Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Um observação, mais uma vez, por parte do editor do blogue, para não se deixar passar, impunemente, uma crassa asneira que pode ser atribuída, no mínimo, a ligeireza ou a santa ignorância e, no máximo, a racismo encapotado, a incultura geral, a apressada exploração comercial, por parte do editor deste postal, a Foto Iris, do exotismo da Guiné - aos olhos dos tugas que chegavam, aos milhares, nos T/T Niassa, Uíge, Alfredo da Silva, Ana Mafalda... (Tratava-se, aliás, de um negócio altamente lucrativo, dada a procura dos postais ilustrados).
Primeiro, não há uma 'raça maoematana' (!!!). Aliás, não existe o conceito (antropológico) de raça aplicado aos seres humanos. Só há uma raça (ou melhor: uma espécie), a do Homo Sapiens Sapiens... Os grupos humanos distinguem-se sobretudo pela cultura (etnia, língua, apropriação do espaço, usos e costumes, produção, religião...), embora haja diferenças a nível do fenótipo (por exemplo, a cor da pele).
Por outro lado, não havendo mais do que uma raça (o que remete para o genótipo e não para o fenótipo), também não poderá existir um raça...maometana. Tal como não existe uma raça... cristã. Maomé e Cristo são apenas fundadores de religiões, o islamismo e o cristianismo. Há cristãos e muçulmanos... "brancos, pretos e amarelos"!
Na Guiné-Bissau, o que havia (e há) são diferentes grupos étnico-linguísticoss, alguns dos quais islamizados, como os fulas, os mandingas e os biafadas, que tendiam (tendem) a adoptar o vestuário árabe, de resto generalizado entre as populações norte-africanas e sub-saharianas, porque muito mais apropriado ao clima, e mais confortável e saudável, do que o vestuário ocidental.
Por razões de aliança histórica e estratégica, as autoridades portugueses, sob o governo de Spínola (1968-1973), deram um tratamento especial às autoridades tradicionais locais, políticas e religiosas, ligadas aos grupos islamizados e, em especial, aos fulas que habitavam maioritariamente na Zona Leste (concelhos de Bafatá e Nova Lamego) . O Cherno Rachide Djaló, futa-fula, que vivia em Aldeia Formosa e que já morreu, era naquele tempo a autoridade máxima religiosa do Islão na então província portuguesa da Guiné.
Sobre o Islão e a Guiné Portuguesa, vd. o texto, em linha, de Francisco Proença de Garcia > Os movimentos independentistas, o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974) (LG).
Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCAÇ 2381 (1968/70) > O Maioral Zé Teixeira, 1º cabo enfermeiro, junto ao obus 14 que batia a zona fronteiriça...
Fotos: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.
1.José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70)
Sobre o Cherno Rachide, sempre o tive como agente duplo. Recordo que o então Major Carlos Azeredo em 1968, todos os dias o ia visitar, quando ele estava em Quebo. Um dia chegou ao refeitório e deu ordens para irmos todos para a paliçada as 17.30 h. Precisamente a essa hora começou um ataque de armas pesadas. Só que as granadas rebentaram todas para além da pista, exactamente o lado oposto da população.
Comentava-se que era para evitar que o Cherno corresse riscos de vida. Dizia-se por lá que o comandante de zona do PAIGC era sobrinho do Cherno e por isso Quebo estava bem protegido. De facto ali à volta toda a gente sofria ataques e Quebo apreciava à distância ou enviava granadas de obuz 14 mm para a tabanca atacada, como aconteceu com Mampatá e Chamarra.
2. Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf, CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71)
Meu Caro Luís Graça,
Eu conheci pessoalmente o Cherno Rachide Djaló, chefe dos muçulmanos, em Aldeia Formosa. E confirmo que este grande marabu era amigo do General Spínola e de mais alguém em S. Bento, Lisboa, que lhe pagava as viagens para Meca.
Em Dezembro de 1969, era eu professor do Posto Escolar Militar de Aldeia Formosa. Já tinha ouvido algumas histórias sobre a influência, o poder e os "poderes" do Cherno.Um dia fui abordado por um milícia, com ar preocupado, porque o filho (ou sobrinho?) do Cherno queria falar comigo, mas como não falava português, então ele, o milicia, seria o intérprete.
Recebi o visitante, que estava nervoso, mãos a tremer, que não falava português, mas percebia perfeitamente as minhas respostas. A preocupação do Cherno centrava-se na possibilidade de as cerca de trinta crianças que frequentavam a escola, serem aliciadas com o ensino da religião católica.
- Nada disso... zero... zero... - respondi, gesticulando. - E mais, se necessário, eu próprio vou falar com o Cherno, para garantir que não será ensinada religião católica.
Proposta aceite. Reunião marcada. No dia seguinte, lá fui à tabanca grande do Cherno Rachide Djaló.
Primeira surpresa, agradável, o aspecto luxuoso dos tapetes que cobriam aquele chão.Tirei as botas e sentei-me. Segunda surpresa, desagradável. Tinha na minha frente um homem abatido, com ar doente, olhar distante, que nem as vestas brancas, debroadas de amarelo torrado, conseguiam amenizar. O grande marabu estava mesmo preocupado.
Falei-lhe em voz baixa, pausadamente, reafirmando o que já tinha dito ao ajudante. Apenas ia ensinar os alunos a ler, escrever e contar. Fora da Escola, ao ar livre, faríamos educação física, jogos e canções. Mas nada de religião.
Enquanto o milícia traduzia, o Cherno fazia pequenos gestos de concordância.
Depois, fez uma pausa e disse que se era assim os meninos podiam frequentar a Escola.
Ficou tranquilo. Menos tenso, mas nunca sorriu. Despediu-se afectuosamente, como se estisse a abençoar-me. Agradeci, por mim e pelos alunos.
Regressei ao Quartel, mas pelo caminho uma dúvida permanecia no meu espírito.
Alguma coisa não estava certa. Um chefe religioso, mesmo ali, naquele sítio, naquela situação de guerra, não tem aquele comportamento. E hoje ao ler o post do Luis Graça, fez-se luz. Era isso, o "agente duplo".
O Cherno Rachid Djaló era um homem de confiança do PAIGC, pois embora estivesse no terreno ocupado por Portugal, tinha muita influência na população e não deixaria avançar a difusão da cultura e muito menos da religião dos portugueses. Aliás, nos ataques a Aldeia Formosa, os danos civis são quase nulos.
Manuel Amaro
ex-Fur Mil Enf
CCaç 2615,
1969/71
3. Torcato Mendonça (ex-Alf Mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)
Olá, Boa Noite, muito breve numa, nem é comentário, pequena chamada de atenção para o titulo - Agente Duplo. Se me é permitido, falar assim daquele homem, pelo conhecimento que tenho é violento.
Mas ficam muitas interrogações no ar, desde as apontadas pelo Zé Teixeira, as visitas dos Governadores (conheci dois), os antecedentes e a implementação do PAI e PAIGC... e muito, muito! Quantos agentes duplos haveria na Guiné? Porque teria o Cherno de Aldeia Formosa tanto poder?
Isto dava uma bela conversa. Sim, porque há assuntos que se falam...só [, ou a sós ', meu caro José ?].
Os duplos...os duplos... e hoje???
Um tri-abraço do Torcato
Torcato Mendonça
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 27 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3361: PAIGC - Docs (2): O grande marabu Cherno Rachide, de Aldeia Formosa: um agente duplo ? (Luís Graça)
Vd. também:
2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)
4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1815: Álbum das Glórias (14): o 4º Pelotão da CCAÇ 14 em Aldeia Formosa e em Cuntima (António Bartolomeu)
18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça).
(**) Vd. poste des
18 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3326: O meu baptismo de fogo (12): Aldeia Formosa, 23 de Abril de 1970: realiza-se a premonição de um furriel enfermeiro (Manuel Amaro)
29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2895: Tabanca Grande (72): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2895 (Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71)