1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2019:
Queridos amigos,
O que se escreve no blogue tem por natureza uma carga fragmentária, mesmo que se imprima é matéria avulsa, nem sempre congruente. António José Pereira da Costa, aquele coronel de artilharia que regularmente lança umas cargas de obus dentro da nossa multidão, fez bem em ordenar as suas memórias de Cacine e Cacoca e do Xime e Mansabá, com prelúdio e fecho da sua inteira lavra, onde tece incomodidades, como o nosso sofrimento quando regressávamos das nossas aventuras de um certo TO daquela PU ou, finalmente, questiona o que se andou por ali a fazer e se poderíamos ter feito algo para que as coisas não tivessem acontecido como aconteceram.
Precisa-se, e muito, desta sinceridade e desapego fanático, na análise das coisas.
Um abraço do
Mário
Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados…
Beja Santos
O nosso ativista confrade António José Pereira da Costa pôs o tacho ao lume, acalorou aquele cadinho de memórias que atravessaram as suas duas comissões pela Guiné, o blogue teve acesso a esses rastos de calor. Agora temos livro à disposição da totalidade dos interessados:
“A Minha Guerra a Petróleo”, por António José Pereira da Costa, Chiado Books, fevereiro de 2019. Recordo-me de ao ter escrito
“Adeus, até ao meu regresso”, na Âncora Editora, 2012, ter pespegado na contracapa algo como isto:
“Até ao lavar dos cestos, até estar vivo o último militar que combateu na Guiné, há que contar com as surpresas da vindima. Devemos estar preparados para surpresas dessa gente que, décadas atrás, caminhou na farroba de lala, entre cipós e tabás, patinhando no tarrafo, que guardou na memória das emboscadas em florestas secas densas e que resistiu à fúria das flagelações, aos gritos dos feridos e aos lamentos de quem perdeu, mesmo ali ao pé, os seus camaradas. Este género literário está muito longe de ter fechado para obras. Porque a fantasia muitas vezes disfarçou-se da cruenta realidade, jamais esquecida”.
E se intitulo este texto, cujo objeto de análise é o livro do confrade Pereira da Costa, julgo-o merecedor do parágrafo mais lindo que conheço de toda a literatura da guerra da Guiné, extraído do livro
“O Capitão Nemo e Eu”, por Álvaro Guerra, data de 1973:
“Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”.
De memórias se trata de alguém que palmilhou a Guiné no período de 1968 a 1969 e de 1971 a 1973. Diz ser contra as descrições romanceadas, visa uma clara certidão da verdade sobre a sua guerra a petróleo, há aqui uma carga simbólica dessa máquina barulhenta, de acendimento complicado, a exigir um certo treino, se houvesse avaria, chamava-se o funileiro ou picheleiro, portanto uma máquina eivada de defeitos e virtudes, um pouco como a vida militar.
Discreteia sobre os ex-combatentes e recorda algo que continua muito maltratado que era o nosso choque à chegada, qualquer um de nós tem uma história para contar de um retorno à vida civil, o querer comunicar a nossa experiência a alguém que, mesmo compadecido com a carga de provações que descrevíamos, recebia aqueles conteúdos como provenientes de uma outra galáxia, o que sabiam da chamada guerra do Ultramar era que havia ações de policiamento, às vezes uns falecimentos dados em combate, e os residentes próximos do Hospital Militar Principal ou do anexo sito na Rua Artilharia 1 encontravam-se com deficientes nas proximidades, jovens sem braços ou pernas, rostos estranhos, azulados, às vezes com os olhos vazos.
Estamos em 1968, o jovem alferes de artilharia vai para Cacoca e Cacine, fala em Sangonhá, estamos perto da fronteira com a República da Guiné, Cacoca e Sangonhá eram consideradas ao tempo do Comandante-Chefe Arnaldo Schulz como posições-chave, intimidatórias, faziam parte de um sistema defensivo e vigilante envolvendo Cacine e Cameconde, Sangonhá e Cacoca, Gadamael e Ganturé, Guileje, Mejo e Gandembel e Ponte do Balana, até Buba. Spínola reduziu o número de quartéis, a população foi realojada, num desses atos migratórios, em dia de atmosfera húmida a prever chuva tropical, acontece o seguinte, como o autor relata:
“Senti, então, um toque no braço. Quando me virei para ver quem era, ela disse:
- Meimuna pariu um fio qui tin dez dia. Quer pá nossarfere arranja mim lugar sintada.
Transportava nos braços, com grande cuidado, um enrolamento de mantas que deveria conter qualquer coisa de precioso. Eu não vi o que fosse, mesmo quando mo emprestou, por alguns segundos. Acompanhei-a ao Unimog onde iria e ajudei-a a subir para o lugar ao lado do condutor. Encostei o embrulho ao peito e ela apoiou-se com dificuldade naquela espécie de degrau circular que a roda tinha, depois no próprio pneu, usando o meu ombro como corrimão. Sentou-se no banco de lona e eu passei-lhe o pacote que deixou calor no meu peito. Ali perto, um grupo de homens – dos grandes – assistiu à cena e eu, ainda hoje, rendo homenagem àquela mulher que fez valer os seus direitos de mãe.”
É uma escrita subtil, enxuta de farroncas, por vezes mordaz, a relação com o humano, o fascínio pela expressão cultural local dominam estas memórias, basta atender à seleção de imagens, a história da catraia em estado de subnutrição, o que anota sobre caçadores e guias, o relacionamento com os civis. Passamos agora para 1968, o Capitão Pereira da Costa muda de azimute, vemo-lo agora no Xime, começa por nos descrever os seus guias picadores, o que diz de Mancaman Biai, posso certificá-lo, acompanhou-me em duas operações:
“Era alto, bastante magro e vestia sempre à moda muçulmana tradicional. Falava baixo, parecia medir as palavras ou digerir as perguntas que lhe fizessem ou as deixas do interlocutor. Só depois de ter estudado bem o que lhe fora dito, respondia. Dir-se-ia que não queria ser apanhado em falso ou em contradições”.
Posso corroborar. A meio da manhã de 7 de março de 1970, mandei chamar Mancaman e transmiti-lhe que precisava dos seus serviços a partir da meia-noite. Não mencionei objetivo, não falei nem em Madina Colhido, Ponta Varela, Baio ou Buruntoni, disse-lhe simplesmente que precisava dos seus preciosos conhecimentos, conversaríamos de madrugada, altura em que lhe disse que iríamos atravessar o Poidon pela bolanha, ele que escolhesse o melhor itinerário. O único comentário que fez é que nunca fizera uma operação pela bolanha, não sabia bem o caminho, havia pouca lua, daria o seu melhor. E deu mesmo. Cinco horas depois entrávamos nos depósitos de arroz do Poidon debaixo de uma chuva de granadas de morteiro 81, um fogo ensurdecedor que inibiu qualquer resposta daquele grupo. Incendiadas as casas e o arroz, voltei a pedir a Mancaman que viéssemos diretamente para o Xime, foi lesto, competente, jamais o esqueci. Em 2010, quando por ali passei, a caminho da Ponta do Inglês, pude confirmar o que o autor aqui nos diz, estava vivo, foi um reencontro muito feliz.
Confirmo o que o autor nos descreve sobre a messe de oficiais do quartel do Xime e tudo o mais. Dá-nos um retrato patusco de vários oficiais, é severo na apreciação de uma decisão do oficial de operações do batalhão que queria ir à viva força ao Enxalé, tudo acabou num desastre nessa obstinação que contrariava a natureza, sempre tocante com a adversidade, é sóbrio na saudação de despedida a um militar:
“Ao fim da tarde do dia seguinte, apareceu o corpo do soldado José Maria da Silva e Sousa a boiar no rio, junto ao cais do Xime. Éramos oito a tirá-lo de lá e eu volto aqui a render a minha homenagem à generosidade do alferes Gomes quando quis extrair do corpo a água que impediu que o Sousa fosse sepultado dentro de um caixão. Desceu à terra, dois dias depois, com as honras militares a que tinha direito, no cemitério de Bambadinca, e só voltou à sua terra em 2009”.
Vou deter-me aqui, não quero tirar o prazer da festa a ninguém, o nosso capitão vai partir para Mansabá, tem muito mais memórias para contar, aqui recebeu jornalistas que vinham acompanhados pelo Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, acena-nos com longo adeus sobre o que andámos a fazer por África, não há para ali nem azedume naqueles últimos parágrafos:
“Fomos os homens que estavam à hora errada à esquina errada da História. Nadámos num troço de águas revoltas do rio do tempo. Éramos uma espécie de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio numa floresta, batida por vento forte. Podem crer que, desde a primeira hora, a guerra estava perdida.”
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 de maio de 2019 >
Guiné 61/74 - P19739: Notas de leitura (1174): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (4) (Mário Beja Santos)