muitos) refugiou-se no Senegal; os restantes estavam predispostos a matar ou morrer; não havia meio termo, o que, de certo modo, facilitava a nossa tarefa; no entanto havia para nós um ponto de honra: em mulheres ou crianças bem como em homens desarmados ninguém atirava.
Naquele tempo, na Guiné, era uso (ou abuso) dar nomes pomposos a algumas ações militares banais. As nossas inúmeras batidas e patrulhas, golpes de mão e emboscadas não eram geralmente “batizadas”; só em casos especiais ou quando atuávamos em conjunto com outras unidades fora da nossa zona era dado nome a tais operações; no nosso território ninguém atuou mesmo connosco.
Depois deste longo introito, hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer nome – nem houve tempo para tal! Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt. do navio Lira que patrulhava o Cachéu naquela data, chamou-lhe “operação vaca”, nome que aceitámos... à posteriori.
Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em Março de 1965.
Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu G. Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois G. Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.
O Cap. Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:
- Sr. Capitão! Sr. Capitão!
Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.
- O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.
A proposta partia do Comdt. Baptista Lopes, um grande amigo da C. Caç. 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada, por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a M. Iglésias e o A. Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!
Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.
O cap. Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.
- Por vaca... eu vou até ao inferno!
Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (lancha de desembarque médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.
Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!
Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.
Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.
Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.
Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!
Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A C. Caç. 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhan.
Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.
As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela C. Caç. 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela C. Cav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!
Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.
Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt. do Bat. Cav. 490, a equipa de futebol da C. Cav. 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cachéu.
A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da C. Caç. 675 e da C. Cav. 487; os infantes triunfaram por concludentes 3x0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!
Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armázens de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar... a qualquer preço... e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!
Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na C. Caç. 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo... para ele... vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!
Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).
Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “aguardente”! (era percetível) Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguem que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto) embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela.
Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!
Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt. do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!
A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cachéu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt. do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “operação vaca”.
Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt. B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.
Uns dias mais tarde a C. Caç. 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas; não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades; exigiam apenas 42,5 vacas!
O cap. Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cáculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia; como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap. Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.
A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!
O próximo comandante, R.V.V. e Sa´Vaz, a patrulhar o Cachéu trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.
O cap. Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!
Por fim o comdt. Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): - A C. Caç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).
O cap. Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer” não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.
Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.
A ganadaria da C. Caç. 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.
Fez-nos um jeitão do caraças!
Lisboa, 20 de Março de 2012
Belmiro Tavares
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Vd. último poste da série de 12 de Fevereiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9476: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (21): O Oio, Visita de cortesia