segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16957: Notas de leitura (920): “O fim da guerra na Guiné”, por Carlos Alberto G. Martinho, Chiado Editora, 2015 (Mário Beja Santos)

Data de publicação: Maio de 2015
Número de páginas: 220
ISBN: 978-989-51-2877-8
Colecção: Bíos
Género: Biografia
Fonte: Chiado Editora (com a devida vénia...)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Carlos Martinho estagiou em Angola como alferes em 1971, em Gago Coutinho e fez a sua comissão na Guiné entre Março de 1972 a Julho de 1974, comandou Os Fantasmas da Bolanha. Manifestou-se como opositor antes de partir para a guerra, rendeu Salgueiro Maia em Guidage, fez parte do cerco ao Palácio do Governador, depois de anunciado o 25 de Abril em Lisboa.
É uma narrativa que nos deixa um travo amargo na boca, de tão esquematizado e em estilo de relatório é o seu depoimento que arranca muito bem com descrições da sua infância numa aldeia na região do Fundão. Terá tido o privilégio de ver grandes mudanças, mas o seu esquematismo é tão rígido que nem lhe deve ter ocorrido que gostaríamos de saber mais da sua passagem por Binta, Guidage e Bigene, que teríamos também curiosidade em que ele escrevesse aquela atmosfera de Bissau com algumas explosões, no primeiro trimestre de 1974, e saber também mais sobre o clima explosivo das tais unidades que queriam imediatamente entregar os quartéis ao PAIGC, di-lo mas não desenvolve. Ora ele foi um protagonista e não mero figurante, perdeu esta ocasião única de deixar um depoimento para a História.

Um abraço do
Mário


O fim da guerra da Guiné, por Carlos Alberto G. Martinho

Beja Santos

O autor, formado em engenharia mecânica pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa, foi, entre 1972 a 1974, capitão miliciano e comandou a CCAV 3568, que atuou na Guiné. Chama à sua narrativa “Histórias de um capitão miliciano e do seu estágio em Angola e das suas origens em Silvares, na Beira Baixa”. Mas essencialmente “O fim da guerra na Guiné”, por Carlos Alberto G. Martinho, Chiado Editora, 2015, é um documento-relatório, que aparece esquematizado por etapas cronológicas, e onde a ênfase é posta no período de Abril de 1972 a Junho de 1974, vamos ver esta CCAV a operar no Olossato, em Quinhamel, em Binta, Bigene e Guidage.

Fala-se da sua infância em Silvares, concelho do Fundão, da pastorícia da região, da emigração da família para a Venezuela, onde ele passou uma parte da sua meninice. Depois do pai ter vendido os seus negócios em Caracas, a família instala-se em Lisboa. Conta episódios da sua juventude, do seu internamento no Colégio Outeiro de S. Miguel, na Guarda e esmiúça a vida e a situação de muita pobreza na aldeia de Silvares. Foi irregular na sua vida universitária e daí ter sido chamado para Mafra antes da conclusão do curso. Participou em manifestações contra o regime. Ainda pensou em desertar mas o pai pediu-lhe para o não fazer. Fez recruta e especialidade em Mafra, entre Outubro de 1970 e Março de 1971, e noutra fase o curso de capitães que concluiu em finais de 1971. Segue-se a descrição do estágio que entretanto fizera na região de Gago Coutinho.

Sempre minucioso na apresentação das suas sinopses, descreve a origem e a formação da CCAV 3568, a sua chegada ao Cumeré, a promessa feita por Spínola de que se acaso a sua companhia se portasse bem no Olossato, ao fim de um ano regressaria a Bissau, veremos adiante que a promessa não foi cumprida.

Estamos agora no Olossato, localidade muito próxima de Bissorã (sede de batalhão), a ligação era feita por picada, com todas as cautelas, atravessava-se um rio secundário, aí estava um destacamento na Ponte do Maqué, a cerca de 4 quilómetros. Descreve a população do Olossato e respetivas etnias. Ficamos a saber que os trabalhos agrícolas da população eram realizados principalmente na Bolanha de Fanjonquito a cerca de 3 quilómetros do Olossato. A primeira ocorrência é de índole disciplinar, o soldado Adão Teixeira embriaga-se repetidas vezes e sempre fazendo uns disparos para o ar com G3. Há também um primeiro-sargento que se mantinha diariamente alcoolizado. Ilustra a delicadeza da vida na Ponte do Maqué com as obrigações diárias de tirar e pôr minas e armadilhas. Em 18 de Maio de 1972, Marcelino da Mata e dois soldados adjuntos chegam ao Olossato vestidos e armados como guerrilheiros e partiram com as milícias para a zona de Suntuariá, regressaram cedo com dois homens, oito mulheres e três crianças. No Olossato iniciaram-se os interrogatórios. O capitão Martinho foi surpreendido com gritos e acorreu à sala do interrogatório, e explica assim a situação:

“Vi esta cena: no meio da sala, um dos homens capturados tinha o braço sobre um pedaço do tronco de uma árvore e Marcelino da Mata estava a bater com outro pau sobre este braço. Gritei imediatamente para pararem com aquilo e perguntei ao alferes o que se estava a passar. O alferes disse-me que aquele homem saberia onde estava o inimigo. Dei ordens para parar com esta situação e informei que não permitiria qualquer tortura. O primeiro-sargento Marcelino da Mata quando se despediu de mim na pista de aviação, para entrar na DO, disse-me: meu capitão, não costumo fazer estas cenas, porque nas operações que faço com os meus homens, por ordem do comando-chefe de Bissau, não trago prisioneiros”.

A população capturada foi entregue em Bissorã. Em 25 de Maio, numa flagelação ao Olossato, o capitão Martinho é ferido com gravidade, uma das mãos fora atravessada por estilhaços da RPG-7, corria o risco de perder dois dedos. Em Julho desse mesmo ano, na picada entre Olossato e Bissorã, explode uma mina anticarro numa Berliet. A cerca de 6 quilómetros de Bissorã a viatura foi pelos ares:

“Todos nós fomos cuspidos da viatura pelos ares, de tal forma que até o meu relógio e a Medalha de Nossa Senhora de Fátima que trazia ao pescoço se perderam para sempre no mato. Um dos soldados ficou gravemente ferido e foi evacuado".

E assim chegamos a 10 de Agosto em que Olossato sofre um ataque violentíssimo, durante cerca de 75 minutos, felizmente não houve acidente de maior. Dois militares morreram por acidente, tinha havido uma banalização dos procedimentos de minar e desminar diariamente perto de Ponte de Maqué, um furriel também morrerá mais tarde num destes tipos de acidentes. Em Maio de 1973, morre o soldado Carlos Viegas por falta de evacuação da Força Aérea, estava-se nesse momento a viver um período dramático na utilização dos mísseis terra-ar Strella. Deduz-se deste relato que a operação mais importante que esta companhia viveu foi a sua participação na Operação Empresa Titânica, entre 27 e 28 de Fevereiro de 1973, na região do Morés. Dá-se então a rendição da CCAV 3568 pela CART 6254, o capitão Martinho e os seus homens vão para Quinhamel, é sol de pouca dura, rapidamente são convocados por Spínola, têm que marchar rapidamente para Guidage.

Estamos em Junho de 1973, chega a Binta e começam os patrulhamentos e a recolha dos corpos das nossas forças, mortas em combate. Ocorre a operação “Abertura rutilante", de 16 de Julho a 17 de Agosto, para a abertura da picada Binta-Guidage. A sua companhia fica em Bigene. Descreve os factos relevantes em Bigene e Guidage. Comanda 250 homens, a sua companhia e a CCAÇ 19, formado essencialmente por tropa africana. Descreve Guidage:

“O quartel estava muito danificado. No meu gabinete tinha caído uma granada de morteiro 82 e o refeitório dos soldados também se encontrava num estado lastimável. Os soldados dormiam nos abrigos fortificados e até nas valas”. E escreve mais adiante: “Foi através dos militares da CCAÇ 19 e do pelotão de artilharia que se soube do local do enterro dos nossos militares, com a sua identificação inscrita num papel introduzido numa garrafa de cerveja. Na sequência do ataque, foi apenas improvisado um cemitério naquela localidade”.

Em Outubro saiu de Guidage e foi para Bigene, só em Dezembro é que é colocado na região de Bissau. Em 26 de Abril, é informado de que houve um golpe de Estado em Portugal. No dia seguinte, o comandante de COMBIS pergunta-lhe se aderiu ao espírito da revolução, responde afirmativamente. E diz mais: “Havia comandantes de batalhões do interior do território e capitães, sobretudo do quadro, que pressionavam para se entrar em negociações diretas com o PAIGC".

Faz parte das unidades que cercaram o palácio do governador Bettencourt Rodrigues, que não aderiu ao 25 de Abril. A sua comissão está praticamente no fim.
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Nota do editor

domingo, 15 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16956: Blogpoesia (489): "Piano mendigo..."; "Só o sonho é livre..." e "Afónica a catatónica...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros durante a semana ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Piano mendigo…

Piano tristonho, desiludido da vida,
Sentou-se cansado na borda da estrada,
Pedindo esmola.

Passou uma harpa, de crista empinada.
Tocando vaidosa.
O mendigo pediu.
Ela avançou.
Nem olhou para o lado.

Veio um violoncelo,
Cismando na pauta,
Corcunda.
De olhos no chão.

O mendigo pediu.

Ele rugiu.
Seguiu preocupado.
Com uma corda partida.

Depois um oboé,
Vaidoso,
Todo encantado,
Reluzindo ao sol.

Mendigo pediu.
Ele nem ouviu
E seguiu indiferente.

Depois, veio um jumento.
Trazia uma bateria impante,
Escarranchada nas costas.

Mendigo pediu.
O burro zurrou.
A batuta assustou-se e caiu.
Calada, sem ela, partiu.

Por fim, um violino aflito,
Entoando vibrante,
Um concerto sozinho.
Perdera a orquestra.

Mendigo pediu.

O violino parou.
Sentou-se a seu lado.
Convidou o piano.
Formaram um dueto,
Para sempre amigos…

Ouvindo um piano e orquestra
Berlim, 14 de Janeiro de 2017 
10h2m
JLMG

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Só o sonho é livre...

Aquela candura branca e alvinitente
desapareceu.
Cobria o chão e era um regalo divinal.
Agora, tudo é lama negra e sórdida.

Bastou subir uns degraus do calor a escala.
E a fealdade tomou conta.

Tudo é efémero na natureza.
Só o sonho é livre.
Não há calor
nem temperatura baixa
que o apague...

Bar dos Motocas, arredores de Berlim,
12 de Janeiro de 2017
10h51m
JLMG

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Afónica e catatónica...

Ao cabo de milénios de desenvolvimento,
desde os tempos da pedra lascada
até à arrogante viagem ao espaço,
com sputnics e foguetões,
após revoluções e convulsões,
com genocídios e gazocâmaras;

Dos colossos piramidais, lá no oriente
e nas ameríndias
que ninguém sabe bem ao certo;
das barragens arrasadoras
para fabrico da energia eléctrica,
e das maquiavélicas centrais nucleares
que ameaçam matar o mundo;

Das tenebrosas lucubrações filosóficas
que nos arrasam de confusões estéreis;

E das macabras religiões mortíferas
que tudo arrasam
em nome do amor aos deuses;

Quando a ciência,
faminta de tanto saber,
quase implodiu
e não conseguiu eliminar a morte;

E as artes se baralharam,
com tantos estilos,
sacrificando a beleza à fealdade;

Eis que uma onda,
afónica e catatónica,
num terrível tsunami,

secou-lhe a esperança
e afogou inteira a humanidade...

Berlim, 12 de Janeiro de 2017
8h4m
JLMG
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16931: Blogpoesia (488): "A existência..."; "Pelas portas milenares das catedrais..." e "Vaidade...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P16955: Manuscrito(s) (Luís Graça) (110): Relembrando os nomes de dois portugueses para quem tenho uma palavra de apreço cívico e de gratidão, Mário Soares (1924-2017) e Catanho de Menezes (1926-1985)... bem como as eleições legislativas de 26/10/1969 e o meu voto em branco, em Bambadinca...


Fundação Mário Soares (FMS) > Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1924-2017)  > Imagens > Foto; Lisboa, rua dos Fanqueiros, sede da CEUD - Comissão de Unidade Democrática, 25 de outubro de 1969, na véspera das eleições legislativas para a Assembleia Nacional: da esquerda para direita, Raul Rego (1913-2002), Joaquim Catanho de Menezes (1926-1985) e Mário Soares (1924-2017)

(Com a devida vénia à FMS)


1. Em 3 de agosto de 1968, Salazar tinha caído da cadeira, no Forte de Santo António, no Estoril. Em 27 de setembro o seu antigo delfim, Marcelo Caetano,  vem substituí-lo na Presidência do Conselho de Ministros. 

Nos primeiros meses de 1969 há ainda quem acredite na "primavera marcelista" e nas propostas de renovação da elite política dirigente... Estou na tropa, nas Caldas Rainha, no RI 5, a fazer a recruta,  e a pensar, desde os 14 anos de idade, desde 1961, na "minha" guerra do ultramar... O que me haveria de  calhar em sorte? Angola, Guiné, Moçambique? Venha o diabo e escolha... E, sobretudo, há uma questão, de longa data, que me persegue, a mim, tal como a outros jovens da minha geração, e que é um "problema de consciência": qual a legitimidade daquela guerra? e até quando aquela guerra que vai exaurindo vidas e cabedais?... Em 1961, tive a premoniçãpo de que aquela guerra ia sobrar para mim, mas estou longe de sonhar que iria parar à Guiné...

Cheguei a  Bissau a 29 de maio de 1969. A 2 de junho ia rio Geba acima, numa LDG, a caminho do leste... Depois de passar menos de dois meses no CIM de Contuboel, a dar instrução a tropas africanas, sou colocado em  Bambadinca, no setor L1, eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12...

Em Bambdinca  eu recebia, por assinatura, o Comércio do Funchal e o Notícias da Amadora, dois jornais ligados à "malta do reviralho"... Nem sempre chegavam regularmente ao meu SPM... Julgo que edições houve que terão sido apreendidas, mas já não posso confirmar... Era uma imprensa feita por gente nova, e que desafiava o sistema, sabendo inclusive fintar os "coronéis", os homens do "lápis azul" que faziam a censura (agora rebatizada "exame prévio"), o mesmo é dizer, decidiam o que os portugueses podiam ler (na imprensa escrita), ouvir (na rádio) e ver (na televisão)...

Recordo-me, em Bambadinca,  das eleições, já distantes, de 26/10/1969, em pleno "consulado marcelista", em que concorriam duas listas da oposição democráticas, a CDE e a CEUD, contra a lista oficial do partido único, a Acção Nacional Popular, herdeira da União Nacional.

Estava na Guiné, em Bambadinca, há já cinco meses... Tenho bem presente essa data porque numa companhia de cerca de 60 militares metropolitanos da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, só eu, o capitão de infantaria Carlos Brito e o alentejano José Manuel Quadrado (1947-2016), 1º cabo apontador de armas pesadas, é que estávamos recenseados nos cadernos eleitorais. (Posso estar aqui a cometer uma injustiça, omitindo mais alguém, mas julgo que não, embora os restantes graduados do quadro, os dois segundos sargentos,  também devessem, em princípio, estar recenseados; um deles, o sargento Piça, de quem me tornaria grande amigo, tratava-me bonacheiramente como "o soviético" por ser do "reviralho")...

Creio que o candidato pelo círculo da Guiné era o Pinto Bull, acusado na época, pelo PAIGC, de ser um "colaboracionista"... Morreu já em 2005, de certo modo injustiçado. Na época, no meu diário, acusei-o, apressadamente, de ser um Tchombé.

Nas eleições legislativas de 1969, votei em branco, claro, mas votei. Os resultados foram, naturalmente "desastrosos" para os democratas: a lista oficial da ANP arrecadou cerca de 88% dos votos (981.263 votos, menos de um milhão), a CDE cerca de 10,3% e a CEUD 1,5%... Ah!, havia ainda a Comissão Eleitoral Monárquica (que teve pouco mais de 0,1%)... Os votos inválidos foram também da ordem de um milhar (0,09%),

Em, suma, ao todo, votaram cerca de 1 milhão e 115 eleitores (62,5% do total dos recenseados nos fraudulentos e desatualizados cadernos eleitorais do Estado Novo, que eram pouco mais de 1 milhão e 800 mil. Compare-se esse nº com, o total de recenseados, para as primeiras eleições livres, a seguir ao 25 de Abril, as eleições para a Assembleia Constituinte: mais de 6,7 milhões de eleitores!


2. Não tenho a certeza de quando me recenseei, se em 1968, quando fiz 21 anos, ou se ainda em  1965, quando a oposição democrática levantou, pela primeira vez, o "tabu da guerra colonial"... Caiu o Carmo e a Trindade, foi um terramoto!... A oposição democrática retirou-se da corrida nesse ano já distante de 1965 (, o mesmo acontecendo em 1973).

Participei, nessa época, com 18 anos, a nível local, na minha primeira campanha eleitoral que foi abortada logo pela desistência da oposição, e o terror da repressão. Convivi, nessa época, com alguma regularidade com o sempre combativo e corajoso Catanho de Menezes, advogado da família do Humberto Delgado, amigo íntimo de Mário Soares, e futuro cofundador do PS, em 1973, precocemente desaparecido depois do 25 de Abril e hoje miseravelmente esquecido: tem apenas o nome de uma avenida na minha terra, Lourinhã...

Na biblioteca dele, no solar da família, no Toxofal, tinha acesso, pela primeira vez, em 1965, a títulos da imprensa estrangeira como o Le Monde ou o Nouvel Observateur ou as obras, em português e francês, que foram importantes para a minha formação cívica e intelectual. Adorava lá ir, ao Toxofal, "saber as últimas", ler os jornais e, mais do que isso até, ter acesso a uma biblioteca completa de uma velha e conceituada família republicana. Os livros forravam as pedras de alto a baixo, do gabinete de trabalho do Catanho de Menezes,  e era isso que me fascinava, até mais do que as notícias da "resistência antifascista" ...

Muito raramente temos aqui falado destes factos, e nomeadamente da campanha eleitoral" de 1969 (mas também das "eleições" de 1965 e de 1973)... Penso que temos esse dever de memória, porque para alguns de nós essas campanhas eleitorais e a pouca liberdade que era dada momentaneamente às "oposições"  foram uma verdadeira escola de educação cívica, cidadania e formação da consciência política...

Confesso que nunca vi o Mário Soares no Toxofal de Baixo, nem o Catano de Menezes me convidaria para estar com ele ou com outras figuras gradas da oposição democrática... Eu era ainda um "miúdo", em 1965, e havia fortes preocupações com a segurança... Tinha acabado, uns meses antes, de dar o nome para a tropa...

Nem sei se alguma vez o Mário Soares foi à Lourinhã, a não ser em campanha eleitoral, em 1969. Sei que a CEUD fez uma sessão no cinema local, em outubro de 1969.O presidente da Câmara Municipal de então, o João "Paradas", como a gente lhe chamava, tinha sido aluno do Colégio Moderno, e portanto amigo ou conhecido do Mário Soares. Homem da confiança do regime, teve no entanto o "fair play" de assistir à sessão de propaganda da CEUD numa sala que não levaria mais do que 200 lugares sentados. Soube, mais tarde, que futuros destacados militantes socialistas locais, do 26 de abril, ficaram então escondidos na "casa da máquina de projeção", ouvindo as intervenções de Mário Soares, Catanho de Menezes e demais candidatos da CEUD..

Mesmo em outubro de 1969, no "outono" do marcelismo, nem toda a gente se sentia livre para dar a cara... Era preciso coragem física e moral... E essa qualidade, estes dois homens, aqui evocados, Catanho de Menezes e Mário Soares, sempre a tiveram... Lembro-me do dia em que estive, como meu amigo José António, em Toxofal, em setembro de 1965, na véspera do Catanho Meneses e o Mário Soares partirem para Espanha para se inteirarem do caso Humberto Delgado. Ambos serão presos pela PIDE.

Depois de ir para a tropa e para a guerra, nunca mais vi nem contactei o Catanho de Meneses. Veio o 25 de abril e as suas diversas encruzilhadas, fui para Lisboa, nunca mais estive com ele, entretanto já dirigente do PS.

Nunca fui um homem de partido(s), mas tenho uma dívida de gratidão, tanto para com o Catanho de Menezes, meu conterrâneo, umas das primeiras pessoas com quem, em 1965, discuti os aspetos políticos da guerra colonial, bem como para com Mário Soares, enquanto português, e combatente pela liberdade. Disse isso, de resto, à sua  filha, no velório da sala do capítulo dos Jerónimos. E o que lhe transmiti era sincero, não era retórica.

Foram dois homens que a política e a amizade uniram: a única vez que estive pessoalmente com Mário Soares, foi numa exposição fotográfica sobre a guerra colonial, na sede da sua fundação; fiz questão então de lhe falar no nome do meu conterrâneo (e amigo), o Catanho Menezes, que o Mário Soares muito estimava e admirava.
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CATANHO DE MENEZES (1926 – 1985)

(i) Joaquim José Catanho de Menezes nasceu em 11 de Julho 1926, em Toxofal de Baixo, concelho da Lourinhã;

(ii) era filho de Hyde Odila Ribeiro Catanho de Menezes e do advogado João Catanho de Meneses, que foi ministro da Justiça e do Interior em dois governos da I República;

(iii) era também sobrinho do coronel Hélder Ribeiro, deputado e ministro de várias pastas durante a I República;

(iv) licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa, e exerceu advocacia nesta mesma cidade, ao mesmo tempo que geria a  exploração agrícola da família no Toxofal de Baixo, Lourinhã;

(v) foi sempre um público e notório oposicionista;

(vi) interveio como advogado em numerosos julgamentos políticos, dos quais se destacam os casos do 11 de Março e do "Golpe de Beja";

(vii) participou activamente na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República (1958), tendo pertencido à sua comissão de juventude;

(viii) nas eleições para a Assembleia Nacional de 1961, 1965 e 1969, apoiou activamente as listas da oposição democrática: em 1965, foi candidato na lista da oposição por Lisboa;  em 1969, destacou-se no âmbito da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), pertencendo à sua Comissão Coordenadora;

(ix) foi preso pela PIDE em setembro de 1965, quando se dirigia para Espanha, com Mário Soares, J. Pires de Lima e Raul Rego, para acompanhar o processo de inquérito aberto pela justiça espanhola sobre o assassinato do general Humberto Delgado;

(x) aderiu à Acção Socialista Portuguesa (ASP); e virá a ser um dos fundadores do Partido Socialista (PS), em Bad Munstereifel, na Alemanha, em abril de 1973;

(xi) após o 25 de Abril de 1974, foi membro da Comissão Nacional e do Secretariado Nacional do PS (1974);

(xii) foi também deputado à Assembleia da República, na legislatura com início em 1976;

(xiii) faleceu em Lisboa a 3 de Junho de 1985;

(xiv) tem o seu nome numa das artérias principais da sua terra, Lourinhã.

Fontes;

 Fundação Mário Soares > Casa Comum> Arquivos > Joaquim Catanho de Menezes

Facebook > Antifascistas da Resistência > 15 de setembro de 2015 > Catanho de Menezes (1926-1985)
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Nota do editor:

Último poset da série > 8 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16932: Manuscrito(s) (Luís Graça) (109): Pôr do sol em “trompe l´oeil”

sábado, 14 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16954: Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, CCAÇ 4740 (Cufar, dez 72 / jul 73) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, jul 73 /ago 74) (9): cenas do quotidiano do destacamento de Mato Cão


Foto nº 1 


Foto nº 1 A 


Foto nº 1 B




Foto nº 3


Foto nº 3A



Guiné >Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 (1973/74) > Aspetos da vida do dia a dia do destacamento: (i) cortar lenha com a motoserra; (ii) passatempo dos soldados,





Fotos (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Ediçãor: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Luis Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro, que foi alf mil da CCAÇ 4740 (Cufar, 1972/73) e do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74). (*)

Lisboeta, com família materna na Lourinhã, hoje bancário aposentado, cicloturista, o  Luís Mourato Oliveira esteve na Guiné, em rendição individual de 1972  1074... Foi o último comandante do Pel Caç Nat 52. Ele irá terminar a sua comissão em Missirá e extinguir o pelotão, em agosto de 1974. 

Em meados de 1973 (por volta de julho), veio de Cufar, no sul, região de Tombali, para o CIM de Bolama, para fazer formação antes de ir comandar, em agosto, o Pel Caç Nat 52, no setor L1, zona leste (Bambadinca), região de Bafatá. 

Publicam-se mais algumas fotos do tempo em que o alf mil Luís Mourato Oliveira passou no destacamento de Mato Cão: (i) a cortar lenha com moto-serra (fotos nºs 1 e 2) : (ii) passatempos dos soldados do pelotão, nas horas vagas (foto nº 3).

A missão principal do destacamento do Mato Cão era proteger as embarcações que circulavam no Rio Geba Estreito, entre o Xime e Bambadinca. As condições de alojamento e segurança eram precárias.

Sobre o Mato Cão, que era um lugar mítico, temos já mais de 70 referências... Pertencia ao subsetor do Xime. Por lá passaram diversos camaradas nossos, membros da Tabanca Grande...
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sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16953: Notas de leitura (919): "Noites de Insónia na Terra Adormecida", por Tony Tcheka (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se do primeiro livro individual de poesia de Tony Tcheka editado pelo INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1996. De seu nome próprio António Soares Lopes Júnior, exerceu funções em lugares prestigiados da comunicação e foi presidente da Associação de Jornalistas da Guiné-Bissau. É indubitavelmente um dos poetas mais completos da sua geração: lírico, denunciador e crítico de um país à deriva que nem respeitou os seus combatentes vitoriosos, contemplando, sofredor, a criança subnutrida e sem esperança, é um dos poetas mais surpreendentes da lusofonia, uma voz que afirma que a literatura guineense está viva. Pena é que nenhum editor português se abalance a publicar poesia de tão elevada qualidade.

Um abraço do
Mário


Noites de insónia na terra adormecida, por Tony Tcheka

Beja Santos

Em “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, Fronteira do Caos, 2014, houve a preocupação de dar uma sinopse da literatura da Guiné-Bissau e intitulámo-la “Uma literatura de alentos e desalentos, uma tumultuosa viagem à procura da identidade”. Na génese, Amílcar Cabral e Vasco Cabral revelaram uma poesia de inconfundível matriz portuguesa. No pós-independência impuseram-se outros nomes: Hélder Proença, Agnelo Regalla, António Soares Lopes Júnior ou Tony Tcheka, José Carlos Schwartz, entre outros, exaltadores da luta e dos sonhos, portadores da ingenuidade dos amanhãs que cantam, dececionados com a multiplicidade dos desastres. O leitor tem à sua mercê uma sinopse da tese de doutoramento de Moema Parente Augel com a epígrafe “O desafio do escombro”, aí encontrará de forma caleidoscópica as grandes manifestações desta poesia tantas vezes eivada de crioulidade:
https://books.google.pt/books?id=TkP6NAsbQskC&pg=PA15&lpg=PA15&dq=moema+parente+augel+desafio+do+escombro&source=bl&ots=d5SZnGl7iR&sig=_j73LPrVp34Vh98t8BksextcXKk&hl=pt-PT&sa=X&ved=0CB4Q6AEwAGoVChMIqs7zyJL3yAIVy4kaCh0-LwEj#v=onepage&q=moema%20parente%20augel%20desafio%20do%20escombro&f=false

A mesma Moema Parente Augel apresenta este livro de Tony Tcheka, adiantando o seguinte:
é um escritor com maturidade literária onde transparece, pela forma e pela linguagem, uma grande criatividade e inesperada ousadia na expressão poética; são versos de amor em que o poeta lança mão do crioulo mais próximo dos sentimentos do coração, dirigindo-se ao seu amor na linguagem, universal dos namorados; os temas sociais são igualmente preponderantes, nomeiam-se os males sociais e podemos apercebermo-nos quanto aos motivos da inquietação poética, ele vai anotando os diferentes indícios de dificuldades económicas do povo guineense; e trata-se igualmente de uma grande natividade poética onde se fala guinéu: lalas e bolanhas, tabanca e morança, arrozais, palmeiras, mangueiros e poilões, tambores, o korá e os djidius. E a estudiosa conclui: “Um Tony Tcheka multifacetado, emocionado pela sorte das crianças e dos sofredores, denunciando as injustiças sociais e a hipocrisia. É uma poesia brava, a lírica de Tony Tcheka”.

Vejamos as suas lembranças familiares em “Carta ao pai amigo”:
Que saudades pai/Que nostalgia e dor/lembrar-te/Como o tempo não passa/sem ti/Que saudade trago/do calor do teu olhar/amigo/penetrando em mim/envolvendo/acariciando/as minhas traquinices/Que saudade do som melódico/do teu violão… /Fecho os olhos/e vejo os teus dedos/calcando as cordas do velho banjo/que estremecia/no “monte cara”/dos teus braços/São acordes/que ainda hoje, sublimam o meu canto/Ainda trago comigo a melodia/das tuas palavras de Homem das Ilhas/vertical e frondoso/como o poilão/desta Guiné/que tanto amaste/e fizeste tua… /Ah! Mas como o tempo não passa sem ti/E como senti tua partida/lá longe… /para além do sonho/onde o sono se eterniza.

Tony Tcheka não é alheio aos amanhãs que cantam, e em 1973 a sua melodia fala pelas trombetas do futuro, no poema “Guiné”:
De longe/entre as sete colinas/vejo-te/mulher grande/sofredora/e meiga/Imagino-te/suave/como quem diz amor/balbuciando temor/Sinto-te sombra minha/protegendo as minhas ibéricas noites/Esta ausência demorada/faz-me ver o Geba/subindo sobre o Tejo/Imagino-te/mulher-mãe/gente adulta/renascendo como companheira do mundo novo.

Em 1993, a lírica revela amargura no seu poema “Povo adormecido”:
Há chuvas/que o meu povo não canta/há chuvas/que o meu povo não ri/Perdeu a alma/na parede alta do macaréu/Fala calado/e canta magoado/Vinga-se no tambor/na palma e no caju/mas o ritmo não sai/Dobra-se sob o sikó/como o guerreiro vergado/cala o sofrimento no peito/O meu povo/chora no canto/canta no choro/e fala na garganta do bombolon/Grei silêncio/quebrado/nas gargalhadas de Kussilintra/em quedas de água/moldando pedras/esfriando corpos/esculpidos/no corpo do bissilão.

Não poucas vezes Tony Tcheka enuncia com exaltação os guerreiros que acabaram sentindo-se traídos, deram a vida pela independência e a independência não lhes trouxe nada de novo. Como no poema “Batucada na noite”, refere a cidade que não dorme, com corpos inflamados que se saracoteiam, indiferentes à triste condição em que se encontra o país. É uma poesia, tal como refere Moema Parente Augel, carregada de lágrimas, de desilusão, tanta amargura que se estende, aliás, a toda a África sofredora. O poeta também reage, e convida a sua companheira a cantarem a nova madrugada, em que as crianças deixarão de ter a barriga grande de fome, e embriaga-se nos grandes sonhos dos dias da luta armada, assim tecendo o futuro:
vem, Companheira/vamos a Komo rebuscar a força/para não desfalecermos depois da/caminhada/vamos a Komo beber na fonte/onde bebeu a última gota/o primeiro guerrilheiro sem-nome que/caiu… 

A última coletânea de poemas do livro dá pelo nome de “Canto menino”, canta-se a vida que se estampa no sorriso aberto das crianças que têm o pranto a fome, são filhos da miséria, e aí o poeta socorre-se da universalidade no poema “Chamo-me menino”:
Sou a criança pobre/de uma rua sem nome/de um bairro escuro/de covas fundas/em garganta/fatalmente magra/carente de pão/e sem muita ambição/Sou filho da miséria/escancarada/enteado da vida/entreaberta/Sofro de raquitismo/por comer com os olhos/enquanto na garganta/destilam bolas de saliva.

E, mais adiante, dá-nos num magnífico poema intitulado “Mininu di kriason” a imagem do abandono e da deriva da criança e do país:
Nunca teve berço/já sobreviveu um terço/da vida que não tem/Ei-lo nos becos da cidade/esquivando-se ao cassetete/ou livrando-se lesto ao tabefe/factura de mil traquinices/Ziguezagueia pelos cantos/enquanto aguardo/uma tigela de cuntango/que se não aparece/é na cabaça da Tia Mandjendja/o banquete que apetece/E depois a corrida/mais uma esquivadela/Djondjon – mininu di kriason/não tem criação.

Um grande poeta que devia ter as portas abertas em toda a lusofonia.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16935: Notas de leitura (918): O tráfico de escravos nos rios de Guiné e ilhas de Cabo Verde (1810-1850), por António Carreira (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P16952: Banco do Afecto contra a Solidão (21): o lar onde estive... (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem do Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68

Data: 14 de setembro de 2016 às 02:28 

Assunto: O LAR ONDE ESTIVE

Camaradas

Estou em casa, portanto saí do Lar. Não era o local adequado para  acabar os meus dias. 

O livro que lancei, com o título "O Corredor da Morte", tem a ver com  este período que passei num local isolado. Longe da civilização, tive  saudades da barulhenta cidade.

Cheguei a levantar-me às 02H00, fazer a barba, tomar banho e vestir-me.  Dava umas voltas e tomava o pequeno-almoço às 09H00. Seguia para o Bar  e passados que eram 30 minutos desapareciam todos recolhendo aos seus  quartos – talvez para verem programas de TV. Eu aguentava até o almoço às 12H30.

Voltava ao Bar que fechava por não haver ninguém.  Lanche pelas 16H00 e era esperar pela hora de jantar, às 18H30. Todos  dispersavam, ficava no Bar que já estava fechado, ligava a TV e tinha de ir para o quarto para me darem os comprimidos de antes de  deitar-me.

Por vezes surgiam umas Senhoras que fui conhecendo. Com jogava às  cartas, bebíamos café da máquina. Ela adormecia com as cartas na mão.

Torres Vedras estava a uns 12/13 quilómetros e só via céu e montes. Como também nunca me entendi com o senhor com quem compartilhava o  quarto – um T1, mas tinha somente uma parte de um T0.

Tinha conversas interessantes com Senhoras viúvas de Oficiais  militares, simpáticas e com idades que andavam nos 90 anos.

Uma, a Senhora Fernanda – com a doença do Alzheimer – conversava  comigo perguntando constantemente como me chamava.  O marido um Capitão carrancudo… Vi que se ria vendo a paciência que tinha com a esposa. Professora Primária, Santa Catarina, Lisboa, declamava e bem, um poema  seu que falava do desgosto de nunca ter tido filhos.
Como gostavam de mim, quando disse à Assistente Social que decidira  regressar a casa, pediu-me que pensasse bem por achar que podia ajudar  Residentes do Lar. Estive lá, para lhe fazer a vontade, mais 5 dias.

E foi o que sucedeu, não esqueço os diálogos que tive com a Senhora  que escreveu um poema "Ao filho que nunca teve". Pedi-lhe que me desse  o poema escrito. Escrevo-lhe brevemente.

Agarrei-me ao computador, tudo errado.  Continuei a reescrever o livro, mas nada sai. Mas acabou por ser uma experiência positiva. Logo me arrependi daquilo que fizera. Terei de  dar-lhe a volta, ia sair asneira.

Poesias nascem e morrem… Escrevo esta experiência que tive no Lar.

Encontrei-me com camarada da minha Companhia, José Salvador Pinto  Aires que contactou o Blogue.

Abraço,
Mário.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P16951: Parabéns a você (1194): Maria Ivone Reis, ex-Cap Enfermeira Paraquedista (1961/1974)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16939: Parabéns a você (1193): Bernardino Parreira, ex-Fur Mil Inf da CCAV 3365 e CCAÇ 16

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16950: O nosso livro de visitas (190): Evaristo Pereira dos Reis, 66 anos de idade, residente em Setúbal... Ex-1º cabo condutor auto, de rendição individual, esteve no QG (1971/73), mas na maior parte da comissão foi mestre de obras da Câmara Municipal de Bissau, ao tempo do maj cav Eduardo Matos Guerra, como presidente



Brasão de armas da cidade de Bissau (1973)


1, Mensagem do nosso leitor e camarada,  Evaristo Pereira dos Reis, que foi 1º cabo condutor auto, de rendição individual (Bissau, QG, 1971/73), com quem já conversámos ao telefone e convidámos para integrar a Tabanca Grande:


Data: 31 de dezembro de 2016 às 16:44
Assunto: Guiné 71/73

Cumprimentos a todos os intervenientes naquela malfadada guerra.

Também participei nela durante 24 meses certos. Embarquei no paquete de então, o "Angra do Heroísmo",  em 24 de Novembro de 1971. Foram cinco dias de viagem que jamais me esquecerei, fui alojado no porão daquele monte de ferrugem e humidade, com colchões de palha com várias
dezenas de anos e dedicatórias com datas mais antigas do que o meu nascimento.

Ao terceiro dia o navio avariou,  ficando á deriva, escusado será dizer que a sensação de náuseas e com o vomitado daquelesestômagos mal fornecidos e mentes abaladas, o cheiro era azedo com a
humidade e calor, fazia um cocktail que qualquer ser humano não
gostava de passar.

Nesse mesmo barco viajava também a 35ª Companhia de Comandos, esses um
pouco mais bem instalados.

Finalmente chegados ao cais Pijdjiguiti, estava-me esperando o 1º sargento Furtado, homem que tinha conhecido no antigo aquartelamento,Trem Auto, onde tive a função de instrutor de condução, localizado na Av. de Berna em Lisboa, hoje e muito bem transformado em Universidade.

Voltando á minha chegada fui colocado na secção do ficheiro, no Quartel General, local aparentemente privilegiado em relação aos meus camaradas, local onde comecei a ter consciência do
que se passava naquela província em gura. Nesse serviço  estavam arquivadas as fichas de todos os intervenientes naquele teatro de guerra que eu considero de tortura física, mental e psicológica,

No arquivo assinalava os mortos, os desaparecidos, os evacuados, os que tiveram a sorte de já ter regressado e os que se encontravam presentes. Claro que a curiosidade principal foi ver a ficha do maestro da banda, Tive oportunidade de estar bem perto dele, diversas vezes, Refiro-me ao
homem da lupa pelo qual nunca tive qualquer simpatia.

Passado um mês tive oportunidade de concorrer a um cargo de Mestre de Obras, para a Cãmara Municipal  de Bissau para o qual estava talhado, Chefiada pelo major [cav Eduardo} Matos Guerra [1931-2016] como Presidente da Câmara, homem duro, aliado e bastante protegido pelo Governador,

A partir desse dia a minha farda foi arquivada no armário atá ao dia do regresso, Foi muito difícil
desempenhar tal cargo, a Câmara não tinha recursos, imaginem que tinha que fazer os remendos das ruas com cimento, porque não tínhamos alcatrão, Mesmo assim consegui fazer obras de algum vulto praticamente sem recursos, recorrendo a máquinas da engenharia militar,  chefiada pelo então Cap. Branquinho e Furriel Guedelha, sobre os quais nunca mais tive noticias.

Também existia uma empresa civil de construção ali sediada com o nome de TECNIL, Esses eram os meus fornecedores gratuitos.

Fiz uma messe para Sargentos e renovei o bar de oficiais dentro do Hospital Militar. Alarguei parte da estrada de Bissalanca, para o aeroporto,  arrancando dezenas de mangueiros. Fiz uma vala de drenagem e alargamento da estrada para o Quartel General, Enfim, fiz várias obras de
beneficiação para melhorar aquela cidade, passando nestas lides diárias os restantes e difíceis 23 meses.



Guiné > Mapa de Bissau (1949) > Escala de 1 /50 mil > Posição relativa de Bissau e Bissalanca (aeroporto)

Infogravura: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné (2017)


Regressei no avião dos TAM, no dia 29 de Novembro de 1973, Regressei bastante desgastado, tive a sorte de não estar directamente no teatro de guerra, mas estava bastante informado,  sabendo o que os
mais desafortunados sofriam diariamente.

Durante muitos anos não desejei voltar aquele País, mas hoje talvez voltasse.

Não estou ligado a qualquer grupo de convívio de antigos combatentes, talvez por ter poucos conhecimentos da época, visto ter ido em rendição individual.

Hoje tenho 66 anos,  resido em Setúbal, tenho esposa,   filho e dois netos de 5 e 8 anos, tenho algumas dores mas estou vivo.

Desejo a todos o melhor da vida e aproveitem- na no que puderem.
Bem hajam a todos.
Evaristo Pereira dos Reis
Telem (...)

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Nota do editor,

Último poste da série > 25 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16133: O nosso livro de visitas (189): Morreu, em 17/4/2016, o meu pai, Cherno Sanhá, formado em Cuba, em engenharia de telecomunicações, filho do rei de Badora (Luís Causso Sanhá)

Guiné 61/74 - P16949: Memória dos lugares (357): Biombo - Ondame, um pequeno paraíso, um oásis de paz... (José Nascimento, ex-fur mil, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71)


Foto nº 1 > A praia do Biombo e o farol abandonado 


Foto nº 2 >  Praia do Biombo



Foto nº 3 > Biombo > A criançada



Foto nº 4 >  Biombo > Com elementos da população


Foto nº 5 > Biombo >  Destacamentio de Ondame > Aula de condução


Foto nº 6 >  Biombo > Na tabanca


Foto nº 7 > Biombo > Durante um passeio pela tabanca


Foto nº 8 >  Biombo, a "fisga"


Foto nº 9> Biombo > Dia de domingo

Guiné > Região de Biombo > Destacamento de Ondame > CART 2520 (1969/1)

Fotos (e legendas): © José Nascimento (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem, c om data de 27 de novembro de 2016, do José Nascimento (ex-fur mil art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71):


Assunto - Biombo-Ondame Um pequeno paraíso

Caros camaradas Carlos Vinhal e Luis Graça,

No tempo em que estive na Guiné nem tudo foi mau, é o caso do Biombo, onde permaneci mais de seis meses.

É certo que as condições não eram as melhores, a iluminação era feita com candeeiros a petróleo, tínhamos de ir buscar água a mais de 500 metros a um poço insalubre, a cozinha era pouco mais do que um pequeno telheiro e as nossas próprias instalações não passavam de um barracão em alvenaria com uma cobertura em telhas de zinco, que quando chovia tocava uma orquestra verdadeiramente desafinada e ensurdecedora.

Mas graças ao nosso poder de improvisação, ao nosso espírito de sacrifício e à nossa camaradagem, as dificuldades foram ultrapassadas.

A guarnição não chegava a um pelotão, pouco mais de 20 elementos, eu era o único graduado.

Contávamos ainda com uma secção de milícia. Também havia um grupo de alguns rapazes muito jovens que,  a troco de alguma comida, voluntariamente ajudavam na cozinha e noutras tarefas e por quem nós nutríamos muito respeito e muita amizade, espero que tenham sido muito felizes, pois bem o mereciam, alguns até andavam na escolinha.

A parte boa desta estadia era a tranquilidade do local, não havia guerra, praticamente não andávamos armados, só quando nos afastávamos mais do nosso pequeno destacamento é que levávamos as nossas G3. Podíamos andar nas tabancas com total liberdade, na prática eramos como civis [Fotos nºs 6, 7, 8 e 9]. Até a minha relação com o pessoal deixou de ser como se estivessemos no mato, ficando quase de parte a componente militar.

Ainda me lembro do nome de algumas tabancas; uma era Ondame a que dava o nome ao destacamento, outra era Blim-Blim e uma outra era Blom.

O régulo deste grande aglomerado de tabancas com uma enorme população, chamava-se Mansoa e com o qual estabelecemos uma boa relação, ajudou a livrar-me certa vez de uma pequena encrenca com o capitão Maltez que um nativo criou com uma queixa no posto administrativo. 


Guiné > Região de Biombo > Mapa de Quinhamel  (1952) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de praia do Biombo, Ondame, Blimblim e Blom. Quinhamel, hoje a capital da região, ficava a norte.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)




Mapa das regiões da Guiné-Bissau. O Biombo (2) inclui os setores de Prabis, Quinhamel e Safim. Adaptado de Wikipedia, com a devida vénia.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)


Já lá vão alguns anos escrevi um pequeno texto sobre o Biombo/Ondame, que tenho mantido em rascunho e que recentemente passei para o meu portátil, com algumas ligeiras adaptações.

Ora aqui vai:

Aí vêm eles, saiam daí, avisa um dos nossos militares. Não, não é necessário, porque o inimigo não ataca por mar, também não são tubarões, são apenas simpáticos golfinhos que se aproximam da praia do Biombo e nos vêm fazer uma visita, enquanto nós militares do Exército Português, elementos da CART 2520,  nos banhamos nas cálidas águas da costa da Guiné Bissau, à época Guiné Portuguesa.

A praia do Biombo ficava a escassos dez minutos do nosso aquartelamento, onde dezenas de palmeiras se baloiçavam suavemente sobre as suas águas ao sabor de um vento, quiçá português. Também não faltava um farol abondonado (como numa conhecida canção) para compor esta maravilhosa paisagem tropical [Fotos  nº 1 e 2].

Regressamos ao quartel, ao longo da estrada de terra batida,  veem-se bandos de pelicanos e flamingos de belas plumagens rosa e que procuram alimentos nos pequenos lagos ou braços de rio, onde os africanos se dedicam à apanha de saborosas ostras e apetitosos camarões.

No Biombo a nossa vida de militares decorre tranquila, não há actividade operacional e entre idas à praia e pequenas caçadas, convivemos com as populações nativas  [foto nº 4] e jogamos umas peladas de futebol. Também prestamos cuidados de saúde tais como pensos e tratamentos contra o paludismo, O nosso cabo enfermeiro é um excelente profissional. .

Hoje é dia da minha primeira lição de condução [foto nº 5],  simultaneamente sou aluno mas também instrutor. Coloco o motor da viatura a trabalhar e meto a 1ª..., à segunda ou terceira tentativa lá consigo arrancar e assim vou picada fora; a experiência adquire-se noutras lições...

Fui ao "Centro Comercial" que funciona junto à picada e resolvo comprar ostras, por pouco patacão,  a caixa do nosso Burrinho de Mato fica cheia. Foi um dia em pleno tanto para mim como para os meus soldados e ao almoço juntou-se o lanche que foi regado com umas belas "bazucas" que o nosso cantineiro fazia jus de as manter sempre bem fresquinhas.

Todos os dias a bandeira verde rubra sobe bem alto naquele mastro do quartel do Biombo içada pelos nossos dedicados milicias, vaidosa vai-se balouçando aos quatro ventos como que a murmurar; "aqui é Portugal... aqui é Portugal"... À noite repousa tranquila no meu pequeno gabinete, muito orgulhosa de ser portuguesa.

É dia de partida, vamos em breve regressar aos nossos lares, o nosso pequeno pelotão permaneceu seis meses neste local, depois de termos estado um ano na zona operacional do Xime no centro da Guiné, com uma passagem de cerca de três meses por Safim e João Landim, junto ao rio Mansoa.

Adeus,  sargento Aliu Indini, adeus soldados Quessane Quebá, Andinho Có e outros dos nossos leais milicias. Adeus professor Paulo,  da pequena escola primária do Biombo, adeus aos seus pequenos alunos; ainda hoje parece que os ouço cantar em coro [foto nº 3]

"Gira a roda, gira a roda,

Gira a roda sem parar...

Salta a bola, salta a bola,

Salta a bola sem parar"...

Adeus, meu pequeno quartel do Biombo, adeus a este pequeno paraíso por onde a guerra não passou, adeus aos mais belos tempos desta parte da minha juventude, parto para a Metrópole, mas deixo aqui o meu coração.

O Uíge levanta ferros e zarpa rumo a Lisboa, ainda no canal do Geba o meu peito contrai-se, ao longe pela última vez os meus olhos enxergam o pequeno farol abondonado a me "dizer" o seu adeus.

Adeus Biombo, adeus Guiné.

Para os meus camaradas desta aventura o meu grande abraço.
José Nascimento
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Nota do editor:

Último poste da série de 12 de Janeiro de 2017 > Guiné 63/74 - P16947: Memória dos lugares (356): A Ponte dos Três Arcos, de Leiria, por onde passava a estrada real Lisboa-Coimbra (José Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5)

Guiné 61/74 - P16948: Brunhoso há 50 anos (11): Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Rio Sabor


1. Em mensagem do dia 7 de Janeiro de 2017, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta à sua série Brunhoso há 50 anos, desta vez para nos falar do Crasto, da Fraga do Poio e do Rio Sabor.


Brunhoso há 50 anos

11 - Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor

No lugar do Crasto, que ocupa uma colina fronteira à aldeia, identificada na fotografia, segundo a memória transmitida por muitas gerações ao longo dos séculos, que se confunde com a lenda, terá existido uma povoação romana. Quando eu era mais novo vi lá algumas vezes pedaços de telhas que os lavradores desenterravam ao lavrar as terras.

O Crasto, que dominava toda a paisagem em redor numa lonjura de vistas variável, a menor nunca inferior a dois quilómetros e a maior superior a 50, era um sitio estratégico para os seus habitantes se precaverem e poderem defender de ataques surpresa de possíveis invasores, nos tempos em que as guerras de conquista e reconquista eram constantes. Existe em muitas povoações e nalgumas denomina-se “Castro” pois são palavras com a mesma raiz etimológica e significado. Era um lugar fortificado num sitio estratégico, entre os povos romanos ou pré-romanos. Hoje está morto e enterrado debaixo do pó da terra que os ventos transportam e que se foi acumulando ao longo de centenas de anos, tendo os lavradores lavrado essa terra que o cobre para semear trigo e onde algumas árvores foram crescendo, semeadas pelas aves e pelo vento. A sua forma cónica e a proximidade da aldeia, associada à lenda doutras eras, dá-lhe uma beleza um pouco familiar, misturada com uma certa nostalgia de um passado desconhecido.


 Duas perspectivas do Lugar do Crasto

Com a progressiva pacificação da Península depois da ocupação dos romanos, invasões dos bárbaros, os Suevos, os Vândalos e os Visigodos, e das invasões dos muçulmanos, provavelmente ainda muito antes do inicio da nacionalidade, a povoação terá sido construída no lugar onde hoje se encontra, um sitio mais baixo, entre colinas, mais protegida dos ventos frios e agrestes do Inverno e do inferno dos calores estivais. Uma planície mais verdejante, entre pequenos montes e colinas, onde nascem os ribeiros, mais abrigada dos ventos e das intempéries.

Já longe da aldeia, passando pelos montes de sobreiros e entrando na zona das oliveiras, quando os terrenos começam a descer em declive na direção do Rio Sabor, encontramos a Fraga do Poio, um monumento natural que marca a paisagem pela sua dimensão. A Fraga do Poio é um enorme penhasco de xisto com cerca de 300 metros de altura e com uma largura, na base, superior, formando um penedo, que impõe a sua presença em toda a paisagem em redor, como se fosse uma enorme catedral de pedra erguida em tempos antigos a um Deus da Terra menos omnipotente e mais próximo dos mortais do que o Deus dos Céus que, na sua ânsia de poder, quis ser Deus dos Céus e da Terra. Sinto dificuldade em definir o sentimento que os brunhosenses sentiam e sentem em relação a essa fraga gigante: respeito, temor, veneração, exaltação, vaidade, orgulho? Talvez um pouco de tudo isto mesclado com a simplicidade e a naturalidade que foram sempre características dos meus conterrâneos.


 Vistas da Fraga do Poio

Sem saírem da povoação, tinham à vista o Crasto que lhe povoava a imaginação dum passado de gentes que confundiam com romanos e mouros, mais mouros que foram os últimos a passar por lá e dos quais alguns resquícios da memória coletiva conservavam lembranças difusas envoltas em lendas.

Descendo por caminhos ou carreiros de terra batida, em direcção ao rio Sabor, a três quilómetros, podiam debruçar-se de cima da Fraga do Poio e apreciar as vistas do rio serpenteando no vale, a cerca de dois quilómetros, brilhando como prata em dias mais claros de sol ou como chumbo em dias mais escuros de inverno .

 Panorama a partir da Fraga do Poio

Hoje para quem o vê e admira, o Sabor parece um rio grande, que a barragem a jusante, perto da foz, converteu num enorme lago de águas paradas que irá aumentar ou baixar o seu volume conforme as necessidades das barragens hidroeléctricas do Rio Douro, no seu caminho para a Foz do Porto, em direcção ao Atlântico. O Sabor não será mais aquele rio furioso e selvagem dos Invernos chuvosos do Nordeste ou calmo e com tão pouca água no Verão, que se deixava atravessar a vau nalgumas partes do seu percurso. Com a construção da barragem, o Sabor deixou de estar ao serviço dos habitantes das aldeias das suas margens, cada vez mais desertas, para se transformar num rio moderno para produção de electricidade para os grandes burgos. Entrou na era da globalização tal como a maioria dos habitantes de Brunhoso e das outras terras pequenas atraídos pelas grandes cidades do país e do estrangeiro, que ainda antes da construção da barragem já o tinham abandonado .

As pessoas crescem e fazem-se na contemplação do meio ambiente em que são criadas e é ele que que lhes vai ajudar a moldar o carácter e a personalidade. O Crasto, a Fraga e o Sabor irão marcar para sempre as gentes de Brunhoso. A colina arredondada e elevada do Crasto, tão perto da povoação, com vestígios doutro povoado mais antigo, deu-lhes uma dimensão difusa da longevidade que transportam os séculos e da história que os homens escreveram quando se espalharam pela terra. A Fraga do Poio, erecta, firme e imutável na sua consistência e rigidez de pedra, com milhões de anos, dá-lhes a ideia confusa e mal assimilada, das medidas e dum tempo astral, quando tempo e distâncias se confundem e se transformam em crenças que a pouca ciência ou a ignorância dos homens não conseguem decifrar.

O rio Sabor, antes da construção da barragem, suave e transparente no Verão, cheio, escuro e apressado no Inverno, vai dar-lhes a beleza fluída e envolvente ora calma e transparente no Verão, ora furiosa e temerosa no Inverno, da água, essa mãe primordial que tanto cria, alimenta e afaga os outros elementos, como os destrói na sua passagem impetuosa.

 Rio Sabor

Há cinquenta anos, quando Brunhoso ainda estava povoado de gente a viver num mundo mais difícil, primitivo e antigo, os seus habitantes formaram pois o carácter sob a influência da colina do Crasto que lhes deu o sentido do passado e da história, da Fraga do Poio que lhes transmitiu dureza e algum sentido de grandeza, do rio Sabor que lhes deu outra dimensão da beleza e da vida.

É tão difícil utilizar as palavras mais apropriadas para definir a luta e a comunhão entre a natureza e esses antigos habitantes da história de Brunhoso, que antecedeu a minha partida para a Guiné.

Peço desculpa, se a emoção, de quem ainda viveu parte dessa história, lhe dificulta a razão e lhe prejudica a objectividade e imparcialidade.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16651: Brunhoso há 50 anos (10): As casas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)