quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9092: (Ex)citações (158): Homenagem aos nossos mortos não tem data! É quando um homem quiser! (António Matos)


1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos a seguinte mensagem:

Homenagem aos nossos mortos não tem data! É quando um homem quiser!

Camaradas,

Para lá duma forte comoção que me invadiu o coração em dia de greve geral a qual me permitiu dedicar o tempo "à limpeza" de muito lixo acumulado no computador, descubro inadvertidamente este texto nos meus arquivos que me sobressaltou pela saudade, pela dor e pela juventude passada...

Fiquei confuso sobre a oportunidade de uma re-publicação mas isso deixo ao critério dos editores e o que decidirem está bem decidido.

Dizia eu em 2008 :

Cá volto eu outra vez nestes primeiros contactos de Tabanca, recordando outras tabancas lá por terras de poucas saudades, onde deixei muita da pureza da minha meninice, alguns dos amigos que fiz desde os Arrifes em Ponta Delgada e que tinha jurado trazê-los de volta ao colo das suas Mães, aos abraços enternecedores dos Pais, aos beijos das namoradas...

Tal não se concretizou e hoje, ao ver os rostos daqueles que eram meninos, confrange-me o sofrimento incalculável de quem tenha recebido um telegrama a anunciar uma morte por actos de bravura em defesa da Pátria !!!!

Caramba, muitos dos nossos camaradas morreram tão simplesmente por serem os homens errados, no sítio errado à hora errada!

Muitos de nós não tinham tido sequer tempo de interiorizarem o quanto essa Pátria ( que hoje os esquece em favor de outros que seguem para missões de meia dúzia de meses e a troco de belas fortunas ), lhes pediu, de borla, para que fossem heróis na medida das suas forças!

Caramba, eu vi miúdos a chorar na caserna com saudades dos seus familiares !

Caramba, eu vi miúdos a baterem-se com uma heroicidade contagiante pela defesa do camarada em apuros que lhe estava ao lado!

Caramba, eu vi miúdos a fazerem frente a um contingente de guerrilheiros liderados pelo Nino Vieira!

Caramba, eu vi miúdos a caírem nas minas e a ficarem decepados!

Caramba, meus caros, eu vejo, todos vemos, o abandono a que esta Pátria nos relegou!

Não, não faço parte de qualquer associação de apoio aos ex-combatentes; nunca me disponibilizei a engordar as filas de manifestantes que se propõem zelar pelos interesses de todos nós; nunca expus publicamente o meu desencanto com os sucessivos (des)governantes que têm passado pelos corredores dos Passos Perdidos numa atitude de vil desrespeito por esta geração que é a minha; mas agora, do alto da palhota da minha Tabanca, tento compreender o meu tempo e as novas gerações onde já pontuam os meus filhos, os meus netos, e os filhos e os netos dos meus camaradas de armas.

Os tempos deram uma grande cambalhota e os valores alteraram a sua ordem hierárquica.

Hoje pertencemos a uma geração que sendo sobrevivente a uma guerra, assiste à transformação do paradigma da vida.

Hoje há filhos a morrer antes dos pais pelas mais diversas razões: droga, uso indevido de armas, acidentes viários, gangsterismo, AVC's, stress, incertezas profissionais, etc., etc., etc.

Duvido que esta juventude tenha alguma simpatia pelo conhecimento desta aventura africana na qual os seus pais se envolveram.

Têm tanto com que se preocupar...

Enfim, em dia de todos os mortos, rendo-me à memória de todos aqueles que partiram dirigindo às respectivas famílias o meu sentido silêncio já que as palavras teimam em não sair pelo nó que se forma na garganta.

Voltarei mais tarde para me dedicar também às ocasiões que nos faziam rir.

E foram muitas...

Abraços,
António Matos
Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

15 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9046: (Ex)citações (156): A recensão a Pami Na Dondo foi feita não ao livro mas à pessoa do autor (Mário Fitas)


Guiné 63/74 - P9091: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (48): Como a publicação do Diário da CCAÇ 675 fez reencontar dois camaradas quase meio século depois (Manuel Joaquim)

1. Comentário do nosso camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, deixado no Poste Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304)...:

Olá JERO!

JERO, o Fur. Mil. com quem passei umas horas, muito agradáveis, de um dia de outubro de 1965, no seu quartel de Binta.

Saído de Bissau por mar, subi o rio Cacheu até Farim, em serviço de segurança a dois batelões com abastecimentos às tropas sediadas nas margens do rio Cacheu.

Em Binta fui tão simpaticamente recebido que o facto me ficou na memória. Talvez, também, por ter folheado um livro que um certo furriel me apresentou, livro que me fez crescer água na boca e que virou tema de conversa prolongada. Perante a minha apetência pela obra a resposta veio logo: "não podes levar porque a sua matéria é confidencial". O livro tinha sido escrito por ele e editado recentemente. Relatava o percurso da CCaç 675, no seu 1.º ano de comissão.

Este encontro ficou-me gravado na memória e, quanto ao tal furriel, nunca mais o vi e esqueci o seu nome. Até que, por obra e graça desta Tabanca, ele aparece aqui e, ao identificar-se como autor deste "diário", fez-me recordar o nosso encontro. Ao contactá-lo, teve a gentileza de me oferecer um exemplar fotocopiado. Posteriormente adquiri a sua recente obra "Golpes de Mão's" de que gostei muito.

Meu caro JERO, meu caro camarigo,
um grande abraço.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8778: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (47): De Cassiano Reginatto (Brasil) para o Mário Beja Santos, com pedido de sugestão de livros

Guiné 63/74 - P9090: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (5): O desenrascanço... na justiça militar!

1. Mais uma história do José Ferraz (ex-Fur Mil, Op Esp, CART 1746, Xime e Bissau, 1968/70; era filho de um oficial da Marinha, e está radicado nos EUA há desde 1970):


Quando prestava serviço na CCS/QG em Bissau, uma vez por mês tinha que prestar serviço como sargento da guarda na prisão do QG (à direita da porta d'armas do dito quartel), guarda de honra em funerais locais e ainda montar segurança no Pidjiguiti ao navio de abastecimento quando atracado nas suas fainas.


Numa dessas missões estava eu com a minha secção a bordo do Carvalho Araújo quando um soldado me veio informar que o condutor do jeep que me estava designado, estava no porão de vante com uma grande bebedeira (era Balanta). Fui pelo convés até esse porão, olhei para dentro e vi que o grupo de estiva,  ao carregar a rede de estiva,  tinha partido um das centenas de caixas de uísque e estavam,  todos eles,  a festejar. Entre eles algums dos meus soldados (manga de ronco).


À hora do almoço tinha que ir à messe de sargentos comer e o condutor bêbado... Como tinha carta militar,  nem sequer pensei que o que aconteceu em seguida me iria criar tantos problemas. Pus o condutor no assento do passageiro e conduzi o jeep do cais, passei pela messe a caminho da Companhia de Transportes do QG onde deixei a viatura e pedi outro condutor.


Nunca mais pensei nisso. Dias depois fui chamado ao gabinete de um alferes da CCS/QG para prestar declarações no âmbito de um auto de averiguações  que me tinha sido levantado quando um furriel me tinha visto a conduzir esse maldito jeep. Fui falar com o tenente coronel, chefe da justiça, que por acaso conhecia o meu pai, e expliquei-lhe a alhada em que estava metido (, a dois meses antes de acabar a minha comissão).
- Eu não posso acabar com o inquérito mas deixe-ver o que é que se pode fazer.

Dias depois dei-me conta que este assunto não andava nem desandava e o tempo a fugir e a minha data de embarque a aproximar-se... Dois dias antes do meu embarque para Lisboa,  o bendito tenente coronel chama-me ao seu gabinete e diz-me:
- O nosso furriel foi condenado a 12 dias de prisão disciplinar agravada pelo CCM [, Comandante do Comando Militar,], pelo que na ordem do dia de amanhã sai a ordem de que se apresentou no QG para começar a cumprir essa pena...

Continuou o bendito TC:
- Depois de amanhã, no seu dia de embarque, vai sair na ordem desse dia o seguinte: 'Saiu hoje da prisão do QG o furriel etc., etc,  depois de cumprir a sua sentença,  etc., etc.'... 

E prosseguindo:
- O nosso furriel faz as malas e... aqui está a tua guia de marcha... Embarcas, ficas muito caladinho e boa viagem!...  Não te esqueças de dar os meus cumprimentos aos teus pais.
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9089: A minha CCAÇ 12 (21): Maio de 1970: Chega o BART 2917 que vai render o BCAÇ 2852 (Luís Graça)




Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) > os craques da bola... A gloriosa equipa de futebol de onze donde se destacam, entre outros os nossos tabanqueiros Joaquim Fernandes (ex-Fur Mil At Inf, o primeiro, de pé, a contar da direita), o Tony Levezinho (ex-Fur Mil At Inf,, o terceiro, na primeira fila, a contar da direita), o Arlindo Tê Roda (ex-Fur Mil At Inf, o quinto, na primeira fila, a contar da direita), e o João Rito Marques ( nosso cabo quarteleiro, 1º Cabo Manutençã de Material, que vive hoje em Sabugal)...  Ainda na segunda fila, o terceiro a contar da esquerda, em tronco nu, é o 1º Cabo At Inf Carlos Alberto Alves Galvão (, que vive na Covilhã, e continua ligado ao associativismo desportivo).

O 1º Cabo Manuel Alberto Faria Branco (, que pertencia à 3ª secção do 2º Gr Comb, a secção do Tony Levezinho; está para entrar há um ano para a Tabanca Grande...); o 1º Cabo Escriturário (e tocador de acordeão) Eduardo Veríssimo de Sousa Tavares (, morada atual desconhecida);  e o Sold Arménio Monteiro da Fonseca (, vive no Porto, é taxista, um grande morcão, um cromo, um grande camarada) são os restantes jogadores da primeira fila; estou a reconhecer (, mas já não me lembro do seu nome,) o guarda-redes, um dos nossos soldados africanos...

Fardados, de pé, na segunda fila, da direita para a esquerda, 1º Sargento Cavalaria Fernando Aires Fragata (que foi depois fazer o curso de oficiais de Águeda, se não me engano; dei-lhe explicações de português; não sabemos se é vivo e onde mora); o 2º Sarg Inf Alberto Martins Videira (, vive ou vivia em Vila Real); 2º Sarg Infantaria José Martins Rosado Piça (,vive ou vivia em Évora; deve estar com 78 ou 79 anos; rezo pela sua saúde);  e o 1º Cabo José Marques Alves (que pertencia  à 2ª secção do 2º Gr Comb, a secção do Humberto Reis, que chamava "Afredo" ao Alves)... Entre o Videira e o Piça, estão dois camaradas da CCAÇ 12, que de momento não sei identificar: o que está fardado sei que era um soldado condutor auto... Talvez o nosso cripto e tabanqueiro GG (Gabriel Gonçalves) me possa dar uma ajuda... ( E acaba de nos ajudar, dizendo que o soldaddo condutor auto é o Alcino Braga, um camarada de cinco estrelas, um condutor responsável, discreto, impecável, de quem guardo as melhores recordações!... Tantas viagens que fizemos juntos!, Obrigado, GG; um abração, Alcino!).

Na segunda foto, a da jogatana da bola, reconheço o Roda e o Levezinho (de calções vermelhos). O terceiro elemento, da linha de ataque, tanto pode ser o Joaquim Fernandes  (Fur)  como o Francisco Magalhães Moreira (Alf Op Esp) (inclino-me mais para a esta segunda hipótese)...

Fotos: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados


A. Continuação da série A Minha CCAÇ 12 (*)
por Luís Graça




Fonte:


História da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71. Bambadinca: CCAÇ 12. 1971. Policopiado
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 23 de Novembro de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto um pequeno trabalho para fazeres dele o que entenderes melhor.

A história, a sua crueldade intrínseca, foi vivida por muitos de nós. Naquelas alturas os segundos contavam e eram dramáticos. Jubilávamos quando o nosso esforço e sacrifício eram recompensados. Chorávamos quando víamos o destino cruel ser mais forte que a nossa vontade. Do que não podemos ter dúvidas é que num caso ou no outro sempre, mas sempre, cumpríamos com o nosso dever humano e militar.

Amanhã, dia 24 de Novembro, é dia de Acção de Graças nos EUA. Ao longo dos anos habituei-me a compreender, a respeitar e a participar nesta grande festa da Família Americana. Aqui fica o meu convite para que tu e todos os nossos amigos da Tabanca, celebrem comigo o dia do Thanksgiving.

Um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (29)

Quando o destino cruel desabafava a sua ira

Ao fim da manhã do dia 17 de Junho de 1971, a coluna da CCaç 3327 deixava para trás o seu último acampamento na Mata dos Madeiros e um grupo de elementos das Transmissões agora protegidos por outras forças de intervenção. Pelo caminho fez uma breve paragem no Bachile para pegar os militares e nos haveres da secretaria, tendo seguido em direcção à Ponte Alferes Nunes. Esta que, recentemente, sofrera algumas reparações tinha uma estrutura forte, mas o seu tabuleiro, por ser estreito, requeria alguns cuidados, sobretudo com as viaturas mais pesadas. Daí a perda natural de algum tempo na sua travessia.
Mas que importava isso, se depois da ponte entrávamos no paraíso comparado com o inferno que tinha sido a nossa vivência nos últimos meses?

A meia tarde, a coluna entrava na avenida principal de Teixeira Pinto e, finalmente, cruzava a Porta de Armas do quartel sediado naquela vila. Ali receberíamos a primeira grande desilusão do dia. Pela indisponibilidade de instalações, foi-nos ordenado que montássemos o nosso bivaque na parada grande que ficava em frente aos edifícios de Comando e Serviços. O solo guineense continuaria a ser o lençol onde se deitariam os nossos corpos ansiosos por um descanso condigno.

Estávamos a findar a nossa tarefa quando nos apercebemos que ali fazíamos parte de uma outra guerra. Um clarim soou o toque de Ordem. A verdade é que os nossos corpos, depois de cerca de trinta e seis horas de actividade, precisavam mesmo de descanso e os nossos estômagos de serem reconfortados com aquela ração de combate que esperava por nós.

Como quase sempre fazíamos, eu e os militares da minha Secção sentámo-nos juntos para darmos início ao nosso repasto. Para além do ambiente social normal dessas ocasiões, aproveitávamos para trocarmos entre nós as conservas que cada um mais gostava. Já tínhamos aberto algumas latas quando o clarim voltou a soar. Desta vez, o som era mais angustiante, o som do formar piquete.

Era certo que o 4.° GComb, o meu grupo, estava de serviço mas, acabados de chegar àquele quartel, aquele toque não devia ter nada a ver connosco. Como estava enganado!

Alguém gritou:
- Furriel Câmara mande formar o grupo de combate! - A ordem tanto pode ter vindo do Comandante do Pelotão, o Alf. Mil. Francisco Magalhães ou directamente do Comandante da Companhia. Para o caso pouco importava. Tudo era feito com disciplina compreensível, sem atropelos.

Os soldados que me acompanhavam ainda tentaram um pequeno protesto. Tinham alguma razão, estavam exaustos e eu também.
Apenas disse:
- Vamos! - A ordem simples não deixava margem para dúvidas. A verdade é que aqueles rapazes, habituados à minha maneira de ser, devem ter percebido na minha voz que eu não agoirava nada de bom e assim era. Naquele momento, o meu coração estava na Mata dos Madeiros e nos camaradas das Transmissões que deixáramos lá de manhã. Felizmente que essa suspeita não se materializou, mas a verdade é que a noite que se aproximava seria longa e muito dolorosa.

Acampamento na Mata dos Madeiros. O Posto de Transmissões estava na tenda montada à esquerda.

Com o Pelotão formado e pronto para receber ordens, fomos informados que houvera um acidente grave na CCaç 2637/BII18, adida ao BCaç 2905, precisamente aquela que iríamos substituir nos Destacamentos de Teixeira Pinto. Um soldado caíra de uma viatura e sofrera um traumatismo craniano grave. Hoje, a esta distância no tempo, não me recordo em qual dos Destacamentos.

Na pista de Teixeira Pinto uma avioneta aguardava a chegada do sinistrado para a evacuação, mas devido ao adiantado da hora poderia ter que levantar voo e regressar a Bissau antes da chegada daquele. Infelizmente foi o que aconteceu e, como alternativa, fizemos uma coluna a Bissau para evacuar o sinistrado.

Honra seja feita a muitos soldados e graduados da minha Companhia que se voluntariaram para fazerem parte da coluna de evacuação que partiu para João Landim. Nesse trajecto foram vistas patrulhas de segurança nocturnas saídas do Pelundo, Có e Bula. A todo aquele aparato de forças bem poderia chamar-se, com toda a propriedade, um aparato de solidariedade humana e militar, só possíveis num exército bem formado, capaz e disciplinado.

Em João Landim, fizeram a travessia do rio Mansoa o sinistrado e uma força suficiente para a sua segurança até ao Hospital Militar. O resto da coluna aguardou o regresso daquela força.

Cerca das duas da manhã, já no dia 18 de Junho de 1971, os militares e as viaturas que tinham ido até ao Hospital regressaram e com eles a notícia que nenhum de nós gostava de receber. O Soldado sinistrado Agostinho Lopes Miranda, natural da Ribeira Seca, Ilha de São Miguel, sucumbira aos ferimentos recebidos no acidente.

Cabisbaixos e pesarosos regressámos a Teixeira Pinto. Os céus, em solidariedade com a nossa tristeza, juntaram as suas fortes e grossas lágrimas às nossas. Tínhamos a consciência do dever cumprido, infelizmente, atraiçoados por uma força muito mais forte que a nossa vontade.

Chegados ao quartel completamente encharcados, exaustos e abatidos pelo drama a que acabáramos de assistir, procurámos refúgio nas nossas tendas inundadas pelas chuvas que caíam insistentemente.

O despontar dos alvores da madrugada não conseguiu trazer luz à escuridão que cobria os nossos jovens corações. Para nós a noite tinha sido muito longa.

No meio do oceano Atlântico, quem sabe se no mundo da emigração, para uma família ficava o vazio deixado pela ausência eterna do seu soldado. Que partira nas vésperas do seu regresso a casa.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9059: Memória dos lugares (163): Mampatá saúda Mampatá (António Carvalho / José Câmara / José Eduardo Alves / Mário Pinto)

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8964: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (28): Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas

Guiné 63/74 - P9087: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): O Zé Maria ou as cambanças da nossa geração



1. Em mensagem do dia 20 de Novembro de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua boa memória de guerra.

Memórias boas da minha guerra (25)

O Furriel Zé Maria ou Cambanças da nossa geração

O regresso da Bairrada, é sempre pesado. A comida é boa, a pinga é forte e os companheiros de mesa “jogam muito” no incentivo ao consumo. Por isso, não são precisos muitos quilómetros para que um homem tenha que encostar, a fim de passar pelas brasas.

Meia horita depois, acordo mal disposto e com a cabeça tonta. Confesso que estou pior do que quando encostei naquele pequeno espaço, à sombra de um chorão vimeiro. Só um café me pode salvar. Olho em frente e reparo que há ali um, a poucas dezenas de metros.

Encosto-me ao balcão e mando vir o café. Ainda não estava servido e sinto-me envolvido por uma carícia exuberantemente cheirosa e bem “charmosa”.
- Meu bem, você não quer mais nada, além do cafezinho? - segredou-me ao ouvido a brasuca, bem abonada, encostada a mim.
- Não. Tenho que trabalhar e estou ainda cheio do almoço. – respondi-lhe.
- Mas, meu bem, você se está afastando de mim, porquê? Minha nossa, sou tão ruim, assim? Você não quer mesmo mais nada? – insistia ela, com a voz melosa, ao mesmo tempo que fazia roçar todas as suas saliências frontais pelo canastro deste pobre velho.
- Não! Nada disso! Por sinal és bem boa, carago! Sabes, é que já estou velho e cansado para outras coisas. – Voltei a responder.
- Olha meu bem, você não brinca comigo, não? Tira isso de sua cabeça, meu bem. Você não é coisa de se desperdiçá, não. Goza tua vida, meu bem, porque você é muito garboso e é uma pena você si chamá de velho. Te cuida, porque você tem muito para .

Ao mesmo tempo que me libertei, dirigi-me para a saída do café. Foi quando, a custo, me apercebi que entrara um indivíduo que não me era estranho. Quando o fito, ele reage logo:
- Olha o Silva. Que andas por aqui a fazer?
- Vim almoçar com um cliente e amigo, da Bairrada. Mas o meu alambique já não tem estofo para tanto.

Olha, lá em Catió, Cabedu, Canquelifá, Bissau etc etc, aquilo era uma máquina, a evaporar o álcool. Agora… agora, estou a emborcar cafés para poder regressar a casa.
- E tu, estás bem? Ainda trabalhas com o teu irmão? – perguntei
- Sim, está tudo na mesma. Tal e qual como há tempos quando estivemos a conversar.

O Zé Maria, fez a guerra da forma mais pacífica possível. Fazia unicamente o indispensável e exigível e procurava sempre evitar apertos ou quaisquer excessos. Era conhecido pelo Furriel Sorninha.
Por outro lado, evitava abrir-se ou falar de assuntos relacionados com a sua vida privada. Digamos que não era gajo de convívio ou de se puxar para a borga. Um gajo porreiro mas muito fechado.
E foi cá, em longas conversas, que tive a oportunidade de o conhecer melhor.

Depois da guerra, ainda frequentou o Instituto de Engenharia mas não resistiu à onda libertina do final dos anos sessenta. Rumou Europa fora, poisou em Paris, juntou-se a grupos “hippies” comunitários e andou por todo o lado, perfeitamente integrado naquele ambiente de novos ideais e de velhos prazeres. Foi até ao extremo.

O tempo passava rapidamente e as ressacas também. Quando se apercebeu de que já não estava a sentir a mesma alegria inicial e que já não estava a aproveitar nada desse tempo, resolveu iniciar o regresso.
Ainda trabalhou numa empresa pública mas, não habituado à disciplina, acabou por “encostar” na empresa do irmão (fabrico de bicicletas), onde se sentia à vontade e onde pôde por a render todas as suas capacidades.

Casou, teve um filho e tem levado a sua vida equilibrada e livre de sobressaltos. Por outro lado, gosta de manter os seus pequenos vícios (pesca, caça e um ou outro convívio restrito).

- Por que estás aqui, se moras lá mais para diante? – perguntei.
- Trabalho ali ao fundo e este é o café que tenho mais próximo. Estou de passagem. Fui buscar a “roullote” ao mecânico, porque vou aproveitar a ponte de Sexta-Feira, para ir até lá baixo com a patroa. Eu gosto disso e ela ainda mais. Queres ver, a máquina?

- Boa tarde Senhor José Maria e companhia. – saudou uma mulata que nos cruzou.
- Boa tarde Dona Miquelina. – respondeu o Zé Maria
- Estás ligado a estas gajas? – perguntei surpreendido.
- Não! Nem pensar! Simplesmente, levo a minha vida normal e trato toda a gente por igual. – respondeu
- E digo-te mais, admiro esta fulana que passou. Já é avó, vem de Gaia trabalhar, mas deixa o neto no infantário todos os dias, onde o recolhe ao fim da tarde. A filha deixou o companheiro tóxico-dependente e está desempregada. Ela vê-se ainda mais negra a lutar pela vida.
- Então, pode ser minha vizinha? - perguntei.
- Não sei de que zona é, mas não te admires nada se a vires ser tratada lá como uma senhora. Parece que faz constar que trabalha em Santa Maria da Feira, numa fábrica de calçado. Coitada, veio de Angola convencida que encontrava o pai. A mãe dissera-lhe que ele vivia junto do Tejo e que toda a gente o conhecia por Sargento Bigodes.

Em Lisboa, fez uns biscates nas limpezas domiciliárias mas, como era muito jovem e já muito jeitosa, não demorou muito tempo a ser apanhada no ambiente de vida fácil. Diz que viveu com um chulo que lhe fez a filha e que, logo que pôde, fugiu com ela para o norte.

- Sempre que passo ali na recta, vejo várias na margem da estrada. E algumas ainda muito jovens. Agora está calor, mas no inverno metem dó – disse eu.
- Sim, andam aí mais, mas vão-se alternando. No inverno, são menos. Tenho pena delas. No dia 24 de Dezembro passei aí, vi a Miquelina com uma amiga, uma desengonçada, junto de uma pequena fogueira e pensei: - Hoje é Natal, porque não fazer uma boa acção? Fui ao restaurante “As Cubatas”, trouxe de lá uns frangos picantes e mais umas coisitas, armei a mesa na “roullote” e mandei-as entrar. Encostámos com a traseira ao sol e virados para o Rio Vouga, comemos e bebemos, até fartar. Foi uma tarde espectacular! Gostei imenso! Não imaginas a alegria que vi naquelas pessoas.

Falámos, falámos, rimo-nos de tudo e de todos. A determinada altura, já melancólica, diz a Miquelina: - Não sei porquê mas agora que estou tão bem, sinto uma saudade enorme de f.....!
- O quê? – Espantámo-nos.
- Sim, de f....! De f..... a sério! F...... por amor!!! – Continuou
- Oh meu Deus, há quantos anos que não sei o que é isso!!!

Silva da Cart 1689
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9056: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (10): O grande choque (2)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8844: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Os Bravos do 13.º Pelotão sob o Comando do Furriel Montana

Guiné 63/74 - P9086: Parabéns a você (344): António (Tony) Levezinho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2590 e CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9081: Parabéns a você (343): José Romeiro Saúde, ex-Fur Mil Op Esp da CCS/BART 6523 (Gabú, 1973/74)

Sobre o Tony Levezinho, vd. aqui mais referências no nosso blogue.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9085: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (31): A minha Mãe Cadi representa a mãe africana em particular e as mães de todos nós em geral (Cherno Baldé)

1. Comentário de Cherno Baldé deixado no Poste 9054:

Amiga Felismina,
Obrigado por este bonito quadro da vida portuguesa dos anos 60, pleno de doçura e de reconhecimento que me encantou sobremaneira.

Hoje lamento muito o facto de ter estado em Portugal (Lisboa) e nunca ter visitado uma aldeia do interior a fim de conhecer o Portugal real.

Afinal, éramos tão "diferentes" e tão "iguais" naquilo que de essencial existe nos povos.

Durante muito tempo, na inocência do nosso universo infantil de 7/8 anos, a percepção que tínhamos dos brancos "soldados portugueses" era que eles eram mais felizes porque:
(i) comiam bem e não precisavam de trabalhar a terra
(ii) deslocavam-se ágil e facilmente porque não precisavam carregar os mais variados apetrechos de que uma família precisa no dia-a-dia e
(iii) sobretudo, porque viviam e dormiam tranquilos sem as habituais chatices com os filhos e a família no meio das birras com as mulheres. Afinal, a realidade era bem diferente.

A descrição que fazes da tua mãe, salvaguardada a diferença do contexto, claro, corresponderia na perfeição a minha mãezinha, um pouquinho só mais alta (um metro e sessenta) talvez, inteligente e incansável no trabalho.

Ela assumia a sua condição de mulher africana, extremamente dócil e obediente, mas ao mesmo tempo, sabia mostrar os limites da tolerância, quando era necessário.

Uma vez, estalou na família uma discussão sobre se eu devia ou não continuar na escola portuguesa. A minha mãe não vacilou nem um palmo e disse na cara do meu pai:
- O meu filho vai continuar na escola. - E ai o meu pai ficou completamente confundido, afinal o filho era dela?... desde quando?
- Desde o momento em que ele ainda vivia na minha barriga de mulher, - respondeu ela, sem pestanejar. - Não é agora, depois de tantos anos de trabalho e de pancadas é que ele vai abandonar, para ir onde?

A sua decisão prevaleceu diante de todos os Almames e Califas da aldeia.

As características típicas da sociedade africana com que os etnólogos europeus pintaram os africanos, onde o homem é o centro do mundo e decide tudo, não corresponde sempre a realidade destes povos, é tudo muito mais complexo e muito mais difícil de destrinçar e de catalogar.

Um grande abraço amigo,
Cherno Baldé


2. Aproveitando o facto de no comentário acima se ter referido a sua mãe, pedimos ao Cherno que nos falasse um pouco mais dela e nos mandasse algumas fotos de família. Hoje mesmo recebemos esta sua mensagem:

Sobre a minha mãe podia dizer muito e não dizer nada, na verdade, ela nunca foi p'ra além daquilo para que tinha sido moldada, isto é, ser uma mulher de casa, camponesa activa, devota e dedicada ao seu marido e à sua família. Cumpriu a sua missão, foi uma autêntica escrava, uma máquina de trabalho, nunca teve tempo para o repouso e muitas vezes comia de pé, a andar, os restos da panela e não sabia o que era o cansaço. Era a ultima a dormir, quando dormia, e a primeira a por-se de pé, antes das 5 da manhã.

Logo de manhã, tinha que pilar (moer) o milho, separar as partes para o almoço e jantar, caminhar alguns quilómetros para fora da aldeia e tirar o leite das vacas (ordenhar?), no regresso apanhar lenha e preparar o pequeno almoço e servir a toda a gente, de seguida os trabalhos da preparação da bolanha estavam à espera para o cultivo do arroz, se fosse na época das chuvas, e se fosse na época seca havia a horta para limpar ou regar, ir buscar os condimentos vegetais (djamboh) para o preparo do almoço ou jantar, a água da fonte para encher os recipientes (potes) para uma família numerosa, a lenha para a cozinha, sem falar de pequenas ocupações domésticas como a limpeza à volta da casa, lavar as crianças, a roupa do marido que era preciso passar a ferro, as crianças que deviam ir à escola bem limpas; cumprir com as 5 orações diárias, obrigatórias, etc. Enquanto isso, o meu pai, empregado de uma casa comercial, estava a atender mulheres bonitas com os seus galanteios ou a dormitar no seu balcão.

A minha mãe, quando era caso para isso, dizia brincando que, se a cabeça da família era ele, o meu pai, a garganta era ela e perguntava, rindo:
- Agora, digam-me lá uma coisa, entre estas duas, a cabeça que se encontra em cima, baloiçando, e a garganta que a suporta, quem é a mais importante? Mas isto era a brincar e em família.

Hoje, com mais de 80 anos de idade (disse-me que por volta de 1936/7, quando o pai voltou de Canhabaque, ela teria aproximadamente 9/10 anos de idade), e como se ela soubesse do futuro, é cega e sou eu e a minha esposa que cuidamos dela. A saúde e a boa disposição começam a faltar mas ainda encontra-se fisicamente bem e de sentido bem lúcido, a sua memoria é prodigiosa.

Mas o paradoxo e a/o moral da historia é que, tendo tomado conta do meu pai e da sua morança durante anos, hoje eu cuido não só dela, minha mãe, mas também tenho sob os meus ombros a pesada responsabilidade de ajudar os meus irmãos mais novos (homens e mulheres) que não tiveram a mesma sorte que a minha de poder frequentar a escola dos "portugueses" que na altura, devido à pressão social e sobretudo religiosa, muitos repudiavam.
Hoje são os filhos dos Almames e dos Marabuts que ocupam a parte dianteira das carteiras nas nossas escolas.

Quero agradecer a todos os Editores e Co-Editores do Blogue da Tabanca Grande por se interessarem por uma pessoa tão simples como é a minha mãe que, espero possa representar, mesmo que de forma simbólica a mãe africana, em particular, e as mães de todos nós, de forma geral, exemplos de humildade e de abnegação.

Um forte abraço a todos,
Cherno Baldé de Fajonquito


Fajonquito, 1973 > A mãe Cadi acompanhada da minha irmãzinha nos trabalhos da bolanha

Bissau, Maio de 1977 > Eu e a minha mãe

A família reunida em Cambaju, ano de 1965/66 > Em cima: Mãe (Cadi Candé), pai (Aliu Tamba Baldé) e Aua (prima irmã). Em baixo: Tulai (minha irmã), Eu (de boina verde), Carlos (hoje médico) e Aissatu (irmã da Aua) .
Nota: Esta foto foi tirada por um soldado português amigo da família.

El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), Fajonquito > Festa de Ramadão de 1991. Em 1937  fez parte do grupo de jovens que saiu de Canhamina para Contuboel na recepção dos combatentes de Sancorla que participaram na última guerra de Canhabaque (Ilhas Bijagós).
Faleceu em Bissau em Setembro de 1999.

Grupo de alunos da escola de Fajonquito em 1973 > Sou o último da esquerda na segunda fila (cabeça cortada ao meio), vestido com a camisa verde da Mocidade Portuguesa.

Bissau, 2009 > Cerimónia de reza numa festa Muçulmana > Eu e os meus quatro filhos: Luís, Domingos, Yussuf e Abdurahamane, a contar da esquerda.

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9041: Memórias do Chico, menino e moço (30): A propósito do poema K3, de Nuno Dempster: Relembrando dois malogrados capitães de Fajonquito, Carlos Borges Figueiredo (CART 2742) e José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549) (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P9084: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (4): Quando os nossos soldados indígenas se suicidavam...

1. Texto do José Ferraz (ex-Fur Mil, Op Esp, CART 1746, Xime e Bissau, 1968/70)

 Caríssimo Companheiro e Camarada Luis:

Relâmpagos mentais (tradução livre de Brain farts = peidos cerebrais)...

Já estava no QG, [em Bissau, em meados de 1969,]  quando um dia, por volta do almoço, apareceu lá
 um jeep da PM [ Polícia Militar].  Queriam falar comigo urgentemente (nunca gostei desses tipos cagões até dizer chega,  a minha recruta nas Caldas foi dada por cabos milicianos da PM que curiosamente estavam de serviço no cais,  no dia do meu embarque para a Guiné onde eu de propósito me aproximei deles,  todavia cabos milicianos e eu furriel, para que me fizessem a continência da ordem).

Mas voltando ao assunto deste "relâmpago"... Disse-me um dos PM:
 -Meu furriel,  precisa de vir connosco ao Pilão porque esta aí um soldado nativo que nos ameaça com a G3, quando queríamos entrar na sua tabanca [, morança]. Diz que só fala consigo...

Lá fomos. Quando chegámos,  os PM tinham montado segurança à volta dessa morança e procuraram dissuadir-me de entrar. Gritei para que soldado me ouvissee. Entro pela casa dentro,  aí estava o Mussá, que tinha feito operações comigo no Xime,  sentado na cama e semideitado contra a parede,  fardado,  com a G3 ao seu lado e um enorme punhal fula espetado na barriga de que só se via o punho e uma enorme mancha de sangue coagulado e já seco sobre o seu ventre.

Estava vivo... Falámos e consegui convencê-lo,  primeiro a dar-me a G3 e depois a ser levado para o hospital militar onde os médicos o salvaram.

Nunca consegui saber as  suas reais razões por detrás deste acto. Soube que infelizmente ele viria mais tarde a consumar o suicídio.

Um forte abraço, Zé

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9080: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (3): Hugo Spadafora, o Che Guevara italopanamiano (1940-1985), terá estado no (ou passado pelo) Fiofioli nos idos anos de 1965/67
 

Guiné 63/74 - P9083: Blogpoesia (170): Oração em poesia (Armor Pires Mota, Baga-baga, 1967)






Fonte: Armor Pires Mota - Baga-baga: poemas da Guiné. Braga: Editora Pax. 1967. (Colecção Metrópole e Ultramar, 38).  pp.  53-54. Capa do Arquitecto Mário de Oliveira. (Poema Reproduzido com a devida vénia, a partir de um exemplar fotocopiado que o autor ofereceu à Tabanca Grande). Corrija-se, no último verso da página 53, a gralha (tipográfica)... "sonhos" em vez de "senhos".


1. Trata-se de um livrinho de 65 pp., que ganhou o "Prémio Camilo Pessanha",  da então Agência Geral do UItramar. Tem apresentação, na contracapa,  de Amândio César (1921-1987) que sublinha o facto de no júri haver  os nomes do Prof Hernani Cidade e dos escritores Natércia Freire, Moreira das Neves, Francisco da Cunha Leão e Luis Forjaz Trigueiros. 


Duas notas do apresentador (, poeta, contista, jornalista e crítico literário, minhoto, de Arcos de Valdevez) a destacar o mérito do prémio e do autor que já não era um simples desconhecido: a primeira, justíssima, com a inevitável referência a Tarrafo ("... é na situação de soldado que ele atinge o máximo de virtualidade como escritor, nesse diário de guerra a que deu o nome de 'Tarrafo', por certo o documento humano mais válido da guerra que nos movem no Ultramar"); e a segunda, quiçá mais ideológica, com  a saudação a um  livro de poemas que se inspira na "nova temática"  que  "uma nova geração procura - como na época de quinhentos", traduzida na  "realidade da criação artística na extensão que lhe confere todo o espaço português" (...).

Baga-baga, com cerca de 3 dezenas de poemas, está dividido em duas partes, dedicadas, a primeira, a "Adília, minha mulher", e  a segunda, aos "mortos e [aos] vivos que souberam cumprir". A primeira parte inclui poemas com um cunho mais lírico ou etnográfico (Sambaro tocador de kora, Mãe negra, Baga-baga, Tabanca, Batuque...);  na segunda parte, mais dramática, estão bem presentes a tensão da guerra e da paz, a fé e a missão do soldado português (Cântico, Mãe,  Oração em poesia, Sangue, In Memoriam...). 


O autor, nosso camarada, está representado na Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial (organizada por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchio; Edições Afrontamento, Porto, 2011), com três poemas, um do livro Baga-baga (1967) (Mãe, pp. 47/48) e dois do livro Impossível um pássaro (1979). (LG)

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Nota do editor: 

Último poste da série > 16 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9053: Blogpoesia (169): Sopa quente, depois de três noites de relento (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P9082: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (1): Dedicatória, início da vida militar e viagem para a Guiné

1. Começamos hoje a publicar "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios*, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.


PORTO DE ABRIGO - I

Dedicatória

À minha corajosa mulher e companheira de 45 anos, meu Porto de Abrigo minha âncora nesta vida cruel; aos meus filhos, hoje só tenho um; à minha incomparável nora, às minhas maravilhosas Netas; as minhas princesas, senhoras do meu sentir, das minhas ambições. Do meu coração um sonho renovado.
Às sofredoras e corajosas Mães de Portugal, muitas Órfãs de guerra e tão esquecidas e a todos os meus inesquecíveis Camaradas; com uma sentida Homenagem. Aos que nos deixaram, alguns deles da forma mais atroz e também aos meus companheiros de desdita, feridos e estropiados.

A todos, muito obrigado.


Seria estultícia da minha parte pretender que com o escrevinhar das minhas memórias que agora no ocaso da vida e ao correr da pena se pudessem transformar em qualquer coisa para além do passar ao papel as recordações, já esbatidas, da minha participação numa guerra com episódios dos mais cruéis e tristes e que foi o quotidiano e marcou negativamente, no meu fraco entender, a vida do povo deste país. A consulta de um blogue de um camarada de armas que teve a paciência de procurar e compilar uma série de dados dolorosos fundamentalmente para os participantes activos e vítimas daquela guerra, fez nascer em mim uma triste nostalgia e emoção ao recordar os nobres actos de solidariedade, praticados pelos grandes amigos que comigo partilharam das agruras e dificuldades daqueles tempos ao mesmo tempo que retrospectivo os bons e saudáveis momentos que vivemos e que ainda hoje quando nos juntamos refazemos e que vislumbro não seja raro encontrar-se na nosso quotidiano.

Para todos um carinhoso abraço de cumprimentos e saudade e o desejo de um Mundo compensador dos tremendos choques e violências que vivemos e observámos.

Tentarei no decorrer da transmissão das já muito ténues recordações não deixar expresso a minha perspectiva actual deste período de tempo passado e dos restantes acontecimentos que como é natural, enformam e são estruturantes do meu pensamento.

Na tentativa de conseguir aproximar-me da forma de uma troca de, opiniões, um desabafo entre amigos; aqui deixo pequenas histórias que vivi na Guiné, no tempo da Guerra Colonial e que me marcaram profundamente.

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Algumas omissões e hiatos de memória que já se vão manifestado em mim (estou perto dos 70 anos, duros e sofridos; com a perca de um filho já com 25 anos e enormes doenças que incluíram até agora 14 operações cirúrgicas - (muito deste panorama se deve a resquícios da passagem pela guerra) podem de algum modo levar a algumas eventuais imprecisões para as quais peço a maior compreensão e apresento as maiores desculpas a algum elemento envolvido e antecipo a minha retracção. Ajudará à compreensão de muitas atitudes e incompreensões minhas as vicissitudes e percalços que os jovens como eu recrutados para o curso de Sargentos Milicianos de Janeiro de 1964 sofreram; e aqui começa o calvário que se prolonga até 1972.
Foi este creio eu o único curso com a duração de cinco meses, entre a recruta e a especialidade; porquê? Constava que no fim deste período seriamos promovidos a furriéis-cadetes e passaríamos auferir 750$00 por mês.

Ali andamos então esforçados e diligentes até ao dia de sermos promovidos como do antecedente a cabos-milicianos e a receber a fortuna de 92$00, para fazer todo o trabalho de sargento. Que desilusão. Começava a revolta e a incompreensão.

Fiquei colocado em Tavira, como monitor dos futuros cursos de milicianos de infantaria dos quais recebi e frui gratificantes amizades e ensinamentos cívicos e culturais! Ainda vim e encontrar-me com alguns na Guiné.

Mobilizado pelo RI-2-Abrantes para a Guiné ali constitui com o meu amigo José Monteiro, (também ele ferido numa operação), o estóico 2.º Sarg.º Ameixa e o meu querido amigo e conterrâneo Vasco Sousa Cardoso (desaparecido em combate), curiosamente sobrinho do na altura Governador-Geral de Angola Gen. Silva Tavares. (adiante acrescentarei pormenores) que veio a ser substituído pelo meu grande amigo e mentor Rui Alexandrino Ferreira (um pessoa de eleição – um guia, um amigo e líder sem comparativo).

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Neste período de tempo passado em Abrantes e St.ª Margarida em que se apoderou de mim e creio que da maioria dos meus camaradas uma intensa tensão e ansiedade, de tal maneira que eram frequentes as questiúnculas entre diversos elementos pelos motivos mais fúteis, não tenho recordações relevantes, apenas me vêm à memória dois episódios caricatos em que ressaltam já algumas características e comportamentos inerentes a cada um de nós. Num dos dias da instrução em Santa Margarida, foi-nos transmitido que tínhamos (os cabos milicianos) de nos deslocar a Abrantes para tirar a fotografia com a farda nº. 1, para o cartão de furriel. Naturalmente que nenhum de nós tinha a necessária fardeta.

Um camarada nosso do Q.P. emprestou-nos o casaco e o boné e lá partimos para Abrantes todos em cima de uma GMC, conduzida por um dos nossos condutores que devido à inexperiência e inaptidão transformou a viagem numa aventura e paródia tal que foi alvo de estrondosa salva de palmas nossa, quando no Rossio ao Sul do Tejo conseguiu passar por baixo do viaduto sem tocar em nenhuma das paredes. Seriamos uns 12 elementos e todos tiramos a foto com o mesmo casaco e boné. Depois de uma passeata pela cidade no regresso já mais de metade do pessoal veio de táxi.

Também aqui em St.ª Margarida, em que o estado de espírito era o já salientado; numa das casernas dois camaradas desentenderam-se tendo um deles ameaçado o outro com uma navalha de barba, interveio um terceiro elemento que conseguiu eliminar aquele foco de instabilidade, pelo foi chamado ao local o meu querido camarada e actual amigo, J. M. Bastos que de imediato entrou em contacto com o Alf. Mil. Malaca dos Santos, um puro e robusto ribatejano que de imediato se deslocou a caserna, e sendo abordado pelo elemento que apaziguou a questão: - Meu alferes fui eu que… Pum..Pum.. dois valentes sopapos e eis o pobre de costas; o Bastos conhecedor de todo o problema pretendeu intervir, mas por razões óbvias inibiu-se. Confirma-se o velho aforismo popular, “por bem fazer mal haver”.

- Falou o Malaca, tudo para os seus lugares, assim ficou resolvida a questão e o Alferes ganhou a alcunha de Oficial de Justiça, era o maior e mais sincero amigo do pessoal; vindo a ser punido na Guiné por um dos ineptos comandantes da companhia (por alcunha o Capador) porque se recusou a que os seus rapazes, como os tratava carinhosamente saíssem para nova operação, depois de nessa madrugada terem regressado de uma violenta e esgotante investida a uma casa de mato do IN. O Pessoal estava esgotado física e psicologicamente. Infelizmente os furriéis que lhe estavam adstritos não souberam tomar uma atitude solidária e digna. Este grande homem que faz agora o favor de me dedicar a sua amizade é hoje um reformado de professor do ensino secundário onde exerceu com mérito a sua função. Era e é um puro.

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Partimos para a estação já de noite e embarcámos a monte num decrépito comboio de bancos da madeira, acompanhados de todo o conjunto de malas, caixotes, sacos de produtos regionais que cada um trazia como testemunho da gratidão e despedida dos seus amigos e entes chegados. Que expressões de ansiedade e tristeza no semblante, comportamento e olhares de tantas centenas de jovens. Durante toda a noite o Alf. Mil. Vasco Cardoso, Vasco para todos - quanta humanidade, trocou com alguns de nós vastas palavras sobre a Guiné, onde já tinha estado, e nos mostrou um enorme espólio de fotografias dos momentos dos hábitos e culturas daqueles povos no sentido de nos incentivar e dar a conhecer a terra para onde íamos. Um amigo que perdemos em combate poucos dias depois de chegarmos a Fulacunda.

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Num ambiente de profunda resignação, apenas se ouvia como ruído de fundo os gritos de angustia e as lágrimas dos nossos familiares e amigos, juntamente com algumas imprecauções que se ouviam também não se sabe de onde, em largo número por todas as zonas com acesso visual ao cais da rocha do Conde de Óbidos - Alcântara onde se encontrava atracado o navio Niassa, transformado em transportador de tropas, onde iríamos embarcar após terminarmos a formatura frente ao cais onde um alto graduado veio debitar várias e inócuas frases feitas a um conjunto de desesperados e descontentes jovens, salvo raras excepções. Nesta formatura, apareceu pouco depois um grupo de senhoras, todas com a farda de uma instituição a distribuir a cada militar um isqueiro e um maço de tabaco. Quando recusei a oferta, objectando que não fumava, a senhora que me pretendia entregá-la, disse entre dentes qualquer imprecaução, que não entendi e fez-me um olhar, para mim incompreensível, de que ainda hoje me lembro, desaparecendo de imediato. Foi a bordo motivo para enorme chacota. Quanto me lembra o momento do embarque e do dramático Adeus; viam-se lágrimas e emoção nos jovens que partiam e nos entes queridos que ficavam despedindo-se quiçá pela ultima vez. Quão é ainda hoje, tão chocante e amargamente emotivo, recordar esses momentos.

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Partidos da metrópole fomos à Madeira para meter dentro daquele malfadado transportador de carne para canhão mais uma companhia.

Não teceria a mais pequena alusão a este hiato de tempo se dois casos que despertaram a permanente curiosidade que me acompanha não me pusessem a pensar e revoltado com elas.

Na Madeira, em Câmara de Lobos onde nos deslocámos na noite que passámos na ilha, para comer produtos do mar aconselhados pelo motorista do táxi que nos transportava a visitar alguns locais do Funchal; um camarada meu pediu no estabelecimento onde nos encontrávamos uma caixa de fósforos: pois bem; na Madeira à época custava 40 centavos, contra os 30 que eram adquiridos em Lisboa; irrisório não parece? Pois é mas é uma diferença de 25%, como seria com os outros artigos importados da Metrópole?
Ainda me choca e é doloroso recordar as abjectas condições em que os nossos praças, os melhores de todos nós, foram transportados durante seis dias dentro do Niassa; era no porão da carga que estavam instalados um imenso número de beliches da tropa sobrepostos e em filas em que ficavam lado a lado seis a oito corpos em baixo e em cima (tinham de passar uns por cima dos outros), o cheiro que lá de baixo exalava era nauseabundo com um odor a vomitado azedo insuportável, a generalidade dos jovens dormia a céu aberto por qualquer canto do convés; foi o inicio das vicissitudes em que se viam caras de cansaço e ansiedade e em que alguns apresentavam uma tez amarelada de mau trato e adoentada.

Vista parcial de Câmara de Lobos - Ilha da Madeira
Foto: © Carlos Vinhal

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O barco aportou a Bissau, onde não era possível acostar e onde fomos transportados em barcaças para o porto. O calor era intenso acompanhado de uma humidade salgada que dava a sensação de se colar à pele e parecia vir a tornar-se irrespirável. Sem qualquer espécie de emoção tentei vislumbrar e enquadrar as palavras e o ambiente das fotografias do amigo Vasco Cardoso, mas o que vi foi um aglomerado de população nativa, em que pontificavam as crianças, descalças desnudas e em farrapos que se ofereciam para transportar as nossas bagagens; aqui uma tremenda ansiedade apodera-se de mim sentindo como que um aperto de garganta, por saber que para além do que me era possível ver; a guerra estava ali não sabia onde e era uma realidade que matava, feria e estropiava.

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9072: Tabanca Grande (308): Carlos Luís Martins Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857 (Mansoa e Bissorã, 1965/66)

Guiné 63/74 - P9081: Parabéns a você (343): José Romeiro Saúde, ex-Fur Mil Op Esp da CCS/BART 6523 (Gabú, 1973/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9064: Parabéns a você (342): Jacinto Cristina, ex-Sold, CCAÇ 3546, Piche e Caium (1972/74), alentejano, padeiro, reformado, 62 anos, feitos a 14 deste mês...