1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 29 de Fevereiro de 2012:
Meus queridos editores,
Há uns tempos atrás aceitei um convite dum núcleo duma organização de juventude (JS) para participar num colóquio sobre a guerra colonial, na qualidade de ex-combatente. Ao mexer agora nuns papéis, encontrei o texto base que preparei para o colóquio e, ao relê-lo, lembrei-me de vo-lo mandar. Sinceramente acho que para o blogue não traz nada de especial. Aproveita-se alguma coisa dele para publicação no blogue? Fica à vossa disposição e ao vosso critério que muito respeito.
Um grande abraço
Manuel Joaquim
REFLEXÕES SOBRE A GUERRA COLONIAL / GUINÉ-BISSAU
Por Manuel Joaquim
Muito obrigado pelo convite que me fizeram, meus caros jovens, e pelo tema que escolheram para o efeito. A guerra colonial é um tema quase esquecido. Aproveitando este número redondo, 50, que são os anos decorridos desde o seu início, têm-se sucedido algumas realizações relembrando esta guerra que foi um caso importante da vida portuguesa do século XX. Espero que esta sessão seja frutuosa e vos seja agradável e estimulante.
Para refletirmos redigi este texto de modo a não correr o risco de ficar para aqui a divagar sem atingir o meu objetivo. É uma base para sustentar o possível e desejável debate que se seguirá, espero.
Escolhi estes cinco temas mas poderão surgir outros que tenham em mente:
- Verdade e guerra
- A guerra e a sociedade portuguesa na época
- O fim da guerra
- Guiné-Bissau
- Combatente(s)
Não venho aqui pregar verdades, dou a minha opinião que até pode merecer a devida contestação. Estamos num espaço de liberdade e a liberdade é para se gozar e não para se combater, não é? Vamos lá então ao assunto.
Verdade e guerra
Há uma verdade irrefutável, a “guerra do ultramar” ou “guerra colonial”existiu. Sobre ela abundam relatos, recordações e opiniões e mesmo já alguns trabalhos de cariz histórico. É interessante verificar ser frequente encontrar versões não coincidentes sobre os mesmos factos, a maior parte das vezes por insuficiente informação e/ou por falhas de memória de quem viveu os acontecimentos e que, de boa fé, tenta dar o seu testemunho. Claro que também há quem milite para ocultar a verdade de factos que possam beliscar opinião já tomada e quem tente reescrever a história para atingir objetivos de interesse ideológico.
Ainda é cedo para tirar conclusões definitivas sobre os acontecimentos, se é que alguma vez isso virá a acontecer. A História trabalhará a informação e procurará com esse trabalho a verdade dos factos, esperemos. Por enquanto, mesmo 37 anos passados sobre o fim dos conflitos, ainda são visíveis muitos interesses que dificultam uma visão mais correta sobre a realidade que foi uma guerra com diversas frentes e sujeita às manigâncias de centrais de propaganda de diversas origens. Estava-se no tempo da “guerra fria” da qual a nossa guerra colonial também foi peça, é preciso não esquecer.
Como ainda há muitos milhares de ex-combatentes vivos há tendência para uma frequente consulta à sua memória e às suas opiniões (a minha presença aqui é um exemplo). Acho que é uma atitude essencial mas não suficiente para dela se fazer “doutrina”. Se não houver esforço para alargar o conhecimento e cruzar a diversa informação, a visão sobre a guerra sairá limitada. A maior parte dos ex-combatentes conhecerão mais ou menos a “sua” guerra, quero dizer, o que lhe aconteceu num certo tempo e num determinado local. Para uma visão global temos de procurar informação de quem andou na guerra, sim senhor, mas abarcando os mais variados tempos e lugares e consultar documentos das mais diversas fontes. Eu que fui combatente na Guiné e que sempre me interessei pelo que lá se passava nos anos seguintes a ter regressado, verifico que a minha informação sobre a guerra é muito maior hoje do que era, por exemplo, há dois anos. A minha opinião está hoje mais consolidada mas também diferente sobre certos factos. Porquê? Simplesmente porque tive acesso a uma maior e muito mais variada informação.
Que fiabilidade merecem as informações quando se trata de uma guerra? Não sei, pois às vezes nem nas minhas próprias “verdades”confio! Umas serão verdadeiras e outras falsas ou fantasiosas, algumas outras trazem em si laivos de verdade e de mentira que é preciso identificar.
Onde está a verdade? Ela anda por aí, mas onde? Nos ex-combatentes ? Nos documentos deixados? Os documentos relatam a verdade?
É legítimo desconfiar de tudo pois não é raro detetarem-se omissões, voluntárias ou não, quando não mesmo mentiras. Os documentos oficiais merecem mais confiança do que os particulares? Deve partir-se deste princípio mas, quando se trata de guerra, todos os cuidados são poucos. A informação e a contra-informação são poderosas armas de guerra, às vezes mais poderosas do que as armas propriamente ditas. E ainda há muita “palha” a eliminar, erros a descobrir, máscaras a tirar.
Diz-se que a História precisa de tempo para se aproximar da verdade. E é certo que, neste caso, o tempo ainda não é suficiente para esse efeito. Há fontes ainda não disponíveis ou por encontrar , outras estão a emergir, algumas estão ou estarão mais ou menos “poluídas”. Opiniões, notícias e versões de factos precisam de contraditório para se usarem como contributo para a verdadeira história desta guerra. A procura da verdade exige-o. É função da História. E creio que esta procura continuará a encontrar alguns entraves nos próximos tempos. E muitas fantasias! Coisa típica das guerras.
A guerra e a sociedade portuguesa na época
Fui combatente na Guiné, de julho de 1965 até maio de 1967, 21 meses. Em meados de setembro de 1966, fiz uma pausa e vim de férias. Baseado em Pombal e com viagens frequentes a Lisboa, vi uma sociedade nitidamente alheia à existência duma guerra em África. Com certeza que a maior parte do povo sabia dela, que havia já muita gente a sofrer por sua causa, mas o comportamento da sociedade era tal como se ela não existisse. Adquiri uma certeza: o governo utilizava meios políticos (censura e repressão) para esconder a situação. Fiquei chocado e voltei para a Guiné ainda mais revoltado com o que se passava politicamente em Portugal.
Quando acabou a “minha” guerra e regressei, o país continuava a parecer-me alheado de tudo o que se passava em África com os seus soldados. Perguntava-me muitas vezes como era possível serem mínimos os sinais de guerra, praticamente invisíveis na sociedade, quase limitados a funerais escondidos entre as paredes dos cemitérios, quando tantos militares tinham já morrido e outros continuavam a morrer ou a ficar feridos.
Não demorei a perceber que o poder político continuava na sua opção de que a guerra passasse despercebida na “paisagem” social. E lá o foi conseguindo fazer. Na comunicação social eram raras as referências à guerra e estas só se publicavam com autorização da sua Comissão de Censura. As notícias sobre mortes de militares limitavam-se à identificação destes, eram dadas por um serviço de informação militar e colocadas nos jornais em minúsculo espaço interior, passando despercebidas a quem as não procurasse de propósito. Deficientes das forças armadas eram tema tabu. Eram milhares mas não se “viam” nem neles se falava. Qualquer informação sobre a guerra era “cozinhada” de maneira a secundarizar o problema.
Havia um dia, o dia 10 de junho, denominado Dia da Raça (que nome!), com paradas militares pelo país, em que o governo incluía nas cerimónias uma homenagem aos combatentes, condecorando alguns. Discursos laudatórios que tentavam dissimular o desgaste das Forças Armadas, já visível no início dos anos 70, para quem “tivesse olhos de ver”. Para o governo não havia guerra mas sim um conjunto de sublevações de caráter local. Aliás, na área diplomática (e isto já é verdade histórica), Portugal nunca assumiu que estava em guerra mas sim a tentar manter a paz social no seu território pátrio que ia do Minho a Timor, como se dizia na altura, enviando forças militares em apoio às forças de segurança pública locais para ajudar a população a defender-se de ataques armados antipatrióticos praticados por alguns dos seus elementos, apoiados por inimigos externos de Portugal.
A situação não demorou muito a chegar a um ponto de quase rutura. Com visibilidade crescente a partir dos finais da década de 1960, vão surgindo sinais de falta de apoio da população, cada vez mais numerosos e contrariando a ideia espalhada oficialmente de que o povo apoiava a guerra. O sofrimento dos familiares dos combatentes não era tido em conta e o número de deficientes físicos e psicológicos das forças armadas ia crescendo rapidamente de modo a se tornar difícil esconder a situação, por mais que se tentasse fazê-lo.
Nas escolas militares os alunos começaram a escassear. Muitos, muitos mesmo, dos jovens sujeitos a incorporação militar fugiam a ela. E não era só por medo físico que se fugia, também era por motivos económicos ou políticos. A emigração clandestina, principalmente para França, crescia em progressão geométrica. Nas universidades a “tampa saltou” e a guerra começou a ser um forte tema de discussão e de revolta para grande parte dos estudantes, apesar da forte repressão política exercida sobre eles (fui testemunha presencial). Um familiar meu, ex-combatente ferido em combate em Moçambique, vi-o chorar quando lhe nasceu um filho. Pensei eu que ele chorava de alegria, enganei-me, disse-me que estava a pensar na guerra e no futuro do filho (estávamos em 1968, vejam o pânico dele e a perspetiva que tinha quanto ao fim da guerra!). Vi um colega de profissão, apoiante ativo do regime político então vigente , preparar com antecedência a maneira de “despachar” para a Suécia o filho, antes dos seus 18 anos. Teve sorte porque veio o “25de abril”. Apanhámos (eu por tabela) uma piela de “caixão à cova” no dia em que se convenceu que a guerra ia mesmo terminar.
Não tardou que o poder político começasse a não dominar a situação. O tema “guerra colonial” veio à superfície e extremou posições, tanto à direita como à esquerda. À direita, apareceram ações de propaganda (algumas estrondosas) de apoio ao regime político mas já eram tiros de pólvora seca e não “incendiavam” nada. À esquerda, para lá da “clássica” oposição, formaram-se diversas capelinhas ideológicas de pendor extremista, com forte ligação às universidades, que contestavam abertamente a situação política e a guerra no ultramar.
Muitos dos combatentes que iam para a guerra acreditando ir defender a pátria regressavam com outra crença sobre o tema. O número de oficiais saídos das escolas militares diminuía drasticamente de ano para ano quando, na altura, o quadro permanente de oficiais já não era suficiente para as necessidades pelo que se recorria a oficiais milicianos para tentar superar a situação. A emigração clandestina subia em altíssimo ritmo . Chegou-se a 1974 com um recrutamento geral a rasar a insuficiência, com as sua bases de recrutamento quase esgotadas e a certeza da sua insuficiência para os anos seguintes. O cansaço dos militares do quadro tornou-se evidente. O governo estava a entrar num beco sem saída. E sucedeu o inevitável, a tomada do poder pelos militares. O “25 de abril” abriu portas para uma saída do impasse.
O fim da guerra
Com o “25 de abril” a “panela” explodiu. Com esta explosão veio ao de cima a pressão popular para se resolver a situação de imediato. Começaram as negociações de paz mas Portugal teve de negociar numa situação de fragilidade política e militar devido à insegurança (ou falta de vontade?) das tropas combatentes para aguentarem as suas posições e darem tempo aos negociadores. Mas esta insegurança nem era de estranhar pois começou a faltar-lhes apoio político e solidariedade social para aguentarem a situação durante muito tempo. Uma solução rápida e politicamente razoável não era fácil.
Os apoiantes do regime deposto “desapareceram” ( a maior parte virou democrata!). Cobriram a fuga de alguns chefes e muitos deles correram a inscrever-se nos partidos então emergentes. Ao mesmo tempo muitos dos seus filhos juntaram-se à extrema-esquerda e tornaram-se militantes, alguns até dirigentes, de pequenos grupos marxistas-leninistas, maoistas, trotskistas, estalinistas, anarquistas, etc. Não é difícil ver hoje por aí muitos deles no exercício de altos cargos políticos, nas magistraturas, na advocacia, nas universidades e na comunicação social, nas áreas da alta finança e da economia. Tudo bem, a vida é feita de mudança (como dizia Camões).
Tudo bem, não! Ver hoje alguns deles criticando o “25 de abril” e o modo como correu o processo de descolonização mas branqueando responsabilidades e “fugindo com o rabo à seringa”, não dizendo o que pensavam e o que faziam naquela altura, custa a engolir! Pois não é que, logo após o “25deAbril”, eles próprios já gritavam na comunicação social e na rua “nem mais um soldado para as colónias” e “independência às colónias já”? Estou a ouvi-los, a vê-los e aos seus cartazes, pelas ruas de Lisboa e o mesmo aconteceu por muitos outros lados. É fácil reconhecer alguns nos jornais e noutros documentos daquela época. A consulta não é difícil.
O grito de “nem mais um soldado para as colónias” era ouvido por todo o país. E, como é natural, apoiado principalmente por aqueles que viam no horizonte a sua mobilização para a guerra. Quantos seriam os pais, os familiares, os amigos e amigas, as namoradas dos “tropas” mobilizáveis que não apoiavam estas palavras? Poucos (ou nenhuns?).
Não se falava ainda, oficialmente, em qualquer espécie de negociação. Mas como fazer negociações sem manter a força efetiva no terreno? E para manter essa força era preciso render tropas. O problema é que, socialmente, não havia “disponibilidade” para isso. Na altura pensei muitas vezes na situação de desconforto e de revolta que sentiriam os militares mobilizados no ultramar se não fossem rendidos a tempo. Como antigo combatente sentia-me amargurado e temia a ideia de que “o céu lhes poderia cair em cima”!
Ainda bem que não demorou muito até se começar a negociar o fim dos combates. Assim se evitaram muitos problemas . Criaram-se outros, é verdade, mas acredito que nesta situação a maior parte dos combatentes (ou todos?) queria era saltar de lá para fora o mais rápido possível, independentemente de pensarem ser a guerra justa ou injusta.
Guiné
Vou agora falar da guerra na Guiné, a respeito da qual continua o debate, principalmente no meio dos ex-combatentes, sobre “guerra ganha ou guerra perdida”. A minha opinião é a que ninguém ganhou a guerra porque nela não houve vencedores nem vencidos. Acabou porque tinha de acabar naquela altura, a situação criada em Portugal (25 abril 1974) assim o proporcionou, ou melhor, assim o obrigou. Muito provavelmente Portugal não aguentaria a guerra por muito mais tempo, o recrutamento estava cada vez mais difícil, a qualidade do armamento deixava muito a desejar e a capacidade económica era frágil. Acresciam os chamados ventos da história que não permitiriam o prolongamento da guerra. Portugal tinha o caminho aberto para uma derrota humilhante. Do lado do inimigo a luta não estava tão fácil como ele o queria fazer crer. É verdade que, sob a bandeira da auto-proclamada república da Guiné-Bissau, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) estava a convencer cada vez mais países a reconhecer este novo estado e lá ia desgastando o nosso lado com as costumadas ações de guerrilha. Mas a sua força militar ainda não era suficiente para poder ganhar a guerra a curto prazo. O “25 de abril” facilitou a solução do conflito, para ambos os lados. Acreditando que foi a melhor solução possível custa-me muito ver que, de um lado e de outro, algo de muito melhor se poderia ter feito, nomeadamente na proteção dos combatentes guinéus que conosco combateram. Já sei que me dirão que “as circunstâncias do tempo e do lugar, etc. etc.” Também é verdade que hoje é fácil falar, ter outra opinião que não a da época.
Acredito que a história referirá o fim da guerra como resultado de negociações entre os contendores, há muitos documentos para fundamentar esta conclusão, mas a versão que vigora atualmente na Guiné- Bissau (e não só) é a da derrota das “tropas colonialistas portuguesas” perante “os heróicos guerrilheiros” do PAIGC. Mas a verdade é que as duas partes interromperam os combates para negociarem. E não os recomeçaram. Na altura, o PAIGC não tinha capacidade militar para vencer, apesar de propagandear que dominava a maior parte do território guineense. Portugal também não a tinha, estava numa de aguentar. Por isso se negociou a paz. E, pouco mais de quatro meses após o “25 de abril”, Portugal reconheceu a independência da Guiné-Bissau. Admito que se possa aceitar que Portugal foi derrotado politicamente, afinal o PAIGC obteve o que queria, a independência da Guiné-Bissau, mas obtida através de negociações e não pela vitória militar.
Percebe-se que uma conclusão desta ordem, de derrota militar, é social e politicamente conveniente para o poder político daquele país, embora não seja verdadeira. É um país em formação, enfrentando muitas dificuldades, e que precisa de alento patriótico. Compreende-se, politicamente, que na história da Guiné-Bissau figure a sua independência como resultado de uma vitória militar sobre o país seu colonizador. É quase certo que assim continuará a acontecer. É comum, na história de cada país, a apresentação de factos fantasiosos para enobrecer os seus heróis e criar e alimentar o patriotismo do seu povo. Nada de admirar encontrarem-se certos exageros e fantasias. Casos destes abundam nas sociedades organizadas, baseados em “factos” sem hipótese de verdade histórica. Heróis e factos lendários não faltam (podemos começar pela história portuguesa que é pródiga neste campo).
Combatente(s)
Quanto a nós, militares portugueses combatentes da guerra colonial, fomos postos à prova e aceitámos ter sido postos à prova, contrariados ou não. Em termos globais não há que ter vergonha da guerra que fizemos.
Eu era adversário político do chamado Estado Novo, não tinha filiação política mas quase posso dizer que odiava o regime político de então. Muitos dos jovens da minha idade, e da minha região (Pombal), emigraram clandestinamente e não cumpriram o serviço militar. E assim continuou a ser enquanto durou a guerra. Eu não o fiz, se calhar por medo, pois estava ciente dos perigos e sacrifícios que comportava a emigração clandestina. Ainda tive o projeto na calha mas aconteceu-me um imprevisto, envolvi-me de amores e não queria perder de vista o “objeto” amoroso. Amores que me levaram a pedir o adiamento de incorporação, o que consegui durante dois anos, alegando outro motivo que também era real, os estudos. Pensava eu, ao mesmo tempo, que a guerra poderia entretanto acabar. Coitado de mim, esperanças frustradas!
Lá fui para a tropa e o tempo foi passando até que, ano e meio depois, embarquei para a Guiné. Ao aceitar a mobilização, a participação nesta guerra exigia que me esforçasse por perceber quais as razões da existência de um inimigo , isto para meu próprio equilíbrio emocional, já que era adversário da guerra. E melhor do que ir com ideias feitas era ir preparado para o perceber no local, na própria Guiné. Não me foi difícil entender algumas dessas razões. Estas eram basicamente de teor político assentes no atraso económico, na pobreza do povo e na sua situação de povo colonizado. Sendo assim, aceitando-as ou não, fossem justas ou não, era fácil pôr-me na pele do inimigo e pensar que, provavelmente, estaria a fazer o mesmo que ele se estivesse no seu lugar.
Esta racionalização teve um resultado benéfico para mim, que foi fazer a guerra sem ódio. Combati o PAIGC, sim, contrariado mas sem hesitações nem complexos. O respeito por mim e pelos meus camaradas assim mo pedia. Combatíamos (eu e muitos outros) para sobreviver, para eliminar ou para neutralizar mas sem ódio. O inimigo estava ali, bem presente, com objetivos diferentes dos nossos mas éramos, nós e ele, no limite, combatentes por ideias para não dizer ideais, aceitássemos ou não tais ideais. O desafio que nos apontavam, de um lado e de outro, era vencer uma guerra, vencer um combate político com armas de guerra. Eis a razão porque nunca desprezei o inimigo, nem sequer o menosprezei, até por razões de segurança. De um lado e de outro havia gente a pensar que nada tinha a ver com aquilo mas nós não somos somente “nós”, somos nós e as circunstâncias. E as circunstâncias puseram-nos naquela situação de combatentes numa luta que para muitos não deveria existir.
Talvez seja por isto que, após certos conflitos, aparece o “charme do ex-inimigo”, tão criticado por uns quanto cultivado por outros. E a verdade é que, no caso dos ex-combatentes da guerra colonial, ele também aparece de vez em quando. É compreensível. As pessoas passaram pelas mesmas experiências em combate, por momentos semelhantes de coragem, de sofrimento, de medo, de angústia, de alegria, de euforia e/ou de depressão. A força e o caldeamento destes sentimentos podem diluir as causas e os rancores da luta de muitos antigos combatentes, de ambos os lados da guerra.
Assim não é de admirar que muitos dos inimigos de antes se possam, hoje, identificar mutuamente e relacionar-se agradavelmente, mesmo como amigos. Até porque, neste caso, a “guerra do ultramar” já acabou há muito tempo.
Acreditem que para muitos a passagem pela guerra fez a sua vida tomar outro sentido vivencial.
Conhecemo-nos melhor quando somos postos à prova. Há e houve tanta gente que durante a sua vida nunca foi posta à prova! ... Mas nós, ex- combatentes, fomos postos à prova muitas vezes e em muita coisa: na coragem, na lealdade, na doação, na solidariedade, na camaradagem, na dignidade, no sacrifício.
Muitos de nós achámos outras certezas na vida, aprendemos a relativizar os factos e as situações, aprendemos a “ver com outros olhos” e a “ouvir” de maneira diferente (é provável que um surdo, na primeira vez que vê dançar, olhe os dançarinos como loucos, disse Nietzsche). Esta “escola da guerra” ajudou-nos a perceber muitos “passos de dança”, tornou-nos pessoal e socialmente diferentes. Podem crer.
E podem crer que aquela guerra está sempre presente na nossa vida de ex-combatentes. Permitam-me uma imagem de culinária: pode até não se notar nada mas a guerra “cozeu-nos” a todos, os que nela combatemos. Fomos para ela crus, viemos dela cozinhados de todas as maneiras. E uma parte de nós mal cozinhados. Desgraçadamente, alguns não ficaram “comestíveis” e outros dificilmente “digeríveis”. Talvez alguns tenham vindo mais “apetitosos”, é possível. E deixo-vos a pensar no número de ex-combatentes da guerra colonial que “andam por aí”. Não sei quantos são mas pensem num número superior a um milhão.
Não quero terminar sem lembrar os mortos e feridos: os mortos desta guerra não devem, não podem ser esquecidos (foram à volta de onze mil!). Os deficientes desta guerra têm de ser apoiados e não postos num gueto, gueto aliás onde foram postos pelo poder político que os mobilizou e donde muitos deles não conseguiram sair (são muitos milhares!).
Agora, mesmo para finalizar: sou membro de um blogue, onde já escrevi diversas vezes, cujo nome por si já diz muita coisa. Chama-se “Luis Graça & Camaradas da Guiné”. Vão até lá se tiverem curiosidade de saber o que foi a guerra colonial, neste caso a havida na Guiné. Pode ser que até descubram alguns indícios do tipo de comportamento que verificaram ou verificam nos vossos familiares ex-combatentes quando vem à baila o tema da guerra. O porquê do seu silêncio sobre a guerra ou então os modos como por vezes falam nela ou como se comportam. O “stress de guerra” não é conversa fiada, é um grave problema de saúde de muitos ex-combatentes. Este blogue é muito especial, é um grande ponto de encontro de ex-combatentes da Guiné que tanto pode servir de confessionário como de centro de convívio. Identifico o espaço como um teatro: há palco para a ação mas também plateia, camarote e frisa, com a particularidade de os atores poderem escolher estarem, a cada momento, em qualquer um desses lugares. Continuam postos à prova, de modo muito diferente do que o da guerra, é verdade, agora voluntariamente. Continuam postos à prova na camaradagem, na solidariedade, no respeito, na tolerância, em suma na qualidade de seres humanos que as circunstâncias da geografia e da história juntaram, ligados pelas emoções e pela memória de uma guerra. Desculpem a presunção mas acho que, ao frequentarem este blogue, ficarão socialmente mais ricos e a compreender melhor uma fase da vida deste velho Portugal.
Muito obrigado, mais uma vez, e agora estou à vossa disposição para a conversa se acharem que vale a pena.
Manuel Joaquim
Dezembro/2011
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 24 de Janeiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9396: Memórias de Manuel Joaquim (5): Raios e Carícias