1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2014:
Queridos amigos,
Nada fazia supor, naquele fim de tarde chuviscoso a prenunciar Outono que iria encontrar numa publicação do Clube Militar Naval um conto tão pungente, tão tocante, evocativo da reconciliação luso-guineense, a propósito da guerra civil de 1998-1999.
Esta é a dimensão mais agradável que assiste ao andarilho que pesquisa assuntos, coisas de todo o tipo e objetos de toda a sorte que aponta para a Guiné, aquela que foi a primeira colónia moderna de um mundo que se chamou moderno e aonde se decidiu que Portugal não podia continuar a fechar os olhos ao imperativo da emancipação dos povos.
Desculpem o texto ser um pouco maior que é costume, mas este conto naval perderia se fosse cindido, as boas, genuínas emoções não se podem lotear.
Um abraço do
Mário
Adeus, Bissau!
A ternura de um conto à volta da guerra civil de 1998-1999
Beja Santos
Deve haver inúmeros métodos para pesquisar pepitas guineenses, ou seja, encontrar em alfarrábios, em estancos da Feira da Ladra, vendas na via pública e aparentados, o meu método deve ser o mais singelo: quem vê caras não vê corações, não frontispício que me demova, não é a primeira vez que sou engando pelas capas, tem que se ler sempre o índice das revistas, espiolhar, não esmorecer, vai-se à caça sem o propósito deliberado de trazer umas galinholas para casa – é este o princípio básico, está disponível para regressar de mãos vazias. Assim procedo quando, por exemplo, entro num alfarrabista na Rua das Portas de Santo Antão, contíguo ao Palácio da Independência, tem uma banca com publicações a 1€, há de tudo, desde o romance policial, literatura de viagens, catálogos de leilões, livros de relações internacionais e tudo aquilo que é esperável encontrar quando os herdeiros se desfazem de bibliotecas. Naquele fim de tarde, a sorte estava do meu lado, ao pegar num número de 1999 dos Anais do Clube Militar Naval era impensável ir encontrar, redigido por um oficial da Armada um conto enternecedor, sabe-se lá se este Primeiro-tenente Jorge Manuel Moreira Silva não presenciou tudo o que passou à ficção, e que ele chama conto naval. É uma bela achega para a literatura luso-guineense e é acima de tudo um comovente apelo à reconciliação entre todos aqueles que combateram na Guiné. Vamos aos factos, ao conto:
Adeus, Bissau!
Há vinte e quatro anos uma criança corria, desamparada, pelas ruas de Bissau. Desencontrada da mãe, buscava, em vão, amparo na multidão de rostos estranhos que a envolvia, no turbilhão dos acontecimentos. Se nalgumas apenas via medo, outros lhe surgiam, ameaçadores, pela frente, gritando
“Vai para a tua terra! Vai para casa!”, só que não lhe diziam como. Ir para casa era o que mais desejava, porque não a deixavam, então fazê-lo como habitualmente, em sossego, na companhia da mãe? À sua volta tudo era gritos e correrias, pelo que nenhum apoio poderia, jamais, encontrar na debandada de gente que apenas buscava a sua própria segurança. Choviam pedras e insultos, ninguém sabia como tudo aquilo iria acabar…
Esbarrou em alguém… Um Negro alto, de camuflado, barrava-lhe a passagem.
“Andas perdido, menino?”. Correspondia à descrição feita pelo pai dos temíveis turras que encontrava no mato, mas o seu aspeto era jovem e os seus olhos eram fundos, sinceros, cheio de compaixão.
- Não me faça mal, Senhor Turra! – Suplicou o petiz. – Eu só quero ir para casa.
O negro de camuflado permaneceu sério durante breves segundos, depois esbugalhou os olhos e a sua boca abriu-se numa gargalhada franca moldada por duas impecáveis fileiras de dentes.
- Senhor Turra, eh? – Exclamou. – Não tem medo, menino, que Senhor Turra não te faz mal.
O seu rosto retomou, então, a seriedade inicial e os seus olhos fixaram a linha do horizonte.
– Tua casa não é aqui, menino, fica longe. Estas casa e estas terra são de nós, mas Senhor Turra vai deixar-te a caminho…
Sentiu aquelas palavras como um soco dado no peito. Como podia aquele homem afirmar que não era a sua casa onde sempre vivera e que não passava, agora, de um estranho na única terra que jamais conhecera? Todo o seu pequeno mundo ruía na crueza demolidora daquelas frases.
Caminharam, por longos minutos, entre a multidão assustada, até à beira da estrada que seguia para Bissalanca.
- Vê aquele monte de branco? – Perguntou o guerrilheiro, apontando um grupo de refugiados a caminho do aeroporto. – Segue com eles, para ver tua mãe e voltar para casa. – E passando-lhe a mão pela cabeça, o rosto de novo aberto numa expressão de afeto: - Toma cuidado, menino.
Foi recolhido pelo grupo, nele reconhecendo, de imediato, alguns dos seus vizinhos. Já no aeroporto, foi entregue à mãe, que chorava. O pequeno não sabia se era a alegria do reencontro, os cuidados pelo pai, que ficava para trás, no mato, ou já a saudade de tudo aquilo a que chamara seu e que se via obrigada a virar costas.
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Hoje o menino há muito que o não é. Esquecida que ficou, nas teias do tempo, a promessa de que jamais iria combater, orgulha-se, agora, do seu alvo uniforme de oficial de Marinha. Empenhado numa ação de representação junto de um navio estrangeiro, não se apercebe, na azáfama das comemorações do Dia de Portugal, de que na terra que o viu nascer as armas voltaram, uma vez mais, a falar. E só se inteira da gravidade da situação quando o telefonema urgente de um camarada o vem acordar para um novo pesadelo:
- Tens de te apresentar a bordo imediatamente. Houve um golpe militar na Guiné-Bissau e temos que lá ir evacuar os cidadãos portugueses que pretendam regressar.
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As duas corvetas sulcam, agora, as águas lamacentas do Geba, rumo a Bissau. Nunca pudera imaginar que a situação fosse evoluir tão rapidamente. E agora? Como reagirá se, ao chegar, a força for acolhida com fogo de morteiro? Vacilará? Portar-se-á como o herói que sempre sonhou ser? Talvez tudo corra de um modo calmo mas a espera não deixa de ser angustiante. Arde a margem norte junto a Brá e Bissalanca e soa seco o matraquear das armas ligeiras, entrecortado pelo estrondo surdo da morteirada. Bissau está à vista e também a “Vasco da Gama” que, fundeada a uma distância segura da margem, se prepara para suspender e efetuar a aproximação. Parte, do Comandante da força, a ordem para os três navios se aproximarem em simultâneo. É o tudo ou nada… A tensão cresce, de súbito, e precipita-se num só instante, o instante em que o navio-chefe se cruza com os outros dois e as três guarnições se saúdam num grito entusiástico e emotivo que poderá bem ser o último… É chegado o momento. As posições são ocupadas a escassas centenas de jardas do cais e já os três ferros unham no fundo de areia lodosa. Tudo decorreu sem incidentes, apesar de um projétil isolado ter caído entre a “Vasco da Gama” e uma das corvetas.
Os botes largam e dirigem-se para o cais onde já se apinha uma considerável multidão. São cerca de setecentos, de acordo com os números fornecidos pela embaixada, mas os que ali se acotovelam são, de certeza, muitos mais. Os homens desembarcam e o jovem oficial dirige-se a um capitão do Exército Português que coordena as operações em terra, juntamente com um sargento senegalês.
- É melhor despacharem-se. – Aconselha o capitão. – A maior parte da população já sabe que vocês cá estão e vai querer ir também. Nós temo-los aguentado até agora, só não sei quanto mais tempo conseguiremos…
A um sinal do oficial, os fuzileiros tomam posição junto à navegação do cais que ameaça ceder face à pressão da multidão. É feita a primeira triagem, de acordo com as prioridades: Portugueses, cidadãos da União Europeia, Cabo-verdianos e, por fim, Guineenses com o visto da embaixada portuguesa. Os botes dão início às primeiras carreiras.
O silêncio é bruscamente interrompido por um estrondo: um projétil de artilharia caiu no centro da cidade e outros dois se seguem, desta vez na periferia do porto. As mulheres e as crianças gritam e os homens tentam, com mais insistência, forçar a vedação, levando os Senegaleses a distribuir bastonadas. Os fuzileiros colocam, instintivamente as armas em posição de fogo, mas a atenção do oficial é desviada por um homem de meia-idade, alto, de olhar profundo e triste que mantinha a serenidade no meio do pânico geral. De onde conhecia ele aquele olhar? Por breves instantes, e sem saber como, voltou a ser um menino desamparado entre uma multidão em debandada, buscando proteção naquele olhar.
- Tragam aquele homem. – Ordenou quando voltou a si. – Vejam se ele tem o visto.
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- O senhor faz-me lembrar alguém que em tempos conheci por estas paragens…
Em pé, no convés de voo da corveta, o homem foi bruscamente arrancado às suas divagações, mas não pareceu demasiado surpreso com esta abordagem.
- Está a falar comigo, Senhor Oficial?
- Parece que sim, uma vez que o senhor é o único que não correu a abrigar-se do temporal que aí vem.
- Seu refeitório é muito apertado para toda esta gente. Prefiro dar lugar às mulher e criança, que eu já estou habituado a dormir no mato, debaixo de chuva.
- Isto confirma a minha suspeita. Já foi guerrilheiro?!
O homem suspirou profundamente.
- Naquele tempo era toda gente, unida na mesma causa. Nós lutava, nós morria, mas era feliz, por ser irmãos uns dos outros e acreditar na liberdade e união. Hoje, Camarada Amílcar Cabral ficaria triste, como eu, de ver seu sonho todo destruído.
- Ânimo, tudo se há de compor. Deixou lá família!
O homem baixou os olhos.
- Mulher e filha… Ficaram soterrada quando casa ruiu às três dia.
- Lamento… É por isso que parte, por não ter já nada que o prenda àquela terra?
Ergueu o rosto, de repente, e o seu olhar ganhou nova vivacidade.
- Não, senhor. Quero voltar. Aquela ainda é a minha terra, lutei muito por ela e não a vou largar. Fico triste de ver os meus irmão uns contra outros e vou embora para não ter de combater alguns deles, mas, se guerra acabar, hei de voltar, sim.
Respirou fiando, para recuperar o fôlego, e continuou, mais pausadamente:
- Sabe, Senhor Oficial, Guiné é muito pequena, mas tem gente muito diferente, tem Mandinga, Fula, Balanta, Bijagó, Papel, Felupe, e todos aprenderam a se dar bem. Foi isso que permitiu nossa liberdade contra potência mais forte e é isso que vai trazer paz de volta, não a interferência do estrangeiro. Paz será quando Povo quiser, percebe?
- Eu sei. O meu pai costumava dizer que vocês eram um inimigo terrível, por serem muito unidos…
O velho guerreiro pareceu interessado nestas últimas palavras.
- Seu pai combateu na Guiné?
- Sim, de 68 a 70. – Quando eu nasci, e de 73 a 74.
- Ah, é dessa altura que diz conhecer-me?
- Exatamente. O senhor é igualzinho a um guerrilheiro que me ajudou a sair de Bissau quando tivemos de vir embora. Não se lembra de ter encontrado um rapazinho perdido nas ruas?
O homem saltou uma saudável gargalhada, mostrando-se pela primeira vez bem-disposto.
- Por isso você me ajudou, mesmo sem eu ter o visto… Mas pode estar enganado. Já passou tanto tempo… Não lembro de menino nenhum. Tinha outra coisa importante para preocupar.
Já as primeiras gotas de chuva borrifavam os dois interlocutores.
- Pense nisso. – Pediu o oficial. – Quando vi o centro de Bissau a arder senti reavivar uma antiga ferida, como se me estivessem a expulsar novamente de casa. Então vi-o, a si, naquele cais e senti de novo a proteção do meu amigo turra.
E recolheu ao interior do navio. O homem deixou-se ficar à chuva, entregue aos seus pensamentos.
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Ao tocar o cais da cidade da Praia, a multidão de refugiados precipitou-se para a tolda, atulhando-a de sacos e mochilas de várias cores. Aguardava-os uma equipa da Cruz Vermelha de Cabo Verde e um cordão policial controlava os movimentos na muralha, onde vários autocarros se alinhavam para os transportar ao aeroporto.
O antigo guerrilheiro veio despedir-se.
- Vai para Lisboa? – Perguntou o jovem oficial.
- Não, fico por cá, na companhia dos irmão cabo-verdiano, à espera que tudo se resolva.
- Não perca a esperança. Mantenha a fé no seu povo…
- Não perdi uma nem outra. Veja caso de nós dois: ontem combati seu pai, hoje você vem como amigo. Ontem você teve de fugir de sua casa, hoje tive eu, mas quando voltar minha casa será também sua porque sua já voltou a ser terra de Guiné. Como vê, nem tudo está mal… - E, após uns instantes de silêncio: - Obrigado ter-me ajudado.
- Obrigado por me ter encontrado mais uma vez. – E quando o homem já ia a virar costas: - Adeus, Senhor Turra.
Aquele voltou-se novamente e, rosto aberto numa expressão de afeto, colocou a mão no ombro do seu jovem amigo.
- Toma cuidado, menino.
Ao sair a prancha, o velho guerrilheiro levava marejados os olhos negros e profundos, mas sorria, pois acabava de se aperceber que, apesar dos percalços, ainda havia esperança para o grande sonho do Camarada Cabral.
Há vinte e quatro anos uma criança corria, desamparada, pelas ruas de Bissau. Hoje a criança não mais o é, mas voltou a ser feliz, porque quem antes a mandara para longe veio a tornar-se num amigo, um amigo necessitado que, longe de cobrar antigos favores, a ajudou, finalmente, a voltar para casa.
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Aqui acaba o conto. Já o li duas vezes, sentado numa cadeira incómoda numa sala em penumbra, num fim de tarde que anuncia o Outono. Choraminguei, como alguém neste conto naval. Estou consolado por tanta surpresa. Até pelo facto da capa nada sugerir sobre a Guiné.
A fotografia deste número dos Anais do Clube Militar Naval mostra o primeiro-tenente Fernando Augusto Branco, imediato do primeiro submersível da Marinha portuguesa, o Espadarte, e avô materno do antigo Presidente da República Jorge Sampaio.
Mais outra surpresa.
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Nota do editor
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Guiné 63/74 - P13652: Notas de leitura (635): “Vamos", por Jacinto Lucas Pires (2) (Mário Beja Santos)