terça-feira, 23 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11862: Bom ou mau tempo na bolanha (21): O medo na guerra (Tony Borié)

Vigésimo primeiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O primeiro sintoma, ou a primeira reacção de um combatente em cenário de guerra, quando ouvia uma explosão ou o som de um disparo de qualquer arma, era única e simplesmente MEDO!

Sim, medo. Alguns, como era o caso do Cifra, fugiam para o abrigo mais próximo, muitas vezes encolhia-se num canto, com as mãos na cara ou na cabeça, esperando que o som dos tiros e da explosões das granadas terminassem. Outros gritavam frases sem qualquer senso, disparavam em qualquer direcção onde pensavam que os guerrilheiros se encontravam, tentavam não se acomodar, mas toda essa movimentação, gritos e gestos, era sem qualquer dúvida, o querer afugentar o medo que naquela altura sentiam, essa é a verdade de quem lá andou, presenciou estas malditas cenas e viu os rostos desfigurados de alguns companheiros que queriam demonstrar alguma coragem, mas naquele momento, atrapalhados, com o medo, claro, tinham dificuldade em trocar o carregador da G-3, quando estava vazio.

É dos livros, muitos heróis foram-no, porque o medo e o desespero fizeram com que fossem buscar forças e coragem que nunca souberam onde, para ultrapassar essas dificuldades de medo, que na altura sentiam.

É por isso que eu aprecio os textos de alguns dos nossos amigos antigos combatentes, que escrevem neste blogue, que nos contam algumas passagens verdadeiras do que lá passaram, mas contam-nas com um certo humor, com uma certa graça, tentam sempre pôr um pouquinho de boa disposição em cenas, que às vezes são de arrepiar.

O Cifra não quer abusar do precioso espaço deste blogue, porque daqui a pouco o bom do Carlos Vinhal vai dizer que já tem mais de quatro páginas e umas tantas fotos ou “rascunhos” a mais, o Luís Graça é capaz de pensar que este blogue não é só do Cifra, pois tem que o repartir com mais umas centenas de companheiros, isto é só o Cifra que diz, pois o Cifra, nunca ouviu um só lamúria da boca de ambos, pelo contrário, mas não pode deixar de exemplificar algumas passagens de alguns companheiros, como por exemplo:
O companheiro Jorge Cabral, o “nosso alfero”, no meio daquele ambiente, com muito poucas condições para um ser humano sobreviver, dizia que tomava “banho à Fula”, falava um pouco “à Fula” mas sabia que ressonava “à Fula” e com o maior humor do mundo, comia numa mesa “ensebada” e quando lhe perguntaram se sabia falar Fula, ele respondeu que em Fula... só ressonava!.

O Veríssimo Ferreira, para não dizer que era ele, que andou por lá a calcar bolanhas, tarrafo e savanas, a certa altura diz que o seu relógio “Cauny Prima Swiss, 25 rubis”, que até era “waterproof”, pois tinha que realmente ser, passeou com ele por Bissau, Mansoa, Cutia, Mansabá, Bissorã, Pelundo, Teixeira Pinto, Cuntima, Canjambari, Quinhamel e Farim, e tinha combatido em Buro, Berecobá, Biribão, Jolmete e K3.

O José Manuel Matos Dinis, que muito originalmente se assina com as letras “J.D.”, diz numa altura de alerta, em que as forças militares iriam entrar em acção, que na sua frente aparece um “contra-guerrilheiro”, empunhando a espingarda automática G-3, com o cinturão a pender da cintura, mas sem tapar o órgão genital, que era um bravo combatente da província do Minho remoto de Perre, e que lhe gritava, “eles estão cá dentro”...!


E para terminar, queria só lembrar esta passagem real, vivida num momento de desespero, contada com toda a sinceridade, que o nosso querido companheiro de armas e de profissão, Henrique Cerqueira descreve: “Nós só tínhamos três meses de mato e como é natural nos primeiros momentos de ataque pelo menos deitei-me no chão e só não escavei um buraco porque não sabia se devia usar as mãos para escavar... ou tapar a cabeça. Eis que passados alguns eternos minutos, olho para o lado e vejo o meu Inhata, a municiar a minha arma e a preparar-se para disparar. Aí senti alguma “vergonha”, saquei-lhe a arma das suas mãos e toca a disparar e o Inhata sempre a meu lado a municiar. Este, numa breve acalmia do ataque, teve o cuidado de me confortar dizendo que já estava habituado e que só queria municiar a arma. Eu acho que ele se apercebeu que inicialmente eu estava era todo acagaçado e na verdade estava mesmo”.

Creio, que mais sinceridade nesta descrição não pode existir.

Mas também existem cenas com alguma ternura, de mulheres que por lá passaram e que sofreram o clima, calcaram aquela terra vermelha, ouviram o som dos tiros e o desespero dos seus maridos e companheiros, mas tinham alguma coragem, estavam a seu lado, a dar-lhe o conforto possível, portanto também sofreram a guerra, como a esposa do Henrique, a sua amada Ni, que a certa altura diz: “Quando chegamos a Bissorã e entro na nossa “casa”, fiquei espantada pois estava decorada com os assentos de um carocha, as camas da tropa, tínhamos um frigorífico a petróleo, a casa de banho, eram dois bidões de chapa...!

Tony Borie,
Julho de 2013
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11857: Bom ou mau tempo na bolanha (20): O Cifra encontra os seus amigos (Toni Borié)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11861: Ser solidário (147): Na última viagem ao Cacheu encontrei a minha amiga Mary doente e a precisar de ajuda (Carvalhido da Ponte / Sousa de Castro)

1. Mensagem do nosso camarada Sousa de Castro (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74), com data de hoje 22 de Julho de 2013:

Caríssimos amigos,

No Facebook vi esta mensagem do nosso amigo Luís Carvalhido da Ponte, que regressou de mais uma visita à Guiné,  mais precisamente da região do Cacheu, que me deixou apreensivo, a quem peço desde já alguma referência para poder ajudar. Para além disso gostaria que fosse publicado no nosso blogue.

Convém lembrar que o Carvalhido da Ponte foi Furriel Enfermeiro na CART 3494 e também professor das crianças do Xime em 1972/74, é presidente da geminação de Viana do Castelo com a Vila de Cacheu,  tendo aqui desenvolvido a criação da maternidade existente e apoio à mulher Guineense.

Assim, para quem puder participar na ajuda à Mary, pode fazê-lo da seguinte forma:

1º - Transferir o que muito bem entender para a conta da ACGB NIB: 0036 0056 9910 0155 9387 9

2º - Logo-logo enviar para o endereço eletrónico acgb.geral@gmail.com uma mensagem identificando a transferência.  

Melhores cumprimentos, 
A. Castro


Carvalhido da Ponte com a Mary


2. Mensagem do camarada Luís Carvalhido da Ponte:

CACHEU

Cheguei ontem de Cacheu. 
Estava abafado o tempo. Eu vim também de semblante pesado. 

Em 2000 conheci a Mary. Tinha 33 anos e 7 filhos. Publiquei alguns poemas sobre esta jovem felupe, no meu penúltimo livro (Ora di djunta mon tchiga). 

Cinco anos depois tinha 38 anos e 11 filhos. E continuava bonita ainda que um pouco desfolhada por tanta florescência.

Dançava como eu nunca vira ninguém dançar. A batida ritmada dos pés descalços sobra a terra poeirenta, as contorções do corpo em rituais de sedução e a alegria dos movimentos eram tais que até as árvores pareciam ternurar-se para além das nuvens, nos ares de Fernão Capelo Gaivota, onde os sonhos se constroem.

Mais tarde, uma associação de mulheres nomeou-a sua Presidente e o seu país enviou-a até Espanha para aprender coisas necessárias ao seu mister. Via-a, em março deste ano, alegre e já um pouco europeizada.

Entristeci-me um pouquito pois preferia que estivesse um pouco mais culta mas sempre africana. E talvez estivesse. Eu é que não contava com uma Mary diferente. 

Agora estava doente há uns dias. Doía-lhe o corpo. Doía-lhe a barriga. Levei-a a Canchungo, ao meu amigo médico Dr Koumba Iala Bispo. Que a atendeu de imediato. Que a assustou. Tem cancro do ovário e necessita de intervenção urgente. Os 9 filhos vivos e os netos também. 

Zé Luis! Como? Não tenho 200.000 Francos CFa (cerca de 300 €) para a operação, o internamento e os medicamentos. 

E mudou a conversa e perguntou-me pela Lai. E partiu e uma lágrima caiu, solitária, no chão contrito do alpendre do Centro de Recursos.

E prometi-me contar a história. 
Quem sabe? 
Cinco euros daqui, 10 dali... 
Quem sabe?! 

Um abraço
José Carvalhido da Ponte
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11317: Ser solidário (146): Almoço solidário e Assembleia Geral Ordinária da Tabanca Pequena (ONGD), dia 13 de Abril na cidade da Maia (Álvaro Basto)

Guiné 63/74 - P11860: Notas de leitura (504): "Travessia", por Costa Monteiro; "Coisas de África e a Senhora da Veiga" por José Pais (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2013:

Queridos amigos,
É mesmo consolador de vez em quando encontrar em edições de autor verdadeiras joias.
Nada sabia sobre esta portentosa prosa de José Pais “Coisas de África e a Senhora da Veiga”, não me regalava com tão boa literatura ou documento de ficar capaz para a História, desde o Diário do Soldado Inácio Maria Góis como agora.
Pergunto a todos os meus confrades se alguém possui e me pode emprestar “Histórias de guerra: Índia, Angola e Guiné”, que José Pais publicou na Prefácio, tanto quanto sei está esgotado e há muito.
Vou pôr-me em campo, José Pais tem que voltar a ser reeditado, é um dos expoentes da literatura da guerra.

Um abraço do
Mário


“Travessia”, por Costa Monteiro; “Coisas de África e a Senhora da Veiga, por José Pais

Beja Santos

“Travessia”, por Costa Monteiro, Editorial Escritor, 1996, é um livro de contos de um oficial que fez três comissões em África nos três teatros de guerra e mais tarde foi professor no Instituto de Altos Estudos Militares. Justificou este seu primeiro trabalho de pequenas histórias como um modo de ganhar balanço para outras digressões no campo da comunicação escrita. Histórias que nem sempre se inspiram na guerra em si mas graças às oportunidades que teve de contactar com outras terras, civilizações, gentes.

Dedicou quatro contos à Guiné. O primeiro está ligado à elevação de Bafatá a cidade. Descreve este dia de grande ronco, a cidade engalanada, o belo jardim na margem do Geba, não esconde saudades da Sintra de Bafatá, uma frondosa mata onde brotavam puras e frescas as nascentes de água que abasteciam Bafatá. Não esconde, divertido e mordaz, uma crítica: “O administrador fazia repetir, as vezes que fossem necessárias até sair certo, uma manifestação espontânea na qual, parte selecionada da multidão iria romper o cordão de segurança para saudar o homem-grande que vinha da metrópole”. Primeiro chegou o governado, vindo de helicóptero. Depois aterrou em Dakota, era o ministro em pessoa: “A população não resiste. Rompe o cordão de segurança e corre para o avião. Uma menina traz-lhe um ramo de flores. O ministro, comovido, pega na criança ao colo e dá-lhe um beijo”. Seguiram-se discursos, as altas personalidades regressaram a Bissau, a calma e a rotina iam tomar conta de Bafatá.

Ficamos a saber que Costa Monteiro era comandante de esquadrão, posição que o obrigava a uma certa ação psicossocial. Os pedidos eram muitos, um agricultor queria que ele comprasse os ananases da sua plantação, outro pedia-lhe que construísse a casa, foi uma negociação longa e difícil, não tinha chapa de zinco para dar, com carros Panhard não podia ir cortar cibes nem capim, o peticionário acabou por se contentar com dois quilos de arroz. “O Mouraria” é dedicado a uma figura excêntrica de um soldado que por tudo e por nada subia para as antenas ou mastros e ameaçava matar-se se não lhe dessem uma certa e determinada compensação, procurava dar nas vistas com as suas excentricidades. Chegado a Bafatá, subia para a antena do VHF, como ninguém lhe prestou atenção lá desceu encabulado. Normalmente só dava problemas no quartel, durante a atividade operacional portava-se bem, era diligente com a metralhadora Browning. A poucos meses de acabar a comissão, foi destacado para Piche. Acabara de regressar de uma escolta a Buruntuma, foi chamado para limpar umas trincheiras. Já vinha bebido, travou-se de razões com um graduado, a insubordinação não ficou impune. “A prisão em Bissau foi o começo de uma odisseia misturada com uma escalada de atos de indisciplina que acabaram nas enxovias do forte de Elvas. Nascido e criado na marginalidade da rua, incapaz de viver enquadrado por qualquer tipo de disciplina por mais compreensiva que ela fosse, o Mouraria completou assim, no mato e na prisão, cerca de quatro anos de serviço militar”.

São relatos singelos, seguem o fio da memória, não há aqui pretensões de arroubos literários e o resultado é de que temos aqui uma escrita que cumpre o seu dever.

“Coisas de África e a Senhora da Veiga”, por José Pais, edição de autor, 2001, é um grande livro de memórias, tão grande que já ando à procura de outro livro deste coronel que faleceu em Foz Coa em 2006, e que se intitula “Histórias de guerra: Índia, Angola e Guiné ”, Edições Prefácio. São memórias assombrosas de um experimentado oficial do exército que, alferes, foi prisioneiro na Índia, combateu lá para os lados de Nambuangongo, teve depois uma comissão em Cabo Verde e a quarta na Guiné, à frente da CCAÇ 14, feriu-se com gravidade em Farim, seguiram-se três anos de internamento hospitalar.

É uma prosa enxuta, frases económicas e hábeis, cortantes. O desfiar as recordações anda sempre à volta de um núcleo central cuidadosamente demarcado. São narrativas que podem navegar entre o sentimental e a bruteza mais dura que a guerra permite. E parece-me um desperdício, diante desta arquitetura de contos tersos quase agrestes na geometria, resumir prosa de primeiríssima qualidade. Os contos de José Pais justificam recensão abundante, é a única homenagem que se pode prestar a um combatente de grande escrita. Vamos começar por “A Xuxa e o soldado Marquito”, uma tocante história de amor.

O cabo Sila procurou nosso capitão, coisa grossa se passa na tabanca, envolve pessoal da CCAÇ 14, tropa Mandinga, sediada no perímetro de Farim, quartel no sentido habitual do termo não havia: uma arrecadação e um cubículo que servia de gabinete ao capitão, ao primeiro-sargento e a um cabo ajudante na papelada. Os poucos furriéis habitavam numa casa na povoação e os soldados na tabanca. Assim começa a história.

– Então diga Sila. Que se passa?
– Tem mesmo “pobrema” nosso capitão. Tem menininha que gosta mesmo do soldado Marquito e já fugiu de casa do pai três “vez” para ir ter com Marquito!
– Então o que há a fazer é casá-los. Se gostam assim tanto um do outro!?
– Mas, nosso capitão, Xuxa é Fula e Marquito é Mandinga.

E Sila continuou:
– Tem ainda outro “probrema” mais difícil.
– Sim. Diga lá.
– Menininha já casou com sobrinho do “Homem Grande” de Jumbembem e “Homem Grande” veio ontem na coluna para saber o que se passa.

Havia para ali coisa séria e explosiva. Foi chamado Marquito, confirmou tudo mas não tinha três mil pesos para casar com a Xuxa. Chamou-se autoridade religiosa, não havia problema de casar Fula com Mandinga, a questão era devolver o dinheiro ao “Homem Grande” de Jumbembem. À cautela, nosso capitão convocou reunião em toda a tabanca, até o chefe administrativo compareceu. Nosso capitão até cita o Corão. Chegou-se a um acerto, nosso capitão adianta os três mil pesos, Marquito depois pagará em prestações. Nosso capitão, finda a reunião, perguntou a Sila se a reunião tinha corrido bem.

 – Muito bem nosso capitão. Mas agora “vais ter probrema”, “Vais” ter muito soldado a querer casar.

No dia seguinte o primeiro-sargento, alarmado, comunicou que vinte e sete soldados queriam também casar!

Estabeleceram-se umas regras que o general comandante-chefe, Spínola de seu nome, aprovou e casaram-se todos. Só os que ainda não tinham “mujer”.

José Pais puxa bem os cordões ao hílare e ao picaresco. Mas veremos adiante que manobra com mestria os episódios mais dramáticos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11855: Notas de leitura (503): "Guinea-Bissau - alfabeto", um alfabeto de grande beleza (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P11859: Uma visão alargada do ataque a Gadamael - Dos antecedentes às consequências (6): E depois do ataque?!... Gadamael nos primeiros meses de 1974 (Manuel Vaz)

1. Chega assim ao fim o trabalho elaborado e enviado, para publicação no nosso Blogue, pelo nosso camarada Manuel Vaz (ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67). 

Lembremos a sua mensagem de apresentação:
Este trabalho que vai ser publicado em 6 Postes, correspondentes a outros tantos subtítulos, foi concebido como "peça única". 
Posteriormente foi seccionado e ilustrado, sem perder as caraterísticas iniciais.

Um abraço
Manuel Vaz


UMA VISÃO ALARGADA DO ATAQUE A GADAMAEL

DOS ANTECEDENTES ÀS CONSEQUÊNCIAS

6 - E depois do ataque?!... Gadamael nos primeiros meses de 1974


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Nota do editor

Poste anteriores da série de:

26 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11477: Uma visão alargada do ataque a Gadamael - Dos antecedentes às consequências (1): Ofensiva do PAIGC na ZA de Gadamael até 22MAI73 (Manuel Vaz)

12 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11560: Uma visão alargada do ataque a Gadamael - Dos antecedentes às consequências (2): A fronteira sul na mira de Amílcar Cabral (Manuel Vaz)

31 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11659: Uma visão alargada do ataque a Gadamael - Dos antecedentes às consequências (3): Os sem-abrigo refugiam-se no tarrafo (Manuel Vaz)

28 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11774: Uma visão alargada do ataque a Gadamael - Dos antecedentes às consequências (4): Os Paraquedistas Desembarcam e Resolvem (Manuel Vaz)
e
11 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11827: Uma visão alargada do ataque a Gadamael - Dos antecedentes às consequências (5): Do "insucesso" do PAIGC à reacção das NT (Manuel Vaz)

domingo, 21 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11858: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (11): Terra firme e o pântano - Dois grandes líderes, Cap Op Esp Fernando Assunção Silva e ex-Cap Art.ª António Carlos Morais Silva





1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72) com data de 12 de Julho de 2013:




DOIS GRANDES LÍDERES

GADAMAEL - 70/71

(...) "A CCaç 2796 foi fustigada de forma brutal nos seus primeiros passos em Gadamael numa primeira tentativa do PAIGC de, indirectamente, eliminar a posição de Guileje (o que veio a conseguir em 1973 por via directa)."

Caríssimos Carlos/Luís,
Cordiais saudações.

Houve momentos difíceis, mas não são eles que quero ressaltar.
Um grupo de homens, quer seja num quartel em África, ou num País em qualquer lugar no espaço ou no tempo, dependendo das lideranças, é conduzido ao "pântano" ou a "terra firme.

Refiro-me agora a um grupo, nessa data num quartel no Sul da Guiné. Eu, e os meus camaradas, Africanos e Europeus, tivemos a sorte de ter no Comando dois Grandes Líderes, cada qual com a sua singularidade: o saudoso Capitão de Infantaria Operações Especiais Fernando Assunção Silva, e o então Capitão de Artilharia António Carlos Morais Silva.

Assim a CCAÇ 2796... "Com muito trabalho de todos, reagiu, recuperou, deixou obra feita (reordenamento, escola, posto sanitário, casernas, organização do terreno) e garantiu a posse de Gadamael, a segurança da população, o apoio logístico a Guileje e a liberdade de movimentos no seu sector".

À esquerda: o saudoso Cap Op Esp Fernando Assunção Silva

Não poderia deixar de registar publicamente a minha gratidão ao Capitão Assunção Silva, "in memoriam", e ao Exmo. Senhor Coronel de Artilharia Morais Silva, por nos terem conduzido, a mim e aos meus Camaradas, a "terra firme". E quantos pântanos, reais e metafóricos, rodeavam Gadamael!!!

Forte abraço
Vasco Pires
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Foto e texto: Vasco Pires
Emblema da CCAÇ 2796: Colecção de Carlos Coutinho
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11627: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (10): Perguntas sem resposta

sábado, 20 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11857: Bom ou mau tempo na bolanha (20): O Cifra encontra os seus amigos (Tony Borié)




Vigésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.


O Cifra e o seu amigo e companheiro Setúbal, cujo verdadeiro nome era Jeremias, por diversas vezes se encontraram. Este companheiro, regressado à Europa, entrou pelo ramo da restauração e teve um certo sucesso.
Continuaram a sua amizade durante o tempo em que que o então Cifra se manteve em Portugal, ainda trocaram cartas nos primeiros anos depois da emigração, mas o tempo tudo leva, e ficaram as recordações de pura amizade, daquele que foi amigo, companheiro e combatente.

Passado um algum tempo após regressar da Guiné, o Cifra, que nessa altura já era de novo o Tó d’Agar, vindo a pé da sua aldeia no vale do Ninho d’Águia até ao Santuário de Fátima, cumprindo uma promessa de sua mãe Joana, por ter chegado são e salvo a Portugal, em determinada localidade onde pernoitou, querendo saber onde podia dormir e comer, dirige-se a uma praça de táxis.
Vendo um táxi, com o condutor lá dentro, a dormir sobre o volante, bate na porta do carro tentando acordar o homem para lhe pedir a informação. Qual foi o seu espanto quando deparou com o Curvas, alto e refilão.

Agora chamava-se senhor Manuel Silva, e era sócio do Trinta e Seis, que por sua vez se chamava senhor António Laranjeira.

Eram proprietários de dois carros de aluguer, naquela praça, que tinham adquirido com a ajuda dos pais do Trinta e Seis, que agora se chamava senhor António Laranjeira, e para o qual, ao empenharem as suas terras, tinham mostrado documentos num banco local, de que tinham posses, e não precisavam de nenhum empréstimo. Só assim o referido banco, depois de lhes hipotecar todos os seus bens, se disponibilizou a financiar a compra dos referidos carros de aluguer, ficando com a posse das terras e dos carros até ao pagamento final, cobrando-lhes todos os juros e despesas de documentação.

Mas continuando, ao ver o Cifra, que agora era o Tó d’Agar, o Curvas, que agora era o senhor Manuel Silva, levanta-se dentro do carro, bate com a cabeça no tejadilho, sai para fora do carro, abana a cabeça duas vezes, fecha e abre os olhos outras tantas vezes, e diz muito alto:
- Filho da puta! Querem ver que tenho que matar alguém!. Ah, és tu, oh Cifra! Devo de estar a sonhar!

E deu-lhe um abraço tão forte, que lhe ia partindo as costelas. Os três, o Curvas que agora era o senhor Manuel Silva, o Trinta e Seis que agora era o o senhor António Laranjeira, e o Cifra que agora era o To d’Agar, passaram quase toda a noite na farra, e já altas horas da manhã, caminhando os três por uma ruela, a caminho da casa do Trinta e Seis que agora era o senhor António Laranjeira, onde o Cifra que agora era o To d’Agar, ia dormir, ouvem alguém gritar de uma janela, no segundo andar:
- São horas de chegar a casa, meu vadio? Sabes que estou grávida, e estou em cuidados contigo?

Era a Lizete, esposa do Curvas, que agora era o senhor Manuel Silva, que o chamava, e era prima do Trinta e Seis que agora era o senhor António Laranjeira, com quem andou de namoro e se casaram, com um banquete a preceito, onde a Lizete, no dia do casamento, toda vaidosa, olhava o marido que levava uma medalha cruz de guerra ao peito, e que finalmente tinha uma família. E o seu marido, o Curvas que agora era o senhor Manuel Silva, responde, com uma voz rouca:
- Só descanso quando os matar a todos e não ficar um único vivo! Lembram-se do Madragoa, do Bóia, do Vouzela, do Madeira, daquele outro que era da Serra da Estrela, e não me recorda o nome, daquele paraquedista, que antes de morrer, pediu para lhe darem um tiro e acabarem com ele, pois não suportava a agonia das dores? Maldita guerra, que não me sai do pensamento!

E o Trinta e Seis que agora era o senhor António Laranjeira, diz numa pausa, em que o amigo pára de chorar:
- E tantos e tantos portugueses e africanos que lutaram uns contra os outros e morreram sem terem nada a ver com esta maldita guerra.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11847: Bom ou mau tempo na bolanha (19): O 1.º Cabo Fialho da CCAÇ 616 (Toni Borié)

Guiné 63/74 - P11856: Memória dos lugares (238): Canjambari 1972 (1) (Manuel Lima Santos)




Fotografias enviadas pelo nosso camarada Manuel Lima Santos (ex-Fur Mil Inf.ª na açoriana CCAÇ 3476 - "Os Bebés de Canjambari"Canjambari e Dugal, 1971/73) para a série Memória dos lugares.





Canjambari, 1972 > Entrada do aquartelamento

Canjambari para Jumbembem

Canjambari > Animal de estimação

Canjambari > Aquartelamento

Canjambari > Capela com a imagem do Senhor Santo Cristo

Canjambari > Defesa exterior > Valas

Canjambari > Dia de Ronco

Canjambari > Foguetão 122mm
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11839: Memória dos lugares (237): Bafatá, o seu velho cinema, a sua história, as suas gentes, os seus fantasmas... Bafatá Filme Clube, documentário (78') de Silas Tiny, produção da Real Ficção, brevemente em DVD (Fernando Gouveia)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11855: Notas de leitura (503): "Guinea-Bissau - alfabeto", um alfabeto de grande beleza (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2013:

Queridos amigos,
É um álbum com imagens espantosas, encerra um cadinho de todas aquelas belezas e valores que podemos observar.
Por um lado, parece estar registado um povo perene, nos seus princípios e atitudes onde pesam o sentido do clã, da família, da ancestralidade; por outro lado, há uma atmosfera, um quase sentimento de que as coisas se podem transformar, que vale a pena participar, que vale a pena acreditar.
Sinto-me feliz por ter achado esta beleza numa das mais acessíveis cavernas de Ali Babá, a Feira da Ladra. Carlos Lopes, uma das grandes figuras da intelectualidade guineense, deixa-nos aqui textos da realidade guineense à altura dos sonhos que ele guardou para o seu país.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: Um alfabeto de grande beleza

Beja Santos

Em 1984, uma ONG italiana, GVC – Grupo Voluntariato Civile, com texto do escritor Carlos Lopes e financiamento da Comissão Europeia, produz um álbum magnífico, Guiné-Bissau, alfabeto. Carlos Lopes explica na nota introdutiva: “O trabalho que vos propomos é uma tentativa de traduzir em imagens, tanto fotográficas como escritas, uma realidade social ímpar. Os temas do nosso alfabeto de imagens passa em revista as candências desta coletividade. Não se quis fazer apologias fáceis nem propagandear o que quer que fosse. Tentamos compreender as razões da perpetuação do longo equilíbrio que preside às relações de produção existentes no país, nas suas multifacetadas formas, de expressão do poder ou de afirmação étnica”.

E que escolhas de letras do alfabeto? Arroz, Brakundadi, Cabral Ka Muri, Desenvolvimento, Etnia, Fome, Germinação, Homem-Grande, Independência, Juventude, Kaabú, Luta, Mindjer, Nô Terra, Organização, Poder, Quarto Ano, Resistência, Saúde, Tabanca, Unidade, Vida.
Arroz, porque é o alimento-base, está presente em todas as conjeturas e figura no ativo de todas as conjunturas, é a atividade agrícola fundamental;
Brankundadi, porque no passado tudo dependia do branco, o indígena devia colaborar com o europeu e a sua inteligência, o branco tinha um intermediário importante, o assimilado, mas a política, o poder, era uma questão dos brancos;
Cabral Ka Muri, é a melhor homenagem que se pode fazer ao fundador do PAIGC, ele dizia: “Sou um simples africano que quis salvar a sua dívida para com o seu povo e viver a sua época”;
Desenvolvimento, porque é o grande sonho da Guiné-Bissau, país economicamente insignificante para quem todos os apelos ao desenvolvimento não são poucos;
etnia, porque é o ponto de partida para os destinos da coletividade, todos estes grupos étnicos têm uma riqueza cultural espantosa, ainda hoje pasto para muitos equívocos, o risco tribal continua a assolar a Guiné-Bissau;
Fome, vive-se sob o espectro da escassez, de que a fome é apenas um momento agudo, qualquer pequena oscilação que afete o mínimo, põe tudo em questão, porque o mínimo é o essencial;
Germinação, porque as crianças são sempre o futuro à espreita, Cabral chamava-lhe “as flores da nossa luta”, as crianças são as implacáveis testemunhas do nosso quotidiano;
Homem-Grande, ele representa a garantia vivia da perenidade da cultura, é uma biblioteca viva, o que ouviram contar é para transmitir, como amadureceram, tudo fazem por tornar o passado na levedura do futuro;
Independência, foi aqui que desaguou uma corrente chamada a consciência nacional que trazia a promessa de reconverter a operação e difundir as oportunidades até então feitas promessa;
Kaabú, já havia mundo quando aqui aportaram os colonizadores, os Djidius ensinam que o Gabú se estendia do rio Gâmbia ao rio Grande na Guiné-Bissau, englobando assim a Gâmbia, o Casamansa e o interior da Guiné-Bissau, o Kaabú é o orgulho pelos ancestrais, pelas muitas verdades a descobrir;
Luta; palavra mágica na Guiné-Bissau, simboliza laços de sangue, sofrimentos anónimos, a doação da própria vida para se chegar à liberdade;
Mindjer, mulheres desgastadas, nossas mães, autoras da germinação, agricultoras, obrigadas à submissão pela tradição;
Nô Terra, porque se passou da etnia à nação de guineenses, o sonho de Cabral era de que a pluralidade étnica se transformasse no cimento da nova República;
Organização, aspirava-se nos tempos da luta a que organização transformasse a realidade, suscitasse o prazer de saber, porque organizar só é possível após conhecer, calcular, experimentar;
Poder, a promessa era de que todo o poder vem e vai para o povo daí a participação popular para se chegar a uma sociedade de coesão dinâmica, depois o poder perverteu-se, passou para as mãos de alguns que recorrem à dominação, afligindo aqueles a quem era prometida a libertação;
Quarto Ano, ainda havia sonhos, de aumentar a produção, de liquidar o desemprego, de praticar a justiça social, veio a secessão e depois a apatia, a ascensão de uma clique que se constituiu beneficiária da riqueza produzida;
Resistência, é ter consciência, é a reivindicar teimosamente os princípios, é aquela boa obstinação que se transforma em património material e imaterial;
Saúde, é a raiz do desenvolvimento para a melhor educação, predispõe para o trabalho que é a fonte da riqueza, saúde materno-infantil, saúde para erradicar moléstias como a doença do sono e os tracomas;
Tabanca, o ponto de partida que como diz um poeta, quando a lama se transforma em adobe/ o Sibe vira armação/ a palha em cobertura/ e o Crintim se torna cerca,/ é a Morança que nasce/ fruto de um trabalho coletivo,/ lugar onde habitam os homens/ das profundezas do País;
Unidade, uma das catapultas para a luta armada, para se chegar à coesão, sem a qual é impossível fazer avançar o mais lindo dos projetos, uma unidade dinâmica e que a todos irmana;
Vida, um somatório complexo de inquietações e de alegrias, de anseios, realizações, por vezes frustrações, e tem-se mais vida quanto mais ela se espalha à nossa volta em construção…

A quem se destinaria este álbum, tão benfazejo, tão esperançoso? O livro em si não dá resposta, as imagens são exaltantes, documentam, são para apreender, entender e fazer entender. Muito provavelmente, foi encarado como um álbum para formadores e também para estrangeiros interessados na cooperação. Talvez. Carlos Lopes não se escondeu em nenhuma neutralidade, fez com que todas estas imagens se transformassem aos nossos olhos como sérias advertências. Por exemplo quando fala da mulher socorre-se de um poema de José Carlos Schwartz a propósito das mulheres abandonadas pelos combatentes quando chegaram à cidade e se amestraram no conforto:

Apili

Apili, Apili, Apili
sempre perto do marido
homem, homem corajoso
combatente do povo.

Mas os TUGAS arrumaram a bagagem
para regressarem ao seu país,
os combatentes entraram na cidade
o marido de Apili também.

O marido de Apili entrou,
entrou procurando nova esposa
que saiba entrar e saiba sair.

Apili ficou só
com as recordações do sofrimento,
da fome, das aflições.

Mas Apili, não percas a coragem
a verdade do partido não se perde
a não ser na boca dos mal intencionados.



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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11853: Notas de leitura (502): "Guineidade e Africanidade", por Leopoldo Amado - uma outra leitura (2) (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P11854: Parabéns a você (603): José Santos, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11848: Parabéns a você (603): Álvaro Basto, ex-Fur Mil Enf.º da CART 3492 (Guiné, 1971/74) e José Manuel Pechorro, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19 (Guiné, 1971/73)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11853: Notas de leitura (502): "Guineidade e Africanidade", por Leopoldo Amado - uma outra leitura (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 16 de Julho de 2013:

Segue a 2.ª parte da minha análise crítica do livro de Leopoldo Amado.
Cpts amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf. Mil. de Infª.
C.Caç. 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)


"Guineidade e Africanidade" 
(parte 2 de 2)

É interessante registar a posição de Leopoldo Amado relativamente ao regresso de “Nino” Vieira em 2005, que saúda, como grande árbitro da polarização entre facções castrenses, antevendo os perigos de uma crescente militarização e consequente instabilidade do país, nestes termos: “Ante a excessiva politização da sociedade castrense e da sua propensão de assunção do poder pela força, acredito que Nino Vieira, como chefe carismático e histórico das forças armadas guineenses, possa ter um papel de moderação perante as profundas clivagens” (p. 143). Para além de outros argumentos apresentados em prol do regresso de Nino à Guiné-Bissau o autor preconiza o julgamento “justo e imparcial” do ex-Chefe de Estado.

Estas posições de L. Amamdo foram objeto de grande controvérsia, dividindo-se os bissau-guineenses em reações pró e contra. Atente-se, por exemplo, numa entre muitas: “Nino Vieira não é senão um criminoso nato com as mãos sujas de sangue, com decisão consciente de dar mais primazia ao poder do que verdadeiramente construir a Guiné-Bissau.” (Carlos Mussa Embaló citado a pp. 151). Apesar de todas as “máculas”, registadas antes e no decurso da guerra civil – e não são poucas – o autor considera que o regresso de Nino Vieira é desejável, na medida em que o processo não pode excluir quaisquer guineenses e que o ex-PR pode pôr “a sua experiência e as suas potencialidades positivas ao serviço da paz e do desenvolvimento” (p. 154).

Quanto à organização do poder político e ao debate da representatividade, o autor salienta, em várias passagens da sua obra, a importância da representação do poder tradicional, na esteira de outros compatriotas seus, permitindo assim articular o rural e o urbano, o moderno e o tradicional, o direito positivo e o consuetudinário. Este rumo não só atenuaria tensões internas mas, se bem levado à prática, constituiria um processo democrático sui generis adaptado à situação da Guiné-Bissau. Penso que é um ponto que merece adequada reflexão e que poderá constituir um guia para a futura organização do Estado da Guiné-Bissau. Aliás, mutatis mutandis e guardadas as devidas proporções trata-se de uma ideia já defendida na época colonial por António de Spínola, porém com outras roupagens – os chamados Congressos do Povo.

Uma outra preocupação invocada com fundada razão nos textos de Leopoldo Amado [foto à esquerda] consiste na temática das Forças Armadas e dos serviços de segurança, “mormente o indissociável e recorrente problema da corrupção e o uso da violência gratuita” (p. 224). Problemas que não só afetam a imagem do país, mas influenciam-no negativamente, quer interna, quer externamente.

Relativamente ao assassinato de Amílcar Cabral, o autor considera que o plano de proclamação do Estado da Guiné-Bissau tenha constituído a causa imediata. É uma tese plausível, mas que necessita de ser arguida. Quanto à “autoria moral” e sem embargo dos norte-americanos considerarem em documentos seus que se estava “perante um feudo entre mulatos das ilhas de Cabo Verde e africanos do continente” (o que é citado a p. 228), “desvalorizando incompreensivelmente”, segundo Leopoldo Amado, a “directa participação da PIDE-DGS e das autoridades coloniais portuguesas no vil acto”, para o autor “é possível hoje provar-se” que a quem mais directamente interessava a eliminação física de Cabral figurava inquestionavelmente a PIDE-DGS e as autoridades coloniais portuguesas (cfr. p. 228). Neste particular, manifestamos uma opinião contrária: com efeito, em nosso entender, a morte de Cabral não interessava a Spínola, pois aquele era o único interlocutor válido a ser encetado um verdadeiro e consequente processo negocial de paz entre as duas partes beligerantes. Por outro lado, não existem quaisquer registos escritos nos arquivos da PIDE-DGS que de algum modo refiram a hipotética eliminação física de Cabral ou que sustentem de essa tese, directa ou indirectamente. Nesta matéria, que eu saiba, as teorias são as mais diversas, mas não existem, nem podem por isso ser apresentadas, quaisquer provas e o mistério quanto à autoria moral do assassinato permanece.

É curiosa e historicamente do maior interesse a evolução dos movimentos pró-independência que surgem nos anos 50, do MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné) ao MLG (Movimento de Libertação da Guiné) que está na origem do PAI, que se transformaria, numa fase ulterior, no PAIGC. Aliás, Leopoldo Amado refere que “a reivindicação a posteriori da paternidade do Pindijiguiti por parte do PAI(GC) só se pode compreender na medida em que tanto o MLG como o PAI partilhavam, indistintamente, o mesmo espaço político, a mesma clientela...” (p. 245), subsistindo uma certa confusão quanto à divisão de águas entre os dois, isto nos finais da década de 50. É igualmente relevante – e um facto que eu desconhecia – a distribuição de panfletos em Cantchungo, em Bissau e a sua própria afixação no estabelecimentos comerciais e postes de iluminação da capital, logo em 1960.

No que respeita à guerra colonial/luta de libertação, concorro com a tese defendida pelo autor de que o “PAIGC perseguia objetivos políticos e nunca agendou a possibilidade de derrotar militarmente o Exército português , obedecendo sempre as diferentes estratégias militares e as correspondentes tácticas aos objectivos políticos.” Sublinho os termos.

Não posso deixar de terminar voltando a frases duras que infelizmente e com grande pena minha definem a Guiné-Bissau de hoje, cito o autor “O Estado faliu. Faliu financeiramente, mas igualmente faliu nos princípios e na acção, ou melhor, na inacção, pois não se faz nada, literalmente nada, e, pior que isso, nada nem ninguém deu ainda inequívocas mostras de possuir ideias, estratégias e vontade política susceptíveis de reverter este estado de coisas” (p. 284)

A vontade e a capacidade de mudança, a meu ver, estão inteiramente nas mãos dos bissau-guineenses.

Pelas razões apontadas e inúmeras outras que poderia acrescentar e atenta a falta de livros e publicações sobre a Guiné-Bissau de hoje é indispensável a leitura de “Guineidade e Africanidade” de Leopoldo Amado para tentarmos compreender esse país que tem de quebrar definitivamente as correntes que o amarram a soluções inconvenientes e perigosas.
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Nota do editor

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