segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10498: Notas de leitura (415): Uma viagem à Lapónia que ficou por Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Sem nenhum constrangimento acabo de deitar no balde do lixo o arremedo poético que deu ensejo ao texto que vos ofereço.
Tudo aquilo me sabia a água chilra, a uma inquietação de quem não sabia comunicar que estava punido e só veria a família um ano e meio depois. Durante anos, atirava as folhas amarelecidas de uma gaveta para outra, a supor uma pirueta imaginativa para a sua aplicação. Prestes a reformar-me, chegou a hora de vazar no balde do lixo todas as insignificâncias. Só que foi neste espaço que tudo publiquei à volta da minha comissão militar, intui que fazia todo o sentido passar-vos a lembrança de um tempo onde, meu Deus, até se invocou a Lapónia a pretexto de um saboroso relato de viagens.

Um abraço do
Mário


Uma viagem à Lapónia que ficou por Bissau 

Beja Santos

Em Março de 1969, fui submetido no hospital militar em Bissau a uma intervenção cirúrgica, tratou-se de uma remoção de cartilagem por detrás do joelho direito que me tornava o caminhar cada vez mais difícil, dava tombos a toda a hora e demorava a conciliar o sono, tais e tantas eram as dores, fruto de um grande tombo de bicicleta, ocorrido largos anos atrás. Estava recém-chegado a Bissau, a ameaça de dois dias de prisão simples tornara-se uma realidade, detido já eu estava, desfazia-se era o sonho de ter férias, singularidade que me levou a viver non stop a comissão militar na plenitude, fora curtas andanças na capital provincial. Fodé Dahaba era visitado todos os dias, nem ele nem eu tínhamos saído do estado de choque que fora o fornilho que o acidentara para o resto da vida, nas fimbrias de Madina, no Cuor profundo, no mês anterior. Sentia-me triste, ainda não tinha recebido a notícia da destruição de Missirá, irá acontecer em 19 de Março. A atmosfera mais aprazível que me era dado viver naquela Bissau era no Pidjiquiti, a olhar aquele bulício de embarcações e vozes, aquele odor da vazante que impregna a atmosfera e que sobe até mesmo à Pensão Central. Aquele magneto que se chama Ilhéu do Rei sempre ao fundo, alargando a panorâmica, era fascínio permanente. Ali sentia-me sereno, ali fazia contas à vida. E ali poetei, imprevistamente.

As circunstâncias em que escrevi “Uma viagem à Lapónia” prendem-se com a dificuldade que sentia em comunicar telefonicamente aos entes mais queridos que não iria vê-los antes de 1970. Sentado num banco, acompanhado de um caderno, lia uma obra de Regnard sobre uma viagem à Polónia, em pleno século XVII, fora uma prenda de Natal do Ruy Cinatti e deu-me para garatujar uma sentimentalidade, era expediente de que me socorria para ganhar coragem para informar, via telefone nos CTT, os factos daquela punição devida a “não ter apresentado, durante uma visita do comandante-chefe, o aquartelamento nas melhores condições de organização e asseio”. E assim se escreveu: “Toda esta inquietação de viajar, não do cais do Pidjiquiti que me pode levar até um ponto do mapa iluminado a petromax e três fiadas de arame farpado, nada tem a ver com este Geba prateado pela fornalha solar; estou é impaciente em partir, fazer uma viagem na Lapónia, estou a ler um relato de um viajante que por lá andou em 1681 e que fala da tundra, de iglus, trenós e campainhas que quebram o silêncio nas noites geladas, mas é neste cais do Pidjiquiti que está tomada a decisão: hei de viajar à Lapónia quando regressar desta terra de sede oleaginosa, talvez feito rapsodo de quem vai do Sol à Lua ártica, contar estas andanças dentro do capim, explicar o que são cibes, a mancarra e o fundo, como são coloridos os cemitérios pelos cajueiros em flor, como as casas podem ser cobertas de colmo ou chapas de polegada e meia. É curioso como o Cuor rima com suor ou, baixando a voz, amor.

Mas tenho que ir telefonar para Lisboa, este passeio pela Lapónia é um devaneio e nada mais, era o que faltava ensarilhar-me, petulante, com noites brancas e nevões suaves, quando estou a viver em plena época seca, era mesmo o que faltava pôr-me ao telefone a divagar sobre madrugadas lustrais, conversas com lapões risonhos, o que eu estou a olhar é para um rio de águas barrentas, taciturnas, que nem rumorejam em direção à foz. Tomavam-me como louco se dissesse: quero ir à Lapónia, não posso passar por Lisboa, é o melhor derivativo que encontrei para me sossegar da guerra, não se esqueçam que parti daí gentil moço, que nunca vira uma cobra verde ou uma surucucu, nem balas tracejantes, nem crianças com barrigas de fome, nem árvores majestosas desfeitas a tiro de canhão, muito menos sabia o que era o baga-baga, nem que estas guerras põem populações em fuga e dividem brutalmente as famílias.

Pronto, ponho termo ao devaneio, a Lapónia é uma mera curiosidade. Daqui a minutos pego no telefone, desdramatizo a operação, calo a raiva desta punição, vou falar de saudades, destas leituras tão inofensivas como seja uma viagem à Lapónia, no ermo da Suécia. Direi então que fui punido, coisa de pouca montra, contem comigo no termo da comissão, daqui a ano e meio. Sim, estamos todos bem, não se preocupem comigo. Dentro de dias volto a Missirá onde me sinto bem. Quantas saudades de vós! Esta noite escrevo. Adeus”

Terá razão o leitor em perguntar a que propósito vem este papelucho se já se escreveu tudo quanto se passou durante a dita comissão. Para ser honesto, o arremedo poético andou de gaveta em gaveta durante a confecção dos livros, que começaram em 2006 e que já acabaram. É que espero em breve reformar-me, toda a papelada saiu das gavetas, no essencial apontamentos, faturas e documentos de vária índole têm vindo a encher o caixote do lixo. E apareceram umas folhas amarelecidas e deu-se conta que o arremedo poético já não me pertencia. Mas se é verdade que nem tudo pode ficar escrito, apaziguou-me passar a limpo o garatujado no cais do Pidjiquiti e dar-lhe publicidade aos meus confrades. Coisa curiosa, é que nunca me apeteceu ir à Lapónia. Mas gostei muito de ler o que Regnard escreveu, sentir aqueles nevões na época seca de 1969. Ponto final sobre uma viagem que não se fez.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10485: Notas de leitura (414): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10497: O nosso livro de visitas (147): Ansumane Cassamá, engenheiro agrónomo, natural de Sare Bacar, a viver em Portugal desde 1997




Guiné > Zona leste > A posição relativa do destacamento de Sare Bacar , mesmo junto à fronteira com o Senegal,  parte de um triângulo que compreende Cambaju e Contuboel. Fajonquito fica na carta de Colina do Norte (1956)

Fonte: Carta da Provínica da Guiné (1961). Escala 1/500 mil  (Pormenor)

1. Mensagem do nosso leitor Ansumane Cassamá:

De: Ansumane Cassamá

Data: 6 de Outubro de 2012 20:49

Assunto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Venho por este meio informar que sou filho e natural de Sare Bacar, Contuboel, Bafatá.

Chamo-me Ansumane Cassamá, nascido a 3 de março de 1969, em Sare Bacar, Guiné-Bissau.

Sou engenheiro agrónomo.

Vivo em Portugal desde 1997, em Monte Abraão, Queluz.

Gostaria de participar nos vossos convívios.

Estive em Sare Bacar há seis meses para visita familiar.

Aguardo. As minhas [saudações], até à próxima oportunidade. Obrigado

Ansumane Cassamá

2. Comentário de L.G.:

Caro Ansumame, agradeço a sua mensagem e vou considerar o seu pedido como um honra para todos nós, amigos e camaradas da Guiné. Este blogue agrega já mais de 580 membros, a maior parte deles antigos combatentes portugueses da colonial colonial (1963/74). Mas também amigos da Guiné, portugueses, guineenses, caboverdianos e outros, que não são ou não foram militares. O Ansumane cabe nesta última categoria. E a propósito, fica deste já convidado a juntar-se a esta comunidade virtual, constituída justamente para "partilhar memórias e afetos".

Muito provavelmente o Ansumane não tem grandes memórias da guerra colonial. Tinha cinco anos e meio quando os últimos "tugas" saíram de Bissau. Mas passou a outra parte da sua infância, bem como a adolescência (e possivelmente a juventude), no novo país lusófono, a Guiné.-Bissau. Talvez nos possa (e queira) contar um pouco da sua vida nesse tempo, até vir para Portugal, em 1997,

Leia as nossas 10 regras editoriais (disponíveis na coluna do lado esquerdo do blogue). Se estiver de acordo com elas, pode mandar-nos uma fotografia atual e um foto (ou mais) da sua região...Queremos apresentá-lo formalmente aos outros grã-tabanqueiros. Reunimo-nos, a Tabanca Grande, pelo menos um vez por ano (nos últimos 3 anos, em Monte Real, Leira).

Não temos muitas referências a Sare Bacar (Clique aqui). A maior parte estão relacionadas com a malta da CCAÇ 3414, que passou por Bafatá e Saré Bacar, em 1971/73, e em especial o nosso amigo e camarada Joaquim Peixoto. Pode consultar a carta (1/50 mil) de Paunca (1957), que englobaa sua terra. Também não temos muitas fotos de Sare Bacar. Eu passei menos de dois meses em Contuboel, em junho e julho de 1969, mas nunca cheguei a ir até à fronteira. Conheci Contuboel, Sonaco e tabancas em redor...  Nesse tempo, era uma região pacífica, podia andar-se em Contuboel num raio de 15 quilómetros, desarmado... Tenho boas recordações dessa região.

Em resumo, Ansumane, obrigado pela sua visita, gostava que nos mandasse uma foto sua, atual, podendo vir acompanhada de mais algumas da sua terra, recentes ou mais antigas. Felicidades pessoais e profissionais. Que Deus, Alá e os bons irãs protejam a  nossa Guiné. Mantenhas. Luís Graça.
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Nota do editor:


Último poste da série > 27 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10302: O Nosso Livro de Visitas (146) ): Jaime Segura, ex-alf mil cav, CCAV 488 / BCAV 490 (Mansaba Bissorã, Ilha do Como, Jumbembem, Bissau, 1963/65)

domingo, 7 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10496 Meu pai, meu velho, meu camarada (33): Mais notícias das forças expedicionárias da ilha de São Vicente, Cabo Verde (1941/45) (Adriano Miranda Lima, cor inf ref)


1. Comentários, ao poste P10284 (*), de Adriano Miranda Lima, nosso leitor, cor inf reformado, natural de Cabo Verde, São Vicente, antigo combatente da guerra do ultramar (Angola e Moçambique), residente em Tomar [,  foto atual à esquerda, ] , e que gostaríamos que aceitasse o nosso convite para integrar esta Tabanca Grande:

(i) Manifesto ao senhor José Martins a minha admiração pelo excelente trabalho de pesquisa que empreendeu e permitiu a publicação desta lista dos militares portugueses falecidos em Cabo Verde. O meu reparo em relação ao lapso de registo respeitante ao major Nicolau de Luizi deve-se ao conhecimento muito particular que tenho do caso. Sou militar (coronel reformado) e servi grande parte da minha carreira no RI 15, sobretudo depois de finda a guerra de África. Essa condição permite-me conhecer muito bem o historial desse regimento, que beneficiei com pesquisas, reescrevendo algumas das suas páginas.


Como sou cabo-verdiano de nascimento, toca-me também de modo muito particular o historial das tropas expedicionárias durante a II Guerra Mundial. É por isso que me atrai este blogue, cuja consulta me tem facultado alguma ajuda para poder escrever alguns textos que comecei a publicar no blogue Praia de Bote, cujo nome se deve à praia com o mesmo nome existente na cidade do Mindelo, na orla do Porto Grande.

Ainda participei em 3 convívios realizados em Tomar pelos expedicionários do RI 15, que incluíam também expedicionários de outras unidades mobilizadas, como os de Infantaria 5 e 7. O grande entusiasta e organizador desses convívios era o senhor Francisco Lopes (que era conhecido no Mindelo como o Chico da Concertina). Infelizmente, faleceu há para aí 2 anos. Estava muito lúcido e ainda vigoroso, mas bastou terem-lhe tirado a carta de condução (conduziu até idade muito avançada) para entrar numa depressão a que seguiu uma pneumonia que foi a causa da sua morte. Julgo que ele tinha 89 anos.

Fiz duas comissões, uma em Angola e outra em Moçambique, mas na Guiné nunca estive.
(ii) Consultando de novo a lista dos militares inumados em S. Vicente, atentei no seguinte caso: Ovídio de Deus da Silva Buiça - 2º Sargento nº 51-42, da Companhia de Comando do 1º Batalhão Expedicionário da Regimento de Infantaria nº 5 [, Caldas da Rainha], idade não referida, natural de Portalegre, faleceu de ferida perfurante do crâneo, por arma de fogo, em 3 de Abril de 1943 [Possivelmente, suicídio]. Inumado na 14ª campa de Rua 56, do Cemitério do Mindelo, Ilha de São Vicente.

Confirmo que se tratou, de facto, de suicídio. Infelizmente, o sargento pôs termo à vida por irregularidades que lhe foram detectadas na administração de contas que tinha a seu cargo. Esse sargento era amigo de um familiar meu.

Visitei em Julho passado o talhão militar e não deixei de me comover com a visão das campas de dezenas de militares que morreram em terra distante longe das suas famílias. É a mesma comoção que me provoca a recordação de duas praças que deixei enterradas em Angola, por lá continuando ainda os seus restos mortais. Em Moçambique, os meus mortos foram já enviados para a metrópole, pois os enterramentos locais deixaram de se fazer. Tarde demais, quanto a mim, pois o efeito moral da situação contrária era arrasador.



2. Apontamentos do cor inf ref Adriano Miranda Lima, no blogue Praia do Bote, sobre as forças expedicionárias em São Vicente, durante a II Guerra Mundial:

(...) Vejamos agora alguns dados constantes da História do Exército Português (1910-1945), obra organizada sob a coordenação do general Arménio Nuno Ramires Oliveira, oficial que, por coincidência, serviu no comando militar de S. Vicente como capitão e major.

A organização militar, que devia ser estabelecida de acordo com o Decreto nº 29686, de 14 de Julho de 1939, acabaria por não ser efectivada em Cabo Verde. Assim, teve-se de recorrer ao envio de forças expedicionárias da metrópole para a sua defesa.

A ocupação das ilhas e a organização das forças foram sofrendo as adaptações que os efectivos iam permitindo. Uma das condicionantes foi a carência de material, em especial de artilharia. Mas em Julho de 1941 encontravam-se prontos a embarcar em Inglaterra com destino a Cabo Verde, 3 peças de artilharia 4,7", 3 jogos para plataformas e 450 munições. (Este material diz respeito à artilharia de costa). As autoridades inglesas ofereceram ainda pessoal para instruir e montar estas peças.


Em 1941, foi criada na cidade do Mindelo, em S. Vicente, uma Bateria de Artilharia de Costa. Em fins de Agosto de 1941, era transferida a título provisório, da cidade da Praia, em Santiago, para a cidade do Mindelo, em S. Vicente, a sede da Repartição Militar. A evolução da guerra mostrou a urgência de criar um dispositivo defensivo na ilha de S. Vicente, pelo que foi ordenada a mobilização das seguintes forças:

Para a Ilha de S. Vicente:

- Comando Militar de Cabo Verde, sendo comandante o brigadeiro Augusto Martins Nogueira Soares, desde Agosto de 1941 até Dezembro de 1944;
- Comando do Regimento de Infantaria 23, integrando os batalhões seguintes;- 1.º Batalhão expedicionário do Regimento de Infantaria 5 (Caldas da Rainha);
- 1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 7 (Leiria);
-  1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 15 (Tomar);
- Bataria de Artilharia de Costa 1;
- Bataria de Artilharia de Costa 2;
- Bataria de Artilharia Contra Aeronaves 9,4 cm;
- Bataria de Artilharia Contra Aeronaves 4 cm;
- Bataria de Referenciação;
- 2.ª Companhia de Sapadores Mineiros do Regimento de Engenharia 2;


Apoiavam estas unidades as formações dos serviços militares seguintes:

- Parque de Engenharia;
- Tribunal Militar;
- Hospital Militar Principal de Cabo Verde;
- Depósito de Subsistência e Material;
- Laboratório de Análise de Águas;
- Depósito Sanitário;
- Secção de Padaria.

O conceito de defesa da ilha de S. Vicente consistia essencialmente numa sólida ocupação e, em caso de emergência, manter a posse a todo o custo das regiões de João Ribeiro e de Morro Branco e a cidade do Mindelo. Para tal, 2 batalhões ocupavam posições de defesa e 1 batalhão, reduzido, encontrava-se em posição de reserva.

Para a ilha do Sal:

- 1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 2:
- 1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 11;
- 3.ª Bataria de Artilharia Contra Aeronaves.
O Hospital Militar do Sal apoiava essas unidades.

O conceito de defesa da ilha do Sal, embora previsse a defesa das costas contra acções provenientes do mar, tinha como principal finalidade a defesa do aeródromo e a sua posse a todo o custo.

Na ilha de Santo Antão, a guarnição era constituída por forças destacadas da ilha de S. Vicente, normalmente uma companhia de atiradores reforçada do batalhão em reserva. Tinha por missão ocupar a povoação de Porto Novo, mantendo a posse da água de abastecimento e a vigilância do canal, em especial na zona correspondente ao Porto Grande de S. Vicente.

Na ilha de Santiago, na cidade da Praia, estava uma companhia de caçadores de praças de recrutamento local/regional, podendo eventualmente ser reforçada com meios atribuídos pelo Comando Militar de Cabo Verde, sediado em S. Vicente. Competia-lhe a defesa da cidade da Praia, como capital de Cabo Verde.

Com o fim da guerra mundial, regressaram à metrópole os efectivos expedicionários. O regresso efectuou-se progressivamente, sendo extintas as unidades, comandos e serviços ali criados. O regresso do Comandante Militar, brigadeiro Nogueira Soares, em Janeiro de 1945, e sobretudo a extinção do Comando Militar criado para o efeito, em 30 de Novembro de 1946, marcaram o final do reforço militar de Cabo Verde, embora várias comissões liquidatárias se tenham mantido pelo tempo necessário à conclusão das suas tarefas.




Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Monte Sosse > c. 1941-1945 > "Peça de 9,4 cm de uma das duas antigas baterias de artilharia anti-aérea de Monte de Sossego (Foto oferecida pelo filho de um antigo oficial que serviu, à época, em Cabo Verde)" [Legenda: Adriano Miranda Lima] [Foto reproduzida aqui com a devida vénia...]


(...) À época da segunda Guerra Mundial, a artilharia antiaérea vigiava o Porto Grande. E a nossa “Praia de Bote” estava, implicitamente, sob o chapéu protector, claro está. Que isto fique desde já assegurado, ou não tivesse a dita Praia sobrevivido até agora, vivinha da silva.

Ora, esta antiga peça de artilharia anti-aérea de calibre 9,4 cm presente nas fotos pertencia, entre outras, a uma das baterias (unidade táctica elementar de artilharia comandada por um capitão) instaladas no cimo do Monte de Sossego. 

A outra bateria era equipada com peças de 4 cm. Fazia também parte desse dispositivo artilheiro uma unidade de referenciação, constituída por projectores (holofotes), fonolocalizadores, preditores de tiro [, aparelho que calcula a posição futura do alvo aéreo,] e seguidores visuais. Desconheço se integrava também radares tácticos e de tiro. Uma vez que este conjunto integrava duas baterias, de comando de capitão, é de supor que o conjunto justificasse o comando de um major. A ser assim, aquelas duas unidades constituiriam um Grupo de Artilharia, embora reduzido nas suas componentes orgânicas, que é sempre de comando de oficial superior (major ou tenente-coronel). Mas admite-se que o conjunto pudesse estar sob o comando apenas de um capitão, já que nessa altura não havia grande abundância de oficiais superiores e o posto de capitão se mantinha até idade bem madura (mais de 40 anos), o que conferia um saber de experiência acumulada ao longo de anos.


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 2006 > Monte Sossego [, ou Ponta João Ribeiro ?,]> Restos da peça de arttilharia antiaére 9,4, do tempo da II Guerra Mundial... Ao fundo, a cidade do Mindelo, o Porto Grande, o oceano, o ilhéu dos Pássaros.

Foto: © Lia Medina (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

Este dispositivo e outros disseminados pela ilha de S. Vicente fazia parte das Forças Expedicionárias Portuguesas a Cabo Verde durante a Segunda Guerra Mundial (activadas entre 1941 e 1945).

Quem for ao cimo do Monte de Sossego encontra ainda quase intactas as estruturas entrincheiradas, tipo bunker, desse antigo dispositivo militar, construídas então pela engenharia militar portuguesa. E tem também oportunidade de reparar em algumas peças enferrujadas (só se mantiveram as de calibre 9,4 cm) e amputadas de alguns componentes.

Eu fui lá em 2003, e pela primeira vez na minha vida. Não estavam lá soldados nem equipamentos, à excepção das referidas peças enferrujadas. Estavam, sim, pessoas a viver no que resta daquelas instalações construídas em subsolo. Disseram-me que eram pessoas de S. Antão que chegavam a S. Vicente à procura de trabalho e não tinham outra hipótese de abrigo senão os bunkers. Mas penso que actualmente essas instalações estão desocupadas, conforme parecem demonstrar fotos de data mais recente que tive oportunidade de ver mas que não possuo. 

Tenho de dizer que me impressionou o estado deplorável em que vivia aquela gente. Cheguei ao local acompanhado de um tio e de um primo e fomos imediatamente rodeados por um rancho de crianças, que nos olhavam como se fôssemos extra-terrestres.

Como afirmei atrás, eu nunca tinha ido ao local, mas ao longo da minha meninice algumas manifestações da existência desse dispositivo artilheiro chagavam até mim de vez em quando. Sim, porque alguma coisa ainda lá se manteve depois da saída das Forças Expedicionárias. Lembro-me, nos anos da década de 1950, dos ensaios nocturnos dos projectores (holofotes). Iluminavam tudo em redor e até a distâncias consideráveis. Morava em Fonte Cónego e era uma festa, para a meninada, quando os focos de luz atingiam as casas e mesmo os nossos corpos. Interrompíamos as brincadeiras de “mangatchada” (brincar às escondidas) para nos deliciarmos com o espectáculo de luz que subitamente quebrava a rotina. (...) 
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 21 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10284: Meu pai, meu velho, meu camarada (31): Expedicionários em Cabo Verde, mortos entre 1903 e 1946 e inumados nas ilhas de São Vicente e Sal (Lia Medina / José Martins)

Último poste da série > 22 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10420: Meu pai, meu velho, meu camarada ( 32): Luís Henriques (1920-2012) evoca, em entrevista gravada em 10 de março de 2010, os sítios onde passou 26 meses, na ilha de São Vicente, em plena II Guerra Mundial: Mindelo, Lazareto, Matiota, São Pedro, Calhau...

Guiné 63/74 - P10495: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (13): Aventura com final feliz: O Cabo 'Bigodes', o Dandi e a mulher mais velha do Dandi...

 


1. Em mensagem do dia 3 de Outubro de 2012, o nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), enviou-nos mais uma história dos Fidalgos de Jol.
 



ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (13)

Aventura com final feliz…

Todos tínhamos grande admiração pelo Comandante da Milícia. Era um grande guerrilheiro, grande conhecedor da região no Chão Manjaco, fiel aos seus princípios, amigo do seu amigo, daí que ainda hoje seja recordado com respeito pela generalidade daqueles que com ele lidaram mais de perto. Infelizmente o Dandi [, ou Dandy,], como muitas outros que estiveram do nosso lado, acabaria por ter um fim trágico, após a nossa retirada da Guiné. Pura e simplesmente foi eliminado em circunstâncias mais ou menos obscuras, como é “usual” nestes casos.

Fora o aspecto militar, era uma pessoa como tantas outras e, enquadrada naquilo que era considerado natural socioculturalmente dentro das diversas etnias na Guiné, ou seja, com um peso religioso muito determinante no que respeita ao relacionamento e tratamento dos seus filhos e suas mulheres.

Sendo quem era, para além do que já referi no contexto militar, também no aspecto civil, se assim se pode considerar ou desassociar, era igualmente muito respeitado (ou temido?), tendo um estatuto acima da média dos restantes elementos da população masculina da tabanca, daí que no meu tempo de Jolmete, era casado (ou possuía) 4 mulheres. Era uma situação perfeitamente aceite por todos tendo em conta a sua crença religiosa, que nem sequer chocava aqueles que, da nossa parte, se assumiam mais ortodoxos quanto a esses hábitos, religiosamente falando.

Até aqui tudo bem, só que o nosso amigo Dandi nem sempre se mostravam muito “civilizado” (no nosso conceito) relativamente ao relacionamento que tinha para com as suas mulheres, sendo por vezes uma pessoa muito agressiva e até prepotente. Era do nosso conhecimento que com alguma frequência lhes batia, principalmente nas mais velhas, algo que de facto nos incomodava mas, dadas as circunstâncias, não tínhamos grandes hipóteses de interferir.

Estando este facto em determinada altura a tomar proporções alarmantes, diria mesmo, preocupantes, uma das suas mulheres tomou a decisão de fugir, daí ter tentado por diversas vezes obter sem êxito o “passaporte” (guia de transporte) para dali sair e assim escapar aos maus tratos a que estava a ser sujeita.

Ora isto era algo quase impensável, e ninguém se atrevia a deixar sair umas das mulheres do Dandi, sem ele ter conhecimento de tal facto. Ela só poderia ausentar-se de Jolmete se houvesse uma prévia autorização do Comandante da Milícia. Pôr-se a caminho sozinha, estava fora de questão, pois seria facilmente apanhada, pelo que a única solução era mesmo aproveitar uma das ausências do marido para sair através de um transporte, primeiro até ao Pelundo, e depois com ajuda de familiares iria tentar seguir para norte. Para que isto resultasse era preciso o envolvimento (conivência) de várias pessoas, dada a “complexidade” da situação.

Tomada a decisão por parte do meu amigo Borges, 1.º Cabo, impedido do Comandante de Companhia, em ajudar a infeliz mulher, restava organizar o esquema para que os resultados fossem os desejados. Assim, em determinado dia de ausência mais ao menos prolongada do Dandi e coincidente com uma coluna para o Pelundo, combinou-se a fuga da Nhimba Djassi. Para não sair directamente do quartel, ela apanhou a viatura na bolanha onde íamos à água, cujo abrandamento era quase obrigatório, e onde se montava sempre uma pequena segurança para entrada de outro pessoal. A mesma era conduzida pelo nosso amigo “Bob”, que já estava identificado com o esquema. Sendo eu o chefe de viatura, limitei-me a conferir se estava tudo correcto com a guia de transporte, e lá seguimos viagem.

Até ao dia em que o Dandi chegou e se deparou com a fuga desta sua mulher, as coisas aparentemente correram bem, só que não tendo ele conseguido trazer de volta a Nhimba para casa por já não estar no Pelundo, começaram as complicações. Soubemos mais tarde que ela havia conseguido chegar até ao Cacheu, e dali até uma aldeia na fronteira do Senegal, sítio onde praticamente estaria a salvo de uma possível investida do seu marido.

O Comandante de Companhia ainda tentou resolver pessoalmente o assunto, mas não conseguiu convencer o Dandi a esquecer o comportamento da mulher, pelo que o acontecimento passou para o conhecimento do Comandante de Batalhão, e mais tarde para o Comandante do CAOP1, Coronel Paraquedista Rafael Durão. Quando o vimos sair do seu DO a perguntar pelo Cabo que havia passado a guia de transporte para a Nhimba, para lhe partir o “focinho” (era hábito ele resolver tudo ao murro e à chapada), o Borges já não sabia onde se havia de meter, e nós pensámos logo... “estamos feitos!”.

Comigo e com o “Bob” acabou por não haver qualquer problema, pois limitámo-nos a dar cumprimento ao que era normal nestas situações mas, com o Cabo “Bigodes”, tendo a situação ultrapassado o que estava estabelecido, as coisas começaram a complicar-se. Importa salientar que o Dandi era medalhado com a Cruz de Guerra, e tinha alguma influência / impacto junto das altas esferas militares, e foi assim que inclusive o assunto chegou também ao conhecimento do General Spínola.

Tendo este acontecimento ocorrido já bem perto do final da comissão e, portanto, já de saída de parte do Batalhão para o Cumuré, começaram desde logo a correr os mais variados boatos tais como, que o Borges ia ficar preso, que o Companhia ia ser castigada com mais tempo de comissão, que o Dandi havia de se vingar, enfim era já a ansiedade da partida para a metrópole a baralhar o raciocínio do pessoal.

A situação não ficou resolvida sem o nosso amigo Borges ser chamado ao Quartel-General,  já bem perto do dia do embarque, onde se deparou com uma mesa cheia de oficiais superiores para saberem o que efectivamente se havia passado. Contou ele mais tarde que o interrogatório foi de tal ordem que a determinada altura quase faltou dizer que ele até nem gostava de mulheres, pois o problema descambou para a possibilidade do seu possível envolvimento com a Nhimba. Felizmente lá conseguiu argumentar da melhor forma (dar a volta ao texto), explicando que tudo não tinha passado de um grande equívoco e baralhação de nomes.

O General Spínola acabou por dar o caso como encerrado, mas o Cabo “Bigodes” só se sentiu realmente seguro e aliviado, quando o navio Uíge largou amarradas e, pelo Geba abaixo, se dirigiu ao alto mar.

Como se costuma dizer, não ganhou (ganhámos) para o susto… No fim, tudo acabou em bem, até porque o Dandi acabaria por aceitar sem mais problemas o desfecho. Importa salientar que a Nhimba Djassi era a sua mulher mais velha, talvez por isso se tornasse mais fácil arranjar uma outra mais nova… (minha suposição).

Jolmete, Maio de 1972 > À entrada do meu abrigo

Jolmete, Junho de 1972 > Com uma cria de cabra de mato

Jolmete, Junho de 1972 > Tempo de matar a sede

Jolmete, Junho de 1972 > De pé com os meus amigos Bob, à esquerda, e Bigodes; à direita

Jolmete, Agosto de 1972 > Estrada velha de Buba

Jolmete, 1971 > Vista aérea do Quartel

Mapa da Guiné > Região do Cacheu

Navio Uíge no alto mar
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10432: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (12): A minha primeira noite no Jol

Guiné 63/74 - P10494: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (7): Cufar, 1970 (Parte I)


Foto nº 58

Foto nº 61


Foto nº 59


Foto nº 67

Guiné > Região de Tombali > Cufar > Pel Caç Nat 51 > 1970 > Álbum fotográfico do Armindo Batata, ex-alf mil, que esteve em Guileje de janeiro de 1969 a janeiro de 1970, e depois em Cufar... De cima para baixo: fotos nºs 58, 61,  53, 59 e 67. No foto 58, está o Armindo, o primeiro, à esquerda, de óculos, possivelmente acompanhado de dois dos seus furrieis ou cabos, metropolitanos.

Não sabemos  quanto tempo é que o nosso camarada Armindo Batata, de rendição individual, esteve em Cufar, a comandar o Pel Caç Nat 51...Possivelmente uns 9 meses, até acabar a sua comissão.  Estas fotos, tal como as restantes que foram cedidas ao Núcleo Museológico Memória de Guiledje, não têm legendas. Espero que, depois, o Armindo nos dê uma ajuda... LG



 Fotos: © Armindo Batata (2007). / AD - Acção para o Desenvolvimento Todos os direitos reservados [Fotos editadas por L.G.]

Guiné 63/74 - P10493: Agenda cultural (220): Apresentação do livro "Alpoim Calvão Honra e Dever", dia 11 de Outubro, pelas 18h30, na Sociedade de Geografia em Lisboa

APRESENTAÇÃO DO LIVRO "ALPOIM CALVÃO - HONRA E DEVER", DIA 11 DE OUTUBRO DE 2012, PELAS 18H30, NA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA - SALA PORTUGAL, RUA PORTAS DE SANTO ANTÃO, 100


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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10472: Agenda cultural (219): Lançamento do livro de Julião Soares Sousa, "Guiné-Bissau: A Destruição De Um País", dia 5 de Outubro de 2012, pelas 18h45 na FNAC do Colombo, Lisboa

Guiné 63/74 - P10492: O PIFAS de saudosa memória (15): Compactos de gravação, Parte I (Garcez Costa, ex-fur mil, 1970/72)



Vídeo (6' 23''):  Guiné, Bissau, PFA - Programa das Forças Armadas, s/d []c. 1970/72]... Alojado no You Tube > Nhabijoes

© Garcez Costa (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine. Todos os direitos reservados


1. Mensagem do Garcez Costa, ex-radialista do PFA - Programa das Forças Armadas (1970/72), com data de 21 de setembro último:




De acordo com a promessa seguem anexados 3 compactos de gravações que aqui e acolá foram para o ar...

A compilação está referenciada com os indicativos:
1 - P.F.A. (Programa das Forças Armadas)
2 - P.F.A. Nocturno
3 - Noite 7 (Emissão especial aos Sábados)

Viva o Pifas e quem o apoiar!
G.C.  [Garcez Costa]
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10393: O PIFAS de saudosa memória (14): Garcez Costa e mais alguns camaradas do seu tempo (1970/72)

Guiné 63/74 - P10491: Parabéns a você (478): Jorge Rosales, ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ (Guiné, 1964/66)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10477: Parabéns a você (477): Artur Conceição, ex-Soldado TRMS da CART 730 (Guiné, 1965/67) e Inácio Silva, ex-1.º Cabo Apont Metral da CART 2732 (Guiné, 1970/72)

sábado, 6 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)

Todos fomos INFANTES: 
Infantes na Idade; 
Infantes no Esforço; 
Infantes no Combate; 
Infantes na Nobreza, 

Somos soldados mal-amados, não só depois de mortos, mas ainda em vida!
 
Monumento de homenagem AO VALOR DO INFANTE, em Mafra


Os que caíram pela Pátria!

Os soldados não morrem, apenas tombam no campo da honra!

Desde o inicio desse ano de 1961 que, ano após ano, Portugal mobilizou o seu povo para, de armas na mão, dar combate a movimentos de libertação que a 4 de Fevereiro de 1961, em Angola; a 23 de Janeiro de 1963, na Guiné; e em 24 de Setembro de 1964 em Moçambique, iniciaram a luta armada pela sua libertação.

Embarque de militares para África. Lisboa> Cais da Rocha Conde Óbidos> 18 de Agosto de 1965> Embarque, no T/T Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para o TO Guiné. 
© Foto: Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados. 


Seguem-se treze anos de incertezas e ansiedade, resultado de uma guerra, que a principio foi denominada como “acção de polícia”, que fez deslocar para África mais de 800.000 militares, na sua maioria milicianos, além de muitos recrutados nos próprios Teatros de Operação, africanos e europeus, tendo sido contados, no final da guerra, mais de 9000 efectivos tombados, não estando incluídas neste número as populações atingidas por actos de guerra ou efeitos colaterais. Quando os primeiros efectivos foram mobilizados e partiram para Angola, era provável que a “possibilidade de morte em combate” não estivesse na mente dos militares, em especial os conscritos – militares do serviço obrigatório – porque “ainda andavam no ar” as notícias e as fotos dos massacres iniciais, assim como a “promessa” de rápida resolução da revolta.

Falavam que o inimigo da Pátria estava muito mal armado, dispunham apenas de catanas e algumas, poucas, armas de caça. Bastava a tropa aparecer, mostrar-se no terreno e os terroristas fugiriam a bom fugir.

Deixando o perímetro urbano, as unidades encarregadas da reocupação e restabelecimento da ordem nas zonas sublevadas, defrontam-se com as primeiras “contrariedades” da situação de guerra.

Lançada a operação, não havia possibilidade de “voltar atrás”. As primeiras contrariedades, humanas, foram levantadas pelas doenças originadas, ou pelo clima, ou pelas águas utilizadas ou pela alteração drástica da forma de alimentação, mas, também, devido à exaustão pelo esforço dispendido; havia também que ter em conta os ferimentos contraídos nos trabalhos de recuperação das vias. Os doentes e/ou os feridos “entravam de baixa” e seguiam nas viaturas, uma vez que não existiam meios aéreos para proceder a evacuações e, muito menos, podiam dispensar viaturas e homens, para os fazer regressar ao ponto de apoio mais próximo. Só os mais graves eram evacuados.

As estradas/picadas estavam obstruídas, ou por abatines ou por valas, o que levava à intervenção da Engenharia, enquanto a Infantaria procedia à segurança das forças empenhadas na recuperação das mesmas, o que causava atrasos no execução das missões traçadas e planeadas para rapidamente atingirem os objectivos.

Cemitério Militar de Bissau – Talhão Central 
© Foto: Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné (DR)

Mas os rios também apresentavam as suas dificuldades. Para que fosse possível a sua travessia/cambança, era necessário reparar e/ou reforçar as pontes, ou mesmo construir novas pontes de raiz. No entanto, tudo isto fazia/faz parte das operações militares que, no início da última das campanhas portuguesas em África e, como guerra que era, custou os muitos mortos nas fileiras dos últimos Soldados do Império.

Ao surgirem os primeiros tombados em campanha, há que dar destino aos corpos dos combatentes, pelo que se aplicaram as normas seguidas durante a I Grande Guerra e durante os anos em que Portugal permaneceu nas suas possessões: sepultar os corpos na território em que ocorreu o óbito, numa campa devidamente identificada, no cemitério da localidade mais próxima da unidade, sendo a mesma unidade responsável pela sua manutenção, o que muitos de nós pudemos verificar aquando da nossa passagem por aquelas terras. Alguns, devido a causas várias, tiveram que ficar em campas isoladas no local em que tombaram.

As famílias tinham, porém, a opção de fazerem trasladar os corpos dos seus entes queridos para serem inumados junto dos seus antepassados, desde que o requeressem e se, cumprindo determinadas regras, para o que foram sendo difundidos diversos documentos.

O Exército assume o encargo de trasladar as ossadas dos militares, cinco anos após o seu enterramento, mesmo quando a trasladação fosse pedida pela família, de acordo com a Circular n.º 5/PJ, da 1.ª Repartição do Estado-Maior do Exército, de 27 de Fevereiro de 1961. Para que tal fosse possível, as famílias teriam que apresentar requerimento e efectuar um depósito de uma caução, variável entre dez a quinze mil escudos, podendo ser substituída por declaração de entidade ou pessoa, considerada idónea pelos serviços militares, para assumir o encargo das despesas.

Em Novembro de 1961, assume, também, o encargo das diligências com o desembaraço alfandegário dos corpos e o transporte dos mesmos para a Capela do Hospital da Estrela, em Lisboa, onde os mesmos seriam entregues à família, que se encarregaria do seu transporte e sepultamento.

Por despacho do Subsecretário de Estado do Exército de 28 de Fevereiro de 1963, passa a garantir o transporte gratuito dos corpos, em navios fretados, sendo as despesas por conta da família, a partir do cais de desembarque.

Porém, no mês de Março de 1963, novo despacho do Subsecretário de Estado do Exército, passa a facultar a utilização dos barcos fretados para a trasladação das ossadas ou corpos dos militares que fosse feita por iniciativa das famílias.

Trasladação de restos mortais de militar. 
© Foto José Martins

Nova circular, de 15 de Junho de 1965, estabelece que a trasladação dos corpos de militares falecidos terá de ser a pedido da família e por sua conta, mediante caução a indicar pelo Depósito Geral de Adidos. Facilitava o transporte gratuito das urnas, em navios fretados, garantindo também o desembaraçamento alfandegário das mesmas e o transporte até à capela do Hospital Militar Principal, à Estrela, em Lisboa. As famílias podiam pedir o transporte gratuito, para as suas localidades, dependendo a sua atribuição das disponibilidades da instituição militar.

A 4 de Fevereiro de 1966, cinco anos após o início da guerra, são aprovadas as “Normas Reguladoras de Trasladações de Ossadas Militares”, que estabelece a gratuitidade do transporte das ossadas dos militares falecidos no Ultramar, para a Metrópole ou Ilhas Adjacentes, quer a trasladação fosse solicitada pela família ou por iniciativa do Exército. Neste último caso, previa-se que a remoção fosse feita para um Ossário Militar Central, em Lisboa, ou para Ossários Militares a construir em cada uma das Províncias Ultramarinas.

A publicação do “Regulamento das Trasladações”, em 2 de Março de 1966, visou reunir todas as disposições sobre esta temática, aplicando-se a todos os restos mortais dos militares falecidos ou inumados no Ultramar. O Exército garante o transporte dos corpos e ossadas, assim como os encargos pela obtenção de toda a documentação necessária para o efeito, desde o território onde o militar tenha tombado, até Lisboa, assim como o transporte até ao local de enterramento indicado pela família. O transporte dos corpos ou ossadas, será efectuado por transporte militar ou fretado. Se fosse desejo da família e/ou a pedido desta, esse transporte poderia ser efectuado nas carreiras regulares existentes, tendo de depositar as verbas de 1.953$50 no caso da Guiné; 2.990$00 para Angola e 5.520$00 de Moçambique. O requerimento deveria ser apresentado ao Ministro do Exército, e ser acompanhado por documento emitido pela autoridade que superintendesse na administração do cemitério – Município, freguesia ou outra entidade – comprovando que estava assegurado local para depósito do corpo do seu familiar.

Das normas referidas anteriormente, até 4 de Fevereiro do 1966, embora nos pareça que não estivesse a ser “cumprida na totalidade”, constava a obtenção de declaração de responsabilidade da despesa que fosse necessária para a trasladação das ossadas e corpos, caso a família os reclamasse. Esta questão foi, em muitos casos contornada pelas unidades que, aquando de algum infausto acontecimento, todos os elementos se prontificavam a participar, proporcionalmente ao seu vencimento ou pré, nos custos da trasladação.

Era preocupação constante do Exército, pela literatura consultada, tratar com toda a dignidade possível os corpos dos militares “Tombados na campo da honra”. Antes do embarque, a cada militar teria sido entregue uma chapa de identificação, em metal - porém nem todos a receberam – no formato redondo, que deveria ser colocada ao pescoço com uma corrente metálica, “picotada a meio”, contendo em cada metade o número de identificação ou número mecanográfico assim como o último nome.

A metade superior, da chapa de identificação, acompanharia os restos mortais do militar, enquanto a “segunda metade” seria colocada na urna, para identificação. Também seria efectuado o registo do local de sepultamento, assim como a movimentação do corpo, a fim de haver uma noção exacta da sua localização.

As causas, que originaram os 8290 militares tombados em campanha [1], são mais vastas que as que se deparam na nossa vida quotidiana. Além dos riscos inerentes ao “estar vivo”, há a questão de, simultaneamente, se estar “em guerra”, o que também implica o manuseamento de armas, munições e explosivos.
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[1] – Dos tombados em campanha, de acordo com o 1.º Volume da Resenha Histórico Militar das Campanhas de África (1961-1974), páginas 264, 265 e 266, foram as seguintes as causas e números, nos três Teatros de Operações:

Angola

Em combate: 1306 militares = 40,09%;
Acidente com arma de fogo: 344 militares = 10,56%;
Acidente de viação: 860 militares = 26,39%;
Outras causas: 748 militares = 22,96%;

Total: 3258 militares = 39,3% no universo de 8290 tombados durante o conflito.
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Guiné

Em combate: 1240 militares = 59,90%;
Acidente com arma de fogo: 207 militares = 10,01%;
Acidente de viação: 153 militares = 7,39%;
Outras causas: 470 militares = 22,70%;

Total: 2070 militares = 24,98% no universo de 8290 tombados durante o conflito.
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Moçambique

Em combate: 1481 militares = 50%;
Acidente com arma de fogo: 234 militares = 7,90%;
Acidente de viação: 467 militares = 15,76%;
Outras causas: 780 militares = 26,34%;

Total: 2962 militares = 35,72% no universo de 8290 tombados durante o conflito.
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Totais nos 3 TOs

Em combate: 4027 militares = 48,58%;
Acidente com arma de fogo: 785 militares = 9,47%;
Acidente de viação: 1480 militares = 17,85%;
Outras causas: 1998 militares = 24,1%.
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A causa “outras causas”, onde se incluem as “doenças, afogamentos, agressões físicas, electrocussão, queda do cima de árvore, incêndio, explosão de combustíveis, ou outras”, era agravada com o facto dos militares se encontrarem em territórios em que, o clima era muito diferente do das suas terras de origem; a qualidade das águas, quer para a confecção da comida quer para beber, ou a mesmo destinada à higiene diária; os próprios alimentos, muitos dos quais produzidos na metrópole, entre eles os chamados “frescos”, e transportados para os territórios em guerra, que obrigava a muitos transportes e armazenagens, algumas das vezes em locais sem as condições mínimas; a maior ou menor resistência às situações de combate e, sobretudo, à angustia da espera ou a expectativa do “minuto seguinte”; a correspondência, único “elo de ligação” com o passado recente e com a família e amigos, era a diferença entre o “tudo ou nada” para um bom equilíbrio dos militares; o intervalo, irregular, que mediava a chegada ou a inexistência de correspondência, também podia desequilibrar mentalmente muitos dos nossos militares, mesmo sem a existência de notícias “menos boas”; neste grupo também se incluem os “acidentes” ocasionados com a actividade dum destacamento ou quartel, entre elas quedas e outros trabalhos. Também houve acidentes de aviação, com quedas de aeronaves ou causas fortuitas na entradas ou saídas das aeronaves, por locais não aconselhados, nomeadamente junto às hélices.

Outra causa que provocou baixas nas nossas tropas foram os “acidentes de viação”. Razões? Várias, naturalmente. Cabe aqui referir que, na maior parte das vezes, o Exército, dado ter sido a Ramo das Forças Armadas que mais militares empenhou nestas campanhas, não “olhou” muito para as qualificações/especializações civis dos seus recrutados, excepção feitas aos licenciados em medicina.

Hospital Militar de Bissau nos anos 70 

Mas, voltando à condução, e sobre esta matéria os próprios “especialistas militares” muito terão a dizer, já que para muitos deles, era a primeira vez que se sentavam aos comandos de uma viatura.

O “parque automóvel militar” era farto em marcas e modelos. A necessidade da existência de viaturas “a andar fosse em que condições fosse”, daí que a forma e comportamento das viaturas, assim como a maior ou menor condição e/ou comportamento do condutor, pudesse estar na causa dos acidentes, não esquecendo as condições das vias de comunicação, que variavam muitíssimo de local para local.

Mas havia outro tipo de acidentes: os “acidentes com arma de fogo”, cuja fronteira com falecimento/ferimentos em combate, é muito estreita e sujeita a classificações subjectivas. Dentro destes acidentes, muitos e variadas armas: além das espingardas “G3” ou “FN”, também existiam outras mais antigas e menos seguras, como a FBP, Walther, ou outras; as granadas de mão, ofensivas e defensivas, de morteiro ou de “bazooka”, com algum tempo de armazenamento, poderiam apresentar graus de maior ou menos segurança; armadilhas e minas, especialmente as minas montados pelo inimigo, e para cuja desmontagem havia prémios pecuniários, contaram para o número dos “atingidos”; os ”tiros inopinados”, também apontados com origem em suicídios ou homicídios, que só os próprios poderiam apontar as razões, consequências funestas, também, do “fogo amigo”.

Alpoim Calvão e o seu grupo de combate. 

Os “ferimentos em combate” que seria a causa que mais baixas provocava, quer em tombados directamente quer em consequência dos ferimentos obtidos nos combates, foi, sem réstia de dúvida, a que mais traumas provocou, dado que muitas vezes havia a “impotência dos enfermeiros de guerra” em fazer parar o “avanço do fim”, sendo a grande esperança, de todos, a descida dos céus dos Anjos da Guarda, em forma de Enfermeiras Pára-quedistas, visto que isto significava a evacuação para a retaguarda e a chegada de uma nova esperança.

A morte, por si só, já é traumática. Vejamos que, na actualidade, quando há um acidente, sejam quais foram as circunstâncias, as autoridades iniciam todos os esforços para a recuperação do corpo, “para que haja funeral e se possa fazer o luto”.

Esse sentimento de ausência, agravado pela chegada do fatídico telegrama de má noticia, sentiram muitas famílias, do lado de cá, mas também o sentiram os militares que foram privados da presença dos seus camaradas, e muitos tiveram de ser recolhidos, no campo de batalha, quando atingidos pela explosão das granadas ou minas e eram projectados para vários locais, como Luís de Camões descreve, como se tratasse de uma antecipação, nos primeiros quatro versos do Canto III, Estrofe LII de “Os Lusíadas”:

“Cabeças pelo campo vão saltando, 
Braços, pernas, sem dono e sem sentido 
E de outros as entranhas palpitando, 
Pálida a cor, o gesto amortecido.”

A preparação dos corpos e a sua colocação no ataúde, era feito pelos camaradas, alguns deles observando a morte pela primeira vez, e isto depois de aguardarem algum tempo pela chegada da urna, que eram “equipamentos” que não existiam no quartel das forças em quadricula.

Para o equilíbrio emocional dos combatentes, era necessário retirar os corpos do destacamento, o mais rápido possível. Também era necessário, e urgente, fazer chegar, tão breve quanto possível, para que a família fizesse o luto e o enterro, no Campo Santo da aldeia, vila ou cidade. Também era necessário proceder, com cuidado mas com urgência, a elaboração do competente “auto de morte em serviço”, para que pudesse ser atribuída à família - pais, esposa ou irmãos menores - a respectiva pensão de sangue que, muitas vezes, ia minimizar os problemas pecuniários da família que, privada de parte do salário que o militar auferia antes da sua incorporação, dependia da parte do pré que ficava na metrópole.

Cemitério com campas de militares 
© Foto: José Martins

Para haver luto, para haver funeral, para haver pensão de sangue, era “obrigatório” haver corpo. Talvez por isso, quando acontecia que, no final dum combate mais duro e que provocava, além dos feridos muitos mortos, mesmo que alguém tivesse sido “retido pelo inimigo”, ou numa linguagem mais terra a terra, ter sido feito prisioneiro, na ausência desse conhecimento e na impossibilidade de identificar os “restos mortais” dos tombados, eram “repartidos” pelo número dos que “não responderam à chamada”. Daí o ter acontecido que, quando os desaparecidos foram resgatados ou libertados, ao regressarem às suas terras de origem, se viram confrontados com a existência de campas em seu nome, que eram objecto de veneração das suas famílias e amigos. São as “malhas que o Império tece”, ou teceu.

Durante treze anos foram tomadas, quer pelos Governos quer pela Assembleia Nacional, medidas tendentes a levar a “bom porto” as politicas que iam implantando nos antigos territórios portugueses, enquanto os militares, cumprindo as sua comissões de serviços nas diversas possessões, davam tempo para que se resolvesse a situação pela via politica, até que o denominado Movimento das Forças Armadas, idealizado e executados por militares do Quadro Permanente e do Quadro de Complemento, originou a queda do regime nascido do Estado Novo, implantando um regime democrático no país.

Estava consumada uma operação militar, no território continental ou metropolitano, que abria as portas à “Descolonização e à Liberdade”

Militares na madrugada do 25 de Abril 
© Foto Google (DR)

Porém, o Dia da Liberdade, começou para muitos militares muito mais cedo. Na década de 50 do Século XX, o tempo de Serviço Militar Obrigatório era de 18 meses que, grosso modo, correspondia a seis meses de instrução básica e especialidade, acrescida de um ano de serviço efectivo. Muitos destes militares foram destacados, em missão de reforço, para os antigos territórios, onde foram surpreendidos com o início das hostilidades, hostilidades essas que já vinham dando sinais de evidência. Assim, os que foram “surpreendidos” pela mobilização com embarque aprazado “para os próximos dias”, partiram e regressaram mas já com as suas vidas adiadas. A sua mobilização, nalguns casos, tinha sido efectuada já com alguns meses de serviço efectivo e, ao voltarem, apenas tinham em mente recuperar o emprego que tinham deixado e recomeçar a viver. Falar da guerra? Não, muito obrigado, Era já passado e, para quê falar de “coisas” que, por não serem próximas dos interlocutores, seriam sempre de “duvidosa veracidade”, facto que ainda hoje perdura.

E o que acontecia a quem “estava na lista de espera”?
Só muito recentemente, e por muito incrível que possa parecer, só muito recentemente se “começou a falar disso!”.

A ideia transmitida “urbi et orbi”, em 1961 pelos governantes, é de que estaria para breve o “fim da guerra”, chegando a ser “anunciado o seu fim”, pelo que mais valia aguardar o correr do tempo. Assim, melhor seria, não fazer futurologia. Foi a ida, para todos, mas no regresso, faltaram alguns. Os que tombaram.

Mas houve, nestes regressos, algo estranho.

Dos que partiram muitos não regressaram e, muito provavelmente, nunca voltarão. Ficaram “perdidos” nas matas, savanas e bolanhas de África. Ficaram presos ao calor da terra, ficaram indelevelmente ligados ao fascínio daqueles povos. Antes da apresentação para o serviço militar, quais eram as motivações que estes jovens tinham? Que futuro, pós África, os esperava?

Os que trabalhavam no campo, Portugal tinha lavradores, sabiam que as colheitas dos anos seguintes não seriam feitas pelas suas mãos, Os que trabalhavam nas fábricas, Portugal tinha operários, sabiam que aquelas máquinas não seriam manuseadas, nos anos seguintes, pelas suas mãos.

Os trabalhavam nos escritórios das empresas, Portugal tinha empregados, sabiam que as contas não seriam escrituradas, nos exercícios seguintes, pelas suas mãos. Os estudantes nas escolas, Portugal tinha estudantes, sabiam que os testes, dos anos escolares seguintes, não seriam escritos pelas suas mãos.

Tinham o futuro suspenso e, caso tudo corresse bem, tinham um “afastamento do mundo” de cerca de três anos.

O regresso ao porto de partida – Lisboa 
© Foto UTW (DR)

Dos que partiram, nem todos regressaram ou regressaram precocemente, por razões diversas: o clima, a alimentação, a desidratação, o isolamento, a ansiedade e, até a falta de noticias da família; os acidentes de viação, a utilização e/ou o manuseamento de armas, em condições anómalas, ou quedas sofridas durante as operações ou nos serviços do aquartelamento; o rebentamento de minas e armadilhas, accionadas inadvertidamente aquando da montagem e/ou desactivação: a não resposta à chamada, durante alguma acção, de camaradas desaparecidos, nos rios ou nas matas, por se terem perdido ou terem sido capturados; os feridos em combate, atingidos por tiros, estilhaços de granadas e/ou rebentamento de engenhos explosivos, de que resultaram ferimentos graves e mutilações, quer nos atingidos quer nos camaradas próximos. Muitas destas razões provocaram a evacuação dos “atingidos directamente” para um posto de socorro de retaguarda e, nalguns casos, o regresso ao Teatro de Operações, mas para outra unidade, já que a sua ausência havia sido complementada por novas mobilizações.

“Mas quando alguém do nosso grupo cai, 
‘inda é pior, ‘inda sofremos mais. 
Faz-nos sentir, faz-nos pensar 
Talvez da próxima vez 
Seja eu, quem vai tombar!”

Versos ouvidos, repetidos, sentidos e sofridos por quem por lá andou.

A queda de alguém que “tombou no campo da honra” era, e ainda é, terrível não só por quem o passou directamente, mas de quem dele teve conhecimento, mesmo que indirecto e, por força da sua vivência de guerra, acabou por causar traumas, muito semelhantes, aos que foram atingidos directamente.

A guerra acabou, o tempo passou, a idade chegou!

O “fantasma dormente”, porque nunca tinha adormecido, resolve manifestar-se na sua plenitude, fazendo regressar o “passado” que se pretendia esquecido. A nossa vida passa a ser um turbilhão, uma roda-viva que não nos permite parar e não mais nos dá tréguas. No nosso subconsciente voltamos a envergar a farda, voltamos a partir no barco, tomamos a arma em nossas mãos e, para nosso mal, voltamos a viver o que já tínhamos vivido. Não era uma nova vida nem um regressar ao passado. Havia rostos novos. Havia locais não conhecidos e não identificados.

Há braços que se estendem na nossa direcção, mas não agarramos!
Há bocas que gritam, mas não conseguimos ouvir a sua voz!
Há corpos que se querem levantar, e não podem!
Há quem queira regressar, e não sabe o caminho!

Quem será que nos acena, quem será que nos chama, quem é que se quer levantar, quem é que não sabe o caminho? Quem será?

Cemitério de Gabú (antiga Nova Lamego) – Leste da Guiné 
© Foto: Revista "Combatente", edição 339, Março 2007, pág. 40

Só podem ser ELES, os nossos camaradas. Ficaram lá, na terra que já não é Portugal. São os Combatentes que querem “regressar a casa”.

A Liga dos Combatentes, através do seu programa da Conservação das Memórias, já localizou a maior parte dos corpos que por lá ficaram; em Lisboa existe local para os receber, na Cripta do Cemitério Militar do Alto de São João ou no Campo Santo das suas terras; as Normas aprovadas pelo Estado-Maior do Exército, não foram revogadas; a nossa vontade e o nosso desejo indómito de os trazer de volta, existem. Nem todos os que faltaram “à chamada” poderão voltar. Muitos não estão localizados, pois o tempo que passou, os locais onde foram sepultados alterou-se; muitos foram abraçados e arrastados pelas fortes correntes dos rios; outros ficaram retidos pelo inimigo e morreram no cativeiro; outros tombaram no terreno durante o combate, e os seus corpos não foram recuperados.

Não estão localizados, mas continuam presentes na nossa memória, e o seu esforço jamais será esquecido por nós, seus camaradas de armas que, infelizmente, cada vez mais, nós somos menos. Menos em tudo.

Mas o que é que aconteceu no tempo “pós guerra”? Qual foi a reacção do Povo Português face ao regresso dos seus membros “tornados militares”?

Enquanto da Grande Guerra o país assistiu à saída dos seus soldados que, ou foram voltando à medida que iam sendo dado como incapazes para o serviço e, apesar das muitas promessas nunca foram substituídos, viram regressar, os sobreviventes, num ritmo acelerado, mediando entre a partida e a chegada cerca de dois anos.

Na Guerra Colonial, depois de um “andar rapidamente e em força” para África, as unidades iriam, inicialmente para Angola, e de seguida para a Guine e Moçambique, e após, entre dezoito e vinte e quatro meses, seriam substituídas por novas unidades idas da metrópole, para que os substituídos regressassem. E tal foi o ritmo com que se procederam a estas partidas e chegadas, que se tornou “normal” o movimento registado no Cais da Rocha do Conde de Óbidos. De tal forma que só os familiares, mais próximos, e os amigos chegados, se apercebiam “destas viagens”, excepção apenas para as comunidades aldeãs do interior. A partida e a chegada, dos militares das unidades mobilizadas, mediavam cerca de vinte e quatro meses, mas entre os primeiros e os últimos soldados a partir e a regressar, mediaram catorze anos.

Depois do apontar destas diferenças, e do facto de em 1919 as forças políticas serem “uma continuidade no tempo e no espaço”. Em 1974 houve a substituição do Governo por uma Junta de Salvação Nacional, mas e curiosamente, formada por militares e antigos combatentes. Mas soprava, e soprava com muita força, “um vento de mudança” que alterou radicalmente os festejos à recepção dos soldados regressados da França, para gritos de “fascistas e colonialistas” vertendo sobre os últimos dos “últimos Soldados da África”, a raiva contida e, nesse momento incontida, por um regime ditatorial. Os soldados eram da mesma massa; os objectivos eram e foram a defesa das colónias; só os tempos tinham mudado.

O Movimento Nacional Feminino, com defeitos para uns e virtudes para outros, era uma organização que conhecia, quer na metrópole quer em qualquer um dos teatros de operação, o pensar e as necessidades das famílias e dos militares. Começou em 28 de Abril de 1961 e, terminou, com a revolução de Abril em 1974. Muita falta fez na assistência, não só aos militares que ficaram com deficiência, mas também às suas famílias. Ninguém estava preparado para o tempo que se seguiu, e dura ainda, Foi como a Cruzada das Mulheres Portuguesas, organização criada em 20 de Março de 1916, formada por senhores ligadas ao poder político, e que se dedicou a formar e/ou preparar, as suas voluntárias, para actuarem como enfermeiras, não só na retaguarda como junto aos Hospitais de Sangue do CEP.

Local onde se respira, Lealdade, Heroicidade, Memória e Saudade. Cripta dos Combatentes – Alto de São João - Lisboa 
© Foto José Martins

A Cruzada criou um Instituto de Reeducação de Mutilados de Guerra, para acompanhar e assistir os soldados mutilados e feridos na sua recuperação; teve a seu cargo a educação e apoio escolar de 285 órfãos de guerra, rapazes e raparigas, tratando da sua integração na sociedade; este movimento só foi extinto em 1938, dezanove anos depois da guerra terminar, tendo o seu património transferido para a então Liga dos Combatentes da Grande Guerra.

No que respeita a perpetuação da memória e do esforço dos militares que participaram na Grande Guerra, tombados no Campo da Honra, o Governo promove a trasladação dos corpos de dois soldados tombados, um em Moçambique e outro na Flandres, decisão inscrita no Diário da Câmara de Deputados, em 18 de Março de 1921, a inumar na Sala do Capítulo da Batalha, em cerimónia militar e nacional, a realizar em 9 de Abril do ano seguinte.

Também, em 3 de Dezembro de 1921, foi constituída a Comissão dos Padrões da Grande Guerra que, ao longo de 25 anos, acompanhou a construção de muitos padrões erigidos aos combatentes tombados, erigidos pelas autoridades concelhias e pelo povo de norte a sul da país, ilhas adjacentes e diversos locais nas colónias, colocando o nome dos seus conterrâneos que haviam partido e por lá haviam ficado.

Quanto ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, a ideia da sua construção foi lançada em 29 de Janeiro de 1987, no 13.º ano após o fim da mesma, vindo o mesmo a ser inaugurado, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Lisboa, no dia 15 de Janeiro de 1994, ou seja quase vinte anos após o fim da guerra. Nesse mesmo ano foi efectuado o 1.º Encontro Nacional de Combatentes, que se tem realizado, anualmente, no dia 10 de Junho de cada ano.

Logo no 1.º Encontro, foi encarada a ideia de colocar, nas paredes do forte que rodeia o monumento lápides, tendo inscritas o nome de todos os militares que tombaram em África, nas últimas campanhas, o que veio a acontecer, tendo as mesmas lapides sido inauguradas na manhã do dia 5 de Fevereiro de 2000, ficando todo o envolvimento monumental completo, seis anos após a inauguração.

Com a Bandeira Portuguesa, apertada contra o peito. 
© Foto Google (DR)

Resta-nos ver este nosso país, Portugal que foi D'aquém e de Além-mar, cumprir o que prometeu aos seus soldados: devolvê-los ao país que os viu nascer, porque, os que voltámos e ainda aqui estamos, firmes e vigilantes, e cientes de que ainda hoje a Pátria nos chama, porque todos nós somos soldados mal-amados, não só depois de mortos, mas ainda em vida!

José Marcelino Martins
29 de Setembro de 2012
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Notas de CV:

Assim termina a publicação trabalho que o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70) dedicou aos militares que caíram pela Pátria, enviado ao Blogue em mensagem do dia 30 de Setembro de 2012.

Vd. postes da série de:

4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10479: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (1) (José Martins)
e
5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10486: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (2) (José Martins)