1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2013:
Queridos amigos,
É um álbum com imagens espantosas, encerra um cadinho de todas aquelas belezas e valores que podemos observar.
Por um lado, parece estar registado um povo perene, nos seus princípios e atitudes onde pesam o sentido do clã, da família, da ancestralidade; por outro lado, há uma atmosfera, um quase sentimento de que as coisas se podem transformar, que vale a pena participar, que vale a pena acreditar.
Sinto-me feliz por ter achado esta beleza numa das mais acessíveis cavernas de Ali Babá, a Feira da Ladra. Carlos Lopes, uma das grandes figuras da intelectualidade guineense, deixa-nos aqui textos da realidade guineense à altura dos sonhos que ele guardou para o seu país.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau: Um alfabeto de grande beleza
Beja Santos
Em 1984, uma ONG italiana, GVC – Grupo Voluntariato Civile, com texto do escritor Carlos Lopes e financiamento da Comissão Europeia, produz um álbum magnífico,
Guiné-Bissau, alfabeto. Carlos Lopes explica na nota introdutiva:
“O trabalho que vos propomos é uma tentativa de traduzir em imagens, tanto fotográficas como escritas, uma realidade social ímpar. Os temas do nosso alfabeto de imagens passa em revista as candências desta coletividade. Não se quis fazer apologias fáceis nem propagandear o que quer que fosse. Tentamos compreender as razões da perpetuação do longo equilíbrio que preside às relações de produção existentes no país, nas suas multifacetadas formas, de expressão do poder ou de afirmação étnica”.
E que escolhas de letras do alfabeto? Arroz, Brakundadi, Cabral Ka Muri, Desenvolvimento, Etnia, Fome, Germinação, Homem-Grande, Independência, Juventude, Kaabú, Luta, Mindjer, Nô Terra, Organização, Poder, Quarto Ano, Resistência, Saúde, Tabanca, Unidade, Vida.
Arroz, porque é o alimento-base, está presente em todas as conjeturas e figura no ativo de todas as conjunturas, é a atividade agrícola fundamental;
Brankundadi, porque no passado tudo dependia do branco, o indígena devia colaborar com o europeu e a sua inteligência, o branco tinha um intermediário importante, o assimilado, mas a política, o poder, era uma questão dos brancos;
Cabral Ka Muri, é a melhor homenagem que se pode fazer ao fundador do PAIGC, ele dizia:
“Sou um simples africano que quis salvar a sua dívida para com o seu povo e viver a sua época”;
Desenvolvimento, porque é o grande sonho da Guiné-Bissau, país economicamente insignificante para quem todos os apelos ao desenvolvimento não são poucos;
etnia, porque é o ponto de partida para os destinos da coletividade, todos estes grupos étnicos têm uma riqueza cultural espantosa, ainda hoje pasto para muitos equívocos, o risco tribal continua a assolar a Guiné-Bissau;
Fome, vive-se sob o espectro da escassez, de que a fome é apenas um momento agudo, qualquer pequena oscilação que afete o mínimo, põe tudo em questão, porque o mínimo é o essencial;
Germinação, porque as crianças são sempre o futuro à espreita, Cabral chamava-lhe
“as flores da nossa luta”, as crianças são as implacáveis testemunhas do nosso quotidiano;
Homem-Grande, ele representa a garantia vivia da perenidade da cultura, é uma biblioteca viva, o que ouviram contar é para transmitir, como amadureceram, tudo fazem por tornar o passado na levedura do futuro;
Independência, foi aqui que desaguou uma corrente chamada a consciência nacional que trazia a promessa de reconverter a operação e difundir as oportunidades até então feitas promessa;
Kaabú, já havia mundo quando aqui aportaram os colonizadores, os Djidius ensinam que o Gabú se estendia do rio Gâmbia ao rio Grande na Guiné-Bissau, englobando assim a Gâmbia, o Casamansa e o interior da Guiné-Bissau, o Kaabú é o orgulho pelos ancestrais, pelas muitas verdades a descobrir;
Luta; palavra mágica na Guiné-Bissau, simboliza laços de sangue, sofrimentos anónimos, a doação da própria vida para se chegar à liberdade;
Mindjer, mulheres desgastadas, nossas mães, autoras da germinação, agricultoras, obrigadas à submissão pela tradição;
Nô Terra, porque se passou da etnia à nação de guineenses, o sonho de Cabral era de que a pluralidade étnica se transformasse no cimento da nova República;
Organização, aspirava-se nos tempos da luta a que organização transformasse a realidade, suscitasse o prazer de saber, porque organizar só é possível após conhecer, calcular, experimentar;
Poder, a promessa era de que todo o poder vem e vai para o povo daí a participação popular para se chegar a uma sociedade de coesão dinâmica, depois o poder perverteu-se, passou para as mãos de alguns que recorrem à dominação, afligindo aqueles a quem era prometida a libertação;
Quarto Ano, ainda havia sonhos, de aumentar a produção, de liquidar o desemprego, de praticar a justiça social, veio a secessão e depois a apatia, a ascensão de uma clique que se constituiu beneficiária da riqueza produzida;
Resistência, é ter consciência, é a reivindicar teimosamente os princípios, é aquela boa obstinação que se transforma em património material e imaterial;
Saúde, é a raiz do desenvolvimento para a melhor educação, predispõe para o trabalho que é a fonte da riqueza, saúde materno-infantil, saúde para erradicar moléstias como a doença do sono e os tracomas;
Tabanca, o ponto de partida que como diz um poeta, quando a lama se transforma em adobe/ o Sibe vira armação/ a palha em cobertura/ e o Crintim se torna cerca,/ é a Morança que nasce/ fruto de um trabalho coletivo,/ lugar onde habitam os homens/ das profundezas do País;
Unidade, uma das catapultas para a luta armada, para se chegar à coesão, sem a qual é impossível fazer avançar o mais lindo dos projetos, uma unidade dinâmica e que a todos irmana;
Vida, um somatório complexo de inquietações e de alegrias, de anseios, realizações, por vezes frustrações, e tem-se mais vida quanto mais ela se espalha à nossa volta em construção…
A quem se destinaria este álbum, tão benfazejo, tão esperançoso? O livro em si não dá resposta, as imagens são exaltantes, documentam, são para apreender, entender e fazer entender. Muito provavelmente, foi encarado como um álbum para formadores e também para estrangeiros interessados na cooperação. Talvez. Carlos Lopes não se escondeu em nenhuma neutralidade, fez com que todas estas imagens se transformassem aos nossos olhos como sérias advertências. Por exemplo quando fala da mulher socorre-se de um poema de José Carlos Schwartz a propósito das mulheres abandonadas pelos combatentes quando chegaram à cidade e se amestraram no conforto:
Apili
Apili, Apili, Apili
sempre perto do marido
homem, homem corajoso
combatente do povo.
Mas os TUGAS arrumaram a bagagem
para regressarem ao seu país,
os combatentes entraram na cidade
o marido de Apili também.
O marido de Apili entrou,
entrou procurando nova esposa
que saiba entrar e saiba sair.
Apili ficou só
com as recordações do sofrimento,
da fome, das aflições.
Mas Apili, não percas a coragem
a verdade do partido não se perde
a não ser na boca dos mal intencionados.
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Nota do editor
Último poste da série de 18 DE JULHO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11853: Notas de leitura (502): "Guineidade e Africanidade", por Leopoldo Amado - uma outra leitura (2) (Francisco Henriques da Silva)