1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 4 de Outubro de 2015:
O tédio dos dias longos da reforma, que para muitos de nós se pode assemelhar a uma longa espera, de braços cruzados, dum fim inevitável que a todos nos aguarda, na sucessão dos dias e na curva dos anos, essa tristeza de horas vazias, que se pode transformar numa depressão melancólica e ligeira ou até numa depressão mais aguda, segundo os especialistas, pode ser combatida por várias formas.
Uma boa forma de o combater, aconselham eles, são as viagens. Viagens que até podem não ser muito longínquas mas que representam sempre, para quem as faz, uma mudança de rotina, uma mudança do cenário quotidiano, em que o espírito desperta e se reanima por estímulos novos, que podem ser cidades com outras ruas avenidas, pontes, rios, monumentos, outras gentes e outras paisagens.
Dado que ninguém pode andar sempre em viagem e sobretudo os reformados portugueses, a toda a hora assaltados pelos rapazes da política de mãos dadas com os banqueiros, temos que encontrar outras alternativas para nos ocuparmos nos longos meses que ainda sobram depois das viagens possíveis.
Alternativas possíveis há muitas: tratar dos netos, plantar uma horta, escrever um livro, ajudar a melhorar a vida dos presos, dos doentes, dos sem-abrigo, dos refugiados. Estas e outras actividades são uma boa terapia para as nossas horas de enfado e solidão.
Para os que preferem o aconchego do lar, podem sempre navegar na internete, o que se pode tornar um pouco cansativo depois de algumas breves horas. Navegar na internete ou ver televisão duma forma passiva, pode tornar-se pouco estimulante na medida em que o nosso trabalho cerebral é diminuto.
Para esses recomendo uma leitura de um livro ao seu gosto. Há tantos e tão variados; sobre saúde, psicologia, filosofia. sociologia, política, história, poesia, romances para todos os gostos, policiais, sentimentais, históricos, de viagens.
Nos livros, o nosso espírito encontra o alimento essencial para rejuvenescer, e todo o nosso ser viaja com eles pelos domínios do conhecimento e pela arte literária, essa arte onde as palavras nas suas diversas combinações fonéticas, sintácticas e figuras de estilo nos embriagam, pelos quadros de beleza que o escritor vai compondo.
Gostava de dormir, sobre ele, uma noite calma e feliz e que o meu cérebro conseguisse absorver toda a arte narrativa e literária deste livro denso e imenso,
"O Quarteto de Alexandria" escrito por Lawrence Durrell.
Sem ser crítico literário, nem pretender ter conhecimentos e qualidades para tal, somente me atrevo a falar deste livro pela surpresa e espanto que senti quando o descobri e comecei a ler.
Foi a segunda vez que eu repeti a leitura dum livro. A primeira vez li-o um pouco apressadamente, dei-me conta da sua beleza, mas não o li pausadamente para puder apreciar todos os seus contornos, pensamentos, quadros humanos e naturais. Procuro entendê-lo melhor nesta segunda leitura.
Este livro é uma sinfonia de melodias, de ritmos de cor, de palavras que nas variadas combinações que formam entre si adquirem outra vida, outro colorido. Este livro sente-se, vê-se, ouve-se, este livro pode declamar-se como um poema sem rima. Nas suas novecentas páginas é sólido como um tijolo e talvez mais perigoso como arma de arremesso. É um grande livro, para durar enquanto os homens lerem livros, um dos maiores romances do século XX.
O pano de fundo do romance é a cidade de Alexandria, essa cidade mítica, cultural, monumental, que o general grego Alexandre o Grande construiu à beira do Mediterrâneo, no cruzamento das antigas civilizações, egípcia, grega, romana, judaica e outras levantinas. Durante séculos, praticamente até à nossa era, Alexandria tornou-se um pólo de atracção de sonhadores e artistas da Europa e do Mundo.
Ao longo dos quatro livros que compõem o quarteto, o narrador vai falando da cidade, ruas e bairros, os habitantes, árabes, judeus, gregos e europeus, porto de mar, lago Mareotis, Mar Mediterrâneo, a cidade transforma-se também numa personagem importante da obra.
Nesse cruzamento de povos e de culturas, das mais avançadas de três continentes, os viajantes parecem procurar o esplendor antigo da cidade:
Quando o Farol de Alexandria iluminava o mar Medirerrâneo e assombrava pela sua grandeza e monumentalidade.
Quando a Biblioteca de Alexandria pela sua beleza e pelos seus muitos milhares de livros convidava todos os intelectuais, sábios, filósofos e outros amantes da sabedoria a fazer-lhe uma visita demorada.
O trama do quarteto gira à volta das quatro personagens que dão nome a cada livro, tendo um lugar de destaque Justine, casada com Nessim, que desperta amizades e paixões eróticas destes e doutros protagonistas a que ela por vezes corresponde. Justine pela atração que provoca, pela sua sabedoria religiosa da Cabala e filosófica, pelas línguas que domina fluentemente faz ainda lembrar Cleópatra aquela alexandrina famosa do inicio da nossa era.
Duas mulheres muito belas e muito cultas mas bastante diferentes, Cleópatra foi uma rainha egípcia por sangue, da dinastia dos Ptolomeus, uma mulher ambiciosa e que pelo poder aceitou casar-se com os irmãos, como era hábito nessa e noutras dinastias egípcias e pelo poder rejeitou essas ligações e tornou-se amante ou mulher de dois generais e cônsules romanos. Justine é uma judia que teve uma vida difícil antes de casar com Nessim, um banqueiro egípcio de religião cristã copta, com quem tem também um grande entendimento filosófico, cuja ambição é conhecer com a ajuda dos outros o conhecimento necessário para conseguir o seu equilíbrio interior através duma teoria religiosa e filosófica satisfatória. Uma mulher frágil que atrai os outros pela sua beleza e pela força espiritual que parece emanar dela.
Nesse círculo de intelectuais e afins, respira-se uma atmosfera libertária no campo dos costumes e das ideias, são aceites tanto os místicos como os agnósticos ou ateus, os homossexuais ou os outros, é conhecido, sob algum sigilo, o caso de incesto de um escritor, infidelidade conjugal, sem escândalo, não só o de Justine..
Abro o livro à toa e transcrevo uma pequena passagem:
"Este gesto recordou-me aquela mulher grávida que me abordou certa noite e que, como eu procurasse afastar-me, me pegou na mão comprimindo-a contra o enorme ventre ou simplesmente talvez para dar uma ideia antecipada do prazer que me oferecia (ou simplesmente para exprimir a que ponto estava necessitada de dinheiro".
Confesso que esta passagem recolhida ao acaso até nem é das mais expressivas. Transcrevi-a pelo acaso e pela verosimilhança que lhe encontrei com uma passagem da minha vida, quando embarcado no navio
Alfredo da Silva, a caminho da Guiné, passamos um dia na cidade da Praia em Cabo Verde.
O
Alfredo da Silva era um navio, de porte médio, de carga e passageiros, propriedade da antiga CUF que fazia regularmente transportes para Cabo Verde e a Guiné. Militares íamos muito poucos, talvez uma dúzia, dos quais três eram topógrafos que ficaram em Cabo Verde, os restantes seguimos viagem para a Guiné, mobilizados em rendição individual.
À noite fomos a um baile popular, onde ao som dos ritmos africanos e cabo-verdianos toda a gente dançava, homens e mulheres, sobretudo mulheres velhas e novas. Quando saímos, na rua fui abordado por uma jovem grávida, já com uma grande barriga que me pediu com muita insistência para ir com ela. Nos meus 21 anos, senti-me embaraçado pela sua grande barriga, pela sua insistência com modos tão doces, e pelos seus olhos belos e tão meigos que, pensei para mim, traduziam mais a necessidade de dinheiro que lhe faltava, do que a simpatia ou encanto que poderia ter por mim.
E ela teimava em me agarrar a mão e o braço como um naufrago agarrado a uma tábua de salvação.
Por uma mistura de sentimentos onde havia além do embaraço de que falei, alguma compaixão e alguma ternura, tirei 50 pesos da carteira dei-lhos e despedi-me dela.
Cidade da Praia
Antes tínhamos ido comer lagostas a um café, mal descongeladas, que me terão provocado uma digestão difícil, ou isso, ou o mar agitado, sei que tive tantas náuseas, vómitos e mal-estar que o resto da viagem entre Cabo Verde e a Guiné passei-o deitado no quarto, tendo recebido a visita do médico de bordo, que me receitou duas injecções.
Já restabelecido desembarquei em Bissau e senti aquele sufoco de calor tropical que já tinha experimentado nas ilhas de Cabo Verde, já que o navio tinha feito escala em duas, para deixar mercadorias e emigrantes cabo-verdianos, que regressavam talvez de férias à terra, vindos do norte da Europa, sobretudo da Bélgica e Holanda, se bem me lembro.
Fujo do tema do grande livro que descobri e propago junto dos meus amigos e perco-me nessa viagem épica que todos fizemos com desembarque em Bissau. Enfim todos nós, guineenses por dois anos, enviados quase como prisioneiros, a combater, para essa terra de homens grandes, mulheres grandes e bajudas, voltámos vencidos pela afabilidade e simpatia dos nossos irmãos africanos e com essa mágoa sem remédio dos nossos camaradas que por lá caíram.
Só os outros, os que não experimentaram os nossos gostos e desgostos, é que não compreendem a nossa necessidade em evocarmos essa terra e esses tempos.
Um abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de outubro de 2015 >
Guiné 63/74 - P15203: Notas de leitura (763): “Memória e Império, Comemorações em Portugal (1880-1960)”, por Maria Isabel João, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2002 (Mário Beja Santos)