Guiné > Base Aérea de Bissalanca > 1966 > Grupo de comandos Os Vampiros, do Alf Mil Comando Briote > O Justo Nascimento é o primeiro da fila de trás, a contar da esquerda; e o Jamanca, o quarto. Foto: © Virgínio Briote(2006)
Guiné > Brá > 1965 > Jamanca e Justo, comandos do Grupo Os Vampiros, futuros graduados da 1ª Companhia de Comandos Africanos (1970/74)
Foto: © Virgínio Briote(2006)
Guiné > Bissau> Praça do Império > Escadaria do Palácio do Governador >1966 > O 1º Cabo Comando Jamanca a ser condecadorado pelo Coronel Kruz Abecassis. Em 1973 o tenente Jamanca era o comandante da CCAÇ 21: terá sido fuzilado em 1974 em Madina Colhido, perto do Xime (1) (LG).
Foto: © Virgínio Briote(2006)
Texto do Virgínio Briote que continua sendo membro, fidelíssimo, da nossa tertúlia, ao mesmo que vai produzindo os seus textos, pessoalíssimos, belíssimos, no seu blogue Tantas Vidas, as dele, as do Gil Duarte, as da Teresa, sempre a Teresa, as do Capitão Valentim, as do Capitão Leão, as de uma geração inteira, de homens e mulheres, que amaram e desamaram, viveram e morreram, lutaram e perderam, a Dora, a Clara, a Matilde, o Leonel, o Manaças, o Marcolino da Mata e tantos outros, figuras de carne e osso que povoaram Brá, Bissau, Mansoa, o norte, o sul, o leste, as bolanhas, as picadas, as matas... O retrato de uma geração que ele está a contruir, como um puzzle, da sua experiência, como comando, como homem, nos anos de 1965/66... Continua, camarada, que a gente também vai lá visitar-te: mais do que uma obrigação, é um prazer! (LG)
Caro Luís,
Venho a esta missa todos os dias, às vezes mais que uma vez por dia.
A questão dos militares guineenses que combateram do nosso lado continua ainda muito sensível. Qualquer interpretação que seja feita, corre sempre o risco de ficar incompleta, tantos dados ainda estão no segredo. E muitos de nós já os levaram com eles para a cova. Fica a história simplificada, que pode não ser completamente correcta, se dissermos que:
(i) Os fuzilamentos são incompreensíveis e não justificam as atrocidades que eventualmente alguns tenham praticado;
(ii) Os tempos a seguir à independência foram vulcânicos, ainda estávamos em plena guerra-fria, é conveniente lembrar;
(iii) Os militares guineenses eram portugueses, convém também não esquecer. E ficaram lá, porque as entidades que negociaram a transferência de poderes, os esqueceram, pura e simplesmente.
Mas admito que não tenha toda a informação.
Envio-te algumas fotos de 1965 e 66.
Um abraço
vb
_________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 18 de maio de 2006
Guiné 63/74 - P771: Do Porto a Bissau (18): Sadiu Camará, um sobrevivente (A. Marques Lopes)
Guiné-Bissau > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O Zé Teixeira com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. A tabanca Lisboa, a 5 Km de Buba, era um antigo centro de treino do IN, de nome Sare Tuto... Aqui ainda vivem vários antigos combatentes do PAIGC... Sadiu Camará, antigo paraquedista, casou aqui com uma guerrilheira... Foi ele que mudou o nome da aldeia e ajudou a população como caçador... Uma história com final (quase) feliz. (LG)
© José Teixeira (2005)
Guiné-Bissau > Saltinho > Abril de 2006 > Saliu Camará, beafada, um antigo paraquedista português, um sobrevivente nato...
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
1. Texto do A. Marques Lopes:
Já que se fala dos guineenses que estiveram ao lado da tropa portuguesa contra o PAIGC, vou contar-vos o que o Sadiu Camará, beafada, me contou a mim (1):
(i) tirou o curso de paraquedista em Tancos, 70/71, e regressou à Guiné na Comp.ª 122 do BCP;
(ii) com essa companhia participou em operações, fazendo especialmente de intérprete, participando, inclusive, em interrogatórios de prisioneiros; isto até ao 25 de Abril;
(iii) após esta data, fugiu de Bissau e foi para a zona de Fulacunda, embrenhando-se no mato durante seis meses, sobrevivendo com recurso à caça, raízes e frutos alimentícios;
(iv) durante esse período ajudou com as suas peças de caça as populações daquela zona, sendo aceite por eles;
(v) acabou por ser apanhado e esteve preso durante seis semanas: "levei muita porrada e passei muita fome", disse-me;
(vi) mataram vários que também estavam presos, mas a ele não o mataram porque tiveram em conta as ajudas por ele prestadas às populações;
(vii) perguntei-lhe, a propósito, quem é que tinha mandado fazer os fuzilamentos; disse-me, sem hesitações: "foi o Nino Vieira, que era comissário das Forças Armadas, o Gazela (comandante daquela zona, na altura, já falecido) e o Chico Té (nome de guerra de Francisco Mendes, morto em 1998, de forma violenta e em circunstâcias estranhas);
(viii) após ser libertado, inscreveu-se na Juventude Amilcar Cabral, onde esteve seis anos;
(ix) após deixar essa organização, acompanhou, como guia, durante dezoito anos, os técnicos do Centro de Conservação da Natureza (disse-me o nome de um deles, o dr. António Araújo);
(x) em 1998 foi incluído nas Forças Armadas da Guiné, ao lado de Ansumane Mané, como faz questão de frisar;
(xi) viveu na tabanca Sare Tuto, antiga base do PAIGC, na zona de Buba, aí casando com a guerrilheira Neura, beafada, e construíu, depois, uma tabanca, a que deu o nome de Lisboa, cujo actual chefe é Assume Cassamba, onde construíu um posto de recolha de água e um sistema de produção de sal; segundo ele, é ainda "consultor" (homem que faz coisas e apoia a população) dessa tabanca;
(xii) trabalha actualmente como guarda no Clube de Caça do Saltinho.
Outro percurso, como se vê.
A. Marques Lopes
PS - Disse-me o José Teixeira, após divulgação desta minha mensagem através de e-mail, que Sare Tuto é a tabanca Lisboa, nome mudado pelo Saliu Camará. E ele até tem fotografias dessa tabanca. A fundação a que o Camará se me referiu foi, pois, uma mudança de nome. Diz também o José Teixeira que ele é guia e pisteiro dos caçadores que vão ao Clube de Caça do Saltinho, e não guarda. Também o percebi mal. Fica a correcção.
_____________
Nota de L.G.:
(1) Por elementar precaucção (protecção das nossas fontes de informação e segurança das pessoas), perguntei ao António se podia publicar as (in)confidências sobre o Camará... "Haverá problemas de segurança ? O nosso blogue chega à Guiné, aos esbirros do Nino Vieira ?"...
Resposta pronta do nosso camarada:
Caro Luís:
Não me parece que haja problemas graves.
Primeiro, porque o Camará não tem papas na língua e conta isto que eu contei em frente de toda a gente, porque é um homem conceituado e querido junto das populações, sente-se seguro.
Segundo, porque muita gente ouvi na Guiné a dizer mal do Nino abertamente, sem peias, inclusive o jornal Gazeta, que se publica todos os dias em Bissau, trazia diariamente editorias altamente críticos ao Presidente, assinados por António Monteiro (o que muito me espantava), daí eu estar convencido que a situação não ficará como está durante muito tempo.
É talvez por isso que o Nino anda, actualmente, empenhado numa campanha de pacificação da sociedade guineense... E não me parece que os serviços de inteligência guineenses estejam tão avançados a ponto de vasculharem a Internet (...).
© José Teixeira (2005)
Guiné-Bissau > Saltinho > Abril de 2006 > Saliu Camará, beafada, um antigo paraquedista português, um sobrevivente nato...
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
1. Texto do A. Marques Lopes:
Já que se fala dos guineenses que estiveram ao lado da tropa portuguesa contra o PAIGC, vou contar-vos o que o Sadiu Camará, beafada, me contou a mim (1):
(i) tirou o curso de paraquedista em Tancos, 70/71, e regressou à Guiné na Comp.ª 122 do BCP;
(ii) com essa companhia participou em operações, fazendo especialmente de intérprete, participando, inclusive, em interrogatórios de prisioneiros; isto até ao 25 de Abril;
(iii) após esta data, fugiu de Bissau e foi para a zona de Fulacunda, embrenhando-se no mato durante seis meses, sobrevivendo com recurso à caça, raízes e frutos alimentícios;
(iv) durante esse período ajudou com as suas peças de caça as populações daquela zona, sendo aceite por eles;
(v) acabou por ser apanhado e esteve preso durante seis semanas: "levei muita porrada e passei muita fome", disse-me;
(vi) mataram vários que também estavam presos, mas a ele não o mataram porque tiveram em conta as ajudas por ele prestadas às populações;
(vii) perguntei-lhe, a propósito, quem é que tinha mandado fazer os fuzilamentos; disse-me, sem hesitações: "foi o Nino Vieira, que era comissário das Forças Armadas, o Gazela (comandante daquela zona, na altura, já falecido) e o Chico Té (nome de guerra de Francisco Mendes, morto em 1998, de forma violenta e em circunstâcias estranhas);
(viii) após ser libertado, inscreveu-se na Juventude Amilcar Cabral, onde esteve seis anos;
(ix) após deixar essa organização, acompanhou, como guia, durante dezoito anos, os técnicos do Centro de Conservação da Natureza (disse-me o nome de um deles, o dr. António Araújo);
(x) em 1998 foi incluído nas Forças Armadas da Guiné, ao lado de Ansumane Mané, como faz questão de frisar;
(xi) viveu na tabanca Sare Tuto, antiga base do PAIGC, na zona de Buba, aí casando com a guerrilheira Neura, beafada, e construíu, depois, uma tabanca, a que deu o nome de Lisboa, cujo actual chefe é Assume Cassamba, onde construíu um posto de recolha de água e um sistema de produção de sal; segundo ele, é ainda "consultor" (homem que faz coisas e apoia a população) dessa tabanca;
(xii) trabalha actualmente como guarda no Clube de Caça do Saltinho.
Outro percurso, como se vê.
A. Marques Lopes
PS - Disse-me o José Teixeira, após divulgação desta minha mensagem através de e-mail, que Sare Tuto é a tabanca Lisboa, nome mudado pelo Saliu Camará. E ele até tem fotografias dessa tabanca. A fundação a que o Camará se me referiu foi, pois, uma mudança de nome. Diz também o José Teixeira que ele é guia e pisteiro dos caçadores que vão ao Clube de Caça do Saltinho, e não guarda. Também o percebi mal. Fica a correcção.
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Nota de L.G.:
(1) Por elementar precaucção (protecção das nossas fontes de informação e segurança das pessoas), perguntei ao António se podia publicar as (in)confidências sobre o Camará... "Haverá problemas de segurança ? O nosso blogue chega à Guiné, aos esbirros do Nino Vieira ?"...
Resposta pronta do nosso camarada:
Caro Luís:
Não me parece que haja problemas graves.
Primeiro, porque o Camará não tem papas na língua e conta isto que eu contei em frente de toda a gente, porque é um homem conceituado e querido junto das populações, sente-se seguro.
Segundo, porque muita gente ouvi na Guiné a dizer mal do Nino abertamente, sem peias, inclusive o jornal Gazeta, que se publica todos os dias em Bissau, trazia diariamente editorias altamente críticos ao Presidente, assinados por António Monteiro (o que muito me espantava), daí eu estar convencido que a situação não ficará como está durante muito tempo.
É talvez por isso que o Nino anda, actualmente, empenhado numa campanha de pacificação da sociedade guineense... E não me parece que os serviços de inteligência guineenses estejam tão avançados a ponto de vasculharem a Internet (...).
Guiné 63/74 - P770: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )
Guiné > Fronteira sul com a Guiné-Conacri > CCAÇ 2317 (1968/69) > Posição, no mapa de Guileje, das nossas posições em Gandembel e Ponte Balana, nas margens esquerda e direita e do Rio Balana, abandonadas em menos de um ano (Abril de 1968-Março de 1969).
Texto do Idálio Reis (ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)
Caro Luís Graça:
Não me contive perante a catadupa de missivas que o fora-nada vai recebendo. Assim, surge esta segunda mensagem, a reiterar com o tempo.
O seu fundamento serve tão-só para também dar o singelo contributo de um ex-alferes miliciano, a quem lhe foi dado a conhecer essa Guiné profunda, e que hoje vai sendo divulgada tão bem pelos companheiros da Tertúlia.
A forma que utilizo, com anexações, torna-se-me mais fácil, pois permite colmatar falhas/gralhas na escrita.
Até breve. Um cordial abraço a todos os companheiros do blogue. Idálio Reis.
Companheiros da Tertúlia Luisiana:
Os contributos que convergem para o nosso blogue, jorram a uma cadência invulgar, tais são a frequência e a intensidade com que nos surgem, surpreendem e entusiasmam, que acaba por me impulsionar a não prorrogar em demasiado, um tempo quedado no mutismo, seguramente a postura menos atenciosa e cordial.
Já tive a oportunidade de visionar o imenso arquivo já disponível, ainda sem o atento grau de leitura que o mesmo justifica e merece, mas que me permite ter uma noção generalizada do que efectivamente ele representa, consubstanciado numa antologia de diferenciadas narrativas de acontecimentos, inúmeros, variados, vívidos, espectrais, dos que um dia alguém lhes determinou que compulsivamente demandassem rumo a uma parcela pátria do continente africano contígua ao Golfo da Guiné.
Apesar de tudo, constato com alguma nostalgia, que o conteúdo do blogue ainda apresenta uma brecha para colmatar, pois o período de comissão em que por aí (sobre)vivi, correspondente aos anos de 1968/69, não detém o acervo memorial que a Guiné teve então o triste ensejo de testemunhar.
Contudo, é-me justo salientar aqui, o papel relevante que o José Teixeira da CCAÇ 2381 vem assumindo, em que refere pormenorizadamente muito das suas vivências e que circunstancialmente apresentam uma certa forma de identificação comum à da minha Companhia, na sua contemporaneidade, nos lugares e trilhos, nas vicissitudes e anseios. Para ele, que envidou esforços para me encontrar, um carinho muito especial.
Ao assumir como lema «um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana» (1), faço-o num claro propósito de fazer incidir as estórias que me comprometi escrever, mormente sobre este local; narrar alguns factos e feitos ocorridos para que não caiam no olvido, remoçar memórias arquivadas nos recônditos do fundo de um baú pessoal muito especial, para que se sinta o que foi a disforme inequidade da guerra da Guiné profunda, tão punitiva e pesarosa para muitos de nós.
Passados tantos anos, torna-se-me particularmente difícil aceitar que os Poderes deste País em nada contribuíssem para não se deixar cair no esquecimento o que a guerra colonial representou para a nossa geração, porventura por causa da sofrida e pungente hecatombe da Guiné, a fim de eventualmente nos quedarmos no assumir de um imposto estado de condescendência, e deste conformismo nada reivindicar para nada poder alcançar.
Guiné > Bissau > Brá > 1965 > O General Schultz (à esquerda). Governador Geral da Guiné, o brigadeiro Schultz foi promovido a general em 5 de Setembro de 1965. Foi substituído por Spínola em Maio de 1968. A seu lado, o Capitão Nuno Rubim, hoje coronel.
© Virgínio Briote (2005)
No dealbar de 1968, havia já uma zona a Sul, de relativa amplitude e fronteiriça à Guiné de Sekou Touré, principal sustentáculo do PAIGC, que estava vedada ao controlo das NT. Tal não obstou a que se quisesse ousar implantar, no eixo do chamado corredor de Guileje, que até era conhecido pelo corredor da morte, e que amplamente se sabia ser uma das principais vias de passagem de víveres e de armamento das forças inimigas, um posto militar fixo com o fim de impedir ou limitar as suas acções a nível do território.
No [cerne] desta determinação, constata-se sem margem para grandes dúvidas que o acéfalo estado-maior de Arnaldo Schulz, já inteiramente grudado ao estrito reduto de Bissau, não continha minimamente qualquer plano estratégico estruturado e coerente para o acerado conflito militar que se aguçava e recrudescia com o delongar do tempo sem tempo.
O envio de tropa para uma zona de fulcral importância logística para o PAIGC, que já tinha conseguido impedir a deslocação de colunas no troço da picada entre Aldeia Formosa e Guileje, mostrar-se-ia um fracasso rotundo para as NT, desastroso, implacável, cruel, como infelizmente se viria a constatar pela perda infinda de militares, que estimo em números de uma vintena de mortos e meia centena de feridos.
Malfadada Fortuna para quem coube tão adverso e fatídico destino. Um BCAÇ (2835), passados dois meses após a sua chegada, é desmembrado e disperso pela Província, com a CCS a sediar-se em Nova Lamego e 2 Companhias a tomarem rumo ao Sul da Província. Uma permanecerá longo tempo em Guileje e a minha (a 2317) viria a ser deslocalizada para as imediações do rio Balana, mais ou menos à semi-distância entre Guileje e Aldeia Formosa, com a função de aí se radicar a fim de construir de raiz um aquartelamento [Gandembel e Ponte Balana], mesmo junto à picada de ligação.
A inserção de Gandembel/Ponte Balana obrigou a uma natural implementação das forças do PAIGC, inclusive com a permanência do bigrupo de Nino Vieira e de colaborantes cubanos. E como resultado óbvio desta movimentação, os aquartelamentos periféricos viriam a ser coagidos a tomar procedimentos de maior esforço e empenho na precaução e vigilância das suas tropas, causando-lhes um acentuado desgaste físico e moral. Atente-se à quantidade dos militares que foram raptados nesta época.
Julgo hoje que o General Spínola, que chegara em fins de Maio de 1968 e após tomar conhecimento in loco do que a Província lhe poderia dar a mostrar, apercebeu-se claramente da situação militar e social que se lhe deparava. Se as directrizes dimanadas do Poder Central eram determinadam pela manutenção a todo o custo das colónias, sem quaisquer excepções, então haveria que encetar uma estratégia diferente da que grassava, mas que paradoxalmente não poderia antever os seus resultados. Mas que resultados?
E uma das suas resoluções de maior impacto em finais desse ano, foi o de mandar fazer abandonar as posições de Gandembel e de Madina do Boé (com uma funestíssima retirada). Assim, a odisseia da minha Companhia por este rincão, que começara a 8 de Abril de 1968, finalizava a 28 de Janeiro de 1969.
Este consumptivo período de quase dez meses, que obriga a um conjunto de homens sitiados, a ter que sobrepujar todas as infindas contrariedades, em pleno palco de uma guerra de guerrilha sem tréguas, acaba por fenecer ante uma julgada impotência para contrariar o desaire.
Tantos momentos dramáticos que nos deixaram marcas profundas de sofrimento: de amargura e desalento, de raiva e dor, de mágoas e pesadelos, de medos e agonias. Tantas mazelas do corpo e da alma, para homens em florescimento, a desencadearem perturbações que nos vêm vindo a avassalar sem míngua no seu perpétuo movimento, até que o determinismo da Lei da vida nos liberte de tais sujeições.
Os tempos de Gandembel, muito em especial a sua primeira parte, são de uma violência pessoal inusitada, agressiva, estarrecedora, inumana (2):
(i) De um trabalho ingente e penoso a obrigar ter a G3 sempre à mão enquanto os braços labutavam na construção das casernas-abrigo;
(ii) corpos lassos em cima de furados colchões de campanha assentes na terra dormitando dentro de buracos desprotegidos;
(iii) alimentados por uma comida difícil de tragar, metida em marmitas saburrosas em que o arroz e os produtos desidratados preponderavam;
(iv) sem água de qualidade para nos saciar e bastante para remoção da sujidade do pó que se inculcava pela pele que se tisnava com o tempo;
(iv) sem nenhuma assistência médica;
(v) sem o apoio de qualquer população indígena;
(vi) sem qualquer iluminação exterior que visionasse uma sombra estranha no negrume das noites, e o mais odioso e duro, sem o merecimento de qualquer comiseração, fortemente estrugidos por uma quase constância dos mais variados estampidos em resultado de um ror imenso dos insidiosos ataques inimigos.
Parece-nos que só dispúnhamos de uma salvaguarda, que nos poderia acolher nos momentos mais transidos: porventura, a vinda de algum helicóptero, se para tal tivesse condições para momentaneamente aterrar.
Houve um ligeiro lenitivo nos últimos tempos, pois o modo de construção das casernas permitia-nos obter uma outra segurança, e uma maior disponibilidade da água contribuía para um melhor asseio. Contudo, tudo isto conjugado, é objectivamente muito pouco ou quase nada. Não poderei esconder que já neste período, as colunas de reabastecimento quase se quedaram, mesmo as provenientes de Aldeia Formosa.
Ficávamos à mercê de transportes por héli ou do arremesso das Dorniers em sobrevoo.
Pois do que prometia a força humana, algo sempre sobrava desta dedicação sacrificada e dolente, a fim de nos permitir resistir sem vacilações ou soçobros. É que a agudização em crescendo das agruras, compenetrava-nos para a gravidade da situação em confronto, em que reconhecíamos não haver lugar para consentir a mínima imprevidência ou tergiversação ao inimigo, pois que num qualquer instante poderia surgir a iminência de um surpreso confronto de proporções desmesuradas, que só uma indómita vontade, um acto mais corajoso ou a persistência do combate com maior denodo, os impediria de atingir alguns dos seus propósitos. Aclararei em mensagens sequentes muito destes insólitos acontecimentos.
Por isso, já comecei a identificar situações vividas e a indagar-lhes pormenores, para intentar coligir bastantes apontamentos a fim de poder escrever esta história de Gandembel/Ponte Balana, se para tanto não me faltar a requerida habilidade, e que este blogue acabe por ser um verdadeiro e real repositório do que o Luís Graça em tanto se tem empenhado.
Já que falei nessas duas datas, que representam em meu entendimento, a mais longa operação militar que se desenrolou naquele espaço de tempo, desejaria sublinhar o seguinte: de Guileje, a 8 de Abril de 1968 parte uma imensa coluna de reabastecimentos e de materiais de construção, com a protecção de uma Companhia – julgo que a própria CART 1613 - o companheiro José Neto poderá aqui dar-nos uma ajudam - , seguindo a picada em direcção a Norte, que viria já ao entardecer a estacionar junto ao corredor de Guileje [o mapa de Guileje de 1956, identifica bem o local]; a noite, passada debaixo das GMCs e dos Unimogs, foi aterrorizadora, com ataques quase contínuos de armas ligeiras e pesadas e de morteiros.
Talvez por este facto (!) e porque o acesso à água ficava relativamente longe, a coluna deslocou-se na madrugada seguinte mais para norte, sitiando-se então do lado esquerdo da picada, na margem esquerda do rio Balana e a cerca de 300/400 metros do seu leito. Estava escolhido o local para aí se construir o aquartelamento de Gandembel e depressa se abriu um caminho para diariamente se procurar água que o Balana pouco cedia na época seca.
A imagem anexa clarifica bem a localização de Gandembel e de Ponte Balana, com o caminho para o rio Balana e de ligação aos 2 postos. Ponte Balana era um pequeno fortim guardado a nível de um grupo de combate, a fim de viabilizar a defesa da ponte sobre o rio Balana, que foi necessário operacionalizar, dado que todos os pontões estavam destruídos.
Quanto ao dia 28 de Março de 1969, abandona-se um aquartelamento, deixando de pé apenas 8 casernas-abrigo e uma série de minas anti-pessoais de protecção envolvendo o arame farpado e um fortim mais junto ao rio Balana. Talvez que ainda tivessem sobrado fantasmas, as sombras que cada um à sua maneira lá deixou e que tantas vezes nos assolam.
A coluna fez-se até Aldeia Formosa sem quaisquer incidentes, nem mesmo em Changue-Iaia (um dos locais mais fatídicos desta longa odisseia).
Contudo, há um facto insólito a reter dessa noite. Já refeitos em Aldeia, em que Gandembel e Ponte Balana ficariam para sempre submergidos no breu da escuridade, ouvimos que esse desolado local fora violentamente flagelado. E nós, já longe da imprevisível consequência dos impactes, esboçámos um sorriso de pasmo e interrogámo-nos ante uma dúvida que jamais terá resposta: será que os guerrilheiros do PAIGC não quiseram saudar esta fuga, com uma salva à sua moda?!
___________
Nota de L.G.
(1) Vd. post 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
(2) Mesmo assim, havia lugar para o humor... Nos primeiros tempos da minha comissão, em Contuboel e depois em Bambadinca (CCAÇ 12, 1969/71), Gandembel era, com Madina do Boé, um dos lugares mais míticos e fantasmagóricos do sul... O hino de Gandembel (cuha autoria se desconhece) era cantarolado por nós, como se fosse uma espécie de talismã, mezinho ou ritual de exorcismo... Fico muito sensibilizado e agradecido ao Idálio pelo este testemunho que cala fundo na caserna dos tertulianos... Não pares de escrever, camarada! Deixa fluir as tuas memórias, como se fossem águas barrentas do Rio Balana, em plena época das chuvas. Se não fores tu, se não formos nós, os fantasmas que ainda pairam por Gandembel e Ponte Balana nunca não mais terem sossego... Vd post de Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel
Texto do Idálio Reis (ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)
Caro Luís Graça:
Não me contive perante a catadupa de missivas que o fora-nada vai recebendo. Assim, surge esta segunda mensagem, a reiterar com o tempo.
O seu fundamento serve tão-só para também dar o singelo contributo de um ex-alferes miliciano, a quem lhe foi dado a conhecer essa Guiné profunda, e que hoje vai sendo divulgada tão bem pelos companheiros da Tertúlia.
A forma que utilizo, com anexações, torna-se-me mais fácil, pois permite colmatar falhas/gralhas na escrita.
Até breve. Um cordial abraço a todos os companheiros do blogue. Idálio Reis.
Companheiros da Tertúlia Luisiana:
Os contributos que convergem para o nosso blogue, jorram a uma cadência invulgar, tais são a frequência e a intensidade com que nos surgem, surpreendem e entusiasmam, que acaba por me impulsionar a não prorrogar em demasiado, um tempo quedado no mutismo, seguramente a postura menos atenciosa e cordial.
Já tive a oportunidade de visionar o imenso arquivo já disponível, ainda sem o atento grau de leitura que o mesmo justifica e merece, mas que me permite ter uma noção generalizada do que efectivamente ele representa, consubstanciado numa antologia de diferenciadas narrativas de acontecimentos, inúmeros, variados, vívidos, espectrais, dos que um dia alguém lhes determinou que compulsivamente demandassem rumo a uma parcela pátria do continente africano contígua ao Golfo da Guiné.
Apesar de tudo, constato com alguma nostalgia, que o conteúdo do blogue ainda apresenta uma brecha para colmatar, pois o período de comissão em que por aí (sobre)vivi, correspondente aos anos de 1968/69, não detém o acervo memorial que a Guiné teve então o triste ensejo de testemunhar.
Contudo, é-me justo salientar aqui, o papel relevante que o José Teixeira da CCAÇ 2381 vem assumindo, em que refere pormenorizadamente muito das suas vivências e que circunstancialmente apresentam uma certa forma de identificação comum à da minha Companhia, na sua contemporaneidade, nos lugares e trilhos, nas vicissitudes e anseios. Para ele, que envidou esforços para me encontrar, um carinho muito especial.
Ao assumir como lema «um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana» (1), faço-o num claro propósito de fazer incidir as estórias que me comprometi escrever, mormente sobre este local; narrar alguns factos e feitos ocorridos para que não caiam no olvido, remoçar memórias arquivadas nos recônditos do fundo de um baú pessoal muito especial, para que se sinta o que foi a disforme inequidade da guerra da Guiné profunda, tão punitiva e pesarosa para muitos de nós.
Passados tantos anos, torna-se-me particularmente difícil aceitar que os Poderes deste País em nada contribuíssem para não se deixar cair no esquecimento o que a guerra colonial representou para a nossa geração, porventura por causa da sofrida e pungente hecatombe da Guiné, a fim de eventualmente nos quedarmos no assumir de um imposto estado de condescendência, e deste conformismo nada reivindicar para nada poder alcançar.
Guiné > Bissau > Brá > 1965 > O General Schultz (à esquerda). Governador Geral da Guiné, o brigadeiro Schultz foi promovido a general em 5 de Setembro de 1965. Foi substituído por Spínola em Maio de 1968. A seu lado, o Capitão Nuno Rubim, hoje coronel.
© Virgínio Briote (2005)
No dealbar de 1968, havia já uma zona a Sul, de relativa amplitude e fronteiriça à Guiné de Sekou Touré, principal sustentáculo do PAIGC, que estava vedada ao controlo das NT. Tal não obstou a que se quisesse ousar implantar, no eixo do chamado corredor de Guileje, que até era conhecido pelo corredor da morte, e que amplamente se sabia ser uma das principais vias de passagem de víveres e de armamento das forças inimigas, um posto militar fixo com o fim de impedir ou limitar as suas acções a nível do território.
No [cerne] desta determinação, constata-se sem margem para grandes dúvidas que o acéfalo estado-maior de Arnaldo Schulz, já inteiramente grudado ao estrito reduto de Bissau, não continha minimamente qualquer plano estratégico estruturado e coerente para o acerado conflito militar que se aguçava e recrudescia com o delongar do tempo sem tempo.
O envio de tropa para uma zona de fulcral importância logística para o PAIGC, que já tinha conseguido impedir a deslocação de colunas no troço da picada entre Aldeia Formosa e Guileje, mostrar-se-ia um fracasso rotundo para as NT, desastroso, implacável, cruel, como infelizmente se viria a constatar pela perda infinda de militares, que estimo em números de uma vintena de mortos e meia centena de feridos.
Malfadada Fortuna para quem coube tão adverso e fatídico destino. Um BCAÇ (2835), passados dois meses após a sua chegada, é desmembrado e disperso pela Província, com a CCS a sediar-se em Nova Lamego e 2 Companhias a tomarem rumo ao Sul da Província. Uma permanecerá longo tempo em Guileje e a minha (a 2317) viria a ser deslocalizada para as imediações do rio Balana, mais ou menos à semi-distância entre Guileje e Aldeia Formosa, com a função de aí se radicar a fim de construir de raiz um aquartelamento [Gandembel e Ponte Balana], mesmo junto à picada de ligação.
A inserção de Gandembel/Ponte Balana obrigou a uma natural implementação das forças do PAIGC, inclusive com a permanência do bigrupo de Nino Vieira e de colaborantes cubanos. E como resultado óbvio desta movimentação, os aquartelamentos periféricos viriam a ser coagidos a tomar procedimentos de maior esforço e empenho na precaução e vigilância das suas tropas, causando-lhes um acentuado desgaste físico e moral. Atente-se à quantidade dos militares que foram raptados nesta época.
Julgo hoje que o General Spínola, que chegara em fins de Maio de 1968 e após tomar conhecimento in loco do que a Província lhe poderia dar a mostrar, apercebeu-se claramente da situação militar e social que se lhe deparava. Se as directrizes dimanadas do Poder Central eram determinadam pela manutenção a todo o custo das colónias, sem quaisquer excepções, então haveria que encetar uma estratégia diferente da que grassava, mas que paradoxalmente não poderia antever os seus resultados. Mas que resultados?
E uma das suas resoluções de maior impacto em finais desse ano, foi o de mandar fazer abandonar as posições de Gandembel e de Madina do Boé (com uma funestíssima retirada). Assim, a odisseia da minha Companhia por este rincão, que começara a 8 de Abril de 1968, finalizava a 28 de Janeiro de 1969.
Este consumptivo período de quase dez meses, que obriga a um conjunto de homens sitiados, a ter que sobrepujar todas as infindas contrariedades, em pleno palco de uma guerra de guerrilha sem tréguas, acaba por fenecer ante uma julgada impotência para contrariar o desaire.
Tantos momentos dramáticos que nos deixaram marcas profundas de sofrimento: de amargura e desalento, de raiva e dor, de mágoas e pesadelos, de medos e agonias. Tantas mazelas do corpo e da alma, para homens em florescimento, a desencadearem perturbações que nos vêm vindo a avassalar sem míngua no seu perpétuo movimento, até que o determinismo da Lei da vida nos liberte de tais sujeições.
Os tempos de Gandembel, muito em especial a sua primeira parte, são de uma violência pessoal inusitada, agressiva, estarrecedora, inumana (2):
(i) De um trabalho ingente e penoso a obrigar ter a G3 sempre à mão enquanto os braços labutavam na construção das casernas-abrigo;
(ii) corpos lassos em cima de furados colchões de campanha assentes na terra dormitando dentro de buracos desprotegidos;
(iii) alimentados por uma comida difícil de tragar, metida em marmitas saburrosas em que o arroz e os produtos desidratados preponderavam;
(iv) sem água de qualidade para nos saciar e bastante para remoção da sujidade do pó que se inculcava pela pele que se tisnava com o tempo;
(iv) sem nenhuma assistência médica;
(v) sem o apoio de qualquer população indígena;
(vi) sem qualquer iluminação exterior que visionasse uma sombra estranha no negrume das noites, e o mais odioso e duro, sem o merecimento de qualquer comiseração, fortemente estrugidos por uma quase constância dos mais variados estampidos em resultado de um ror imenso dos insidiosos ataques inimigos.
Parece-nos que só dispúnhamos de uma salvaguarda, que nos poderia acolher nos momentos mais transidos: porventura, a vinda de algum helicóptero, se para tal tivesse condições para momentaneamente aterrar.
Houve um ligeiro lenitivo nos últimos tempos, pois o modo de construção das casernas permitia-nos obter uma outra segurança, e uma maior disponibilidade da água contribuía para um melhor asseio. Contudo, tudo isto conjugado, é objectivamente muito pouco ou quase nada. Não poderei esconder que já neste período, as colunas de reabastecimento quase se quedaram, mesmo as provenientes de Aldeia Formosa.
Ficávamos à mercê de transportes por héli ou do arremesso das Dorniers em sobrevoo.
Pois do que prometia a força humana, algo sempre sobrava desta dedicação sacrificada e dolente, a fim de nos permitir resistir sem vacilações ou soçobros. É que a agudização em crescendo das agruras, compenetrava-nos para a gravidade da situação em confronto, em que reconhecíamos não haver lugar para consentir a mínima imprevidência ou tergiversação ao inimigo, pois que num qualquer instante poderia surgir a iminência de um surpreso confronto de proporções desmesuradas, que só uma indómita vontade, um acto mais corajoso ou a persistência do combate com maior denodo, os impediria de atingir alguns dos seus propósitos. Aclararei em mensagens sequentes muito destes insólitos acontecimentos.
Por isso, já comecei a identificar situações vividas e a indagar-lhes pormenores, para intentar coligir bastantes apontamentos a fim de poder escrever esta história de Gandembel/Ponte Balana, se para tanto não me faltar a requerida habilidade, e que este blogue acabe por ser um verdadeiro e real repositório do que o Luís Graça em tanto se tem empenhado.
Já que falei nessas duas datas, que representam em meu entendimento, a mais longa operação militar que se desenrolou naquele espaço de tempo, desejaria sublinhar o seguinte: de Guileje, a 8 de Abril de 1968 parte uma imensa coluna de reabastecimentos e de materiais de construção, com a protecção de uma Companhia – julgo que a própria CART 1613 - o companheiro José Neto poderá aqui dar-nos uma ajudam - , seguindo a picada em direcção a Norte, que viria já ao entardecer a estacionar junto ao corredor de Guileje [o mapa de Guileje de 1956, identifica bem o local]; a noite, passada debaixo das GMCs e dos Unimogs, foi aterrorizadora, com ataques quase contínuos de armas ligeiras e pesadas e de morteiros.
Talvez por este facto (!) e porque o acesso à água ficava relativamente longe, a coluna deslocou-se na madrugada seguinte mais para norte, sitiando-se então do lado esquerdo da picada, na margem esquerda do rio Balana e a cerca de 300/400 metros do seu leito. Estava escolhido o local para aí se construir o aquartelamento de Gandembel e depressa se abriu um caminho para diariamente se procurar água que o Balana pouco cedia na época seca.
A imagem anexa clarifica bem a localização de Gandembel e de Ponte Balana, com o caminho para o rio Balana e de ligação aos 2 postos. Ponte Balana era um pequeno fortim guardado a nível de um grupo de combate, a fim de viabilizar a defesa da ponte sobre o rio Balana, que foi necessário operacionalizar, dado que todos os pontões estavam destruídos.
Quanto ao dia 28 de Março de 1969, abandona-se um aquartelamento, deixando de pé apenas 8 casernas-abrigo e uma série de minas anti-pessoais de protecção envolvendo o arame farpado e um fortim mais junto ao rio Balana. Talvez que ainda tivessem sobrado fantasmas, as sombras que cada um à sua maneira lá deixou e que tantas vezes nos assolam.
A coluna fez-se até Aldeia Formosa sem quaisquer incidentes, nem mesmo em Changue-Iaia (um dos locais mais fatídicos desta longa odisseia).
Contudo, há um facto insólito a reter dessa noite. Já refeitos em Aldeia, em que Gandembel e Ponte Balana ficariam para sempre submergidos no breu da escuridade, ouvimos que esse desolado local fora violentamente flagelado. E nós, já longe da imprevisível consequência dos impactes, esboçámos um sorriso de pasmo e interrogámo-nos ante uma dúvida que jamais terá resposta: será que os guerrilheiros do PAIGC não quiseram saudar esta fuga, com uma salva à sua moda?!
___________
Nota de L.G.
(1) Vd. post 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
(2) Mesmo assim, havia lugar para o humor... Nos primeiros tempos da minha comissão, em Contuboel e depois em Bambadinca (CCAÇ 12, 1969/71), Gandembel era, com Madina do Boé, um dos lugares mais míticos e fantasmagóricos do sul... O hino de Gandembel (cuha autoria se desconhece) era cantarolado por nós, como se fosse uma espécie de talismã, mezinho ou ritual de exorcismo... Fico muito sensibilizado e agradecido ao Idálio pelo este testemunho que cala fundo na caserna dos tertulianos... Não pares de escrever, camarada! Deixa fluir as tuas memórias, como se fossem águas barrentas do Rio Balana, em plena época das chuvas. Se não fores tu, se não formos nós, os fantasmas que ainda pairam por Gandembel e Ponte Balana nunca não mais terem sossego... Vd post de Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel
Guiné 63/74 - P769: O batalhão do 'corredor da morte' (Nuno Rubim)
Pendurado no blogue, em lista de espera, já com mais de duas semanas, tenho aqui uma mensagem do Coronel Nuno Rubim, que me chegou por e-mail do Virgínio Briote. A questão então levantada (tentativa de fixar um batalhão no 'corredor da morte' entre Gambembel e Guileje, ainda no tempo do Arnaldo Schultz) acaba por ser respondida no post a seguir, assinado pelo Idálio Reis.
L.G.
Caro Luís,
O Cor Nuno Rubim mandou-me uma mensagem que transcrevo:
"Uma das questões que para mim constituiu sempre um mistério foi a tentativa de se instalar um Batalhão no corredor de Guileje, em Gadembel, já depois de eu ter regressado ao puto. Julgo que esse projecto ainda se iniciou, mas terá sido de curta duração.
"No site do Dr. Luis Graça encontrei uma pequena referência a essa questão e enviei um email, que não teve resposta, para o endereço aí indicado.
Tem conhecimento do caso ?"
Recebeste a mensagem do Cor Rubim?
Bom regresso de férias.
Um abraço,
vb
L.G.
Caro Luís,
O Cor Nuno Rubim mandou-me uma mensagem que transcrevo:
"Uma das questões que para mim constituiu sempre um mistério foi a tentativa de se instalar um Batalhão no corredor de Guileje, em Gadembel, já depois de eu ter regressado ao puto. Julgo que esse projecto ainda se iniciou, mas terá sido de curta duração.
"No site do Dr. Luis Graça encontrei uma pequena referência a essa questão e enviei um email, que não teve resposta, para o endereço aí indicado.
Tem conhecimento do caso ?"
Recebeste a mensagem do Cor Rubim?
Bom regresso de férias.
Um abraço,
vb
quarta-feira, 17 de maio de 2006
Guiné 63/74 - P768: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)
Guiné > Cartaz de proganda do Exército Português > Nós, os nossos e os outros... Foto: © A. Marques Lopes (2005)
Texto do João Tunes:
Camaradas Luís, Jorge e restantes tertulianos,
Só posso agradecer a oportunidade de poder ter lido o texto sereno, culto e frontal do nosso camarada Jorge Cabral.
O texto do camarada Jorge levanta umas quantas questões que me atrevo a comentar. Mais para conversar que para contrariar. E, se licença me é dada, aqui vai disto. Com toda a consideração para com o camarada Jorge, restantes tertulianos, sem meter em gaveta o meu modo próprio de pensar e que, humildemente, sujeito ao contraditório.
O camarada Jorge coloca, entre várias, uma questão interessantíssima vivida pela experiência convivial de todos nós, onde quer que tenhamos estado a cumprir o serviço militar no exército colonial. Refiro-me ao tribalismo versus consciência nacional na formação do povo da Guiné-Bissau.
Sabe-se que este processo, como demonstra ainda a experiência após-guerra, é longo por natureza, sobretudo pela altíssima concentração de etnias diferentes e muitas delas rivais num espaço delimitado pelas potências coloniais (provavelmente, se a Guiné-Bissau sobrou para Portugal, isso se deve à desvalorização que a França atribuiu àquele problemático e pobre pedaço).
Por outro lado, a potência ocupante (Portugal), acelerou o processo de unificação diferenciada (os fulas mantiveram-se na supremacia de aliados) para integrar a categoria de Província Ultramarina, evoluindo assim da anterior concepção colonial tout-court de conquista e ocupação e que gerou, na estratégia de alianças, a tradição da cooperação militar e repressiva portugueses-fulas. E o proteccionismo colonial-ultramarino sempre manifestado para com os fulas foi mitigado para retirar argumentos de mobilização, via rivalidade étnica, ao PAIGC que, enquadrado sobretudo por caboverdianos, tiveram os balantas como seu suporte principal de revolta. E um aspecto do nivelamento étnico próprio do colonialismo da fase da guerra, sobretudo exercitado por Spínola e pelos Chefes da PIDE, centrou-se na exploração do factor de máxima divisão comum, ou seja, contrapor o bom povo da Guiné, o da Guiné Melhor, ao mando caboverdiano instalado no PAIGC.
E isto, esta unificação perante um inimigo comum que ameaçava a supremacia de portugueses, fulas, balantas, mandingas, etc, julgo, foi o melhor que o colonialismo português, na fase da guerra colonial, conseguiu, incluindo o assassinato de Amílcar Cabral. Nunca mais que isto, como todos observámos nos vários chãos onde estivemos no terreno. E a estratégia militar portuguesa, evoluindo a partir da aliança exclusivista pró-fula, exprimiu-se na separação estanque entre os chãos das diversas etnias, delimitando áreas de conflito, concorrência e rivalidades. Que, do ponto de vista da ocupação militar, não foi, reconheça-se, obra pequena. O grosso do problema da construção, naquele mosaico étnico, de uma consciência nacional, sobrou sempre, para o PAIGC. Difícil, sempre a desafiar o impossível, como ainda hoje constatamos. Sobretudo problemática quando a autoridade do Estado se corrói e se gasta no cancro das suas impotências e atavismos de regressão tribalista.
Cada um de nós, na sua quadrícula, no seu chão, vivemos essa experiência de salamização da Guiné. Uns com fulas, outros com mandingas, outros com manjacos, outros com balantas, por aí fora. Talvez parecendo, na nossa percepção vivida, que os guineenses eram uma totalidade da etnia das tabancas em que servimos militarmente, a que nos calhou como companhia.
E foi nesse contacto, um contacto parcialíssimo pela natureza multi-étnica da Guiné, em que encontrámos os nossos amigos e camaradas guineenses que connosco apostaram, de vontade, à força ou por necessidade, no serviço pelo Exército Colonial, pela parte do ocupante. E, inevitável, a camaradagem do mesmo lado da barricada numa guerra, seja ela qual for, gera afectos e solidariedade. Como não entender isto?
No entanto, nada do que se reconhece, e tão respeitável que é, não diminui a base o problema: fomos ocupantes e tivemos, no terreno, colaboradores na ocupação. E muitos, quase todos, saímos da Guiné com o afecto que se reparte com os amigos. Os daqui e os de lá.
Feita a leitura simétrica, do ponto de vista do PAIGC, pode-se iludir que a leitura sobre o comportamento dos nossos amigos tivesse de ser forçosamente a oposta à nossa? Ao fim e ao cabo, não admitimos sequer que o indigno, reprovável, inaceitável, tratamento dado pelo PAIGC aos nossos amigos, sobretudo os vergonhosos fuzilamentos no após-independência, não foi assim tão diferente (terá mesmo sido pior?) do tratamento que aplicámos, quando fomos metralha e lei, durante a ocupação militar colonial, pelas nossas Forças Armadas e pela PIDE, aos capturados nas hostes do PAIGC e populações por eles controladas - ou se passavam para nós, mudando de campo, ou eram torturados, aprisionados e muitas vezes assassinados.
Porque não se lhes reconhecia causa e qualidade de militar inimigo, eles eram os turras, apenas turras, por isso marginais à aplicação da Convenção de Genebra. E todas as inflamadas celebrações que agora oiço à nossa histórica aversão e abolição da pena de morte, ao fuzilamento sem julgamento, ao acto em si de matar, faltaram, faltaram-nos, no momento talvez mais certo por ser o mais pedagógico e de legado civilizacional - terem sido feitas, essas mesmas celebrações, quando capturámos turras, lhes chegámos a roupa ao pelo ou, na maior parte das vezes, os entregámos aos esbirros da PIDE e à sua sanha assassina.
Mas, nessa altura, tínhamos o diáfano manto que nos cobria por sermos nós a autoridade. E o mando, sobretudo quando exercido por mão militar, não conjuga bem com o sentido de justiça e do património civilizacional? É mesmo. Pois é, ontem como depois. Ontem, os do PAIGC eram os outros. Hoje, continuam sendo nossos, os que de nos fizemos amigos no convívio e na camaradagem forjadas a combater os outros. E só nos pode indignar que os outros tenham sido patifes com os nossos. Ainda a diferença entre os nossos e os outros?
Emoção respeitável esta, mas emoção. A razão, ainda distante, talvez faça, um dia, o resto - o que falta para o equilíbrio da apreciação histórica, entendendo, então, porque estivemos ali e o que fizemos ali. E, sobretudo, porque nos custa tanto de lá sair, ou seja, tirar do aperto ao pescoço os nós dos laços das circunstâncias e das marcas da nossa juventude gasta lá, entre bolanhas e tabancas.
E hoje, velhos ou para lá caminhando, a saudade aperta, das terras e das gentes, sobretudo dos amigos, principalmente dos amigos distantes, ficando com a lágrima mais fácil, mas nem sempre a mais justa na sua repartição equilibrada pelos caminhos da memória. Lá chegaremos, confio eu. Senão, alguém lá irá ter (por nós).
Abraços amigos para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes
Guiné 63/74 - P767: Pedido do João Carvalho, o nosso wikipedista
Guiné > Canjadude > 1974 > O furriel miliciano enfermeiro Carvalho, da CCAÇ 5, com um guerrilheiro do PAIGC, equipado a rigor e empunhando a mítica espingarda-metralhadora Kalash...
© João Carvalho (2006)
Amigos e camaradas
Venho solicitar, se mo permitirem, que me dêem uma ajuda em informações, para que as possa divulgar na Wikipédia. É uma forma de divulgar a verdade, que muitos querem ocultar ou ignorar.
Trata-se da listagem das batalhas ou operações efectuadas durante a Guerra Colonial.
Se, além do nome da batalha ou operação, me poderem fornecer uma pequena descrição do acontecimento, eu agradeço.
Claro que se alguém desejar colocar na Wikipédia a informação em vez de ma transmitir, sinta-se completamente livre para isso. Todos os colaboradores são bem vindos.
Para facilitar junto o endereço da página que precisa ser acrescentada: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_batalhas_de_Portugal
Quem desejar introduzir o seu próprio texto na Wikipedia e tiver alguma dúvida de como se faz, pode contatar-me por e-mail, por MSN (mesmo endereço do email) ou na minha página da Wikipedia
Agradeço antecipadamente aos camaradas.
João Carvalho
Ex-furriel miliciano enfermeiro
(CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos, Canjadude, 1972/74)
Foto: © João Carvalho (2006)
© João Carvalho (2006)
Amigos e camaradas
Venho solicitar, se mo permitirem, que me dêem uma ajuda em informações, para que as possa divulgar na Wikipédia. É uma forma de divulgar a verdade, que muitos querem ocultar ou ignorar.
Trata-se da listagem das batalhas ou operações efectuadas durante a Guerra Colonial.
Se, além do nome da batalha ou operação, me poderem fornecer uma pequena descrição do acontecimento, eu agradeço.
Claro que se alguém desejar colocar na Wikipédia a informação em vez de ma transmitir, sinta-se completamente livre para isso. Todos os colaboradores são bem vindos.
Para facilitar junto o endereço da página que precisa ser acrescentada: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_batalhas_de_Portugal
Quem desejar introduzir o seu próprio texto na Wikipedia e tiver alguma dúvida de como se faz, pode contatar-me por e-mail, por MSN (mesmo endereço do email) ou na minha página da Wikipedia
Agradeço antecipadamente aos camaradas.
João Carvalho
Ex-furriel miliciano enfermeiro
(CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos, Canjadude, 1972/74)
Foto: © João Carvalho (2006)
Guiné 63/74 - P766: A contagem do tempo de tropa (António Duarte)
Texto do António Duarte, em complemento de uma mensagem anterior e em resposta a um pergunta do Manuel Cruz sobre a contagem do tempo de serviço militar para efeitos de protecção social (reforma, complemento de pensão, etc.) (1)
(Comentário de L.G.: Penso que este não é o fórum indicado para discutir os nossos problemas corporativos ou socioprofissionais, resultantes de ou relacionados com a nossa condição de ex-combantentes da guerra colonial ou do ultramar, como queiram - já não sei qual das expressões é a politicamente correcta, hoje e agora...
Em todo o caso, eu não posso nem quero impedir que, esporadicamente - e não por sistema - sejam aqui apresentados e até debatidos temas como a ajuda médica e psicoterapéutica nos casos de stresse pós-traumático de guerra ou a contagem do tempo de tropa para efeitos de reforma ou aposentação... De resto, o pessoal da caserna é quem mais ordena...Por outro lado, esta informação interessa a quase toda a gente da nossa tertúlia, com excepção dos paisanos... L.G.)
Quanto à segunda nota é de ordem prática e destina-se a responder ao Manuel Cruz, meu ex-comandante de companhia na CART 3493.
A questão da contagem de tempo para reforma dos ex-combatentes, foi uma fraude para ganhar votos. (Peço desculpa de roçar a política, mas não há volta a dar).
A legislação inicial previa a contagem do tempo de serviço militar, sendo o tempo prestado em cenários de risco ponderada a 200% (caso da Guiné), o que implicaria que a esmagadora maioria de nós teria direito a uma contagem de 5 a 5 anos e meio de tempo a contar para a reforma.
Posteriormente houve outro entendimento perfeitamente demagógico, que é o que está a ser aplicado. Quem neste momento está reformado e foi combatente recebe uma anuidade (disse bem, anuidade), à volta de € 300 a € 350. Para o efeito foram vendidas umas instalações militares com o intuito de aplicar o resultado dessa venda num fundo de pensões, destinado a suportar os pagamentos que entretanto começaram a ser pagos.
Acontece porém que o actual Ministro da Defesa já foi ao Parlamento dar nota que o fundo chegou ao fim, pois não há mais dinheiro e que importa alterar a legislação, pelo que, e segundo as últimas informações que obtive, o esquema de pagamento vai ser alterado, deixando de ser universal e só será pago a quem tenha muitas dificuldades financeiras. (De facto é uma esmola e as esmolas servem para os ricos ganharem o Céu...)
Em síntese, quem já trabalhava antes de ser incorporado, terá o seu tempo de tropa considerado mas em singelo, sem o de guerra ponderado por factores superiores a 1. Os restantes não terão direito a nada.
Ressalvo contudo que há regimes privados, como o dos Bancários que consideram o tempo todo, inclusivamente o de guerra multiplicado pelo ponderador, que poderá ser inferior a 200% (zonas de Angola, Moçambique, etc.). No entanto o ex-combatente terá de pagar, para o Fundo de Pensões associado ao Banco em causa, as importâncias que o actuário determinar, em função do salário actual e esperança média de vida do ex-combatente.
Quem quiser pode consultar os serviços citados pelo Manuel Cruz, que funcionam ainda na R. Braamcamp, junto ao Rato, em Lisboa, mas que nada dizem de concreto, limitando-se a explicar que há desentendimento entre diferentes Ministérios. O da Segurança Social só poderá considerar o tempo se foram constituídas as provisões e o da Defesa que deveria pagar, está teso.
Entretanto face ao que vai chegar na reforma da segurança social, penso que não vale a pena ter-se expectativas...
E por hoje deixo-vos com um abraço de camaradagem,
António Duarte
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXL : Regressei bem e sem traumas (Manuel Cruz, CCAÇ 3493)
(...) "Creio que nesta matéria [contagem dos erviço militar] haverá muitas dúvidas em alguns de nós. Como estamos? No meu, no teu caso e noutros?
"Por exemplo, eu não consigo respostas do Ministério, a várias questões mesmo utilizando os meios que o Ministério da Defesa Nacional coloca ao dispor via-mail. Também existe um balcão oficial na Rua Braancamp, 90, em Lisboa, que presta esclarecimentos, mas ainda não visitei.
"Afinal, do tempo do Ultramar sempre temos os 100% de bónus em tempo ou em euros ? Algum de vós tem respostas a estas matérias?" (...)
(Comentário de L.G.: Penso que este não é o fórum indicado para discutir os nossos problemas corporativos ou socioprofissionais, resultantes de ou relacionados com a nossa condição de ex-combantentes da guerra colonial ou do ultramar, como queiram - já não sei qual das expressões é a politicamente correcta, hoje e agora...
Em todo o caso, eu não posso nem quero impedir que, esporadicamente - e não por sistema - sejam aqui apresentados e até debatidos temas como a ajuda médica e psicoterapéutica nos casos de stresse pós-traumático de guerra ou a contagem do tempo de tropa para efeitos de reforma ou aposentação... De resto, o pessoal da caserna é quem mais ordena...Por outro lado, esta informação interessa a quase toda a gente da nossa tertúlia, com excepção dos paisanos... L.G.)
Quanto à segunda nota é de ordem prática e destina-se a responder ao Manuel Cruz, meu ex-comandante de companhia na CART 3493.
A questão da contagem de tempo para reforma dos ex-combatentes, foi uma fraude para ganhar votos. (Peço desculpa de roçar a política, mas não há volta a dar).
A legislação inicial previa a contagem do tempo de serviço militar, sendo o tempo prestado em cenários de risco ponderada a 200% (caso da Guiné), o que implicaria que a esmagadora maioria de nós teria direito a uma contagem de 5 a 5 anos e meio de tempo a contar para a reforma.
Posteriormente houve outro entendimento perfeitamente demagógico, que é o que está a ser aplicado. Quem neste momento está reformado e foi combatente recebe uma anuidade (disse bem, anuidade), à volta de € 300 a € 350. Para o efeito foram vendidas umas instalações militares com o intuito de aplicar o resultado dessa venda num fundo de pensões, destinado a suportar os pagamentos que entretanto começaram a ser pagos.
Acontece porém que o actual Ministro da Defesa já foi ao Parlamento dar nota que o fundo chegou ao fim, pois não há mais dinheiro e que importa alterar a legislação, pelo que, e segundo as últimas informações que obtive, o esquema de pagamento vai ser alterado, deixando de ser universal e só será pago a quem tenha muitas dificuldades financeiras. (De facto é uma esmola e as esmolas servem para os ricos ganharem o Céu...)
Em síntese, quem já trabalhava antes de ser incorporado, terá o seu tempo de tropa considerado mas em singelo, sem o de guerra ponderado por factores superiores a 1. Os restantes não terão direito a nada.
Ressalvo contudo que há regimes privados, como o dos Bancários que consideram o tempo todo, inclusivamente o de guerra multiplicado pelo ponderador, que poderá ser inferior a 200% (zonas de Angola, Moçambique, etc.). No entanto o ex-combatente terá de pagar, para o Fundo de Pensões associado ao Banco em causa, as importâncias que o actuário determinar, em função do salário actual e esperança média de vida do ex-combatente.
Quem quiser pode consultar os serviços citados pelo Manuel Cruz, que funcionam ainda na R. Braamcamp, junto ao Rato, em Lisboa, mas que nada dizem de concreto, limitando-se a explicar que há desentendimento entre diferentes Ministérios. O da Segurança Social só poderá considerar o tempo se foram constituídas as provisões e o da Defesa que deveria pagar, está teso.
Entretanto face ao que vai chegar na reforma da segurança social, penso que não vale a pena ter-se expectativas...
E por hoje deixo-vos com um abraço de camaradagem,
António Duarte
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXL : Regressei bem e sem traumas (Manuel Cruz, CCAÇ 3493)
(...) "Creio que nesta matéria [contagem dos erviço militar] haverá muitas dúvidas em alguns de nós. Como estamos? No meu, no teu caso e noutros?
"Por exemplo, eu não consigo respostas do Ministério, a várias questões mesmo utilizando os meios que o Ministério da Defesa Nacional coloca ao dispor via-mail. Também existe um balcão oficial na Rua Braancamp, 90, em Lisboa, que presta esclarecimentos, mas ainda não visitei.
"Afinal, do tempo do Ultramar sempre temos os 100% de bónus em tempo ou em euros ? Algum de vós tem respostas a estas matérias?" (...)
Guiné 63/74 - P765: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira)
Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 > O Furriel de Operações Especiais Ribeiro, da CCS do BCAÇ 4612, recolhe a bandeira verde-rubra, na presença de representantes do PAIGC (incluindo a viúva de Amílcar Cabral) e de autoridades militares do CTIG. Seis anos anos, o Alf Mil Capelão Oliveira fazia uma curta passagem por Mansoa, antes de ser expulso do exército, em Março de 1968.
Foto: © Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Texto do Mário de Oliveira, em resposta a um convite meu para integrar a nossa tertúlia... E, a propósito, seria escusado lembrar que na nossa tertúlia ninguém censura ninguém... Podemos (e devemos, quando for caso disso) discordar, saudavelmente, uns dos outros, mas por princípio não fazemos juízos de valor, julgamentos, públicos (e sumários), e muito menos insultos... por que isso iria coortar a nossa capacidade de reconstruir o puzzle da nossa memória (individual e colectiva) da guerra, estancar os nossos fluxos, perturbar os nossos sentimentos de pertença, pôr em causa as comunalidades das nossas vivências... Tal não significa ignorar, escamotear ou esconder as diferenças que existiram, existem e existirão entre cada de um nós!...
Em suma, somos, ou esforçamos por ser, a mais plural das casernas de todas as tropas do mundo... Aqui, a haver uma regra de proibição, é a seguinte: só é proibido proibir... E o tratamento por tu, meu caro Mário, é fortemente desejável ou tendencialmente recomendável: de facto, não dá grande jeito tratar um camarada por você... Dito isto, sê bem vindo, camarada! (LG)
Meu caro Luís:
Aqui estou a responder à sua provocação. Com alegria e paz.
Foi na Guiné que os meus olhos mais se abriram. E que iniciei o meu êxodo para a Liberdade e para a Dignidade. Quem alguma vez vai a África como ser humano, nunca mais será a mesma pessoa. E que dizer então de quem foi a África para participar numa guerra contra o seu Povo?
Tomo a liberdade de partilhar com os camaradas que visitam este site e nele participam com os seus pontos de vista, o texto que escrevi sobre uma aula que, há poucos anos, fui convidado a dar sobre a guerra colonial. O texto já está publicado no meu livro Ouviste o que foi dito aos antigos. Eu, porém, digo-vos, editado pela Campo das Letras, Porto [2004]. Com ele, partilho também o meu afecto e o abraço com todos os camaradas.
Vosso, sempre
Mário
Uma aula sobre a guerra colonial que foi um escândalo
Foi um escândalo a aula que, numa certa noite, fui partilhar sobre a guerra colonial, na Universidade Popular do Porto. Convidado expressamente pelo responsável do curso, o camarada de profissão, Jorge Ribeiro, do "JN", em vez de me limitar a fazer uma viagem ao passado, tentei trazer a guerra colonial para os nossos dias.
As perguntas que formulei, as questões que levantei, rasgaram inevitável debate. Que poderia ter sido mais saudável, se os participantes no curso, mulheres e homens, mais homens do que mulheres, tivessem tido espírito de abertura e de tolerância. Assim não aconteceu. E houve quem se escandalizasse com as minhas posições e até estranhasse que eu, depois de dizer o que disse, continue a assumir-me publicamente como padre católico da Igreja que está no Porto. Felizmente, ninguém saiu da sala, enquanto partilhei os meus pontos de vista, previamente escritos. Mas não faltou quem, já em pleno debate, tivesse dito que teve vontade de o fazer. Um dos presentes chegou mesmo a dizer que, embora não concordasse com os meus pontos de vista sobre o tema, pelo menos admirava a minha coragem física e moral.
É o texto integral dessa polémica aula, que aqui apresento de seguida. Leiam e reflictam. Discutam. Até para ver se todos aqueles que, um dia, fizeram a guerra colonial, ousam, agora, olhar para ela de frente, a fim de se desencadear no país um generalizado processo de consciencialização e de libertação do nosso povo. De contrário, continuaremos prisioneiros de medos e de mitos que nos levam a obediências acríticas e irracionais, como aquela que, com o apoio da senhora de Fátima e da hierarquia católica, a generalidade do país protagonizou, não só durante os 13 anos que a guerra colonial durou, mas também durante os quase 50 anos do regime ditatorial e fascista de Salazar!
Felizmente, houve o 25 de Abril de 1974 que pôs fim a 13 anos de guerra colonial. E nos reconciliou connosco próprios e com os povos do mundo, particularmente, com os povos africanos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
Mas ainda está para aparecer quem explique, suficientemente, como é que nós, um povo tendencialmente acolhedor e fraterno, ecuménico e tolerante, consentimos que nos envolvessem numa guerra colonial, em três frentes, para mais, contra povos que nunca nos tinham feito mal, que nunca nos provocaram e a quem nós, até, durante cerca de 500 anos, impunemente colonizámos, explorámos, infantilizámos, oprimimos. Como é que, depois de tudo isto, ainda nos metemos numa guerra contra eles?
Seria salutar tentarmos, todos estes anos depois e no fecundo clima da liberdade que Abril nos proporcionou, reflectir este problema, a fim de tirarmos alguma lição da guerra, em ordem a tornarmo-nos um povo mais amadurecido, mais autónomo, mais liberto, por isso, menos sujeito a ser instrumentalizado por minorias espertalhonas que sempre as há em todos os povos. E às quais convém, activamente, resistir, sempre que os interesses delas não são os das maiorias – se calhar, nunca são! – nem são os do povo de que essas minorias fazem parte.
Durante 13 longos anos, entre 1961 e 1974, aceitámos, sem revolta de maior, que os nossos filhos, na força da vida, fossem para África, lá longe, noutro continente, de armas na mão, para fazer a guerra a povos que não conhecíamos e que apenas reclamavam o direito à autonomia e independência!
Em lugar de acolhermos e satisfazermos esta legítima aspiração – outros povos, antes de nós, já o tinham feito! – aceitámos que os nossos filhos deixassem a casa, a família, interrompessem os seus sonhos e fossem combater esses povos.
Muitos encontraram lá a morte antes de tempo. Muitos outros vieram de lá gravemente feridos no corpo e na alma. E, ainda hoje, muitos milhares deles, arrastam-se por aí sobrecarregados com o estresse da guerra, sem que o Estado português, às ordens de quem todos eles se alistaram para esse feito de lesa-humanidade, se mostre, hoje, razoavelmente sensível e disposto a assumir as suas responsabilidades até ao fim.
Como se explica que tenhamos embarcado nessa aventura? Como se explica que não nos tivéssemos revoltado e resistido? Como se explica que não nos tivéssemos erguido, como um só homem, uma só mulher, contra quem, sem nos consultar, ousou dar-nos uma ordem – Para Angola, rapidamente e em força ? Como obedecemos tão cegamente, tão ordeiramente? Por que não nos opusemos? Por que não fizemos, colectivamente, o famoso manguito, tão característico do chamado Zé Povinho português? Por que nos submetemos e logo nos dispusemos a entregar os nossos filhos, os nossos maridos, os nossos pais, a esse Moloch devorador de sangue humano e de riqueza, que é a guerra, toda a guerra?
E por que é que, todos estes anos depois, continuamos tão conformados com as trágicas consequências da guerra? Por que não fazemos parar o país, para exigirmos que, concretamente, as dezenas de milhar de vítimas do estresse da guerra colonial sejam tratados como gente, sejam tratados com equidade e justiça? Por que consentimos, tão facilmente, que o Estado português continue a ser um estado prepotente, sobranceiro, irresponsável? Por que permitimos que ele nos trate com tanta sobranceria e tanto desprezo?
Não esperais, certamente, que vos traga respostas acabadas para todas estas perguntas, para todas estas questões. De resto, nem é esse o tema desta nossa conversa, esta noite.
Ainda assim, gostaria de partilhar convosco alguma luz e projectá-la sobre estas questões que levantei. É que, também eu estive na guerra colonial. Pouco tempo, é certo, mas estive. Apenas quatro meses, no termo dos quais, fui expulso, sem qualquer julgamento prévio.
Estive na guerra colonial, já ela estava em marcha, em três frentes. Estive entre Novembro de 1967 e Março de 1968. Por isso, também eu tenho o dever de reflectir estes problemas. Não só levantar estas interrogações, mas contribuir para se encontrar possíveis respostas.
Acordei para a Guerra Colonial, quando, em 1967, fui chamado ao Paço episcopal do Porto - tinha então 30 anos de idade e cinco anos de padre, na Diocese, e era professor de Religião e Moral no Liceu D. Manuel II - para ser informado, de viva voz, pelo Bispo-Administrador Apostólico, D. Florentino de Andrade e Silva, de que o meu nome já tinha sido enviado para Lisboa, pelo que, em breve, iria ser chamado a frequentar um curso de capelães militares, na respectiva Academia Militar!
Não me perguntou o Bispo se eu estava disposto a ir, se tinha alguma coisa a objectar. Não me consultou. Apenas me informou e deu-me a ordem de marcha. Como se a Igreja fosse um enorme quartel, onde a generalidade dos seus membros apenas obedece, cumpre ordens dos superiores, auto-apresentados como infalíveis, como donos da verdade, como rostos visíveis de Deus, senão mesmo, o próprio Deus na terra.
A verdade é que eu, nessa altura, embora ficasse mudo de espanto e como que apunhalado no peito, não ousei sequer contradizer o Bispo. E lá fui para a Academia Militar, com mais umas dezenas de outros padres do país, pelos vistos, todos mais ou menos incómodos, por razões as mais diversas, nas respectivas dioceses.
Ao fim de cinco semanas de curso intensivo, fui dado como apto e parti para a Guiné-Bissau, a fim de me integrar, como alferes capelão, no Batalhão 1912, que já operava militarmente em Mansoa, a 60 kms de Bissau.
Hoje, também eu me pergunto: Como é que isto foi possível? Como é que eu nem sequer me lembrei de formular objecção de consciência? Como é que fui logo obedecer a semelhante ordem?
Aconteceu comigo o que aconteceu com a generalidade do país. A mim, o Bispo mandou e eu obedeci. Aos outros portugueses, o Estado/Governo mandou e eles obedeceram. Salvas as muitas e honrosas excepções, de quantos fugiram, desertaram, deixaram o país, por muitos anos, para não terem de ir à guerra. Alguns, por medo ou covardia, a maior parte por convicção. Estavam mais politizados e não suportaram ser cúmplices do crime de lesa-humanidade que é toda a guerra colonial.
Se pensarmos bem, estará aqui uma razão, uma forte razão que ajuda a entender por que foi possível a guerra colonial.
Durante séculos, praticamente, os oitos séculos da nossa História, desde 1143 até aos nossos dias, mais propriamente, até ao 25 de Abril de 1974, fomos educados para obedecer. Ou obedecer, ou mandar. Quem não fazia parte das minorias que mandavam, integrava as maiorias que obedeciam, que tinham de obedecer.
Fomos educados para obedecer. Aos superiores. Legítimos superiores, dizia-se. Só que, lá, onde há superiores, tem de haver inferiores. Lá, onde há hierarquia, há fatalmente súbditos: Há opressão. Há subserviência. Há infantilismo. Há menoridade. Há desigualdade. Como tal, não é possível a fraternidade/sororidade.
Deveríamos ter sido educados para a liberdade, para crescer como pessoas, para a responsabilidade, e educaram-nos para a obediência. Deveríamos ser gente adulta, autónoma, responsável, habituada a enfrentar e a responder aos problemas de que é feita a vida, mas fizeram de nós súbditos, pequeninos, infantes. Um Portugal de pequeninos. Por isso, marionetes. Executantes da vontade de outrém. Anti-cidadãos!
Fomos, desde nascença, como país, um povo dominado pelo clero/padres e pelos nobres/burgueses. Nascemos à sombra da cruz e da espada, do trono e do altar. Se não nos submetíamos pela pregação terrorista, pela catequese ameaçadora do clero, pelo medo de Deus e do inferno, submetíamo-nos pelo medo da espada.
A República, em 1910, cortou, interrompeu este fado! Pôs fim a este ciclo de opressão de oito séculos. Mas veio logo a seguir a senhora de Fátima (1917) e, anos depois, o Estado Novo. Ficamos pior do que antes. Sob o domínio de Salazar e do cardeal Cerejeira. Da Pide e dos senhores abades.
É neste longo interregno, nesta longa noite do fascismo, que acontece a guerra colonial. Quando o povo ainda não era povo. Quando a liberdade ainda não tinha passado por aqui e era coisa proibida. Quando ser homem/ser mulher, ser cidadão, era crime. Quando só a subserviência e a obediência tinham voz e vez.
Abril de 1974 foi, por isso, o dia do nosso Natal e da nossa Páscoa, como povo. Nascemos e ressuscitamos para a liberdade e para a festa.
Nesse dia, como não podia deixar de ser, a guerra colonial acabou! Um povo que se liberta para a liberdade é incapaz de se alistar e de fazer alistar os seus filhos para a guerra contra povos que apenas queriam a autonomia e a independência.
Nesse dia, em vez de armas e balas, corremos a distribuir cravos vermelhos. Em vez de guerra, fizemos paz. Em vez de semearmos morte e mais morte com os nossos braços e as nossas mãos, abraçamos os povos africanos e descobrimo-nos irmãos.
Entretanto, hoje, todos estes anos depois de Abril de 1974, que fizemos da liberdade conquistada? Somos capazes de gritar, Guerra nunca mais, paz sempre? Guerra nunca mais, Direitos Humanos sempre? Ou voltamos a ter saudades do passado e medo do futuro? Ousamos ser cada vez mais responsáveis, autónomos, senhores dos nossos destinos, ou suspiramos pelo regresso de Poderes autoritários?
Como se explica, então, que, depois de Abril 74, continuemos a alimentar seitas/novas religiões/novas igrejas? Como se explica que continuemos a sustentar uma Igreja, como aquela de que sou membro, a Igreja católica romana, com tantos privilégios? Como se explica que, concretamente, continuemos a tolerar a existência duma Concordata entre a Igreja católica e o Estado português, que vem desde 1940, desde o fascismo? Como se explica que continuemos a alimentar Fátima e a sua senhora vampiresca que, com o seu paleio moralista nos leva a carteira e, sobretudo, a dignidade, a ponto de nos fazer andar de rastos no seu santuário? Como se explica que continuemos a dar do nosso dinheiro para ajudar a erguer basílicas de seis milhões de contos, onde, depois, o clero - certo clero - nos oprime e ameaça, quando nem sequer temos, a maior parte de nós, casas decentes e espaçosas para viver?
Há algumas dezenas de anos, em plena noite do fascismo, levaram-nos a fazer uma guerra colonial em três frentes de África. Felizmente, aconteceu Abril de 1974 e, com ele, a liberdade e o fim dessa maldita guerra. Foi um gigantesco passo em frente que demos, como povo. Porventura, o maior da nossa história de oito séculos.
Do que se trata, agora, é de seguir em frente. Nunca mais voltar atrás. Como diz a canção: "Somos um povo que cerra fileiras / parte à conquista do pão e da paz / somos livres, somos livres / não voltaremos atrás".
Contudo, as minorias espertalhonas não desapareceram. Nem desistiram. Hoje, estão de volta. Com falinhas democráticas.
Amolecer no combate pela nossa autonomia e independência, é morrer. Até porque com senhoras de Fátima (a original é uma senhora cega, surda e muda, que se reproduz por uma espécie de clonagem e, por isso, consegue aparecer como uma maldição geradora de medo em todas as igrejas paroquiais do nosso país e em muitas casas de família, mesmo do estrangeiro), não vamos a lado nenhum, ou vamos, mas para o abismo. Lá diz o ditado popular: Fia-te na virgem e não corras, verás o tombo que levas.
Por mim, foi em plena guerra colonial que nasci de novo, do Alto, do Espírito. O meu 25 de Abril aconteceu em Mansoa, exactamente, no dia 1 de Janeiro de 1968. Abriram-se-me os olhos (da consciência). Percebi a engrenagem em que estava metido. E da qual até era funcionário privilegiado.
Recusei o prato de lentilhas que me ofereciam. Escolhi a liberdade. A responsabilidade. A cidadania. Escolhi ser homem, em lugar de funcionário eclesiástico.
A guerra e os homens da guerra não me perdoaram e expulsaram-me, a toda a pressa, sem qualquer julgamento prévio. E, pela boca de um deles, o então bispo castrense, D. António dos Reis Rodrigues, ditaram a sentença: "padre irrecuperável".
Mal sabiam eles que esse foi o primeiro dia do resto da minha vida!
Foto: © Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Texto do Mário de Oliveira, em resposta a um convite meu para integrar a nossa tertúlia... E, a propósito, seria escusado lembrar que na nossa tertúlia ninguém censura ninguém... Podemos (e devemos, quando for caso disso) discordar, saudavelmente, uns dos outros, mas por princípio não fazemos juízos de valor, julgamentos, públicos (e sumários), e muito menos insultos... por que isso iria coortar a nossa capacidade de reconstruir o puzzle da nossa memória (individual e colectiva) da guerra, estancar os nossos fluxos, perturbar os nossos sentimentos de pertença, pôr em causa as comunalidades das nossas vivências... Tal não significa ignorar, escamotear ou esconder as diferenças que existiram, existem e existirão entre cada de um nós!...
Em suma, somos, ou esforçamos por ser, a mais plural das casernas de todas as tropas do mundo... Aqui, a haver uma regra de proibição, é a seguinte: só é proibido proibir... E o tratamento por tu, meu caro Mário, é fortemente desejável ou tendencialmente recomendável: de facto, não dá grande jeito tratar um camarada por você... Dito isto, sê bem vindo, camarada! (LG)
Meu caro Luís:
Aqui estou a responder à sua provocação. Com alegria e paz.
Foi na Guiné que os meus olhos mais se abriram. E que iniciei o meu êxodo para a Liberdade e para a Dignidade. Quem alguma vez vai a África como ser humano, nunca mais será a mesma pessoa. E que dizer então de quem foi a África para participar numa guerra contra o seu Povo?
Tomo a liberdade de partilhar com os camaradas que visitam este site e nele participam com os seus pontos de vista, o texto que escrevi sobre uma aula que, há poucos anos, fui convidado a dar sobre a guerra colonial. O texto já está publicado no meu livro Ouviste o que foi dito aos antigos. Eu, porém, digo-vos, editado pela Campo das Letras, Porto [2004]. Com ele, partilho também o meu afecto e o abraço com todos os camaradas.
Vosso, sempre
Mário
Uma aula sobre a guerra colonial que foi um escândalo
Foi um escândalo a aula que, numa certa noite, fui partilhar sobre a guerra colonial, na Universidade Popular do Porto. Convidado expressamente pelo responsável do curso, o camarada de profissão, Jorge Ribeiro, do "JN", em vez de me limitar a fazer uma viagem ao passado, tentei trazer a guerra colonial para os nossos dias.
As perguntas que formulei, as questões que levantei, rasgaram inevitável debate. Que poderia ter sido mais saudável, se os participantes no curso, mulheres e homens, mais homens do que mulheres, tivessem tido espírito de abertura e de tolerância. Assim não aconteceu. E houve quem se escandalizasse com as minhas posições e até estranhasse que eu, depois de dizer o que disse, continue a assumir-me publicamente como padre católico da Igreja que está no Porto. Felizmente, ninguém saiu da sala, enquanto partilhei os meus pontos de vista, previamente escritos. Mas não faltou quem, já em pleno debate, tivesse dito que teve vontade de o fazer. Um dos presentes chegou mesmo a dizer que, embora não concordasse com os meus pontos de vista sobre o tema, pelo menos admirava a minha coragem física e moral.
É o texto integral dessa polémica aula, que aqui apresento de seguida. Leiam e reflictam. Discutam. Até para ver se todos aqueles que, um dia, fizeram a guerra colonial, ousam, agora, olhar para ela de frente, a fim de se desencadear no país um generalizado processo de consciencialização e de libertação do nosso povo. De contrário, continuaremos prisioneiros de medos e de mitos que nos levam a obediências acríticas e irracionais, como aquela que, com o apoio da senhora de Fátima e da hierarquia católica, a generalidade do país protagonizou, não só durante os 13 anos que a guerra colonial durou, mas também durante os quase 50 anos do regime ditatorial e fascista de Salazar!
Felizmente, houve o 25 de Abril de 1974 que pôs fim a 13 anos de guerra colonial. E nos reconciliou connosco próprios e com os povos do mundo, particularmente, com os povos africanos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
Mas ainda está para aparecer quem explique, suficientemente, como é que nós, um povo tendencialmente acolhedor e fraterno, ecuménico e tolerante, consentimos que nos envolvessem numa guerra colonial, em três frentes, para mais, contra povos que nunca nos tinham feito mal, que nunca nos provocaram e a quem nós, até, durante cerca de 500 anos, impunemente colonizámos, explorámos, infantilizámos, oprimimos. Como é que, depois de tudo isto, ainda nos metemos numa guerra contra eles?
Seria salutar tentarmos, todos estes anos depois e no fecundo clima da liberdade que Abril nos proporcionou, reflectir este problema, a fim de tirarmos alguma lição da guerra, em ordem a tornarmo-nos um povo mais amadurecido, mais autónomo, mais liberto, por isso, menos sujeito a ser instrumentalizado por minorias espertalhonas que sempre as há em todos os povos. E às quais convém, activamente, resistir, sempre que os interesses delas não são os das maiorias – se calhar, nunca são! – nem são os do povo de que essas minorias fazem parte.
Durante 13 longos anos, entre 1961 e 1974, aceitámos, sem revolta de maior, que os nossos filhos, na força da vida, fossem para África, lá longe, noutro continente, de armas na mão, para fazer a guerra a povos que não conhecíamos e que apenas reclamavam o direito à autonomia e independência!
Em lugar de acolhermos e satisfazermos esta legítima aspiração – outros povos, antes de nós, já o tinham feito! – aceitámos que os nossos filhos deixassem a casa, a família, interrompessem os seus sonhos e fossem combater esses povos.
Muitos encontraram lá a morte antes de tempo. Muitos outros vieram de lá gravemente feridos no corpo e na alma. E, ainda hoje, muitos milhares deles, arrastam-se por aí sobrecarregados com o estresse da guerra, sem que o Estado português, às ordens de quem todos eles se alistaram para esse feito de lesa-humanidade, se mostre, hoje, razoavelmente sensível e disposto a assumir as suas responsabilidades até ao fim.
Como se explica que tenhamos embarcado nessa aventura? Como se explica que não nos tivéssemos revoltado e resistido? Como se explica que não nos tivéssemos erguido, como um só homem, uma só mulher, contra quem, sem nos consultar, ousou dar-nos uma ordem – Para Angola, rapidamente e em força ? Como obedecemos tão cegamente, tão ordeiramente? Por que não nos opusemos? Por que não fizemos, colectivamente, o famoso manguito, tão característico do chamado Zé Povinho português? Por que nos submetemos e logo nos dispusemos a entregar os nossos filhos, os nossos maridos, os nossos pais, a esse Moloch devorador de sangue humano e de riqueza, que é a guerra, toda a guerra?
E por que é que, todos estes anos depois, continuamos tão conformados com as trágicas consequências da guerra? Por que não fazemos parar o país, para exigirmos que, concretamente, as dezenas de milhar de vítimas do estresse da guerra colonial sejam tratados como gente, sejam tratados com equidade e justiça? Por que consentimos, tão facilmente, que o Estado português continue a ser um estado prepotente, sobranceiro, irresponsável? Por que permitimos que ele nos trate com tanta sobranceria e tanto desprezo?
Não esperais, certamente, que vos traga respostas acabadas para todas estas perguntas, para todas estas questões. De resto, nem é esse o tema desta nossa conversa, esta noite.
Ainda assim, gostaria de partilhar convosco alguma luz e projectá-la sobre estas questões que levantei. É que, também eu estive na guerra colonial. Pouco tempo, é certo, mas estive. Apenas quatro meses, no termo dos quais, fui expulso, sem qualquer julgamento prévio.
Estive na guerra colonial, já ela estava em marcha, em três frentes. Estive entre Novembro de 1967 e Março de 1968. Por isso, também eu tenho o dever de reflectir estes problemas. Não só levantar estas interrogações, mas contribuir para se encontrar possíveis respostas.
Acordei para a Guerra Colonial, quando, em 1967, fui chamado ao Paço episcopal do Porto - tinha então 30 anos de idade e cinco anos de padre, na Diocese, e era professor de Religião e Moral no Liceu D. Manuel II - para ser informado, de viva voz, pelo Bispo-Administrador Apostólico, D. Florentino de Andrade e Silva, de que o meu nome já tinha sido enviado para Lisboa, pelo que, em breve, iria ser chamado a frequentar um curso de capelães militares, na respectiva Academia Militar!
Não me perguntou o Bispo se eu estava disposto a ir, se tinha alguma coisa a objectar. Não me consultou. Apenas me informou e deu-me a ordem de marcha. Como se a Igreja fosse um enorme quartel, onde a generalidade dos seus membros apenas obedece, cumpre ordens dos superiores, auto-apresentados como infalíveis, como donos da verdade, como rostos visíveis de Deus, senão mesmo, o próprio Deus na terra.
A verdade é que eu, nessa altura, embora ficasse mudo de espanto e como que apunhalado no peito, não ousei sequer contradizer o Bispo. E lá fui para a Academia Militar, com mais umas dezenas de outros padres do país, pelos vistos, todos mais ou menos incómodos, por razões as mais diversas, nas respectivas dioceses.
Ao fim de cinco semanas de curso intensivo, fui dado como apto e parti para a Guiné-Bissau, a fim de me integrar, como alferes capelão, no Batalhão 1912, que já operava militarmente em Mansoa, a 60 kms de Bissau.
Hoje, também eu me pergunto: Como é que isto foi possível? Como é que eu nem sequer me lembrei de formular objecção de consciência? Como é que fui logo obedecer a semelhante ordem?
Aconteceu comigo o que aconteceu com a generalidade do país. A mim, o Bispo mandou e eu obedeci. Aos outros portugueses, o Estado/Governo mandou e eles obedeceram. Salvas as muitas e honrosas excepções, de quantos fugiram, desertaram, deixaram o país, por muitos anos, para não terem de ir à guerra. Alguns, por medo ou covardia, a maior parte por convicção. Estavam mais politizados e não suportaram ser cúmplices do crime de lesa-humanidade que é toda a guerra colonial.
Se pensarmos bem, estará aqui uma razão, uma forte razão que ajuda a entender por que foi possível a guerra colonial.
Durante séculos, praticamente, os oitos séculos da nossa História, desde 1143 até aos nossos dias, mais propriamente, até ao 25 de Abril de 1974, fomos educados para obedecer. Ou obedecer, ou mandar. Quem não fazia parte das minorias que mandavam, integrava as maiorias que obedeciam, que tinham de obedecer.
Fomos educados para obedecer. Aos superiores. Legítimos superiores, dizia-se. Só que, lá, onde há superiores, tem de haver inferiores. Lá, onde há hierarquia, há fatalmente súbditos: Há opressão. Há subserviência. Há infantilismo. Há menoridade. Há desigualdade. Como tal, não é possível a fraternidade/sororidade.
Deveríamos ter sido educados para a liberdade, para crescer como pessoas, para a responsabilidade, e educaram-nos para a obediência. Deveríamos ser gente adulta, autónoma, responsável, habituada a enfrentar e a responder aos problemas de que é feita a vida, mas fizeram de nós súbditos, pequeninos, infantes. Um Portugal de pequeninos. Por isso, marionetes. Executantes da vontade de outrém. Anti-cidadãos!
Fomos, desde nascença, como país, um povo dominado pelo clero/padres e pelos nobres/burgueses. Nascemos à sombra da cruz e da espada, do trono e do altar. Se não nos submetíamos pela pregação terrorista, pela catequese ameaçadora do clero, pelo medo de Deus e do inferno, submetíamo-nos pelo medo da espada.
A República, em 1910, cortou, interrompeu este fado! Pôs fim a este ciclo de opressão de oito séculos. Mas veio logo a seguir a senhora de Fátima (1917) e, anos depois, o Estado Novo. Ficamos pior do que antes. Sob o domínio de Salazar e do cardeal Cerejeira. Da Pide e dos senhores abades.
É neste longo interregno, nesta longa noite do fascismo, que acontece a guerra colonial. Quando o povo ainda não era povo. Quando a liberdade ainda não tinha passado por aqui e era coisa proibida. Quando ser homem/ser mulher, ser cidadão, era crime. Quando só a subserviência e a obediência tinham voz e vez.
Abril de 1974 foi, por isso, o dia do nosso Natal e da nossa Páscoa, como povo. Nascemos e ressuscitamos para a liberdade e para a festa.
Nesse dia, como não podia deixar de ser, a guerra colonial acabou! Um povo que se liberta para a liberdade é incapaz de se alistar e de fazer alistar os seus filhos para a guerra contra povos que apenas queriam a autonomia e a independência.
Nesse dia, em vez de armas e balas, corremos a distribuir cravos vermelhos. Em vez de guerra, fizemos paz. Em vez de semearmos morte e mais morte com os nossos braços e as nossas mãos, abraçamos os povos africanos e descobrimo-nos irmãos.
Entretanto, hoje, todos estes anos depois de Abril de 1974, que fizemos da liberdade conquistada? Somos capazes de gritar, Guerra nunca mais, paz sempre? Guerra nunca mais, Direitos Humanos sempre? Ou voltamos a ter saudades do passado e medo do futuro? Ousamos ser cada vez mais responsáveis, autónomos, senhores dos nossos destinos, ou suspiramos pelo regresso de Poderes autoritários?
Como se explica, então, que, depois de Abril 74, continuemos a alimentar seitas/novas religiões/novas igrejas? Como se explica que continuemos a sustentar uma Igreja, como aquela de que sou membro, a Igreja católica romana, com tantos privilégios? Como se explica que, concretamente, continuemos a tolerar a existência duma Concordata entre a Igreja católica e o Estado português, que vem desde 1940, desde o fascismo? Como se explica que continuemos a alimentar Fátima e a sua senhora vampiresca que, com o seu paleio moralista nos leva a carteira e, sobretudo, a dignidade, a ponto de nos fazer andar de rastos no seu santuário? Como se explica que continuemos a dar do nosso dinheiro para ajudar a erguer basílicas de seis milhões de contos, onde, depois, o clero - certo clero - nos oprime e ameaça, quando nem sequer temos, a maior parte de nós, casas decentes e espaçosas para viver?
Há algumas dezenas de anos, em plena noite do fascismo, levaram-nos a fazer uma guerra colonial em três frentes de África. Felizmente, aconteceu Abril de 1974 e, com ele, a liberdade e o fim dessa maldita guerra. Foi um gigantesco passo em frente que demos, como povo. Porventura, o maior da nossa história de oito séculos.
Do que se trata, agora, é de seguir em frente. Nunca mais voltar atrás. Como diz a canção: "Somos um povo que cerra fileiras / parte à conquista do pão e da paz / somos livres, somos livres / não voltaremos atrás".
Contudo, as minorias espertalhonas não desapareceram. Nem desistiram. Hoje, estão de volta. Com falinhas democráticas.
Amolecer no combate pela nossa autonomia e independência, é morrer. Até porque com senhoras de Fátima (a original é uma senhora cega, surda e muda, que se reproduz por uma espécie de clonagem e, por isso, consegue aparecer como uma maldição geradora de medo em todas as igrejas paroquiais do nosso país e em muitas casas de família, mesmo do estrangeiro), não vamos a lado nenhum, ou vamos, mas para o abismo. Lá diz o ditado popular: Fia-te na virgem e não corras, verás o tombo que levas.
Por mim, foi em plena guerra colonial que nasci de novo, do Alto, do Espírito. O meu 25 de Abril aconteceu em Mansoa, exactamente, no dia 1 de Janeiro de 1968. Abriram-se-me os olhos (da consciência). Percebi a engrenagem em que estava metido. E da qual até era funcionário privilegiado.
Recusei o prato de lentilhas que me ofereciam. Escolhi a liberdade. A responsabilidade. A cidadania. Escolhi ser homem, em lugar de funcionário eclesiástico.
A guerra e os homens da guerra não me perdoaram e expulsaram-me, a toda a pressa, sem qualquer julgamento prévio. E, pela boca de um deles, o então bispo castrense, D. António dos Reis Rodrigues, ditaram a sentença: "padre irrecuperável".
Mal sabiam eles que esse foi o primeiro dia do resto da minha vida!
terça-feira, 16 de maio de 2006
Guiné 63/74 - P764: Fala-se em 11 mil fuzilados (Leopoldo Amado, historiador)
Guiné > Região Leste > Bafatá > Soldado ferido em operações > "Ponto de honra no terreno. Não podia ficar para trás nenhum combatente, ferido ou morto", diz o João Varanda o fotógrafo, (ex-combatente da CCAÇ 2636, Có/Pelundo e Teixeira Pinto; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1969/71) .
Foto: © João Varanda (2005)
Temos o privilégio de poder inserir hoje, no nosso blogue, um texto do Leopoldo Amado, historiador, mestre em Estudos Africanos, doutorando em história contemporânea pela Universidade de Lisboa, especialista da guerra de libertação 'versus' guerra colonial na Guiné, guineense, vivendo actualmente em Portugal, editor do blogue Lamparam II, e de quem já publicámos alguns excelentes e oportunos posts (1).
O Leopoldo teve a gentileza de responder ao meu pedido para "pôr os guineenses a falar" sobre o conturbado e ainda mal conhecido período que foi a partida dos portugueses e a subida ao poder dos guerrilheiros do PAIGC..."Eu bem gostaria de pôr a falar os guineenses... Talvez o nosso amigo Leopoldo, o historiador, o nosso doutor, queira dar uma achega"... Estou-lhe grato pelo seu contributo altamente qualificado sobre esta matéria (LG).
Caros amigos:
No período pós-independência, os fuzilamentos dos antigos colaboradores africanos incidiram sobre os Comandos Africanos, Milícias, agentes das forças especiais, fuzileiros, cipaios, régulos, agentes da PIDE, elementos da Acção Nacional, guias, e até agentes que trabalhavam para a administração colonial.
Só no caso da Guiné, fala-se em cerca de 11.000 o número de elementos fuzilados pelo PAIGC imediatamente após a independência. Certo ou não, a verdade é que houve como que uma espécie de vingança quando os ânimos se serenaram, depois que o PAIGC assumiu a administração política do país.
Foi nesse âmbito que, por exemplo, representantes dos Comandos Africanos chegaram a encetar encontros com elementos do PAIGC nessa fase de transição, no quadro e na sequências das negociações encetadas do lado português por Carlos Fabião, e em que se aquilatou a proposta/possibilidade de os ex-soldados africanos integrarem o Exército do PAIGC, proposta essa, de resto, liminarmente refutada pelo PAIGC.
Porém, na sequência do plano de evacuação do contingente do português na Guiné, aprovado nas negociações de Argel e sequencialmente nas matas de Cantanhez por delegações do PAIGC e de Portugal e perante a recusa liminar por parte do PAIGC de proceder a integração pura e simples desses elementos no seu Exército, a generalidade das ex-soldados africanos do, como que pressentindo o que lhes poderia suceder, declararam que não entregariam as armas, nem mesmo depois da evacuação do último contingente português, como forma de pressionar as autoridades portuguesas, junto de quem, aliás, exigiam uma solução para a sua situação.
Do lado do PAIGC, esta declaração dos ex-soldados africanos, sobretudo dos Comandos Africanos, apresentava-se não somente como um desafio à sua autoridade, mas igualmente como uma ameaça, esta última, de resto, alimentada à montante pelo facto de as tropas africanas do Exército Português e essencialmente os Comandos Africanos serem sobremaneira aguerridos e igualmente pelo facto de terem criado, no decorrer da guerra, imensas dores de cabeça ao Comando Militar do PAIGC.
Pois bem, o processo de descolonização na Guiné-Bissau é normalmente caracterizado por "Descolonização por conta própria”, essencialmente devido a inaudita celeridade que o processo conheceu, mas também devido ao facto de, no decorrer do processo, praticamente o PAIGC não ter abdicado da sua posição militar privilegiada para, num ou noutro sentido, influenciar decisões importantes.
É nesse contexto que enquadra a recusa do PAIGC em proceder a integração dos ex-soldados guineenses do Exército português, mas também a recusa por parte dessa formação política-militar da proposta de Spínola no sentido de o próprio se deslocar à Guiné para presidir a cerimónia onde se reconheceria a independência da Guiné-Bissau através de uma Assembleia Magna, em que igualmente marcariam presença as outras forças políticas guineenses, algumas delas como o MDG (Movimento Democrático da Guiné), fabricadas por Spínola à última da hora, com base nos elementos que com ele colaboram na política da Guiné Melhor e nos diversas acções de acção psicológica que quase feriam de morte o PAIGC.
Efectivamente, as tentativas de Spínola de conferir um estatuto que não a da independência as ex-colónias portuguesas, mas sim de uma ampla autonomia mas no quadro de uma federação ou confederação lusa, conforme preconizava no seu Portugal e o Futuro, originou um ambiente de crispação entre este e o MFA que mais tarde havia de levar ao afastamento do próprio Spínola da presidência portugusa.
Portanto, factores de natureza interna da Guiné, na qual o PAIGC não prescindia de influenciar a agenda e o rumo dos acontecimentos e também as decorrentes da política metropolitana, sobretudo em matéria do estatuto a conferir às colónias, acabariam na Guiné por condicionar e mesmo determinar a “Descolonização por conta própria”. Doravante, a evacuação dos contingentes portugueses conheceu uma acrescida celeridade, antecipando-se mesmo, na maioria das situações, o timing aprovado nas negociações havidas. Aliás, é curioso reparar-se que todo o processo de retracção dos contingentes portugueses, concluiu-se antecipadamente em cerca de quase dois meses relativamente ao plano estabelecido.
Assim, animados pela sensação de abandono, acentuado sobretudo pela rapidez com que se processava a retracção dos contingentes portugueses, os ex-soldados guineenses endureceram as suas posições públicas, procurando de alguma forma organizar-se militarmente, não sabendo ou ignorando o facto de que o PAIGC, aproveitando-se sobretudo da sua privilegiada situação militar no período de transição, havia conseguido introduzir meios bélicos e humanos indispensáveis ao aniquilamento de qualquer tentativa de subversão, mesmo nos centros urbanos, onde aparentemente esses ex-soldados africanos dispunham de maiores vantagens.
À medida que o PAIGC ia assumindo o controle total nas circunscrições e aquartelamentos onde, em cerimónias céleres, arreava-se a bandeira portuguesa enquanto se içava a bandeira do PAIGC e da Guiné-Bissau, os ex-soldados africanos encontravam-se numa situação de completo abandono, inteiramente resignados e entregues a si e sem qualquer capacidade de reacção ou de reorganização em termos militares.
Os mais previdentes ainda tiveram tempo de galgar a fronteira com o Senegal, fazendo posteriormente o percurso terrestre até Portugal, mas a maioria foi alvo fácil da estonteante caça às bruxas, imediatamente posta em prática pelas forças do PAIGC, entretanto mobilizadas com um discurso assente na necessidade de ripostar à tentativa dos ex-soldados africanos de continuarem a lutar contra o Exército do PAIGC. Sucederam-se então autênticas razias pelos bairros de Bissau e pelas tabancas do interior onde os ex-soldados africanos entretanto se refugiaram, e onde eram presos e, em regra, fuzilados.
A mesma sorte tiveram muitos agentes da PIDE e/ou colaboradores da administração portuguesa que, em geral, após um longo período de detenção em Bissau, Mansôa, Cantchungo, Quebo, Bafatá, Jugudul e outras localidades, eram sumariamente julgados e publicamente fuzilados, sem apelo nem agravo, sem direito ao contraditório ou o direito de constituição da defesa.
Ainda no alvor da adolescência, assisti em Cantchungo [antiga Teixeira Pinto ] a um desses fuzilamentos públicos, a 10 de Março de 1976, numa sessão pública em que foram fuzilados três traidores, entre os quais o Régulo Baticã do Chão dos Manjacos e um primo meu que pertenceu aos Comandos Africanos, a quem, de resto, visitava e assistia clandestinamente na prisão, graças a colaboração de um guarda prisional, na altura meu amigo.
Hoje, é todavia possível, à distância dos anos da euforia, fazer-se uma leitura mais serena dos acontecimentos que se seguiram à independência e que conduziram ao fuzilamento de milhares de guineenses, sob a acusação de terem pertencido às forças do Exército português, na qual alegada ou pretensamente cometeram crimes e outros porque alegada ou pretensamente colaboraram a vários níveis com as autoridades colónias como PIDE ou na Acção Nacional ou ainda com a política da Guiné Melhor de Spínola.
Com efeito, podemos até compreender que em certos casos teria havido excesso de zelo, mas excesso esse de que indirectamente a Direcção do PAIGC caucionava, em virtude de um sentimento misto que dele se apoderou e que se desdobrava numa espécie da necessidade de vingança para exorcizar algum mal (sobretudo àquela de que se nutriu relativamente aos Comandos Africanos no decorrer da guerra) e igualmente a necessidade de expurgar definitivamente a ameaça (que já não era real) que os ex-soldados africanos só aparentemente representavam, sobretudo os Comandos Africanos.
Hoje, não obstante a fraca capacidade negocial que lhe era intrínseco, fruto do sentimento do derrotismo que se apossou das estruturas de comando, penso que o Exército português devia e podia, ainda na mesa das negociações, ter encontrado uma solução global de compromisso, assente no respeito dos direitos humanos e na dignidade dos guineenses que combateram no Exército colonial.
Tivesse havido vontade política, creio que o próprio PAIGC estaria interessado numa qualquer solução equilibrada relativamente aos ex-soldados guineenses, uma vez que seriam, inquestionavelmente, uma mais valia para o Exército Nacional da Guiné-Bissau, para além da importante contribuição que a sua equilibrada reintegração na sociedade proporcionariam em termos de uma maior catarse em relação às mazelas da guerra, na senda das sinergias necessárias aos esforços ciclópicos de edificação de um novo Estado.
Do lado do PAIGC, pese embora o facto de em certa medida ser compreensível a forma como o PAIGC actuou relativamente aos ex-soldados africanos, é preciso convir que teria faltado a Direcção do PAIGC a serenidade e o sangue frio necessários para, pacificamente, lá onde era possível, integrar social e militarmente os ex-soldados guineenses, sem o prejuízo de, pela via judicial, chamar à razão aqueles sobre os quais pendiam gravíssimas acusações.
Mas em situação de guerra, ou no seu rescaldo, de qualquer guerra, como foi o contexto em que milhares de guineenses foram fuzilados, é sempre possível descortinar-se, a posteriori, imensas situações absurdas. Desde logo, a razão porque se fez a guerra e porque, na sua decorrência, fuzilados ou não, morreram nela milhares de inocentes, de um e outro lado barricada.
Pior ainda: se nos abstrairmos da noção ideológica que encerra a noção politicamente correcta do direito a autodeterminação e independência a que os povos têm direito e a imoralidade que representava a colonização, do lado guineense, tudo o resto tende cumulativamente a constituir-se num grande absurdo que certamente a História se encarregará de elucidar.
Hoje, para além da independência conquistada, infelizmente o povo guineense ainda não se encontra propriamente em posição de, plenamente, poder com propriedade dizer que valeu à pena a independência por que lutaram e morreram muitos guineenses nacionalistas. Do lado português, não é igualmente por acaso que os arcaicos mitos imperiais – em nome dos quais milhares de vidas foram inocentemente ceifadas –, tendem, até hoje, não obstante os novos paradigmas, a sobressaltar a consciência colectiva da sociedade portuguesa e, particularmente, daqueles que nele directamente participaram.
Leopoldo Amado
Abril de 2006
_____________
Notas de L.G.
(1)Vd. posts de:
25 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXIX: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia
(...)"Para mim, e para a Guiné-Bissau, é sumamente importante a compreensão dos contornos desta guerra, até para que a imprescindível catarse tenha lugar e possa curar as feridas que abriu (e são elas tantas!), pelo que proponho que me aceitem no vosso grupo de tertúlia, caso acharem que a minha presença não iria de alguma forma perturbar, na medida em que [sou] tão somente um estudioso do assunto e bem tão pouco participei na guerra, senão ouvindo os tiros de um o outro lado, que me deixavam borrado de medo (ainda era uma criança)" (...).
22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte
(...) "Inicimos hoje a publicação de um importante texto, inédito, do historiador guineense, Leopoldo Amado, doutorando em história contempânea pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da nossa tertúlia, sobre o significado dos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, na perspectiva da luta, mais recente, de libertação nacional, liderada pelo PAIGC, e da tradição, mais antiga, de resistência dos guinéus à colonização europeia (incluindo a portuguesa).
"Devido à sua extensão, o texto teve de ser repartido em várias partes. Apesar de assoberbado com os preparativos para a defesa da sua tese de doutoramento, o nosso amigo Leopoldo quis ter connosco uma especial atenção, o que muito nos honra.
"Não temos dúvida, que este seu paper, alicerçado em minuciosa investigação empírica, baseada em documentação de arquivo (incluindo os ficheiros da PIDE/DGS) e em entrevistas a actores-chaves, vem fazer luz sobre uma parte da nossa história comum recente assim muito mal conhecida, contada, analisada e explicada. Obrigado, Leopoldo! (LG)" (...).
Foto: © João Varanda (2005)
Temos o privilégio de poder inserir hoje, no nosso blogue, um texto do Leopoldo Amado, historiador, mestre em Estudos Africanos, doutorando em história contemporânea pela Universidade de Lisboa, especialista da guerra de libertação 'versus' guerra colonial na Guiné, guineense, vivendo actualmente em Portugal, editor do blogue Lamparam II, e de quem já publicámos alguns excelentes e oportunos posts (1).
O Leopoldo teve a gentileza de responder ao meu pedido para "pôr os guineenses a falar" sobre o conturbado e ainda mal conhecido período que foi a partida dos portugueses e a subida ao poder dos guerrilheiros do PAIGC..."Eu bem gostaria de pôr a falar os guineenses... Talvez o nosso amigo Leopoldo, o historiador, o nosso doutor, queira dar uma achega"... Estou-lhe grato pelo seu contributo altamente qualificado sobre esta matéria (LG).
Caros amigos:
No período pós-independência, os fuzilamentos dos antigos colaboradores africanos incidiram sobre os Comandos Africanos, Milícias, agentes das forças especiais, fuzileiros, cipaios, régulos, agentes da PIDE, elementos da Acção Nacional, guias, e até agentes que trabalhavam para a administração colonial.
Só no caso da Guiné, fala-se em cerca de 11.000 o número de elementos fuzilados pelo PAIGC imediatamente após a independência. Certo ou não, a verdade é que houve como que uma espécie de vingança quando os ânimos se serenaram, depois que o PAIGC assumiu a administração política do país.
Foi nesse âmbito que, por exemplo, representantes dos Comandos Africanos chegaram a encetar encontros com elementos do PAIGC nessa fase de transição, no quadro e na sequências das negociações encetadas do lado português por Carlos Fabião, e em que se aquilatou a proposta/possibilidade de os ex-soldados africanos integrarem o Exército do PAIGC, proposta essa, de resto, liminarmente refutada pelo PAIGC.
Porém, na sequência do plano de evacuação do contingente do português na Guiné, aprovado nas negociações de Argel e sequencialmente nas matas de Cantanhez por delegações do PAIGC e de Portugal e perante a recusa liminar por parte do PAIGC de proceder a integração pura e simples desses elementos no seu Exército, a generalidade das ex-soldados africanos do, como que pressentindo o que lhes poderia suceder, declararam que não entregariam as armas, nem mesmo depois da evacuação do último contingente português, como forma de pressionar as autoridades portuguesas, junto de quem, aliás, exigiam uma solução para a sua situação.
Do lado do PAIGC, esta declaração dos ex-soldados africanos, sobretudo dos Comandos Africanos, apresentava-se não somente como um desafio à sua autoridade, mas igualmente como uma ameaça, esta última, de resto, alimentada à montante pelo facto de as tropas africanas do Exército Português e essencialmente os Comandos Africanos serem sobremaneira aguerridos e igualmente pelo facto de terem criado, no decorrer da guerra, imensas dores de cabeça ao Comando Militar do PAIGC.
Pois bem, o processo de descolonização na Guiné-Bissau é normalmente caracterizado por "Descolonização por conta própria”, essencialmente devido a inaudita celeridade que o processo conheceu, mas também devido ao facto de, no decorrer do processo, praticamente o PAIGC não ter abdicado da sua posição militar privilegiada para, num ou noutro sentido, influenciar decisões importantes.
É nesse contexto que enquadra a recusa do PAIGC em proceder a integração dos ex-soldados guineenses do Exército português, mas também a recusa por parte dessa formação política-militar da proposta de Spínola no sentido de o próprio se deslocar à Guiné para presidir a cerimónia onde se reconheceria a independência da Guiné-Bissau através de uma Assembleia Magna, em que igualmente marcariam presença as outras forças políticas guineenses, algumas delas como o MDG (Movimento Democrático da Guiné), fabricadas por Spínola à última da hora, com base nos elementos que com ele colaboram na política da Guiné Melhor e nos diversas acções de acção psicológica que quase feriam de morte o PAIGC.
Efectivamente, as tentativas de Spínola de conferir um estatuto que não a da independência as ex-colónias portuguesas, mas sim de uma ampla autonomia mas no quadro de uma federação ou confederação lusa, conforme preconizava no seu Portugal e o Futuro, originou um ambiente de crispação entre este e o MFA que mais tarde havia de levar ao afastamento do próprio Spínola da presidência portugusa.
Portanto, factores de natureza interna da Guiné, na qual o PAIGC não prescindia de influenciar a agenda e o rumo dos acontecimentos e também as decorrentes da política metropolitana, sobretudo em matéria do estatuto a conferir às colónias, acabariam na Guiné por condicionar e mesmo determinar a “Descolonização por conta própria”. Doravante, a evacuação dos contingentes portugueses conheceu uma acrescida celeridade, antecipando-se mesmo, na maioria das situações, o timing aprovado nas negociações havidas. Aliás, é curioso reparar-se que todo o processo de retracção dos contingentes portugueses, concluiu-se antecipadamente em cerca de quase dois meses relativamente ao plano estabelecido.
Assim, animados pela sensação de abandono, acentuado sobretudo pela rapidez com que se processava a retracção dos contingentes portugueses, os ex-soldados guineenses endureceram as suas posições públicas, procurando de alguma forma organizar-se militarmente, não sabendo ou ignorando o facto de que o PAIGC, aproveitando-se sobretudo da sua privilegiada situação militar no período de transição, havia conseguido introduzir meios bélicos e humanos indispensáveis ao aniquilamento de qualquer tentativa de subversão, mesmo nos centros urbanos, onde aparentemente esses ex-soldados africanos dispunham de maiores vantagens.
À medida que o PAIGC ia assumindo o controle total nas circunscrições e aquartelamentos onde, em cerimónias céleres, arreava-se a bandeira portuguesa enquanto se içava a bandeira do PAIGC e da Guiné-Bissau, os ex-soldados africanos encontravam-se numa situação de completo abandono, inteiramente resignados e entregues a si e sem qualquer capacidade de reacção ou de reorganização em termos militares.
Os mais previdentes ainda tiveram tempo de galgar a fronteira com o Senegal, fazendo posteriormente o percurso terrestre até Portugal, mas a maioria foi alvo fácil da estonteante caça às bruxas, imediatamente posta em prática pelas forças do PAIGC, entretanto mobilizadas com um discurso assente na necessidade de ripostar à tentativa dos ex-soldados africanos de continuarem a lutar contra o Exército do PAIGC. Sucederam-se então autênticas razias pelos bairros de Bissau e pelas tabancas do interior onde os ex-soldados africanos entretanto se refugiaram, e onde eram presos e, em regra, fuzilados.
A mesma sorte tiveram muitos agentes da PIDE e/ou colaboradores da administração portuguesa que, em geral, após um longo período de detenção em Bissau, Mansôa, Cantchungo, Quebo, Bafatá, Jugudul e outras localidades, eram sumariamente julgados e publicamente fuzilados, sem apelo nem agravo, sem direito ao contraditório ou o direito de constituição da defesa.
Ainda no alvor da adolescência, assisti em Cantchungo [antiga Teixeira Pinto ] a um desses fuzilamentos públicos, a 10 de Março de 1976, numa sessão pública em que foram fuzilados três traidores, entre os quais o Régulo Baticã do Chão dos Manjacos e um primo meu que pertenceu aos Comandos Africanos, a quem, de resto, visitava e assistia clandestinamente na prisão, graças a colaboração de um guarda prisional, na altura meu amigo.
Hoje, é todavia possível, à distância dos anos da euforia, fazer-se uma leitura mais serena dos acontecimentos que se seguiram à independência e que conduziram ao fuzilamento de milhares de guineenses, sob a acusação de terem pertencido às forças do Exército português, na qual alegada ou pretensamente cometeram crimes e outros porque alegada ou pretensamente colaboraram a vários níveis com as autoridades colónias como PIDE ou na Acção Nacional ou ainda com a política da Guiné Melhor de Spínola.
Com efeito, podemos até compreender que em certos casos teria havido excesso de zelo, mas excesso esse de que indirectamente a Direcção do PAIGC caucionava, em virtude de um sentimento misto que dele se apoderou e que se desdobrava numa espécie da necessidade de vingança para exorcizar algum mal (sobretudo àquela de que se nutriu relativamente aos Comandos Africanos no decorrer da guerra) e igualmente a necessidade de expurgar definitivamente a ameaça (que já não era real) que os ex-soldados africanos só aparentemente representavam, sobretudo os Comandos Africanos.
Hoje, não obstante a fraca capacidade negocial que lhe era intrínseco, fruto do sentimento do derrotismo que se apossou das estruturas de comando, penso que o Exército português devia e podia, ainda na mesa das negociações, ter encontrado uma solução global de compromisso, assente no respeito dos direitos humanos e na dignidade dos guineenses que combateram no Exército colonial.
Tivesse havido vontade política, creio que o próprio PAIGC estaria interessado numa qualquer solução equilibrada relativamente aos ex-soldados guineenses, uma vez que seriam, inquestionavelmente, uma mais valia para o Exército Nacional da Guiné-Bissau, para além da importante contribuição que a sua equilibrada reintegração na sociedade proporcionariam em termos de uma maior catarse em relação às mazelas da guerra, na senda das sinergias necessárias aos esforços ciclópicos de edificação de um novo Estado.
Do lado do PAIGC, pese embora o facto de em certa medida ser compreensível a forma como o PAIGC actuou relativamente aos ex-soldados africanos, é preciso convir que teria faltado a Direcção do PAIGC a serenidade e o sangue frio necessários para, pacificamente, lá onde era possível, integrar social e militarmente os ex-soldados guineenses, sem o prejuízo de, pela via judicial, chamar à razão aqueles sobre os quais pendiam gravíssimas acusações.
Mas em situação de guerra, ou no seu rescaldo, de qualquer guerra, como foi o contexto em que milhares de guineenses foram fuzilados, é sempre possível descortinar-se, a posteriori, imensas situações absurdas. Desde logo, a razão porque se fez a guerra e porque, na sua decorrência, fuzilados ou não, morreram nela milhares de inocentes, de um e outro lado barricada.
Pior ainda: se nos abstrairmos da noção ideológica que encerra a noção politicamente correcta do direito a autodeterminação e independência a que os povos têm direito e a imoralidade que representava a colonização, do lado guineense, tudo o resto tende cumulativamente a constituir-se num grande absurdo que certamente a História se encarregará de elucidar.
Hoje, para além da independência conquistada, infelizmente o povo guineense ainda não se encontra propriamente em posição de, plenamente, poder com propriedade dizer que valeu à pena a independência por que lutaram e morreram muitos guineenses nacionalistas. Do lado português, não é igualmente por acaso que os arcaicos mitos imperiais – em nome dos quais milhares de vidas foram inocentemente ceifadas –, tendem, até hoje, não obstante os novos paradigmas, a sobressaltar a consciência colectiva da sociedade portuguesa e, particularmente, daqueles que nele directamente participaram.
Leopoldo Amado
Abril de 2006
_____________
Notas de L.G.
(1)Vd. posts de:
25 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXIX: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia
(...)"Para mim, e para a Guiné-Bissau, é sumamente importante a compreensão dos contornos desta guerra, até para que a imprescindível catarse tenha lugar e possa curar as feridas que abriu (e são elas tantas!), pelo que proponho que me aceitem no vosso grupo de tertúlia, caso acharem que a minha presença não iria de alguma forma perturbar, na medida em que [sou] tão somente um estudioso do assunto e bem tão pouco participei na guerra, senão ouvindo os tiros de um o outro lado, que me deixavam borrado de medo (ainda era uma criança)" (...).
22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte
(...) "Inicimos hoje a publicação de um importante texto, inédito, do historiador guineense, Leopoldo Amado, doutorando em história contempânea pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da nossa tertúlia, sobre o significado dos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, na perspectiva da luta, mais recente, de libertação nacional, liderada pelo PAIGC, e da tradição, mais antiga, de resistência dos guinéus à colonização europeia (incluindo a portuguesa).
"Devido à sua extensão, o texto teve de ser repartido em várias partes. Apesar de assoberbado com os preparativos para a defesa da sua tese de doutoramento, o nosso amigo Leopoldo quis ter connosco uma especial atenção, o que muito nos honra.
"Não temos dúvida, que este seu paper, alicerçado em minuciosa investigação empírica, baseada em documentação de arquivo (incluindo os ficheiros da PIDE/DGS) e em entrevistas a actores-chaves, vem fazer luz sobre uma parte da nossa história comum recente assim muito mal conhecida, contada, analisada e explicada. Obrigado, Leopoldo! (LG)" (...).
Guiné 63/74 - P763: Do Porto a Bissau (17): Finalmente entrámos em Sinchã Jobel (A. Marques Lopes)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Bombas da Força Aérea Portuguesa que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra, e que não chegaram a explodir. Na foto de cima, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes.
Fotos: © Xico Allen (2006)
Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)... Visitou recentemente a Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen...
Pois, camaradas e amigos, eu e o Allen acabámos por entrar na base do IN em Sinchã Jobel, que nunca foi tomada pelas NT, nem quando eu, sem querer, lá fui em 24 de Junho de 1967 (Op Jigajoga) (1), nem em 31 de Agosto de 1967 (Op Jigajoga II), nem em 16 de Setembro de 1967 (Op Jacaré), nem 15 e 16 de Outubro de 1967(Op Imparável), nem em 27 de Outubro de 1967 (Op Insistir), nem em 28 de Outubro de 1967 (Op Instar), nem em 19 de Dezembro de 1967 (Op Invisível) e nem em 21 de Dezembro de 1967 (Op Invisível II), a última que se fez para tomar essa base, comandada durante esse período por Lúcio Soares, como ele próprio me disse (2).
A clareira de Jobel (a tal onde sofri uma emboscada) tem agora uma tabanca (vd. fotos a seguir). Como chegámos lá? Fomos, eu e o Allen, até Sare Banda [vd. carta de Banjara] e aí encontrámos um homem que nos acompanhou, indicando-nos o caminho para Sinchã Jobel.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Aspectos da actual tabanca, sita no local da antiga base do PAIGC.
Fotos: © A. Marques Lopes (2006)
Durante a guerra, Sare Banda era uma grande tabanca, fruto do reordenamento da zona, e onde esteve um destacamento da CART 1690. É agora pequena, vendo nós pelo caminho já várias outras tabancas, explicando-nos o homem que nos acompanhou que muita gente saíu de Sare Banda para formar outras tabancas. Naturalmente, é claro.
E chegámos a Sinchã Jobel, com alguma dificuldade, é verdade, pois existe para lá um simples carreiro. E eu cheguei à conclusão que seria mais fácil ter chegado à base se as NT tivessem ido por ali, apesar de a mata ser muito cerrada. Lá encontrámos o Dirami e o Mulé (2), dois ex-guerrilheiros daquela base e agora moradores na tabanca de Sinchã Jobel.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > A actual tabanca fica a 200 metros da antiga base do PAIGC.
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Antiga base do PAIGC. Está-se ainda em plena época seca.
Fotos: © A. Marques Lopes (2006)
Disse o Dirami que conseguiram rebentar várias, mas aquela que vimos não tinham conseguido... e lá está ainda. Muitas delas, eu já sabia, rebentavam nas árvores, outras batiam nelas e caíam sem rebentar, porque já não caíam da forma adequada para rebentarem as espoletas.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Vestígios ainda bem visíveis, nas árvores, dos bombardeamentos feitos pela Força Aérea Portuguesa.
Fotos: © A. Marques Lopes (2006)
Duas coisas nos indicou o Dirami:
(i) uma, está ele de cócoras, "ali em frente, no tronco daquele poilão era o posto de vigia" (as NT disseram que eles estavam em cima das árvores, mas o que sucedia é que o vigia começava logo a disparar assim que nos via entrar na clareira);
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Local onde se situava o posto de vigia ou sentinela dos guerrilheiros, segundo indicação do Dirami.
Foto: © Xico Allen (2006)
(ii) outra, está ele a dizer-me (vd. foto do cemitério, tirada pelo Allen), "aqui, por baixo destes arbustos está um poço, para onde lançávamos os mortos, pois não havia tempo para fazer covas individuais", e está lá o poço, coberto de arbustos e já tapado com terra;
(iii) e - eu cá para mim - que "lá estarão os corpos do soldado Agostinho Francisco da Câmara, morto em 16 de Outubro de 1967 (3), e do alferes Fernando da Costa Fernandes, morto em 19 de Dezembro de 1967 de Dezembro de 1967, corpos esses que não foi possível recuperar durante as operações feitas nessas datas" (4).
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > Local onde se situava o poço, agora tapado, para onde eram lançados os cadáveres.
Foto: © Xico Allen (2006)
E ficou-me também a pena de as cabeças pensantes que mandavam na guerra terem insistido em várias operações, a começar nas bolanhas de Sucuta e Canhagina [vd. carta de Bambadinca] e na travessia do rio Gambiel, quando teria sido mais fácil e, se calhar, eficaz terem feito o caminho que eu fiz agora, tanto mais que em duas daquelas operações entrou a tropa especializada dos comandos. Coisas.
Abraços
A. Marques Lopes
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
(2) Vd post de 16d e Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXI: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes)
O comandante Lúcio Soares tem agora 64 anos. Copm 25 anos, era o comandante de Sinchã Jobel, base que foi montada em maiod e 1967. O comissário político era o Gazela (que morreu há cerca de dois meses). No princípio de 1968, Lúxio Soares saíu para ir comandar a base do Morés, passando o Gazela a comandar Sinchã Jobel. Em 1970 o Gazela foi para sul, para a zona de Empada.
"Após o 25 de Abril integrou o grupo do Pedro Pires, em Londres, para negociar a formalização da independência. Mais tarde foi Ministro da Defesa no governo de Luís Cabral. Após o golpe de Nino Vieira, em 1980, exilou-se em Cabo Verde, onde esteve durante 14 anos. Regressou depois e está, agora, reformado como coronel (mantem o nome comandante porque é histórico" (...).
(3) Vd post de 3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI (A. Marques Lopes)
"17. Op Imparável. 15 de 16 de Outubro de 1967:
(...) "A operação foi comandada do PCV (Posto de Controlo Volante) pelo Comandante do Agrupamento. O Agostinho Francisco da Câmara (e não Camará), morto na operação, era açoriano e do meu grupo de combate; o Armindo Correia Paulino, aqui referido, também era do meu grupo de combate, o Bigodes, como lhe chamávamos, um minhoto que foi, mais tarde, aprisionado pelo PAIGC em Cantacunda e que acabou por morrer no cativeiro, em Conakry" (...)
(4) Vd. post de 5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII (A. Marques Lopes)
"22. Op Invisível. 16 de Dezembro de 1967
(...) “Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes. Verifiquei que nessa altura já o Dest B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º. Cabo Sousa da CART 1742 (que estava a fazer fogo com a ML MG-42), soldado metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos.
“Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a rectaguarda, e quando o puxava pelos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos. Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam o cabelo bastante comprido (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal, tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar" (...).
Guiné 63/74 - P762: Sobre os fuzilamentos... e o nosso direito à tristeza e à mágoa (Jorge Cabral)
Texto do Jorge Cabral, ex-comandante do Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá Mandinga, Missirá, 1969/71), e hoje docente da Universidade Lusófona, presidente do Instituto de Criminologia, especialista na área da infância e direito penal, advogado e escritor (1)
Amigo Luís,
Porque comandei um Pelotão de Caçadores Nativos [nº 63] e fui amigo de alguns Comandos Africanos, a questão dos fuzilamentos toca-me profundamente (2).
Já sabia que militares guineenses pertencentes às Companhias e Pelotões de Caçadores haviam sofrido a mesma sorte. Do meu Pelotão foram três, e embora já me tenha referido a este assunto, em colaboração anterior, considero-me obrigado a mais uma vez reflectir serenamente e com a objectividade possível.
Compreendo, aceito e comungo da emoção sentida por todos aqueles que partilharam perigos, cansaços e medos com os africanos, caindo nas mesmas emboscadas e defendendo quartéis comuns.
A emoção porém, ou a falta dela, não nos devem obnubilar a razão ou tolher o raciocínio, contribuindo para conclusões simplistas. Não foram patriotas portugueses que foram fuzilados, nem o lixo, até porque a todo o Homem é devido o respeito pela sua dignidade, inerente à condição humana. Foram Homens que foram fuzilados!
Quero acreditar que todos somos contra a pena de morte e que também repudiamos frontalmente que alguém possa ser condenado sem julgamento. O ter pertencido ao Exército Português foi considerado facto suficiente para consubstanciar o crime de traição. Não se apuraram as culpas individuais, nem a consciência da ilicitude, num Tribunal imparcial, que garantisse o Direito de Defesa, como deve acontecer em qualquer parte do Mundo.
Parece evidente que o ter sido torcionário, cortador de cabeças ou criminoso de guerra, constitui uma realidade diferente do ter servido rotineiramente, por necessidade de sobrevivência, num Pelotão ou numa Companhia de Caçadores Africanos.
Tinham todos os guineenses que integravam as tropas portuguesas a consciência de que estavam a trair a sua Pátria? Haviam todos interiorizado o conceito de Pátria? Porque serviam no Exército Português?
Ao longo dos tempos, nas Campanhas de Subjugação e Pacificação, os Portugueses contaram quase sempre com a ajuda dos Fulas, os quais combatiam ao serviço de Senhores da Guerra, enquadrados em unidades africanas, ou desempenhavam funções de auxiliares. Não lutavam por nenhuma Pátria, eram aliados dos Portugueses, contra Papeis, Balantas, Bijagós, Felupes ou Mandingas, os quais se batiam em defesa do seu chão, contra o pagamento de impostos ou o recrutamento forçado para as obras. A sede do poder e da riqueza, e a possibilidade do saque, justificava a aliança Portugueses-Fulas.
A ideia do Portugal plurirracial é contemporânea do início da Guerra Colonial. A substituição do termo Colónias pela designação Províncias Ultramarinas, foi expediente saloio, para enganar a Comunidade Internacional, e procurar legitimar a Guerra – Portugal não tinha Colónias e todos eram Portugueses. Todos sabemos que se tratava de uma ficção.
Nas Colónias vigorou o Estatuto do Indigenato, de acordo com o qual, só alguns eram considerados assimilados, usufruindo da cidadania. Os africanos foram sempre subalternizados, empregados em funções menores, ou enfeitados com cargos honoríficos como os oficiais de 2ª Linha.
Até aos anos 60, nenhum negro tinha acesso à frequência da Escola do Exército. É com a guerra que esta situação vai ser alterada. A necessidade de homens para combater determinou uma estratégia de africanização, que deu lugar à criação de unidades africanas, Companhias e Pelotões, de base étnica, e primeiramente comandadas por quadros europeus. (Quando tomei conta do meu Pelotão, tinha soldados balantas, bigajós, mandingas, papeis e fulas. No fim da comissão só existiam fulas).
A primeira Companhia, totalmente africana, foi a dos Comandos Africanos, cuja instrução acompanhei em Fá Madinga. Oficiais, sargentos, furriéis e praças, incluindo mecânicos, vaguemestres, enfermeiros, todos eram guineenses.
Entre os militares nativos do meu Pelotão, existiram os que apenas cumpriram o serviço militar obrigatório e passaram à disponibilidade, designadamente todos os cabos (Injai, Carlitos, João, Negado e outro de etnia Manjaca de que não recordo o nome). Nenhum deles era Fula. Os Fulas continuaram. Porquê? Que iriam fazer fora da Tropa? Como sobreviver? De que forma alimentariam as mulheres e os filhos? Não haviam os avós e os bisavós, combatido ao lado dos portugueses? E combatido contra quem? Contra Balantas, contra Mandingas, que agora estavam no P.A.I.G.C. Onde o conceito de Pátria? Qual Pátria?
Obviamente que o caso dos quadros dos Comandos Africanos é diferente. Para os meus amigos Saegue, Januário, Jamanca, Camará, Justo ou Sisseco, o ser oficial do Exército Português representava a ascensão social, mas também a desforra contra séculos de humilhação. Os portugueses precisavam deles. Afinal também os negros podiam comandar tão bem ou melhor do que os oficiais saídos da Academia Militar (é interessante assinalar que as reticências postas por eles à Operação Mar Verde, tiveram principalmente a ver com o uniforme. Queriam ir, mas fardados de oficiais portugueses).
Que esperavam estes comandos no fim da Guerra? Não posso falar por todos. Mas conversei sobre o assunto muitas vezes com o Saegue, que acreditava numa solução política, numa independência negociada, na sua futura integração no Exército da Guiné Bissau, ou na sua vinda para Portugal, que ele conhecia, pois estudara em Santarém.
Só uma eufórica ingenuidade, pode ter permitido tão trágico quanto negligente abandono. Bastaria ter atentado no que sucedeu ao Januário, irmão de um quadro do P.A.I.G.C., que tendo desertado em Conakry com o seu grupo de combate foi fuzilado, ele e os seus homens.
Não podemos emendar a História! E quanto à dramática morte de Amigos, ou de Homens com quem convivemos diariamente, assiste-nos o direito à tristeza e à mágoa, independentemente dos erros, que eles possam ter cometido.
Como sempre, um Grande, Grande Abraço,
Jorge
__________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 17 de Dexembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)
(2) Vd. posts recentes de (entre outros):
12 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)
12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)
11 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)
10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLII: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)
6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)
Amigo Luís,
Porque comandei um Pelotão de Caçadores Nativos [nº 63] e fui amigo de alguns Comandos Africanos, a questão dos fuzilamentos toca-me profundamente (2).
Já sabia que militares guineenses pertencentes às Companhias e Pelotões de Caçadores haviam sofrido a mesma sorte. Do meu Pelotão foram três, e embora já me tenha referido a este assunto, em colaboração anterior, considero-me obrigado a mais uma vez reflectir serenamente e com a objectividade possível.
Compreendo, aceito e comungo da emoção sentida por todos aqueles que partilharam perigos, cansaços e medos com os africanos, caindo nas mesmas emboscadas e defendendo quartéis comuns.
A emoção porém, ou a falta dela, não nos devem obnubilar a razão ou tolher o raciocínio, contribuindo para conclusões simplistas. Não foram patriotas portugueses que foram fuzilados, nem o lixo, até porque a todo o Homem é devido o respeito pela sua dignidade, inerente à condição humana. Foram Homens que foram fuzilados!
Quero acreditar que todos somos contra a pena de morte e que também repudiamos frontalmente que alguém possa ser condenado sem julgamento. O ter pertencido ao Exército Português foi considerado facto suficiente para consubstanciar o crime de traição. Não se apuraram as culpas individuais, nem a consciência da ilicitude, num Tribunal imparcial, que garantisse o Direito de Defesa, como deve acontecer em qualquer parte do Mundo.
Parece evidente que o ter sido torcionário, cortador de cabeças ou criminoso de guerra, constitui uma realidade diferente do ter servido rotineiramente, por necessidade de sobrevivência, num Pelotão ou numa Companhia de Caçadores Africanos.
Tinham todos os guineenses que integravam as tropas portuguesas a consciência de que estavam a trair a sua Pátria? Haviam todos interiorizado o conceito de Pátria? Porque serviam no Exército Português?
Ao longo dos tempos, nas Campanhas de Subjugação e Pacificação, os Portugueses contaram quase sempre com a ajuda dos Fulas, os quais combatiam ao serviço de Senhores da Guerra, enquadrados em unidades africanas, ou desempenhavam funções de auxiliares. Não lutavam por nenhuma Pátria, eram aliados dos Portugueses, contra Papeis, Balantas, Bijagós, Felupes ou Mandingas, os quais se batiam em defesa do seu chão, contra o pagamento de impostos ou o recrutamento forçado para as obras. A sede do poder e da riqueza, e a possibilidade do saque, justificava a aliança Portugueses-Fulas.
A ideia do Portugal plurirracial é contemporânea do início da Guerra Colonial. A substituição do termo Colónias pela designação Províncias Ultramarinas, foi expediente saloio, para enganar a Comunidade Internacional, e procurar legitimar a Guerra – Portugal não tinha Colónias e todos eram Portugueses. Todos sabemos que se tratava de uma ficção.
Nas Colónias vigorou o Estatuto do Indigenato, de acordo com o qual, só alguns eram considerados assimilados, usufruindo da cidadania. Os africanos foram sempre subalternizados, empregados em funções menores, ou enfeitados com cargos honoríficos como os oficiais de 2ª Linha.
Até aos anos 60, nenhum negro tinha acesso à frequência da Escola do Exército. É com a guerra que esta situação vai ser alterada. A necessidade de homens para combater determinou uma estratégia de africanização, que deu lugar à criação de unidades africanas, Companhias e Pelotões, de base étnica, e primeiramente comandadas por quadros europeus. (Quando tomei conta do meu Pelotão, tinha soldados balantas, bigajós, mandingas, papeis e fulas. No fim da comissão só existiam fulas).
A primeira Companhia, totalmente africana, foi a dos Comandos Africanos, cuja instrução acompanhei em Fá Madinga. Oficiais, sargentos, furriéis e praças, incluindo mecânicos, vaguemestres, enfermeiros, todos eram guineenses.
Entre os militares nativos do meu Pelotão, existiram os que apenas cumpriram o serviço militar obrigatório e passaram à disponibilidade, designadamente todos os cabos (Injai, Carlitos, João, Negado e outro de etnia Manjaca de que não recordo o nome). Nenhum deles era Fula. Os Fulas continuaram. Porquê? Que iriam fazer fora da Tropa? Como sobreviver? De que forma alimentariam as mulheres e os filhos? Não haviam os avós e os bisavós, combatido ao lado dos portugueses? E combatido contra quem? Contra Balantas, contra Mandingas, que agora estavam no P.A.I.G.C. Onde o conceito de Pátria? Qual Pátria?
Obviamente que o caso dos quadros dos Comandos Africanos é diferente. Para os meus amigos Saegue, Januário, Jamanca, Camará, Justo ou Sisseco, o ser oficial do Exército Português representava a ascensão social, mas também a desforra contra séculos de humilhação. Os portugueses precisavam deles. Afinal também os negros podiam comandar tão bem ou melhor do que os oficiais saídos da Academia Militar (é interessante assinalar que as reticências postas por eles à Operação Mar Verde, tiveram principalmente a ver com o uniforme. Queriam ir, mas fardados de oficiais portugueses).
Que esperavam estes comandos no fim da Guerra? Não posso falar por todos. Mas conversei sobre o assunto muitas vezes com o Saegue, que acreditava numa solução política, numa independência negociada, na sua futura integração no Exército da Guiné Bissau, ou na sua vinda para Portugal, que ele conhecia, pois estudara em Santarém.
Só uma eufórica ingenuidade, pode ter permitido tão trágico quanto negligente abandono. Bastaria ter atentado no que sucedeu ao Januário, irmão de um quadro do P.A.I.G.C., que tendo desertado em Conakry com o seu grupo de combate foi fuzilado, ele e os seus homens.
Não podemos emendar a História! E quanto à dramática morte de Amigos, ou de Homens com quem convivemos diariamente, assiste-nos o direito à tristeza e à mágoa, independentemente dos erros, que eles possam ter cometido.
Como sempre, um Grande, Grande Abraço,
Jorge
__________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 17 de Dexembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)
(2) Vd. posts recentes de (entre outros):
12 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)
12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)
11 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)
10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLII: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)
6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)
Guiné 63/74 - P761: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes)
Guiné-Bissau > Bissau > Restaurante Colete Encarnado > 21 de Abril de 2006 > O coronel A. Marques Lopes, o comandante Lúcio Soares e o comandante Braima Dakar. Foto: © Xico Allen (2006)
Guiné-Bissau > Bissau > Restaurante Colete Encarnado > 21 de Abril de 2006 > O A. Marques Lopes e o Lúcio Soares. Foto: © Xico Allen (2006)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > Darami Nabo, guerrilheiro do PAIGC, que esteve na base de Sinchã Jobel durante a guerra, e que hoje mora lá. É irmão do Mulé.
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
Guiné-Bissau > REgião de Baftá > Sinchã Jobel > Mule Nabo, guerrilheiro do PAIGC, que esteve na base de Sinchã Jobel durante a guerra, e que hoje mora lá. É irmão do Darami.
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)...
Comentário de L.G.: Agradeço ao A. Marques Lopes e ao Xico Allen esta oportunidade, excepcional, de conhecer o rosto daqueles a quem chamávamos eufemisticamente o IN... Pois o IN tinha rosto, eram homens (e mulheres), de carne e osso, como nós, que combatiam pelas suas razões... Reencontrá-los, apanhá-los ainda vivos e lúcidos, pô-los a falar, ouvi-los, saber por onde andaram, reconstituir a sua estória de vida como guerrilheiros, sentir a pulsão das suas emoções, paixões, alegrias e medos, mexer com a sua memória, fazer as pazes come eles... é uma tarefa urgente e imprescindível para que a nossa missão, agora de paz, se cumpra definitivamente...
Temos essa obrigação, a de dar voz (e imagem) a esses velhos guerrilheiros, caboverdianos e guineenses, que deram o melhor da sua vida e da juventude pela realização de um sonho, o sonho de Amílcar Cabral e de mais um punhado de homens e mulheres que queriam ser livres e donos da sua terra, e passar a falar connosco, em português, mas de iguais para iguais... O texto e as fotos que hoje inserimos marcam um momento muito simbólico da vida da nossa tertúlia... Perdõem-me o abuso do tempo de antena, mas eu, como editor do blogue, precisava de fazer esta pequena chamada de atenção. Obrigado Marques Lopes, Xico Allen, Lúcio Soares, Braima Dakar e irmãos Nabo... L.G.
Encontro com o IN
... Mas, desta vez, este encontro não meteu tiros, como sucedeu naquele dia 24 de Junho de 1967, durante a operação Jigajoga (1). Ao invés, tivemos que nos haver, em conjunto, com os belos pratos do restaurante Colete Encarnado, em Bissau, e isto sucedeu na noite do dia 21 de Abril de 2006, já eu e o Allen estávamos sozinhos (os restantes tinham regressado a Portugal no avião da tarde).
Através do nosso grande amigo Pepito , consegui o telefone do comandante Lúcio Soares, convidei-o para jantar e ele acedeu prontamente a estar comigo e com o Allen. Não tenham dúvidas que foi um encontro emocionante para mim, estar com o chefe guerrilheiro que montou a emboscada que me fez ficar uma noite na bolanha de Sinchã Jobel (2) e que, mais tarde, me mandou nove meses para o hospital (3).
Falámos sobre isso, e mostrou ser um homem calmo e comedido. Ele tem agora 64 anos e chegámos, pois, à conclusão que andámos aos tiros um ao outro, eu com 23 anos e ele com 25, eu mandado para lá sem quaisquer objectivos pessoais, a não ser sobreviver durante a missão que me foi imposta, e ele, como me disse, com o objectivo muito assumido de lutar pela independência da sua terra. Concordámos que foi pena as coisas se terem passado como passaram, que era melhor ter encontrado outra forma menos dolorosa de resolver o conflito imposto.
Contou-nos algumas coisas do seu percurso. As baracas foram montadas em Sinchã Jobel em Maio de 1967 e, a propósito, perguntou-me se, quando lá fui a 24 de Junho, já sabia que eles estavam lá. Esclareci-o que eu não sabia nada, mas que as cabeças pensantes tinham suspeitas disso sem me dizerem, que eu fui num jogo de cabra-cega, ao ludíbrio, que é o que quer dizer jigajoga, e por isso lhe deram o nome.
Enquanto lá esteve como comandante, o Gazela (morreu há cerca de dois meses) era o seu comissário político. No princípio de 1968 saíu para ir comandar a base do Morés, passando o Gazela a comandar Sinchã Jobel. Em 1970 o Gazela foi para sul, para a zona de Empada, mas não me soube dizer qual foi o seu substituto.
Após o 25 de Abril integrou o grupo do Pedro Pires, em Londres, para negociar a formalização da independência. Mais tarde foi Ministro da Defesa no governo de Luís Cabral. Após o golpe de Nino Vieira, em 1980, exilou-se em Cabo Verde, onde esteve durante 14 anos. Regressou depois e está, agora, reformado como coronel (mantem o nome comandante porque é histórico).
Contou-me que sofreu uma emboscada em 1968, na zona de Sambuiá (uma das zonas da minha actividade operacional, quando na CCAÇ 3 em Barro), quando se dirigia ao Senegal. Terei sido eu? Não sei.
O Braima Dakar, nome de guerra de Braima Camará, numa das fotografias, é outro comandante que esteve ligado à morte dos três majores em chão manjaco (4). Disse-me que se disseram muitas coisas sobre isso que não são verdade, que não queria falar, e não me contou nada.
O Mulé Nabo e o Darami Nabo são dois guerrilheiros do PAIGC, irmãos, que estiveram na base de Sinchã Jobel durante a guerra, em cuja tabanca moram actualmente. Perguntei ao Lúcio Soares se queria ir comigo lá, mas ele disse que não tinha disponibilidade.
Curiosamente, quando estávamos já a comer, entraram dois polícias no Colete Encarnado e ficaram numa mesa atrás. A certa altura, o Lúcio Soares foi à casa de banho e, quando voltou, deu com os polícias. Foi quando me disse que não podia ir a Sinchã Jobel e, de seguida, se levantou e se desculpou pois tinha de ir embora. Os polícias foram de seguida.
Mas eu e o Allen fomos a Sinchã Jobel. Depois conto.
Abraços
A. Marques Lopes
____________
Nota de L.G.
(1) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
(...) " Na primeira metade de 1967, o PAIGC montou uma base de guerrilha em Sinchã Jobel. Sem querer (...), fui eu que dei com ela. O responsável militar dessa base era o Comandante Lúcio Soares, que foi, depois da independência, Ministro da Defesa; o responsável político era Cabral de Almada, conhecido como Comandante Gazela, que foi Vice-Presidente da Assembleia Nacional Popular.
"Quando estive na Guiné-Bissau, em 1998, pouco antes do golpe de Ansumane Mané, tive uma conversa muito interessante com o Comandante Gazela: lembrámos muita coisa sobre Sinchã Jobel, falámos dos problemas do povo guineense, concordámos que era melhor não termos andado aos tiros uns aos outros (pediu-me desculpa por me ter mandado para o hospital, mas teve de ser assim...)... e demos um abraço de despedida" (...).
(2) Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...
Excerto de um comentário de L.G. sobre este texto do A. Marques Lopes: "É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o inferno físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das suas razões de Estado...Fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, poderia ser o excerto de um livro em curso. Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia" (...).
(3) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIII: A morte no caminho para Banjara
(4) Vd. post, de João Varanda, de 26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIII: A morte de três majores e de um alferes no chão manjaco
Guiné-Bissau > Bissau > Restaurante Colete Encarnado > 21 de Abril de 2006 > O A. Marques Lopes e o Lúcio Soares. Foto: © Xico Allen (2006)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > Darami Nabo, guerrilheiro do PAIGC, que esteve na base de Sinchã Jobel durante a guerra, e que hoje mora lá. É irmão do Mulé.
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
Guiné-Bissau > REgião de Baftá > Sinchã Jobel > Mule Nabo, guerrilheiro do PAIGC, que esteve na base de Sinchã Jobel durante a guerra, e que hoje mora lá. É irmão do Darami.
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)...
Comentário de L.G.: Agradeço ao A. Marques Lopes e ao Xico Allen esta oportunidade, excepcional, de conhecer o rosto daqueles a quem chamávamos eufemisticamente o IN... Pois o IN tinha rosto, eram homens (e mulheres), de carne e osso, como nós, que combatiam pelas suas razões... Reencontrá-los, apanhá-los ainda vivos e lúcidos, pô-los a falar, ouvi-los, saber por onde andaram, reconstituir a sua estória de vida como guerrilheiros, sentir a pulsão das suas emoções, paixões, alegrias e medos, mexer com a sua memória, fazer as pazes come eles... é uma tarefa urgente e imprescindível para que a nossa missão, agora de paz, se cumpra definitivamente...
Temos essa obrigação, a de dar voz (e imagem) a esses velhos guerrilheiros, caboverdianos e guineenses, que deram o melhor da sua vida e da juventude pela realização de um sonho, o sonho de Amílcar Cabral e de mais um punhado de homens e mulheres que queriam ser livres e donos da sua terra, e passar a falar connosco, em português, mas de iguais para iguais... O texto e as fotos que hoje inserimos marcam um momento muito simbólico da vida da nossa tertúlia... Perdõem-me o abuso do tempo de antena, mas eu, como editor do blogue, precisava de fazer esta pequena chamada de atenção. Obrigado Marques Lopes, Xico Allen, Lúcio Soares, Braima Dakar e irmãos Nabo... L.G.
Encontro com o IN
... Mas, desta vez, este encontro não meteu tiros, como sucedeu naquele dia 24 de Junho de 1967, durante a operação Jigajoga (1). Ao invés, tivemos que nos haver, em conjunto, com os belos pratos do restaurante Colete Encarnado, em Bissau, e isto sucedeu na noite do dia 21 de Abril de 2006, já eu e o Allen estávamos sozinhos (os restantes tinham regressado a Portugal no avião da tarde).
Através do nosso grande amigo Pepito , consegui o telefone do comandante Lúcio Soares, convidei-o para jantar e ele acedeu prontamente a estar comigo e com o Allen. Não tenham dúvidas que foi um encontro emocionante para mim, estar com o chefe guerrilheiro que montou a emboscada que me fez ficar uma noite na bolanha de Sinchã Jobel (2) e que, mais tarde, me mandou nove meses para o hospital (3).
Falámos sobre isso, e mostrou ser um homem calmo e comedido. Ele tem agora 64 anos e chegámos, pois, à conclusão que andámos aos tiros um ao outro, eu com 23 anos e ele com 25, eu mandado para lá sem quaisquer objectivos pessoais, a não ser sobreviver durante a missão que me foi imposta, e ele, como me disse, com o objectivo muito assumido de lutar pela independência da sua terra. Concordámos que foi pena as coisas se terem passado como passaram, que era melhor ter encontrado outra forma menos dolorosa de resolver o conflito imposto.
Contou-nos algumas coisas do seu percurso. As baracas foram montadas em Sinchã Jobel em Maio de 1967 e, a propósito, perguntou-me se, quando lá fui a 24 de Junho, já sabia que eles estavam lá. Esclareci-o que eu não sabia nada, mas que as cabeças pensantes tinham suspeitas disso sem me dizerem, que eu fui num jogo de cabra-cega, ao ludíbrio, que é o que quer dizer jigajoga, e por isso lhe deram o nome.
Enquanto lá esteve como comandante, o Gazela (morreu há cerca de dois meses) era o seu comissário político. No princípio de 1968 saíu para ir comandar a base do Morés, passando o Gazela a comandar Sinchã Jobel. Em 1970 o Gazela foi para sul, para a zona de Empada, mas não me soube dizer qual foi o seu substituto.
Após o 25 de Abril integrou o grupo do Pedro Pires, em Londres, para negociar a formalização da independência. Mais tarde foi Ministro da Defesa no governo de Luís Cabral. Após o golpe de Nino Vieira, em 1980, exilou-se em Cabo Verde, onde esteve durante 14 anos. Regressou depois e está, agora, reformado como coronel (mantem o nome comandante porque é histórico).
Contou-me que sofreu uma emboscada em 1968, na zona de Sambuiá (uma das zonas da minha actividade operacional, quando na CCAÇ 3 em Barro), quando se dirigia ao Senegal. Terei sido eu? Não sei.
O Braima Dakar, nome de guerra de Braima Camará, numa das fotografias, é outro comandante que esteve ligado à morte dos três majores em chão manjaco (4). Disse-me que se disseram muitas coisas sobre isso que não são verdade, que não queria falar, e não me contou nada.
O Mulé Nabo e o Darami Nabo são dois guerrilheiros do PAIGC, irmãos, que estiveram na base de Sinchã Jobel durante a guerra, em cuja tabanca moram actualmente. Perguntei ao Lúcio Soares se queria ir comigo lá, mas ele disse que não tinha disponibilidade.
Curiosamente, quando estávamos já a comer, entraram dois polícias no Colete Encarnado e ficaram numa mesa atrás. A certa altura, o Lúcio Soares foi à casa de banho e, quando voltou, deu com os polícias. Foi quando me disse que não podia ir a Sinchã Jobel e, de seguida, se levantou e se desculpou pois tinha de ir embora. Os polícias foram de seguida.
Mas eu e o Allen fomos a Sinchã Jobel. Depois conto.
Abraços
A. Marques Lopes
____________
Nota de L.G.
(1) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
(...) " Na primeira metade de 1967, o PAIGC montou uma base de guerrilha em Sinchã Jobel. Sem querer (...), fui eu que dei com ela. O responsável militar dessa base era o Comandante Lúcio Soares, que foi, depois da independência, Ministro da Defesa; o responsável político era Cabral de Almada, conhecido como Comandante Gazela, que foi Vice-Presidente da Assembleia Nacional Popular.
"Quando estive na Guiné-Bissau, em 1998, pouco antes do golpe de Ansumane Mané, tive uma conversa muito interessante com o Comandante Gazela: lembrámos muita coisa sobre Sinchã Jobel, falámos dos problemas do povo guineense, concordámos que era melhor não termos andado aos tiros uns aos outros (pediu-me desculpa por me ter mandado para o hospital, mas teve de ser assim...)... e demos um abraço de despedida" (...).
(2) Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...
Excerto de um comentário de L.G. sobre este texto do A. Marques Lopes: "É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o inferno físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das suas razões de Estado...Fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, poderia ser o excerto de um livro em curso. Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia" (...).
(3) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIII: A morte no caminho para Banjara
(4) Vd. post, de João Varanda, de 26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIII: A morte de três majores e de um alferes no chão manjaco
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