Texto de A. Marques Lopes:
Primeiramente, quero esclarecer que se me extraviou a capa do livro, daí ter enviado apenas a página de rosto. Talvez os amigos Luís Graça ou Jorge Santos possam suprir esta falha. Tenho andado a ordenar os meus livros e surgiu-me este com várias anotações que fiz quando o li. É uma publicação de Julho de 1984, das Edições O Jornal.
O TÍTULO: Crónica da Libertação
AUTOR: Luís Cabral
EDITORA: O Jornal
ANO: 1984
Luís Cabral foi, como sabem, o primeiro Presidente da Guiné-Bissau após a independência, tendo sido deposto por um golpe do Nino Vieira em 14 de Novembro de 1980. Vive actualmente em Miraflores, perto de Lisboa, casado com uma felupe da Casamança. Foi, durante a luta, e durante vários anos, o responsável político da Frente Norte, juntamente com Chico Mendes.
Conheço-o pessoalmente porque ele esteve presente em alguns dos jantares que os alferes (sobreviventes) da CART1690 fazemos com alguma frequência em Lisboa. Além disso, creio que em 2000, era eu coronel ainda no activo, participei com ele, com o Dr. Pádua (o tal médico desertor que tratou o soldado Fragata do meu grupo de combate num hospital de Ziguinchor) e outros no programa "Artigo 34" que a jornalista Diana Andringa tinha na RTP2.
Vou-vos dar a conhecer algumas das anotações e sublinhados que fiz e que, na altura, julguei esclarecedoras para mim nesta obra que relata a luta do PAIGC:
- Escondida perto de Barro, na margem do rio Cacheu, o PAIGC tinha uma canoa para a travessia desse rio; vinham e iam para o Senegal através de um trilho camuflado; (malandros, nunca lhes cacei essa canoa nem descobri o trilho; ou o meu guia Braima não me disse, mas não lhe valeu de nada...);
- A Titina Silá dirigia a Norte o Comité da Milícia Popular, que tinha como missão organizar a passagem das pessoas e mercadorias nas cambanças do rio Cacheu (nunca a apanhei...);
- Um deportado político antifascista, de nome Fausto Teixeira, e que tinha uma serração na estrada de Mansabá para Bafatá, ajudou o Luís Cabral quando ele fugiu da prisão, antes do começo da luta; nunca esclareci isso com ele, mas penso que essa serração era em Banjara, pois sempre me disseram que o (único) edifício do destacamento da CART1690 em Banjara pertencia a uma serração, e de facto ainda havia lá algumas máquinas a apodrecer;
- E esta eu não sabia: diz o Luís Cabral que "o quartel de Banjara, entre Mansabá e Bafatá, tinha sido retirado devido aos ataques contínuos dos nossos combatentes. Os trilhos que, do mato, cortavam esta pista inteiramente controlada por nós, passaram por isso a dar mais segurança à passagem das pessoas que se dirigiam ao Sará [região libertada entre Mansoa e Mansabá]". Nunca tive conhecimento que o destacamento de Banjara tivesse sido abandonado.
- O tarrafe tinha uns frutos que eram bem fervidos em água, depois passavam por água corrente e serviam de alimentação; por falta de tempo, os guerrilheiros lavavam-nos rapidamente e adoçavam-nos com cinza; eram usados pelos guerrilheiros da zona entre o o rio Geba e o Corubal;
- As sandális de plástico usadas em geral pelos guerrilheiros feriam os pés a quem não estivesse já habituado (o sacana do tal vigia perto de Sinchã Jobel (1) já devia estar habituado, pois fugiu bem depressa...);
- Diz ele [o Luís Cabral] que em Samine, no Senegal, perto de Barro, o PAIGC tinha um armazém de material de guerra (eu não sabia desse);
- O comandante Drake, do CC do PC cubano e companheiro do Che no Congo, esteve a combater no Norte (ver "O Ano Em Que Estivemos Em Parte Nenhuma", editado pelo Campo das Letras, em 1995, número 2 da sua colecção Campo da História);
- Os comandantes da região Norte eram Julião Lopes, Irénio Nascimento Lopes e Bobo Queita;
- O Corpo de Comando, formado para dirigir a luta no Norte, era enquadrado pelos "peitos vermelhos", combatentes que se destacaram em acções especiais;
- O Corpo do Exército 199-A (CE199-A) actuava na zona de Sambuiá e era comandado por Bobo Queita;
- O ataque a Cantacunda foi dirigido por Braima Bangura (patife!).
Tinha estes apontamentos e sublinhados mas não fiz uso deles quando vos falei destes locais. Porque já não me lembrava deles. Não há dúvida que temos de nos debruçar mais sobre estas estórias.
Marques Lopes
____
Notas:
(1) Vd. post do Marques Lopes, de 30 Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 28 de julho de 2005
quarta-feira, 27 de julho de 2005
Guiné 63/74 - P127: Com os jornalistas chineses nas 'regiões libertadas' (1972) (Marques Lopes)
Texto e selecção fotográfica de A. Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CART 1690, Geba, 1967/68, e da CCAÇ 3, Barro, 1968; actualmente coronel, DFA, na situação de reforma; membro da tertúlia dos ex-combatentes da Guiné).
Publicado em 1972 pelas Edições em Línguas Estrangeiras, de Pequim, o livro Pelas Regiões Libertadas da Guiné (Bissau) é constituído por de um conjunto de reportagens dos jornalistas da Xinhua, a agência noticiosa oficial da República Popular da China, que passaram mais de um mês na Guiné com a guerrilha do PAIGC ( Foto 1).
Foto (1) © Agência de Notícias Xinhua (1972).
Está escrito num surpreendentemente belíssimo português, tendo em conta a origem da edição. Na senda de um dos princípios básicos de Mao Zedong para a guerra revolucionária - "O guerrilheiro está para o povo como o peixe para a água" -, os repórteres realçam "o exército e o povo unidos como uma só família", ligados como unha e carne.
São relatadas várias situações de combate, casos de heroísmo, como o caso de Fona na Cuban. É dedicado um capítulo especial ao herói Domingos Ramos, morto em 10 de Novembro de 1966 durante um ataque da sua unidade a Madina do Boé (o mítico lugar da Guiné, abandonado pelas NT em 8 de Fevereiro de 1969 e onde, mais tarde, a 24 de Setembro de 1973, será feita a proclamação unilateral da independência do território).
Há algumas páginas interessantes sobre o trabalho nas chamadas zonas libertadas, nomeadamente no que toca à produção de arroz nas bolanhas (3.000 hectares de terreno cultivado para apoio da guerrilha na zona meridional do rio Geba, por exemplo), à instalação de escolas, de hospitais de campanha, e até ao fabrico de minas e à reparação de armas.
Os jornalistas chineses tiraram obviamente fotografias. Algumas delas achei-as mais interessantes porque me fazem lembrar coisas do meu tempo de combatente na Guiné. Julgo que merecem a devida divulgação, até por que o livro é praticamente desconhecido e inacessível aos portugueses. Aqui as reproduzo com a devida vénia e agradecimento aos autores e à editora.
Foto (2) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Montando uma casa de mato (2). No livro diz-se "acampados na floresta". O "acampamento" do IN, como dizíamos nos nossos relatórios ou ordens de operação, não eram só aquelas camas da imagem, mas sim algo mais completo, com cobertas de folhas de palma ou de capim seco. Daí que eu pense que estavam a montar o que chamávamos uma "casa de mato", que serviam tanto para os efectivos avançados perto das bases como para o apoio dos grupos que se deslocavam na floresta. Essas casas eram destruídas pelas NT para lhes cortar esses apoios. Não creio que, em deslocação, se dessem ao trabalho de montarem aquelas camas, com mosqiteiro e tudo... Tendas deles é que nunca vi. [Além das suas bases de apoio, quer no Senegal quer na Guiné-Conacri, o PAIGC também bases, relativamente seguras, no interior da Guiné, nas chamadas zonas libertadas. Nas regiões sob duplo control0 ou em disputa era frequente a construção de diversos acampamentos temporários, como era o caso por exemplo na região do Xime. LG].
Foto (3) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Guerrilheiros montando uma emboscada (3), não muito diferente das emboscadas montadas pelos meus Jagudis, o meu grupo de combate (maioritariamente composto de balantas) na CCAÇ 3, em Barro, na região do cacheu (1968).
Nesta foto, em primeiro plano vê-se uma metralhadora ligeira Degtyarev, de calibre 7.62, com tambor. No segundo plano, vê um outro guerrilheiro com uma Kalashnikov. Na capa do livro (1) está um RPG2, arma anti-carro de fabrico soviético, de calibre 40mm no tubo e de calibre 82mm para a granada; tinha um alcance de 150m (o RPG7 tinha, além do punho do gatilho, um outro punho para a mão de apoio); a outra arma não a consigo reconhecer, embora me pareça que seja uma espingarda qualquer de repetição.
Foto (4) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Abastecimentos vindos do Senegal (4). Era isso que tentávamos evitar a partir de Barro. Como eu já expliquei noutro sítio, Barro ficava a cerca de 3 kms da fronteira com o Senegal. A missão da CCAÇ 3 em Barro era evitar a passagem dos guerrilheiros do PAIGC e das populações por ele controladas, do Senegal para a mata do Óio. A missão deles era, sobretudo, fazer abastecimentos em géneros e em material bélico para os combatentes daquela zona. A nossa era evitar que isso sucedesse. Essas infiltrações vinham, nomeadamente, das tabancas Sano, Sonako e Samine, situadas no Senegal.
Foto (5) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Vigia ao pé de um rio (5). Em 24 de Junho de 1967 (Op Jigajoga), quando atravessei o rio Gambiel, o meu guia disse-me :
- Alfero, patada de turra! - E lá estava, na terra da margem, a inconfundível marca de uma destas sandálias que este vigia tem, e que eram muito usadas pelos guerrilheiros do PAIGC. (sobre a Op Jigajoga, vd. post de 30 de Maio de 2005 -
Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
Foto (6) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Uma escola tal e qual como a que destruímos na Op Inquietar II (4 a 7 de Julho de 1967).
Só que em Samba Culo tinha uma jovem professora que, infelizmente (digo-o do fundo do meu coração), teve de morrer (6) (vd. post, de 7 de Junho de 2005 - Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II ) .
A. Marques Lopes
__________________
P.S. - O livro Pelas regiões libertadas da Guiné (Bissau) (sic, com minúsculas) é uma edição original (primeira edição, diz lá) da "Edições de Línguas Estrangeiras", publicado em Pequim em 1972, em portugês. Diz, inclusivamente, que foi "impresso na República Popular da China". Na primeira página do interior diz, por baixo do título, "Pelos repórteres da Agência Hsinghua" (sic). E não tem indicação de copyright (parece-me natural, dado que estas publicações tinham o objectivo de servirem para grande divulgação, não com esse tipo de preocupações mais do sistema de mercado...). (ML)
Observações (LG) - De acordo com a pesquisa que efectuei através da PORBASE - Base Nacional de Dados Bibliográficos, existe na Biblioteca Nacional uma edição portuguesa de 1974
Título: Pelas regiões libertadas da Guiné Bissau
Publicação: Lisboa : Depos. Livr. Ler, 1974
Descrição física: 88, [4] p. ; 18 cm
Colecção: Cadernos Maria da Fonte ; 8
CDU: 32 .
Publicado em 1972 pelas Edições em Línguas Estrangeiras, de Pequim, o livro Pelas Regiões Libertadas da Guiné (Bissau) é constituído por de um conjunto de reportagens dos jornalistas da Xinhua, a agência noticiosa oficial da República Popular da China, que passaram mais de um mês na Guiné com a guerrilha do PAIGC ( Foto 1).
Foto (1) © Agência de Notícias Xinhua (1972).
Está escrito num surpreendentemente belíssimo português, tendo em conta a origem da edição. Na senda de um dos princípios básicos de Mao Zedong para a guerra revolucionária - "O guerrilheiro está para o povo como o peixe para a água" -, os repórteres realçam "o exército e o povo unidos como uma só família", ligados como unha e carne.
São relatadas várias situações de combate, casos de heroísmo, como o caso de Fona na Cuban. É dedicado um capítulo especial ao herói Domingos Ramos, morto em 10 de Novembro de 1966 durante um ataque da sua unidade a Madina do Boé (o mítico lugar da Guiné, abandonado pelas NT em 8 de Fevereiro de 1969 e onde, mais tarde, a 24 de Setembro de 1973, será feita a proclamação unilateral da independência do território).
Há algumas páginas interessantes sobre o trabalho nas chamadas zonas libertadas, nomeadamente no que toca à produção de arroz nas bolanhas (3.000 hectares de terreno cultivado para apoio da guerrilha na zona meridional do rio Geba, por exemplo), à instalação de escolas, de hospitais de campanha, e até ao fabrico de minas e à reparação de armas.
Os jornalistas chineses tiraram obviamente fotografias. Algumas delas achei-as mais interessantes porque me fazem lembrar coisas do meu tempo de combatente na Guiné. Julgo que merecem a devida divulgação, até por que o livro é praticamente desconhecido e inacessível aos portugueses. Aqui as reproduzo com a devida vénia e agradecimento aos autores e à editora.
Foto (2) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Montando uma casa de mato (2). No livro diz-se "acampados na floresta". O "acampamento" do IN, como dizíamos nos nossos relatórios ou ordens de operação, não eram só aquelas camas da imagem, mas sim algo mais completo, com cobertas de folhas de palma ou de capim seco. Daí que eu pense que estavam a montar o que chamávamos uma "casa de mato", que serviam tanto para os efectivos avançados perto das bases como para o apoio dos grupos que se deslocavam na floresta. Essas casas eram destruídas pelas NT para lhes cortar esses apoios. Não creio que, em deslocação, se dessem ao trabalho de montarem aquelas camas, com mosqiteiro e tudo... Tendas deles é que nunca vi. [Além das suas bases de apoio, quer no Senegal quer na Guiné-Conacri, o PAIGC também bases, relativamente seguras, no interior da Guiné, nas chamadas zonas libertadas. Nas regiões sob duplo control0 ou em disputa era frequente a construção de diversos acampamentos temporários, como era o caso por exemplo na região do Xime. LG].
Foto (3) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Guerrilheiros montando uma emboscada (3), não muito diferente das emboscadas montadas pelos meus Jagudis, o meu grupo de combate (maioritariamente composto de balantas) na CCAÇ 3, em Barro, na região do cacheu (1968).
Nesta foto, em primeiro plano vê-se uma metralhadora ligeira Degtyarev, de calibre 7.62, com tambor. No segundo plano, vê um outro guerrilheiro com uma Kalashnikov. Na capa do livro (1) está um RPG2, arma anti-carro de fabrico soviético, de calibre 40mm no tubo e de calibre 82mm para a granada; tinha um alcance de 150m (o RPG7 tinha, além do punho do gatilho, um outro punho para a mão de apoio); a outra arma não a consigo reconhecer, embora me pareça que seja uma espingarda qualquer de repetição.
Foto (4) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Abastecimentos vindos do Senegal (4). Era isso que tentávamos evitar a partir de Barro. Como eu já expliquei noutro sítio, Barro ficava a cerca de 3 kms da fronteira com o Senegal. A missão da CCAÇ 3 em Barro era evitar a passagem dos guerrilheiros do PAIGC e das populações por ele controladas, do Senegal para a mata do Óio. A missão deles era, sobretudo, fazer abastecimentos em géneros e em material bélico para os combatentes daquela zona. A nossa era evitar que isso sucedesse. Essas infiltrações vinham, nomeadamente, das tabancas Sano, Sonako e Samine, situadas no Senegal.
Foto (5) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Vigia ao pé de um rio (5). Em 24 de Junho de 1967 (Op Jigajoga), quando atravessei o rio Gambiel, o meu guia disse-me :
- Alfero, patada de turra! - E lá estava, na terra da margem, a inconfundível marca de uma destas sandálias que este vigia tem, e que eram muito usadas pelos guerrilheiros do PAIGC. (sobre a Op Jigajoga, vd. post de 30 de Maio de 2005 -
Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
Foto (6) © Agência de Notícias Xinhua (1972)
Uma escola tal e qual como a que destruímos na Op Inquietar II (4 a 7 de Julho de 1967).
Só que em Samba Culo tinha uma jovem professora que, infelizmente (digo-o do fundo do meu coração), teve de morrer (6) (vd. post, de 7 de Junho de 2005 - Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II ) .
A. Marques Lopes
__________________
P.S. - O livro Pelas regiões libertadas da Guiné (Bissau) (sic, com minúsculas) é uma edição original (primeira edição, diz lá) da "Edições de Línguas Estrangeiras", publicado em Pequim em 1972, em portugês. Diz, inclusivamente, que foi "impresso na República Popular da China". Na primeira página do interior diz, por baixo do título, "Pelos repórteres da Agência Hsinghua" (sic). E não tem indicação de copyright (parece-me natural, dado que estas publicações tinham o objectivo de servirem para grande divulgação, não com esse tipo de preocupações mais do sistema de mercado...). (ML)
Observações (LG) - De acordo com a pesquisa que efectuei através da PORBASE - Base Nacional de Dados Bibliográficos, existe na Biblioteca Nacional uma edição portuguesa de 1974
Título: Pelas regiões libertadas da Guiné Bissau
Publicação: Lisboa : Depos. Livr. Ler, 1974
Descrição física: 88, [4] p. ; 18 cm
Colecção: Cadernos Maria da Fonte ; 8
CDU: 32 .
terça-feira, 26 de julho de 2005
Guiné 63/74 - P126: Cabo Verde (1941/1943) (2): esperando os invasores (Luís Graça)
1. Dá-me uma enorme nostalgia quando revejo as velhas fotos de meu pai, expedicionário em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, durante a II Guerra Mundial (1941/43). É que elas também fazem parte do meu imaginário de criança. O fascínio que tenho pelo mar e pelas ilhas vem também muito provavelmente deste contacto precoce com Cabo Verde, que só conheço por imagens: minto, estive uma hora ou duas no avião da TAP Lisboa-Bissau, quando regressei de férias, em paragem técnica, no aeroporto do Sal... Julgo que nem sequer descemos do avião. A única imagem com que fiquei da ilha foi... a de um cabra a roer sacos de plástico junto do arame farpado!
A minha geração, a da guerra colonial (1961-1974), a que viveu e lutou duramente em Angola, Moçambique e Guiné, tem tendência a ignorar ou a esquecer a geração anterior, a de seus pais, que, em nome da Pátria, também foi mobilizada para os mais diversos sítios dos nossos territórios ultramarinos. Os sacrifícios que eles fizeram foram enormes: não poucos morreram, por motivo de doença; e outros terão ficado com a saúde arruinada.
É certo que os soldados da geração dos nossos pais não estiveram directamente em guerra (excepto em Timor, ocupada pelos japoneses), mas os expedicionários (como então se chamavam) sofreram o pesadelo da II Guerra Mundial. Sei muito pouco da história político-militar dessa época, mas em Cabo Verde chegou a temer-se a invasão dos alemães, dado o valor estratégico do arquipélago, à semelhança do arquipélago dos Açores, cobiçado pelos aliados.
Reproduzo aqui um testemunho, publicado pelo DN, ainda recentemente, no âmbito da celebração do 60º aniversário do fim da II Guerra Mundial, da capitulação da Alemanha nazi, a 8 de Maio de 1945. Um dia em que tudo pareceu possível... , até no Portugal de Salazar.
Aproveito para inserir aqui mais algumas fotos, recuperadas e digitalizadas, do velho álbum do meu pai, devidamente anotadas e datadas, com a sua bonita letra, e às vezes a tinta verde (era ele quem escrevia as cartas para as namoradas dos camaradas que eram analfabetos).
2. "Viver em Cabo Verde à espera da invasão". Diário de Notícias. 14 de Abril de 2005.
"Eles eram missionários, homens com uma missão de paz e não de guerra. O seu objectivo era defender Cabo Verde de uma possível invasão alemã durante a II Guerra Mundial." A história de um desses soldados, António Gavina, do corpo expedicionário do Regimento de Infantaria 11, de Setúbal, é contada pela sua filha, Vanda Gavina.
"O meu pai devia ter vinte e poucos anos quando foi para a ilha do Sal. Acabou por ficar lá durante quase quatro anos", recorda. Os pormenores da passagem do pai pelo arquipélago de Cabo Verde já começam a ser esquecidos, mas uma coisa ficará para sempre na sua memória "Eles não passavam fome, mas viviam em muitas dificuldades, com muitas restrições."
Os anos da II Guerra Mundial foram anos de seca nas ilhas do Atlântico. A comida não abundava e os soldados alimentavam-se com aquilo que podiam. As recordações desse tempo deixaram marcas em António Gavina. "O meu pai nunca mais comeu percebes na vida. Tudo porque em Cabo Verde viu um dos habitantes locais morrer quando os tentava apanhar", referiu Vanda Gavina.
Outro dos problemas que o regimento teve de enfrentar foram as doenças. "Lembro-me de o meu pai contar que houve muitos colegas que morreram devido a alguns surtos de doenças que afectaram os homens da companhia."
Em 1939, pouco antes do início da II Guerra, Portugal autorizou o Governo de Benito Mussolini a construir um aeroporto na ilha do Sal, para servir de ligação com os países da América do Sul. Com o início do conflito, o projecto italiano, com casas prefabricadas, foi abandonado. Enquanto aguardavam a invasão alemã, que não chegou, os soldados portugueses ajudavam à criação de melhores condições de vida. "Eles ajudaram a construir habitações, não só para eles mas também para os cabo-verdianos", lembra Vanda Gavina.
3. Fotos do Álbum de Luís Henriques. Vd. post Guiné 69/71 - CIV: Os mortos e os esquecidos do Império: Cabo Verde (1941/43)
Legenda no verso da foto:
" No dia 11 de Abril chegaram estes dois barcos hospitais italianos ao porto de S. Vicente para irem fazer troca de prisioneiros e doentes com os ingleses. 1942. Luís Henriques".
© Luís Graça (2005)
Legenda no verso da foto:
"Posição das peças anti-áereas no Monte Socego, São Vicente, Cabo Verde. Fotografia oferecida pelo meu amigo Boaventura em 21/3/43. Luís Henriques".
© Luís Graça (2005).
Legenda no verso da foto:
"O Palácio do Governador de Cabo Verde, situado em Mindelo, [Ilha de] São Vicente. Luís Henriques. 1 de Maio de 1942". A bonito cidade do Mindelo é hoje a 2ª segunda cidade de Cabo Verde. E São Vicente é a terra da já mítica Cesária Évora. © Luís Graça (2005).
Legenda no verso da foto (a tinta verde, já quase ilegível):
"Dançando o batuque (sic) na Ribeira de São João, no dia de São João , no interior (?) de São Vicente. Luís Henriques. 24/6/1943".
A festa de São João Baptista Baptista continua a ser uma das festividades maiores das Ilhas e da comunidade cabo-verdiana da diáspora.
© Luís Graça (2005).
Outros links sobre Cabo Verde:
Cabo Verde > São Vicente > Mapa topográfico e planta da cidade do Mindelo
Cabo Verde > São Vicente > Mapa
Cabo Verde On Line
Cabo Verde 24 - O portal informativo de Cabo Verde
Cabo Verde - Página Oficial do Governo
Lura - Música Cabo-verdiana
Mindelo Infos Accueil Cap Vert - Cabo Verde - Cape Verde
Vidas Lusófonas > Amílcar Cabral (1924-1973) (uma excelente biografia do fundador e líder do PAIGC, por Carlos Pinto Santos).
A minha geração, a da guerra colonial (1961-1974), a que viveu e lutou duramente em Angola, Moçambique e Guiné, tem tendência a ignorar ou a esquecer a geração anterior, a de seus pais, que, em nome da Pátria, também foi mobilizada para os mais diversos sítios dos nossos territórios ultramarinos. Os sacrifícios que eles fizeram foram enormes: não poucos morreram, por motivo de doença; e outros terão ficado com a saúde arruinada.
É certo que os soldados da geração dos nossos pais não estiveram directamente em guerra (excepto em Timor, ocupada pelos japoneses), mas os expedicionários (como então se chamavam) sofreram o pesadelo da II Guerra Mundial. Sei muito pouco da história político-militar dessa época, mas em Cabo Verde chegou a temer-se a invasão dos alemães, dado o valor estratégico do arquipélago, à semelhança do arquipélago dos Açores, cobiçado pelos aliados.
Reproduzo aqui um testemunho, publicado pelo DN, ainda recentemente, no âmbito da celebração do 60º aniversário do fim da II Guerra Mundial, da capitulação da Alemanha nazi, a 8 de Maio de 1945. Um dia em que tudo pareceu possível... , até no Portugal de Salazar.
Aproveito para inserir aqui mais algumas fotos, recuperadas e digitalizadas, do velho álbum do meu pai, devidamente anotadas e datadas, com a sua bonita letra, e às vezes a tinta verde (era ele quem escrevia as cartas para as namoradas dos camaradas que eram analfabetos).
2. "Viver em Cabo Verde à espera da invasão". Diário de Notícias. 14 de Abril de 2005.
"Eles eram missionários, homens com uma missão de paz e não de guerra. O seu objectivo era defender Cabo Verde de uma possível invasão alemã durante a II Guerra Mundial." A história de um desses soldados, António Gavina, do corpo expedicionário do Regimento de Infantaria 11, de Setúbal, é contada pela sua filha, Vanda Gavina.
"O meu pai devia ter vinte e poucos anos quando foi para a ilha do Sal. Acabou por ficar lá durante quase quatro anos", recorda. Os pormenores da passagem do pai pelo arquipélago de Cabo Verde já começam a ser esquecidos, mas uma coisa ficará para sempre na sua memória "Eles não passavam fome, mas viviam em muitas dificuldades, com muitas restrições."
Os anos da II Guerra Mundial foram anos de seca nas ilhas do Atlântico. A comida não abundava e os soldados alimentavam-se com aquilo que podiam. As recordações desse tempo deixaram marcas em António Gavina. "O meu pai nunca mais comeu percebes na vida. Tudo porque em Cabo Verde viu um dos habitantes locais morrer quando os tentava apanhar", referiu Vanda Gavina.
Outro dos problemas que o regimento teve de enfrentar foram as doenças. "Lembro-me de o meu pai contar que houve muitos colegas que morreram devido a alguns surtos de doenças que afectaram os homens da companhia."
Em 1939, pouco antes do início da II Guerra, Portugal autorizou o Governo de Benito Mussolini a construir um aeroporto na ilha do Sal, para servir de ligação com os países da América do Sul. Com o início do conflito, o projecto italiano, com casas prefabricadas, foi abandonado. Enquanto aguardavam a invasão alemã, que não chegou, os soldados portugueses ajudavam à criação de melhores condições de vida. "Eles ajudaram a construir habitações, não só para eles mas também para os cabo-verdianos", lembra Vanda Gavina.
3. Fotos do Álbum de Luís Henriques. Vd. post Guiné 69/71 - CIV: Os mortos e os esquecidos do Império: Cabo Verde (1941/43)
Legenda no verso da foto:
" No dia 11 de Abril chegaram estes dois barcos hospitais italianos ao porto de S. Vicente para irem fazer troca de prisioneiros e doentes com os ingleses. 1942. Luís Henriques".
© Luís Graça (2005)
Legenda no verso da foto:
"Posição das peças anti-áereas no Monte Socego, São Vicente, Cabo Verde. Fotografia oferecida pelo meu amigo Boaventura em 21/3/43. Luís Henriques".
© Luís Graça (2005).
Legenda no verso da foto:
"O Palácio do Governador de Cabo Verde, situado em Mindelo, [Ilha de] São Vicente. Luís Henriques. 1 de Maio de 1942". A bonito cidade do Mindelo é hoje a 2ª segunda cidade de Cabo Verde. E São Vicente é a terra da já mítica Cesária Évora. © Luís Graça (2005).
Legenda no verso da foto (a tinta verde, já quase ilegível):
"Dançando o batuque (sic) na Ribeira de São João, no dia de São João , no interior (?) de São Vicente. Luís Henriques. 24/6/1943".
A festa de São João Baptista Baptista continua a ser uma das festividades maiores das Ilhas e da comunidade cabo-verdiana da diáspora.
© Luís Graça (2005).
Outros links sobre Cabo Verde:
Cabo Verde > São Vicente > Mapa topográfico e planta da cidade do Mindelo
Cabo Verde > São Vicente > Mapa
Cabo Verde On Line
Cabo Verde 24 - O portal informativo de Cabo Verde
Cabo Verde - Página Oficial do Governo
Lura - Música Cabo-verdiana
Mindelo Infos Accueil Cap Vert - Cabo Verde - Cape Verde
Vidas Lusófonas > Amílcar Cabral (1924-1973) (uma excelente biografia do fundador e líder do PAIGC, por Carlos Pinto Santos).
domingo, 24 de julho de 2005
Guiné 63/74 - P125: Homenagem aos mortos da minha terra (Lourinhã, 2005) (Luís Graça)
Pormenor do monumento aos lourinhanenses mortos na Guerra do Utramar. Lourinhã, Largo António Granjo. © Luís Graça (2005).
1. José António Canoa Nogueira, o primeiro morto da Lourinhã, na Guiné. Em 1965. Tinha eu os meus dezoito anos e, por isso, já tinha dado o nome para ir às sortes. A pacata vila do oeste estremenho foi sacudida pela notícia da morte do Nogueira. Já não me lembro onde nem em que circunstâncias. Sei que foi algures na Guiné. As Forças Armadas não davam explicações dessas. Um telegrama, seco e brutal, chegava normalmente a casa do pai e/ou mãe, uns dias depois, anunciando a funesta notícia: “As Forças Armadas cumprem o doloroso dever de o(a) informar que o seu filho morreu no campo da honra, servindo a Pátria”. Imagino que o teor do telegrama fosse esse...
Sei que o soldado Nogueira moreu em 30 de Janeiro de 1965. Soube-o através do memorial que consta da página do Jorge Santos (Obrigado, amigo!). O funeral do Nogueira, largas semanas ou até meses depois (já não posso precisar), foi uma impressionante manifestação de dor. Lembro-me da urna, selada, em chumbo. Dos soldados fardados e aprumados, vindos de Mafra, da Escola Prática de Infantaria. Da salva de tiros. Do luto carregado. Da emoção no ar. De uma família destroçada. De uma comunidade comovida. Dos boatos: "Se calhar o caixão vem é cheio de pedras". Da estupefacção e do medo dos mancebos que estavam na lista para a tropa. Lembro-me sobretudo do silêncio do cemitério. Nasci e vivi os meus primeiros anos, a 100 metros de um cemitério. Era incapaz de lá passar à noite quando puto. A paz do cemitério num país em guerra... a milhares de quilómetros das portas de cada um de nós.
O Nogueira era meu primo, embora em 3º grau. Não tínhamos grande convívio, mas os nossos pais (o pai dele e a minha mãe) eram primos direitos. As nossas avós maternas eram irmãs. Todavia, a sua morte tocou-me. A morte aproxima sempre os grupos, as famílias. Fiz-lhe uma singela (e creio que sentida) homenagem no jornal da terra, com direito a caixa alta. Um dia destes vou vasculhar os arquivos do quinzenário regionalista Alvorada para rever a sua foto e o meu texto. E eventualmente republicá-los aqui, no blogue, se o director do jornal, o Padre Joaquim Batalha, mo autorizar.
Na altura eu ainda era o chefe de redacção e o repórter principal daquela publicação. Já não me lembro do que escrevi nessas circunstâncias difíceis. Tenho uma vaga ideia de ter desejado, em letra de forma, que a morte do primeiro lourinhanense na guerra da Guiné não tivesse sido em vão. Não sei se foi depois disso que o director, o Padre António Escudeiro, recebeu um ofício do Ministério do Interior a perguntar por que é que o jornal já não ia à censura prévia há mais de um ano. Duas linhas, secas, burocráticas, impessoais. Em baixo, ocupando mais de metade da folha, a assinatura, em letra garrafal, mais arrogante e intimadatória que eu jamais vi em toda a minha vida… Se o fascismo existiu na minha terra, na nossa terra, então essa assinatura do censor-mor (ou de algum dos seus esbirros) era fascismo, puro e duro.
2. Por contraste, o funeral do Nogueira trouxe-me à memória a festa da chegada de um meu vizinho que veio da Índia Portuguesa, são e salvo. Ainda antes da invasão de Goa, Damão e Diu. Terá sido por volta de 1956, andava já eu na escola. O Jorge da Ti Albertina teve honras de herói, na nossa rua, a Rua do Castelo, a rua do cemitério. Era a última ou penúltima casa antes do cemitério. Ainda ecoam, na minha cabeça, as manifestações de alegria (o riso, o choro sufocado, os gritos, os abraços, os beijos) com que a Ti Alberina, a família e os vizinhos da rua receberam o nosso soldado e herói da Índia, um dos nossos últimos soldados e heróis da Índia. Eu era puto de bibe, andava na escola e jogava ao pião: para mim, todos os soldados eram heróis.
Escultura em bronze do combatente da Guerra do Ultramar. O monumento é da autoria do arquitecto A. Silva e da escultora A. Couto © Luís Graça (2005).
3. Em 26 de Junho passado, a Lourinhã, através da autarquia local, prestou a devida homenagem aos seus mortos no Ultramar: vinte ao todo, nove em Angola, seis na Guiné, cinco em Moçambique. Nesse dia foi inaugurado um "monumento aos lourinhanenses mortos na guerra do Ultramar”, obra do arquitecto Augusto Silva e da escultora Andreia Couto.
Fizeram parte da comissão organizadora, entre outros ex-combatentes, os meus amigos e conterrâneos João Delgado, Jaime Bonifácio e José Picão de Oliveira: este último, foi furriel miliciano na zona leste da Guiné, mesmo na ponta nordeste, em Canquelifá, tendo regressado já em Setembro de 1974, enquanto o Jaime foi alferes milicano paraquedista em Angola, sensivelmente na mesma época em que eu fui mobilizado para a Guiné (1969/71).
Vinte mortos (seis dos quais na Guiné, entre 1965 e 1973) foi o contributo da minha terra, o imposto de sangue que os lourinhanenses pagaram na defesa dum império e de um regime em agonia. Registo aqui, porque muito apropriadas, as palavras do presidente da Câmara Municipal da Lourinhã, José Manuel Custódio, na homenagem aos nossos mortos: "Pior do que uma guerra é fazer de conta que ela nunca existiu, e a guerra de África existiu".
Não estive na cerimónia nem tive conhecimento conhecimento antecipado dela. Sou um lourinhanense da diáspora. Mas leio no jornal da terra, o mesmo de há quarenta anos, o Alvorada, a notícia a dizer que "numa cerimónia simples, a altura da chamada dos mortos em combate foi a mais sentida por todos os presentes" e que as honras militares foram feitas por um pelotão da Escola Prática de Infantaria (EPI) de Mafra, e a sua fanfarra. A mesma unidade que quarenta anos antes tinha prestado as honras fúnebres ao meu primo Nogueira, se a memória não me atraiçoa.
Registo ainda a presença do (i) Tenente General Jorge Silvério, um homem do MFA, natural de Ribamar onde tenho inúmeros parentes, do lado da minha visavó paterna (a família Maçarico); do (ii) Patuleia, o meu amigo Patuleia, natural do concelho vizinho do Bombarral, o Manuel Patuleia Mendes, presidente da Associação Portuguesa dos Deficientes das Forças Armadas, ele próprio talvez o mais dramático exemplo do horror, estampado no rosto, do que foi esta guerra para os jovens da nossa geração; e, por fim, do (iii) António Basto, Presidente da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra.
1. José António Canoa Nogueira, o primeiro morto da Lourinhã, na Guiné. Em 1965. Tinha eu os meus dezoito anos e, por isso, já tinha dado o nome para ir às sortes. A pacata vila do oeste estremenho foi sacudida pela notícia da morte do Nogueira. Já não me lembro onde nem em que circunstâncias. Sei que foi algures na Guiné. As Forças Armadas não davam explicações dessas. Um telegrama, seco e brutal, chegava normalmente a casa do pai e/ou mãe, uns dias depois, anunciando a funesta notícia: “As Forças Armadas cumprem o doloroso dever de o(a) informar que o seu filho morreu no campo da honra, servindo a Pátria”. Imagino que o teor do telegrama fosse esse...
Sei que o soldado Nogueira moreu em 30 de Janeiro de 1965. Soube-o através do memorial que consta da página do Jorge Santos (Obrigado, amigo!). O funeral do Nogueira, largas semanas ou até meses depois (já não posso precisar), foi uma impressionante manifestação de dor. Lembro-me da urna, selada, em chumbo. Dos soldados fardados e aprumados, vindos de Mafra, da Escola Prática de Infantaria. Da salva de tiros. Do luto carregado. Da emoção no ar. De uma família destroçada. De uma comunidade comovida. Dos boatos: "Se calhar o caixão vem é cheio de pedras". Da estupefacção e do medo dos mancebos que estavam na lista para a tropa. Lembro-me sobretudo do silêncio do cemitério. Nasci e vivi os meus primeiros anos, a 100 metros de um cemitério. Era incapaz de lá passar à noite quando puto. A paz do cemitério num país em guerra... a milhares de quilómetros das portas de cada um de nós.
O Nogueira era meu primo, embora em 3º grau. Não tínhamos grande convívio, mas os nossos pais (o pai dele e a minha mãe) eram primos direitos. As nossas avós maternas eram irmãs. Todavia, a sua morte tocou-me. A morte aproxima sempre os grupos, as famílias. Fiz-lhe uma singela (e creio que sentida) homenagem no jornal da terra, com direito a caixa alta. Um dia destes vou vasculhar os arquivos do quinzenário regionalista Alvorada para rever a sua foto e o meu texto. E eventualmente republicá-los aqui, no blogue, se o director do jornal, o Padre Joaquim Batalha, mo autorizar.
Na altura eu ainda era o chefe de redacção e o repórter principal daquela publicação. Já não me lembro do que escrevi nessas circunstâncias difíceis. Tenho uma vaga ideia de ter desejado, em letra de forma, que a morte do primeiro lourinhanense na guerra da Guiné não tivesse sido em vão. Não sei se foi depois disso que o director, o Padre António Escudeiro, recebeu um ofício do Ministério do Interior a perguntar por que é que o jornal já não ia à censura prévia há mais de um ano. Duas linhas, secas, burocráticas, impessoais. Em baixo, ocupando mais de metade da folha, a assinatura, em letra garrafal, mais arrogante e intimadatória que eu jamais vi em toda a minha vida… Se o fascismo existiu na minha terra, na nossa terra, então essa assinatura do censor-mor (ou de algum dos seus esbirros) era fascismo, puro e duro.
2. Por contraste, o funeral do Nogueira trouxe-me à memória a festa da chegada de um meu vizinho que veio da Índia Portuguesa, são e salvo. Ainda antes da invasão de Goa, Damão e Diu. Terá sido por volta de 1956, andava já eu na escola. O Jorge da Ti Albertina teve honras de herói, na nossa rua, a Rua do Castelo, a rua do cemitério. Era a última ou penúltima casa antes do cemitério. Ainda ecoam, na minha cabeça, as manifestações de alegria (o riso, o choro sufocado, os gritos, os abraços, os beijos) com que a Ti Alberina, a família e os vizinhos da rua receberam o nosso soldado e herói da Índia, um dos nossos últimos soldados e heróis da Índia. Eu era puto de bibe, andava na escola e jogava ao pião: para mim, todos os soldados eram heróis.
Escultura em bronze do combatente da Guerra do Ultramar. O monumento é da autoria do arquitecto A. Silva e da escultora A. Couto © Luís Graça (2005).
3. Em 26 de Junho passado, a Lourinhã, através da autarquia local, prestou a devida homenagem aos seus mortos no Ultramar: vinte ao todo, nove em Angola, seis na Guiné, cinco em Moçambique. Nesse dia foi inaugurado um "monumento aos lourinhanenses mortos na guerra do Ultramar”, obra do arquitecto Augusto Silva e da escultora Andreia Couto.
Fizeram parte da comissão organizadora, entre outros ex-combatentes, os meus amigos e conterrâneos João Delgado, Jaime Bonifácio e José Picão de Oliveira: este último, foi furriel miliciano na zona leste da Guiné, mesmo na ponta nordeste, em Canquelifá, tendo regressado já em Setembro de 1974, enquanto o Jaime foi alferes milicano paraquedista em Angola, sensivelmente na mesma época em que eu fui mobilizado para a Guiné (1969/71).
Vinte mortos (seis dos quais na Guiné, entre 1965 e 1973) foi o contributo da minha terra, o imposto de sangue que os lourinhanenses pagaram na defesa dum império e de um regime em agonia. Registo aqui, porque muito apropriadas, as palavras do presidente da Câmara Municipal da Lourinhã, José Manuel Custódio, na homenagem aos nossos mortos: "Pior do que uma guerra é fazer de conta que ela nunca existiu, e a guerra de África existiu".
Não estive na cerimónia nem tive conhecimento conhecimento antecipado dela. Sou um lourinhanense da diáspora. Mas leio no jornal da terra, o mesmo de há quarenta anos, o Alvorada, a notícia a dizer que "numa cerimónia simples, a altura da chamada dos mortos em combate foi a mais sentida por todos os presentes" e que as honras militares foram feitas por um pelotão da Escola Prática de Infantaria (EPI) de Mafra, e a sua fanfarra. A mesma unidade que quarenta anos antes tinha prestado as honras fúnebres ao meu primo Nogueira, se a memória não me atraiçoa.
Registo ainda a presença do (i) Tenente General Jorge Silvério, um homem do MFA, natural de Ribamar onde tenho inúmeros parentes, do lado da minha visavó paterna (a família Maçarico); do (ii) Patuleia, o meu amigo Patuleia, natural do concelho vizinho do Bombarral, o Manuel Patuleia Mendes, presidente da Associação Portuguesa dos Deficientes das Forças Armadas, ele próprio talvez o mais dramático exemplo do horror, estampado no rosto, do que foi esta guerra para os jovens da nossa geração; e, por fim, do (iii) António Basto, Presidente da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra.
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