Lisboa > Cais da Rocha Conde Óbidos > Meados de 1965 > Embarque, no T/T Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para o TO Guiné. Ao fundo, o tabuleiro da ponte sobre o Rio Tejo ainda em construção. Compare-se, entretanto, esta foto com as cenas dos dois primeiros minutos do vídeo feito pelo Henrique Cardoso com a história da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69): embarque do pessoal, no N/M Ana Mafalda, em 14 de janeiro de 1968.
Foto: © Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados.
O meu país megalítico > Penafiel > Oldrões - Galegos > 25 de agosto de 2012 > Castro de Monte Mozinho > Povoação castreja, da época da romanização ( Sec. I d.C. e seguintes). A acrópole (o "terreiro do povo") ao centro, assinalado a tracejado.
Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.
Uma estranha maneira de dizer adeus
por Luís Graça (*)
uma estranha maneira de dizer adeus.
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se
no cais da partida,
não em oração,
para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão
de Estado.
a tentacular força centrífuga
que de há séculos
te leva os filhos teus,
para fora.
paridos e expulsos da mátria,
para longe.
bem para longe.
muito para lá do mar.
uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.
todas as despedidas são breves e tristes,
uma estranha maneira de dizer adeus.
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se
no cais da partida,
não em oração,
para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão
de Estado.
a tentacular força centrífuga
que de há séculos
te leva os filhos teus,
para fora.
paridos e expulsos da mátria,
para longe.
bem para longe.
muito para lá do mar.
uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.
todas as despedidas são breves e tristes,
o momento
em que o niassa apita três vezes
e levanta a âncora,
nunca se poderia eternizar:
diz o capitão de mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a vate 69,
fotocine,
cinéfilo,
garboso,
charmoso,
pronto para a acção.
há um briefing às cinco da tarde,
já em velocidade de cruzeiro,
depois do bugio,
no mar alto português,
anuncia o capitão,
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
vai na segunda comissão,
o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar
da batalha de dien bien phu
nem da operação tridente
na ilha do como.
e o filme da noite é
uma comédia,
do cinema mudo,
acrescenta o nosso primeiro,
a servir de porteiro
do cais do sodré.
um gajo bacano,
num país de bacanos,
de soldados rasos,
primeiros cabos,
furriéis
e segundos sargentos.
uma tragicomédia,
escreverás tu
no teu diário
a que mais tarde chamarás
o diário de um tuga.
cadé os oficiais ?
cadé a elite da nação ?
os filhos-família,
os primeiros,
a fina flor,
os morgados,
os primogénitos,
os fidalgos,
a casta,
a raça,
o sangue azul,
o pedigree,
os melhores de todos nós ?
morreram todos
em alcácer quibir.
lisboa revista
em filme de oito milímetros.
a preto e branco.
ou a preto e negro.
uma só nação,
valente mas mortal,
ironiza alguém.
o niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir parar à sucata.
inglória a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos,
quando dei o meu nome para as sortes.
estranha palavra esta,
das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.
a despedida breve e triste
do niassa
e ainda mais triste é o filme.
sem som.
sem palavras desnecessárias.
a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.
talvez a noiva
que ia vestida de branco
com xaile preto.
a ponte de salazar,
ainda reluzente.
o velho abutre
que alisa as suas penas,
dirás tu, sophia, pitonisa,
quase morto mas não enterrado.
os últimos golfinhos do tejo.
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
o último império.
o cristo rei em terra que outrora foi de infiéis,
o terreiro que continua do paço, não do povo,
lisboa e o seu casario,
branco.
o filme a preto e branco.
um gato preto à janela.
lisboa e as suas ruínas
pré-pombalinas.
o poço dos mouros.
o poço dos negros.
o lundum.
a umbigada.
a procissão
da nossa senhora da saúde.
a santa inquisição,
zelando pela pureza do sangue,
o cemitério dos prazeres
ao alto,
com os seus altos ciprestes negros.
os mastros dos navios
da carreira colonial.
o império por um fio.
a vida que se recapitula,
de fio a pavio,
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de santa margarida.
ah!, e as santas das nossas mães
que ficaram em casa,
a acender a vela à santa das santas.
um fado que tu ouviste no bairro alto
e que já não era batido
nem dançado
nem cantado.
um fado apenas gemido.
ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da páscoa.
anhos, dizem no norte.
alinhados
no cais da rocha conde de óbidos,
como os eléctricos amarelos
que vão para a cruz quebrada.
empilhados.
aboletados.
requisitados
às mães para servir
a pátria,
o pai-patrão
que lhe cobra o dízimo
em sangue, suor e lágrimas.
mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
cozinheiros,
magarefes,
corneteiros,
apontadores de dilagrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
sacristães,
coveiros.
coitadas das mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló,
o cadafalso,
com um nó na garganta
bem disfarçado.
os lenços brancos
como em fátima no 13 de maio.
algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação
patriótica.
o hino
canta-se com voz rachada,
em disco riscado
por senhoras
do movimento nacional feminino.
a mesma atitude
admirável
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem e podem,
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos.
leia-se: da tragédia inelutável.
senhora minha, protege-me,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos
e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros de costureirinha.
protege-me do IN,
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas
e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas e canhões sem recuo.
das piçadas e dos louvores dos meus comandantes.
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi
soldado à força
arrebanhado, arregimentado, aboletado,
requisitado, condenado, ameaçado,
camuflado.
livra-me, senhora minha,
da fome, da peste e da guerra,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.
lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
puseste o combate do possível
na tua agenda
de expedicionário da guiné.
puseste o fio com a medalha de ouro
ao peito.
que te deu a namorada,
coitada.
não, não uso a cruz.
o crucifixo.
não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu morrer longe.
bem longe
da pátria,
para lá do mar,
em terra que não me viu nascer.
descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio.
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos
e engraxará as tuas botas.
se não morreres de morte súbita.
levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
outrora era de xisto ou de grés,
entre o meu antepassado
calcolítico,
castrejo,
romanizado.
camaradas
(que colegas é só nas putas):
se eu morrer, que me enterrem,
numa anta do meu país megalítico. (**)
luís graça
lisboa-bissau / niassa, 24-30 de maio de 1969 /
revisto e aumentado: lisboa, março de 2007 / abril 2021
em que o niassa apita três vezes
e levanta a âncora,
nunca se poderia eternizar:
diz o capitão de mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a vate 69,
fotocine,
cinéfilo,
garboso,
charmoso,
pronto para a acção.
há um briefing às cinco da tarde,
já em velocidade de cruzeiro,
depois do bugio,
no mar alto português,
anuncia o capitão,
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
vai na segunda comissão,
o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar
da batalha de dien bien phu
nem da operação tridente
na ilha do como.
e o filme da noite é
uma comédia,
do cinema mudo,
acrescenta o nosso primeiro,
a servir de porteiro
do cais do sodré.
um gajo bacano,
num país de bacanos,
de soldados rasos,
primeiros cabos,
furriéis
e segundos sargentos.
uma tragicomédia,
escreverás tu
no teu diário
a que mais tarde chamarás
o diário de um tuga.
cadé os oficiais ?
cadé a elite da nação ?
os filhos-família,
os primeiros,
a fina flor,
os morgados,
os primogénitos,
os fidalgos,
a casta,
a raça,
o sangue azul,
o pedigree,
os melhores de todos nós ?
morreram todos
em alcácer quibir.
lisboa revista
em filme de oito milímetros.
a preto e branco.
ou a preto e negro.
uma só nação,
valente mas mortal,
ironiza alguém.
o niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir parar à sucata.
inglória a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos,
quando dei o meu nome para as sortes.
estranha palavra esta,
das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.
a despedida breve e triste
do niassa
e ainda mais triste é o filme.
sem som.
sem palavras desnecessárias.
a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.
talvez a noiva
que ia vestida de branco
com xaile preto.
a ponte de salazar,
ainda reluzente.
o velho abutre
que alisa as suas penas,
dirás tu, sophia, pitonisa,
quase morto mas não enterrado.
os últimos golfinhos do tejo.
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
o último império.
o cristo rei em terra que outrora foi de infiéis,
o terreiro que continua do paço, não do povo,
lisboa e o seu casario,
branco.
o filme a preto e branco.
um gato preto à janela.
lisboa e as suas ruínas
pré-pombalinas.
o poço dos mouros.
o poço dos negros.
o lundum.
a umbigada.
a procissão
da nossa senhora da saúde.
a santa inquisição,
zelando pela pureza do sangue,
o cemitério dos prazeres
ao alto,
com os seus altos ciprestes negros.
os mastros dos navios
da carreira colonial.
o império por um fio.
a vida que se recapitula,
de fio a pavio,
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de santa margarida.
ah!, e as santas das nossas mães
que ficaram em casa,
a acender a vela à santa das santas.
um fado que tu ouviste no bairro alto
e que já não era batido
nem dançado
nem cantado.
um fado apenas gemido.
ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da páscoa.
anhos, dizem no norte.
alinhados
no cais da rocha conde de óbidos,
como os eléctricos amarelos
que vão para a cruz quebrada.
empilhados.
aboletados.
requisitados
às mães para servir
a pátria,
o pai-patrão
que lhe cobra o dízimo
em sangue, suor e lágrimas.
mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
cozinheiros,
magarefes,
corneteiros,
apontadores de dilagrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
sacristães,
coveiros.
coitadas das mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló,
o cadafalso,
com um nó na garganta
bem disfarçado.
os lenços brancos
como em fátima no 13 de maio.
algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação
patriótica.
o hino
canta-se com voz rachada,
em disco riscado
por senhoras
do movimento nacional feminino.
a mesma atitude
admirável
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem e podem,
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos.
leia-se: da tragédia inelutável.
senhora minha, protege-me,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos
e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros de costureirinha.
protege-me do IN,
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas
e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas e canhões sem recuo.
das piçadas e dos louvores dos meus comandantes.
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi
soldado à força
arrebanhado, arregimentado, aboletado,
requisitado, condenado, ameaçado,
camuflado.
livra-me, senhora minha,
da fome, da peste e da guerra,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.
lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
puseste o combate do possível
na tua agenda
de expedicionário da guiné.
puseste o fio com a medalha de ouro
ao peito.
que te deu a namorada,
coitada.
não, não uso a cruz.
o crucifixo.
não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu morrer longe.
bem longe
da pátria,
para lá do mar,
em terra que não me viu nascer.
descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio.
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos
e engraxará as tuas botas.
se não morreres de morte súbita.
levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
outrora era de xisto ou de grés,
entre o meu antepassado
calcolítico,
castrejo,
romanizado.
camaradas
(que colegas é só nas putas):
se eu morrer, que me enterrem,
numa anta do meu país megalítico. (**)
luís graça
lisboa-bissau / niassa, 24-30 de maio de 1969 /
revisto e aumentado: lisboa, março de 2007 / abril 2021
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Notas do editor:
(*) Uma primeira versão foi publicada na I Série do blogue > 16 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DXL: o meu país megalítico
(**) Último poste da série > 24 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10297: Blogpoesia (197): O trabalho, por António Peres, poeta popular (José Colaço)