quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15555: Memória dos lugares (328): Buruntuma, dezembro de 2015 (Patrício Ribeiro, o "pai dos tugas", Bissau)


Guiné-Bissau > Região de Gabu > Buruntuma > Dezembro de 2015 > Memorial da CART 2338



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Guiné-Bissau > Região de Gabu > Buruntuma > Dezembro de 2015 > Memorial grafitado


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]


1. Mensagem. de 27 do corrente,  do nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro;

Assunto -  Zona Leste: fotos de Buruntuma

Envio algumas fotos tiradas no Leste, este mês de Dezembro, nos meus passeios.

Viagens de Bafatá para Pirada, Fasse, Pitche, Canquelifá, Buruntuma, etc.

Para os que por lá andaram… recordarem lugares onde também passaram o Natal.

Sempre que estou a fotografar estes lugares, aproximam-se antigos militares portugueses de origem guineense, que me informam o que era aqui ou ali ao lado, que eles pertenciam àquela companhia, quem era o comandante.  etc.

Os caminhos ainda são os mesmos, difíceis para as minhas costas…

Boas festas
Patrício Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau,
Tel / Fax 00 245 3214385, 6623168, 7202645,
Guiné-Bissau
Tel / Fax 00 351 218966014 Lisboa

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impar_bissau@hotmail.com
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Nota do editor:

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte


Ílhavo > Costa Nova > Popa do navio bacalhoeiro Novos Mares onde andou o meu irmão, Tibério Paradela, após o Cavaco Silva ter negociado a demolição da frota.


Lisboa > Rio Tejo > s/d > O mítico lugre Argus, um dos mais (senão o mais) emblemátricos navios bacalhoerios da frota portuguesa: "Na Primavera de 1950 o dapitão australiano Alan Villiers e reporter da National Geographic, a convite do Embaixador Teotónio Pereira embarcou com os pescadores portugueses numa campanha do bacalhau, cujo relato resultou no livro “A Campanha do Argus” (...)  , um clássico da literatura marítima mundial, que teve tradução em mais de uma dezena de línguas, e que relata a pesca do bacalhau por 'homens de ferro em navios de madeira', a mítica 'frota branca', a última grande actividade económica que fazia uso da navegação à vela para viagens transoceânicas." (...) (Fonte: Wikipedia).



S/l> s/d > "Lugre bacalhoeiro de casco de aço e com quatro mastros construído em 1923 na Dinamarca (...). Navegou com carga geral até 1935, ano em que foi adquirido pelos armadores portugueses da Sociedade de Pesca Oceano Lda, da Figueira da Foz. (...)  O lugre de 1935 apresentava 687 toneladas de arqueação bruta e media 60 metros de comprimento fora a fora por 9,90 metros de boca por 3,50 metros de pontal. Podia carregar mais de 11 000 quintais de peixe salgado. Foi-lhe adaptado, em 1937, uma máquina Deutz de 480 bhp de potência. A sua tripulação compreendia 69 homens entre marinheiros e pescadores. Foi seu primeiro comandante (até 1939) o capitão João de Deus. Depois de muitos anos de serviço útil nos longínquos mares do Canadá e da Groenlândia, o «José Alberto» perdeu-se -durante a campanha de pesca de 1968- na zona de Virgin Rocks (Terra Nova), devido a um incêndio que se declarou a bordo e que não foi possível extinguir. Felizmente todos os seus homens puderam colocar-se a salvo antes do soçobro deste malogrado navio bacalhoeiro, que deixou imensas saudades na população figueirense". (...) (Fonte: Alernavos)



Canada > Torra Nova > "O  Gil Eanes em St. Jonh's em 1975. O figurante não sou eu, mas a foto foi tirada por mim" (JAP).




Porto >  c. 1918 > "Uma foto lindíssima do meu pai, embarcado com 12 anos com o cão ao colo por trás da boia do Pátria, o navio em que embarcou. O capitão era o pai do Mário Castrim, o cap Fonseca, de Ílhavo." (JAP)

Fotos (e legendas): © José Amtónio Paradela  (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]


1. Terceira (e última) parte da publicação do capítulo 7 (A viagem “O Mar por Tradição”, pp. 91-107), do livro A Rua Suspensa dos Olhos, de Ábio de Lápara (edição de autor, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...



O artista quando jovem marinheiro, a nordo do "Lousado", em 1955



Capa do livro, da autoria de José A. Paradela. O livro não está no mercado livreiro,
tratando-se de edição de autor  Mas, contra reembolso (10 euros, preço de capa + 2 euros, para portes de correio), pode ser pedido autor, através do seu endereço pessoal. Ver igualmente a sua página pessoal no Facebook.


2. A Rua Suspensa dos Olhos > 7. A viagem “O Mar por Tradição”, de Ábio de Lápara (2015) > III (e última) Parte (pp. 99-107) (*)


A Viagem 

 (...) Todas estas situações de extrema dureza eram agravadas pelas erráticas condições meteorológicas que impediam a pesca: ora ventos, ora nevoeiros e, sobretudo, pela aleatória presença de peixe nos pesqueiros. A tensão gerada por essas circunstâncias era de molde a criar situações explosivas de conflito, nem sempre evitáveis e nem sempre… no interior do navio!

Um certo dia, após vários outros de mau tempo e pescas nulas, amanheceu radioso um mar estanhado, característico da Groenlândia, sem um risco de ave ou ligeira brisa.

Largados os botes, passadas poucas horas começam a chegar os sintomas de um abundante dia de pesca com alguns deles a regressarem carregados muito antes da hora de chamada, que costumava ser por volta das cinco da tarde. Eis senão quando, alguns dos pescadores nos botes mais afastados, desataram a fazer sinais para o navio acenando com o casaco oleado enfiado num remo!

Estávamos na hora de almoço. Chamado o capitão à ponte, ao observar pelo binóculo apercebeu-se imediatamente do que se passava: Um arrastão norueguês cruzava a sua rede de arrasto por cima das linhas de pesca estendidas no mar, obrigando os nossos pescadores a cortá-las para não serem rebocados.

Então… ah, homem de uma figa!
– Levantar ferro! – ordenou ao imediato.
– Máquina a toda a força!– gritou para a casa das máquinas.
– Prepara a lancha! – altifalou para o contramestre.

Chegados a uns duzentos metros do arrastão, praticamente imobilizado pela rede cujo saco estava a chegar à borda, mandou arriar a lancha e, completamente fora de si, meteu-se lá dentro com o Armindo Verdade ao leme do motor fora de borda. Entretanto pedira a espingarda ao piloto, mas este, ciente da gravidade potencial da situação, tivera o bom senso de a esconder.

Abordado o navio norueguês, saltou destemido para o convés sem ponderar a imprudência do acto…
– Where is the captain? Where is the captain? [Onde está o capitão ? Onde está o capitão ?] – pergunta aos estupefactos marinheiros do arrastão, atarefados na recolha da rede.

Uma silhueta “viking”, de cabeleira loira, observava cautelosamente por trás do vidro numa janela da ponte de comando.

Esbracejando sozinho sobre o convés, incitava-o a vir cá abaixo ajustar contas. De pé sobre parte da rede já recolhida no convés do “inimigo”, a figura do nosso capitão recortava-se sobre o fundo azul do céu boreal como uma silhueta imponente, desmedida e trágica… agora, sobretudo trágica na solidão do seu gesto. Como, após várias tentativas de chamamento, não conseguiu obter resposta, colocou as mãos em campânula à volta da boca, e gritou para o nosso navio:
– João, corta-o ao meio! João, corta-o ao meio!

E, ritmando o gesto, apontava a mão direita estendida ao meio da palma da outra.

João, era o imediato, Morais de Almeida, a quem seria fácil executar a ordem. Bastava pôr a máquina avante, porque estávamos aproados pelo través de bombordo do arrastão e este seria rapidamente abalroado e afundado.

Em extremo desespero perante a lentidão propositada do imediato, e sem resposta do capitão norueguês, saltou novamente para a lancha gesticulando com os braços, indicando o saco da rede ainda à borda. Formulou então uma alternativa menos radical mas que seria talvez suficiente para acalmar o seu desejo de castigar o insolente “viking que estragara o único dia de pesca boa em muitas semanas de resultados nulos e de sofrimento pela ausência de peixe no porão.
– Larga-lhe o ferro em cima da rede, João! Larga- lhe o ferro, João…

Esticando o tempo, o imediato manobrou de modo a recolher a lancha de regresso, permitindo ao arrastão colher o saco.

De novo no navio, retomou o comando e lançou-se na peugada do norueguês, mas o Lousado era menos veloz e a perseguição pouco durou, até porque era necessário minimizar os prejuízos e apoiar a situação dos pescadores atingidos pelo infeliz episódio.

Homem com porte poderoso, um dia o contramestre comunicou-lhe que já não tinha mais linhas para substituir as estragadas na faina. Feitas as contas,  achou que alguma coisa estava errada. Esperou que todos os homens regressassem ao navio e, pelas seis da tarde, ordenou-me que pedisse a marreta ao contramestre e fosse com ele ao rancho, onde a tripulação se preparava para jantar.

Ali, existiam cacifos e “locas” junto aos beliches, atribuídas a cada tripulante, para que guardassem os seus parcos haveres. Indicando os cacifos um a um, pergunta:
– De quem é este cacifo?

Alguns respondem:
– É,  meu senhor capitão…
– Abre!

Se nada houvesse de suspeito, passava à frente e voltava a fazer a pergunta perante novo armário. Quando não obtinha resposta, ordenava-me:
– Rebenta-lhe a porta!

Com duas marretadas, assunto resolvido… Outro moço ao meu lado, esvaziava o cacifo e as linhas iam aparecendo!

Não foi necessário castigar ninguém, porque para castigo aquela vida já era bastante e os filhos em terra não tinham culpa. E nunca mais faltaram linhas na viagem.

Competia-me contar estas histórias em memória deste capitão, um homem de craveira excepcional, profundamente conhecedor dos tripulantes e dos seus problemas, o que lhe permitia ter uma palavra de estímulo ou censura, sem nunca necessitar de aviltar ninguém.

Estimulava os seus homens um a um, tratando-os pelo nome, e ia ao convés apoiar a tripulação quando entendia ser necessário fazê-lo. A mim tratava-me, em tom que me parecia afectuoso, pelo nome próprio. Conhecedor através do imediato, de que talvez um dia eu pudesse vir a ser seu colega, chamava-me para a ponte em “impostas” mais longas. Eu não o conhecia antes e nunca mais o vi depois desta viagem.

Era de Ílhavo e morreu muito novo. Seu nome: António Capote Teiga, para que conste.

Bastante tempo mais tarde, no Armazém da Memória, encontrei um poema:

O Captain! My Captain!
Our fearful trip is done, …

Walt Whitman


Oh Capitão, meu capitão!
Irmanados na loucura,
Nossos olhos pairam além do horizonte,
Na pátria amarga, incerta sepultura.

Capitão, meu capitão,
Cavalga rumo ao norte
E põe de capa
O poema ancorado em noite escura!
Neste oceano de morte,
Nem a liberdade escapa…
Ao viscoso braço da ditadura.

Capitão, meu capitão,
Cavaleiro involuntário do regime,
Cavalga a onda e o mistério
Da prática consumada deste crime,
Tecido em malhas negras do império.

Oh Capitão, meu velho capitão.
Sobre o deque esquecido
Entre bandeiras e multidão
Ficou o prémio devido
No adeus do coração cansado e triste
Quando inanimado caíste

Oh, Coração! Coração,
A viagem acabou
para todo o sempre!
Navio destroçado, voga indómito,
Adornado nos temporais
Entre espasmos de agonia
Como um vómito!

Capitão, meu velho capitão
Mata a tua solidão no vinho da nossa fonte,
Irmão da sorte avara, atado por cegos nós!
Se Deus está por aqui, dorme na ponte!
Vivos ou Mortos, estaremos sempre sós!


Quando o Lousado regressou ao cais, em Lisboa numa amena manhã de meados de outubro [de 1955], sobre o convés amontoavam-se os sacos de marinheiro e todos os presentes comprados para os filhos e as namoradas durante as estadias em St Jonh’s para reabastecimento ou simples abrigo em dias de ciclone no mar.

Feitos os pagamentos a cada um segundo aquilo que tinha pescado, a alegria transbordava dos rostos agora ressuscitados para o mundo habitado, enfeitados com o boné novo e o fatodomingueiro guardado no cacifo desde a última estadia em terra.

Abraços de despedida aos mais chegados na amizade, talvez algo desatentos pela ansiedade instalada no desejo de pôr os pés em terra para abraçar os seus.

Como de costume, porque eu evitava dizer quando partia ou chegava, a mim ninguém me esperava. Gostava de surpreender quem amava e me amava. Tal como o meu pai fazia por vezes, aumentando a nossa ansiedade e o prazer de o ver chegar!

Aqueles últimos momentos gastei-os a relembrar em rápida sucessão, os sonhos de amor gravados com a minha “faca de trote” nas pedras que vinham presas nos anzóis e que depois devolvia ao mar onde ainda hoje moram; as saudades dos meus familiares, que não via há mais de sete meses e que em breve abraçaria; os laços de forte amizade que criara; as aventuras que vivera tão intensamente; o desejo imenso de pisar terra, que me levou um dia a enveredar pelos montes de St. Jonh’s com saudades dos silvados e das amoras, até ver o navio lá muito longe, tão longe que me parecia um brinquedo flutuando na água do banho… mas também os momentos de violento sofrimento físico causado pelos dedos gelados, trilhados nos roletes, quando o mar estava picado e era necessário “dar amor à boça” para que o pescador não caísse ao mar!

E, súbito, a recorrente imagem dela, ali presente, o meu amor adolescente, desmedido, enchendo todo o espaço sobrante dentro de mim e o medo permanente de que se tornasse evanescente ao primeiro sopro… o meu doce martírio.

Alguns moços tinham preparado na véspera uns embrulhos com a habitual “caldeirada” para os tripulantes da proa – umas caras de bacalhau salgadas – extraídas por nós durante toda a viagem enquanto os pescadores estavam no mar, e que depois salgávamos no interior das barricas vazias da farinha com que se fizera o pão.

José António Paradela, hoje.
Foto: LG
O imediato, já vestido a rigor, acompanhava agora a entrega e despedia-se dos que iam saindo para o cais ao encontro dos familiares que os esperavam. Quando chegou a minha vez, entregaram-me um pequeno “atado” com quatro caras de bacalhau!… A mim, um jovem moço de convés, que tinha preparado milhares de caras, e outros subprodutos do bacalhau nas horas sobrantes das tarefas de preparação do navio para novo dia de pesca, aolongo de mais de seis meses no mar! A Viagem terminara!

À minha frente, um imenso sentimento de esperança no futuro pela possibilidade de redenção do meu curto passado de mau estudante. Um novo oceano, de contorno inexprimível, que ansiava por explorar com a indómita vontade dos meus 17 anos…

De olhos húmidos, com voz presa na garganta, ainda consegui articular,
– Obrigado, senhor Imediato. Não tenho como levá-las… junte-as à sua caldeirada!

E saltei para o cais correndo para um táxi que me levaria a Santa Apolónia, tomar o comboio para Ílhavo, onde celebraria a alegria dos reencontros.

[Revisão e fixação de texto, ilustrações, links e notas, exclusivamente para efeitos de edição deste poste: LG]
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Nota do editor:

(*) Vd. psotes anteriores:

23 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15531: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1954, aos bancos de pesca do bacalhau: Parte I

29 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15551: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: II parte

Guiné 63/74 - P15553: In Memoriam (243): António [Gabriel Rodrigues] Vaz (1936-2015), ex-cap mil art, cmdt CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69); nosso saudoso grã-tabanqueiro nº 544, desde 2012






António Gabriel Rodrigues Vaz (1939-2015),
ex-cap mil art, CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69)


1. Dois comentários poste P15552, de ontem (*):


(i) Com respeito ao fazer a prova de vida, há poucos dias ao falar pelo telefoe com um colega da CART 1746, de seu nome Pereira,  ele me disse que o Cap Vaz faleceu há poucos dias.

Paz à sua alma. só  me resta dizer que era um bom amigo.

Ex fur mil Luis Fagundes,  CART 1746 [Bissorã e Xime, 1967/69]


(ii) Camaradas, tive um estranhíssimo pressentimento de que algo estava a acontecer, de muito mau, ao nosso amigo e camarada António Vaz, o cap mil da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69)... Telefonei-lhe, sem querer, na hora da sua morte, na véspera de Natal!... Que macabra coincidência, que trágica premonição!...

Insisti, mas do outro lado ninguém me respondeu... Telefonei mais e outra vez, em vão!... 

Sabia que ele estava doente, tinha tido um AVC, e a seguir, se não erro, uma neoplasia, há dois anos e tal ... Ìamo-nos falando ao telefone, e ele pedia-me que lhe ligasse, sempre que pudesse... Queria agarrar-se à vida e às memórias da Guiné... Tinha um especial carinho e admriração pelo blogue dos camaradas da Guiné...

Hoje, liguei ao Torcato Mendonça, que era seu amigo, veio com ele duas vezes de férias á metrópole, e com ele fez várias operações nos subsetores do Xime, Mansambo e Xitole... Aquilo que eu suspeitava aconteceu, infelizmente: o António Vaz morreu na véspera de Natal, julgo que de 23 para 24, não posso garantir a data... Foi um antigo alferes da companhia que informou o Torcato, talvez o João Mata, se bem percebi,  ou foi o Torcato que apanhou uma mensagem por aí na Net...

Estou chocado!... Vou fazer um poste In Memoriam do nosso capitão... 

Paz à sua alma! Saibamos honrar a sua memória... Era nosso grã-tabanqueiro nº 544, salvo erro... Um homem afável, que comandou uma valente companhia!...

Luís Graça, editor [ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71]

2. O António Vaz nasceu em Lisboa, em 29 de maio de 1936... Teria hoje portanto 79 anos. 

 No seu último aniversário, 29/5/2015, escrevi o seguinte comentário: 

"Não tenho telefonado ao António Vaz. Espero que ele ande mais animado e que a saúde vá melhor. Em dia de aniversário, faço votos para que assim seja. Força!, António". O Torcato Mendonça telefonei-lhe e comentou: "Foi bom ouvir a voz do Capitão Vaz do Xime, O meu abração de Parabéns.Abraço, Capitão, do Torcato"....

No ano anterior tinha-lhe dedicado um poste de aniversário, na minha série Manuscrito(s)

(...) "Antóno Vaz, valoroso capitão de Bissorã e do Xime, comandante da CART 1746... Hoje fazes anos, de acordo com o nosso poste da série "Parabéns a você"... Mas eu tenho estranhado o teu silêncio... Os médicos dizem que o silêncio dos órgãos é sinal de saúde... Na realidade, é mau sinal quando eles começam a "falar"... Mas eu refiro-me ao silêncio... das nossas comunicações bloguísticas. Há mais de um ano que não mandas um ALFBRAVO à gente...  Pergunto; o que é que se passa contigo, comandante ? A última vez que te vi, na Praça do Comércio, tinhas ido à faca...Mas senti-te em boa forma!

"Hoje é dia de festa, de aniversário... Eu e o resto da malta estamos contigo para te cantar os 'parabéns a você' debaixo do poilão da Tabanca Grande!... Lembras-te dos poilões do Xime, a última tabanca de que foste o 'régulo'! ? Levaram morteirada e canhoada em cima, mas ainda lá estão, dizem... Pois é isso que a gente te deseja: aguenta, capitão, força, António!(...)

E o Torcato escreveu em comentário, nesse dia 29/5/2014: 

(...)" Estive hoje a falar com o meu amigo Cap Mil do Xime. Está um pouco adoentado, recupera de uma intervenção cirúrgica e de pequenas maleitas, coisas próprias de um rapaz com mais dez anos do que eu, mas sempre igual e quero tanto continuar a senti-lo assim. O melhor para ele é o que desejo.Vai dar certo meu 'velho' amigo, Cap Vaz.

"Foi com ele e com a CART 1746 que aprendemos a estar naquela 'provincia ultramarina', depois, algum tempo depois veio o Poindon, Belel e Sinchã Camisa...muito mais, muito mais pelos anos 68 adiante" (...)

3. Os problemas de saúde do António Vaz remontavam já a 2013, como ele aqui recordava em poste de 12/4/2013

(...) Meus caros Camaradas da Guiné: estive afastado da vida normal dois meses e meio e, sem grandes e escusados pormenores, direi que, tendo saído de casa às 04.00 do dia 17 de Janeiro, INEM passei pelos Hospitais de S. José, Santa Marta e Clínica S. João de Ávila (para recuperação) e só voltei a casa no dia 4 deste mês (faz hoje 6 dias). Tive AVC (cerebelo), enfarte e aguardo cirurgia cardíaca nos próximos meses. Durante estes dois meses e meio não gozei a sombra do Grande Poilão, não tive acesso ao computador e, do Blogue, "nicles". (...)



VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Monte Real > Palace Hotel > 21 de Abril de 2012> O ex-alf mil João Mata (à esquerda) e o ex-cap mil António Vaz, à direita, ambos da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69). 

O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné...(**)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


4. Tinha entrado para a nossa Tabanca Grande um ano antes, em 31/3/2012 (***), mas já acompanhava o nosso blogue desde 2011 (****):

(...) "A Tabanca Grande é um fenómeno que eu , que não sou bloguista, me deixa abismado e de certo modo surpreendido, porque que eu saiba não tem paralelo com outras formas de depoimento escrito sobre outros teatros de operações nem outras actividades. Para todos que erigiram e alimentaram com contribuições várias este blog presto aqui as minhas merecidas homenagens. (...)

Tem um série, com três postes, assinada por si, "Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)"... Em 2012, esteve presente, com o João Mata, no VII Encontro Nacional da Tabanca Grande, em Monte Real.

É um perda pesada para a nossa Tabanca Grande onde relativamente poucos comandantes operacionais (capitães milicianos ou do quadro) dão a cara... Ele honrou-nos com a sua presença, amizade e camaradagem. Façamos um minuto de silêncio em sua homenagem antes das 12 babaladas para a meia noite do fim de ano. (*****)

Lembremo-nos também dos outros dois camaradas da Tabanca Grande que nos deixarem este ano, e de cuja morte tivemos conhecimento: Amadu Bailo Jaló (1940-2015) e Manuel Moreira de Castro (1946-2015).

As nossas sentidas condolências para a família, esposa, filha e netos (Sabemos que tinha, pelo menos, uma filha e netos). Bem como para a "família alargada" da CART 1746, e para todos os amigos e camaradas que tiveram o privilégio de o conhecer.
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15552: (In)citações (80): Amigo/a, camarada, faz a tua prova de vida: Manda-nos um simples "OK! Tudo bom! Vou indo" ! ... E os editores aproveitam para te desejar o melhor ano possível em 2016, apesar das dificuldades, enfermidades, mazelas, contrariedades, problemas, sacanices, minas e armadilhas que enfrentamos, cada vez mais, à medida que o tempo... pula e avança

(**) Vd. poste de  7 de junho de  2012 > Guiné 63/74 - P10009: Memória dos lugares (185): Saiba V. Excia que está na Ponta do Inglês!, disse o Alf Mil João Mata para o Brig Spínola (António Vaz, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)

(**) Vd. poste de 31 de março de  2012 > Guiné 63/74 – P9684: Tabanca Grande (326): António Vaz, ex-cap mil CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69


(...) O meu nome é Antonio Gabriel Rodrigues Vaz, lisboeta, de 75 anos e andei pela Guiné de Julho de 1967 a Julho de 1969 como comandante (cap mil) da Cart 1746. Até Janeiro de 1968 em Bissorã e no Xime até ao fim da comissão ou seja até 14 horas antes de embarcar no Niassa de regresso a Lisboa onde cheguei na véspera do Santo António de 1969.

A Cart 1746 cruzou-se com com algumas unidades de que fazem parte camaradas que frequentam a Tabanca Grande e que estiveram num e noutro sector embora o L1 [, Bambadinca,] seja mais "concorrido" o que se compreende.

Confissão: As minhas recordações da Guiné não têm uma intensidade uniforme. Dizendo melhor, vêm e vão por marés durante estes 45 anos embora nestes últimos tempos tenham vindo como um macaréu que não baixa. Ficam sempre em maré cheia, talvez por culpa da Tabanca Grande.  A idade é também um facto importante e parece que, ao chegar ao fim do caminho (e isto sem dramatismos) aqueles anos tomaram uma relevância que aqui há 20 ou 30 anos não tinham. Andei entretanto por outras "guerras" mas é aquela que vem sempre à tona talvez por ser uma coisa que nada ter tido a ver com a vida profissional, social e civil em que me movimentava.

As circunstâncias excepcionais em que decorreu (nem toda a gente esteve envolvida num conflito armado sem ser militar de carreira) é hoje o motivo que escrevo estas palavras e porque presentemente percorro com frequência a Tabanca Grande da primeira à ultima morança.

A Tabanca Grande é um fenómeno que eu , que não sou bloguista, me deixa abismado e de certo modo surpreendido, porque que eu saiba não tem paralelo com outras formas de depoimento escrito sobre outros teatros de operações nem outras actividades. Para todos que erigiram e alimentaram com contribuições várias este blog presto aqui as minhas merecidas homenagens.

Eu e a malta da Cart 1746 partilhámos convosco, na Guiné, toda a sorte de provações, vivendo em más e precárias instalações, com faltas de toda a ordem, atascámo-nos nas mesmas bolanhas, cortámo-nos no mesmo capim verde e fugimos do seco, das abelhas, tivemos a mesma sede, sofremos emboscadas e gramámos ataques ao estacionamento, encharcámo-nos com as mesmas chuvas e tivemos insolações, isto tudo para além dos inevitáveis mortos e feridos que lamentamos e lamentaremos sempre profundamente e que não esquecemos.

É por tudo isto que nos irmanamos no blog Tabanca Grande

Um abraço para todos do António Vaz. (...)


(****) Vd. postes de:

20 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11429: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai

(*****)  Último poste da série > 28 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15547: In Memoriam (242): Senhora D. Georgina de Almeida Alves Araújo [1928-2015], Mãe do nosso camarada Jorge Araújo. Estará em Câmara Ardente a partir das 18 horas de hoje, 2.ª feira, na Igreja de Almada, realizando-se o seu funeral na próxima 3.ª feira, às 13h30, para o Cemitério do Feijó - Almada

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15552: (In)citações (81): Amigo/a, camarada, faz a tua prova de vida: Manda-nos um simples "OK! Tudo bom! Vou indo" ! ... E os editores aproveitam para te desejar o melhor ano possível em 2016, apesar das dificuldades, enfermidades, mazelas, contrariedades, problemas, sacanices, minas e armadilhas que enfrentamos, cada vez mais, à medida que o tempo... pula e avança


X Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, Monte Real, Leiria, 18 de abril de 2015.

Foto: © Manuel Resende (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

1. Mail enviado pelo correio interno da Tabanca Grande, ao fim da tarde de hoje:

Amigos/as e camaradas:

Não está fácil usar o correio interno da Tabanca Grande por razões técnicas: o Gmail limita o envio de mensagens em BCC (endereços ocultos), como forma de lutar contra a epidemia do SPAM que está a transformar as nossas caixas de correio em caixotes do lixo... A nossa lista de endereço teve que ser partidas em sete ou sete blocos, cada um com menos de 100 endereços...

Enfim, não há bela sem senão...

Mas queremos aproveitar uma aberta para vos desejar o melhor ano possível em 2016, apesar das dificuldades, enfermidades, mazelas, contrariedades, problemas, sacanices, minas e armadilhas que enfrentamos, cada vez mais, à medida que o tempo... pula e avança.
Confidencia o nosso editor, Luís Graça, que "às vezes já tem medo de telefonar para este ou aquele dos nossos contactos"... É que alguns de nós deixaram de dar notícias, por esta ou aquela razão: desânimo, doença, descrena, desmotivação, mudanças... Ficamos sempre preocupados. Por isso é bom que façamos, pelo menos no fim do ano, a nossa "prova de vida"...

Amigos/as, camaradas, mandem-nos um simples "OK! Tudo bom! Vamos indo"...

E se quiserem e puderem e tiverem ainda tempo e pachorra, respondam, até amanhã, às 14h10, ao nosso último inquérito "on line" deste ano... É sobre o "fiel amigo"...

Um alfabravo fraterno, caloroso, para todos/as. Rezamos para que este email chegue à vossa caixa de correio.

Os editores
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INQUÉRITO DE OPINIÃO: "NA GUINÉ, NO NATAL, NUNCA FALTOU O 'FIEL AMIGO', O BACALHAU"


1. Sim, nunca faltou, no Natal > 25 (49%)

2. Não sei / não me lembro > 9 (17%)

3. Faltou pelo menos uma vez > 2 (3%)

4. Faltou sempre > 13 (25%)

5. Não aplicável. nunca liguei ao bacalhau > 2 (3%)



Votos apurados: 51

Prazo-limite para votar: até 4ª feira, dia 30, 14h10

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Nota do editor:

Último poste da série 20 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15515: (In)citações (80): Natal económico para a bolsa, esbanjador em afetos (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15551: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: II parte


Foto nº 1 > O artista quando jovem, em 1955, com 17 anos... "Moço de convés", junto à bitácula no navio "Lusado". (A bitácula é, em linguagem náutica,  a caixa redonda de metal e vidro, geralmente assente em coluna de madeira, que contém a bússola da embarcação).




Foto nº 2 > Oito dias levava o "Lousado" a chegar aos pesqueiros da Terra Nova



Foto nº 3 > Um aspeto do convés do navio bacalheiro "Lousado"




Foto nº 4 > Alguns dos bravos marinheiros e pescadores que embarcam no "Lousado" em abril de 1955. Na segunda fila, ao centro, o terceiro a contar da esquerda, é o nosso autor...


Fotos: © José António Paradela (2015). Todos os direitos reservados.


1. Segunda parte da publicação do capítulo 7 (A viagem “O Mar por Tradição”, pp. 91-99), do livro A Rua Suspensa dos Olhos, de Ábio de Lápara (edição de autor, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)... 

É uma grande cortesia do autor, José António Paradela, velho amigo do editor do nosso blogue ... Ábio de Lápara é  o seu pseudónimo literário... Ilhavense, filho de marinheiro, o autor evoca e revive com enorme ternura e talento a rua onde nasceu e cresceu, e onde conheceu algumas das figuras humanas da sua terra, que marcaram a sua memória e o seu imaginário... Aliás, pelas  histórias da rua suspensa dos olhos perpassa muita da humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia da nossa infância...

Refiro-me à infância daqueles de nós que nascemos nos anos 30/40 do século passado, toda uma geração duramente sacrificada que conheceu,  uns, a epopeia dos mares, incluindo a pesca do bacalhau (que chegou a ser alternativa à guerra colonial),  outros o exílio e a emigração, e outros ainda (a grande maioria) a guerra colonial e até a condição de prisioneiros de guerra (como foi o caso da Índia, em 1961/62).

Capa do livro, da autoria
de José A. Paradela
A sua passagem pela Escola Profissional de  Pescadores, em Pedrouços, Lisboa, acaba com uma  viagem de seis meses na safra do bacalhau, nas costas da Terra Nova e da Groenlândia. Era, por antonomásia, "A Viagem"  (*)...

Foi uma experiência, aos 17 anos, que o marcou para o resto da vida, não só pela dureza das condições de vida a bordo como pela descoberta e reforço dos laços de camaradagem, solidariedade e amizade entre a tripulação (marinheiros e pescadores) do navio-motor "Lousado", construído em 1954, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. [Características principais: comprimento: 62,04 m; boca: 11,07 m; pontal: 4,9 m; tonelagem líquida: 599,35 ton.; tonelagem bruta: 1176,95 ton.; capacidade de porão: 17 mil quintais; tripulação: 99 homens; material de construção: aço.]

Como já o dissemos anteriormente, a vida deu, entretanto, outras voltas e o autor não seguiu o destino dos seus antepassados...  Aluno brilhante, acabou por ficar em Lisboa, ganhar uma bolsa  e assim poder continuar a estudar, sendo hoje um nome de referência da arquitetura e urbanismo em Portugal. (Depois da tropa, feita na Marinha, entraria para o curso de arquitetura na Escola Superior de Belas Artes, no ano letivo de 1960/1961; fundou e geriu a empresa PAL - Planeamento e Arquitectura, com sede em Lisboa, e ainda em atividade;  tem obra por todo o país, e em especial na Região Autónoma da Madeira).

O livro A Rua Suspensa dos Olhos não está à venda no mercado. Mas, contra reembolso (10 euros, preço de capa + 2 euros para portes de correio), pode ser pedido autor, através do seu endereço pessoal. Ver igualmente a sua página pessoal no Facebook.

Publicamos hoje mais algumas páginas do capítulo 7. Haverá um 3º e último poste com o resto do texto (pp. 99-107). (**)


Foto do livro: cortesia do autor,
José A. Paradela
2. A Rua Suspensa dos Olhos > 7. A viagem “O Mar por Tradição”, de Ábio de Lápara (2015) > Parte II (pp. 91-99)

[Foto à esquerda: o autor quando jovem, ao meio, ladeado pelo pai, velho lobo do mar, e a irmã; um outro irmão, Tibério Paradela,  seguiu  a carreira de oficial da marinha mercante: tem um livro de ficção sobre a pesca do bacalhau, "Neste mar é sempre inverno", de que já aqui falámos (edição de autor, Aveiro 2014, 262 pp.)]



A Viagem

Num belo dia dos fins de março desse ano [de 1955], fui finalmente chamado para embarcar.

O Lousado era um navio-motor, construído em ferro, com dois mastros despidos de velas, com o casco pintado de branco como todos os navios portugueses da pesca à linha e comecei imediatamente a trabalhar. [Era a segunda viagem do navio aos bancos pesqueiros da Terra Nova e Groenlândia. (LG)].

A bordo encontrei tripulantes de Ílhavo, alguns dos quais meus conhecidos, com os quais viria a estabelecer fortes laços de amizade: o Armindo Verdade, o João Eugénio e o Francisco Serrão. O primeiro desempenhava funções de ajudante de motorista, o segundo, de ajudante de cozinheiro e o terceiro, de moço de convés, como eu, embora com maior experiência por ter feito várias viagens. Com este partilhei um dos pares de beliches em que o rancho se organizava.

Tinham-me avisado que “grande nau, grande tormenta”! Nesse aspecto o Gazela teria sido mais bonançoso (#),  mas a minha opção [, a de embarcar no Lousado] estava tomada.

Nesse primeiro dia a bordo, fundeado no Tejo, o almoço foi comido sentado num pandeiro de cabo, no convés em desalinho. O navio estava a receber materiais de toda a ordem para “A Viagem”.

 O rancho [espaço interior, debaixo do castelo da proa, onde se situam o refeitório e o dormitório do pessoal (LG)] não estava ainda operacional. A acompanhar a comida, servida num prato de alumínio, deram-me uma caneca de ferro esmaltado, de cor azul, com cerca de um quarto de litro de vinho tinto. À medida que o ia bebendo em pequenos goles, a minha nostalgia e o aperto no peito iam desaparecendo como por milagre. Não estava habituado a beber, e o estado ansioso que me afligia, foi substituído por uma exaltação eufórica inesquecível que me transportou para um patamar de lucidez que poucas vezes consegui repetir durante a viagem, apesar de não dispensar, a partir daí, a ração de vinho que me era atribuída.

Nesse estranho momento, muitas imagens do passado desfilaram como num filme: os momentos de solidão e temor nas minhas graves doenças infantis, a rejeição dos estudos nos dois anos que frequentei o liceu, o gosto da liberdade juvenil na comunhão dos amigos, as aflições da minha mãe com as minhas ausências, a recente partida da minha avó paterna para a cova do meu avô, onde eu ia com ela rezar em criança, e, sobrepondo-se a tudo isso, o manto roxo da minha paixão adolescente, pairando sobre aquela nau daí para o futuro, ao longo de seis ou sete meses, na ausência do poema amado!

Ia começar a aventura! Levantei-me e exclamei bem alto perante a perplexidade dos outros: “Um homem é um homem… uma mulher é um bicho!”.

Palpitava-me que não seria bem assim, mas, naquela altura, foi a consolação da raposa perante o cacho de uvas inatingível. Confortado pelo grito agarrei-me ao trabalho. Nesse tempo eu não conhecia a frase inscrita sobre o portão de Auschwitz [Arbeit macht frei,  (LG)] mas de facto sentia que o trabalho me libertava.

No navio deixei novamente de ser um número! [Na Escola Profissional de Pescadores,  era o Sessenta... (LG)]. Embora a obediência continuasse obrigatória mas não regulamentada, permitindo abusos de poder sobretudo dos poderes subalternos, os sentimentos de liberdade e autonomia experimentados, compensavam a angústia do “castigo” que se aproximava.

Até que chegou o dia, em abril [de 1955], em que os navios, fundeados em Belém frente aos Jerónimos, eram benzidos em cerimónia montada a preceito, como o regime [do Estado Novo, (LG)] sabia fazer, ritualizando os atos que, desse modo, passavam a estar sancionados pelo Altíssimo! Assim encomendados a Deus, no meio da tarde do dia seguinte, rumamos a Cascais.

Dia primaveril, onde nada fazia supor o que se passaria nessa noite, apesar da bênção. Saídos da barra, a ondulação começou a fazer-se sentir, e fiquei junto à amurada a ver a terra desaparecer, iluminada pela luz dourada do poente. À medida que o sol se punha, a linha da costa extinguia-se no lado oposto. Em pouco tempo era um fio de sombra, uma nuvem, uma névoa…Nada.

Para trás ficara enrolado,  em nostalgia, todo o meu quadro de referências físicas e espirituais. Era a primeira vez que isso me acontecia e as primeiras vezes têm, como se sabe, o sortilégio da permanência na memória. Era também a primeira vez que eu navegava no alto mar.

Ao reentrar no rancho perdi a referência estabilizadora do horizonte. A descoordenação de movimentos foi imediata e, a cada balanço do navio, as anteparas aproximavam-se de mim perigosamente. O esforço que tinha de usar para me manter na vertical tornou-se penoso. Faltava-me o andar de marinheiro!

Na véspera da partida, o contramestre comunicara-me instruções do imediato, explicando-me que a tripulação das máquinas era composta de três maquinistas e dois ajudantes. Faltava assim um ajudante para preencher o terceiro turno do serviço.

Conhecida a minha prática oficinal anterior, através de informação dada pelo Armindo Verdade, eu deveria abandonar as tarefas do convés e seria arvorado em ajudante do segundo maquinista, sempre que o navio tivesse de navegar por um tempo mais longo. Gostei do alvitre, era um desafio que não esperava. O meu turno de serviço começava às vinte horas. Fui tentar jantar qualquer coisa, mas o estômago não aceitou. Chegada a hora, dirigi-me para a casa das máquinas.

Naquelas primeiras horas, após a saída da barra, o tempo piorara de modo assustador. Tinha de me manter permanentemente agarrado aos corrimões, e o enjoo não tardou a chegar.

O segundo maquinista, um ilhavense avisado e muito afável, já me tinha indicado as tarefas a executar e o balde apropriado para vomitar. Pouco depois, através do “telégrafo” de bordo, veio da ponte de comando uma comunicação para reduzir a força da máquina. As coisas deviam estar a complicar-se lá por cima, pensei eu…

O navio ia ser posto de "capa", isto é, aproado ao vento e à ondulação, em baixa velocidade, para evitar estragos sobre o convés durante a viagem até aos pesqueiros, onde estavam peados os botes de pesca  e outros materiais para a laboração do peixe.

Depois de dois ou três dias de mau tempo e enjoo permanente, todos os cheiros eram repugnantes, quer fossem os dos vapores do óleo derramado pela almotolia sobre a cabeça quente do motor ao lubrificar os balanceiros, quer fosse o cheiro do pão quente ao sair do forno, quando no regresso ao rancho passava junto à cozinha.

O ruído contínuo das máquinas, a princípio difícil de suportar, transformava-se com o passar do tempo, numa monódia envolvente com modulação de ladainha religiosa e, lentamente, a adaptação foi ocorrendo.

Por alturas da passagem pelos Açores, avistou-se, a flutuar nas ondas, uma tartaruga de grande tamanho e manobrou-se o navio de modo a recolhê-la. A canja ficou deliciosa, e foi a primeira sopa que comi com verdadeiro apetite. Provavelmente hoje não conseguiria comê-la! Preconceitos…

As primeiras noites, deitado no beliche que me coubera no rancho inferior, foram infernais. Açoitado pelo mau tempo, o navio cavalgava o mar com balanços tais que faziam bater a amarra que suspendia o ferro (a âncora), no tubo metálico que a conduzia para o paiol respetivo. Só o profundo cansaço de muitas horas de trabalho permitia algum repouso, ajudado pelo efeito de berço de infância gerado pelo balanço do navio.

Entretanto o tempo foi melhorando e as agonias desaparecendo, tal como os sons da amarra, agora menos agitada no interior do tubo. As anteparas deixaram de me ameaçar e o andar de marinheiro foi-se instalando aos poucos.

Como quem mora ao pé da igreja, deixa de ouvir o toque dos sinos, habituei-me e aprendi mais tarde a reconhecer o estado do tempo pelo nível sonoro da amarra! Muitos dias de silêncio seguidos significavam outros tantos de cansaço na pesca. Assim, os ruídos fortes chegavam a ser bem vindos para obter o merecido descanso imposto pelo mau tempo!

A viagem até aos pesqueiros durava cerca de oito dias. As tarefas executadas nesse período formavam um manancial de conhecimentos muito diversos, tanto para os “moços” recém embarcados, como para os “verdes” [, o equivalente a "piras" (LG)], os pescadores que embarcavam pela primeira vez e eram obrigatoriamente orientados por um pescador sénior [, um "maduro", (LG)]. Eram os dias preparatórios daquela vida, antes de entrarmos na rotina da pesca.

Mas não quero aqui avançar por narrativas já conhecidas e mais competentes. Prefiro averiguar sobretudo aquilo que, ao fim de tantos anos, em mim resta daquela experiência.

Restarão certamente impressivas sensações onde já não habitam alguns nomes, tão pouco os seus rostos, gastos na erosão dos dias. De homens longamente afastados do fluxo normal da vida urbana, cultivando a saudade no meio de condições de sobrevivência infra-humanas, isto é, fora dos padrões sociais de convivialidade característicos da vida em terra. Ali, a comunicação ficava limitada ao passado, nas conversas do rancho, ou apenas grunhida com interlocutor imaginário no isolamento do bote, durante muitas horas por dia. O fatal embotamento da consciência motivado pelas poucas horas dormidas em cada dia, completava-se recorrendo à aguardente diariamente distribuída em duas tomas como se de remédio se tratasse: de madrugada, antes de saltar para o bote [, o chamado "mata-bicho", (LG)] e à tarde durante a longa “escala” do peixe.

Esta tarefa durava até que o convés ficasse limpo. Os pescadores iam então beber a “chora”, um caldo de peixe reconfortante, antes de caírem no beliche com a roupa que traziam no corpo, esgotados. Apenas a lembrança da família lhes permitia manter o “élan” vital, para suportar a dureza destas tarefas.

Sempre que o tempo estava calmo, a alvorada soava com os “louvados” [, ladaínha para despertar os pescadores, (LG)],  às 4 horas da manhã. O silêncio acontecia, por volta da meia noite. Eram assim vinte horas de vigília para quatro de descanso em cada dia. E este regime podia durar muitos dias seguidos, sem sábados nem domingos, com mar calmo ou agitado. Quantas profissões em terra se sujeitavam a semelhante regime?

Deixo-vos aqui um poema esquecido no fundo de uma “loca”, o lamento de um “verde” (pescador que embarcava pela primeira vez) que veio parar às minhas mãos no acaso de uma manhã.

O Verde

No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: salta, esquece as mágoas…
Senti, logo, na garganta um garrote!
Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.
“Senta-te, Zé, e rema enquanto a força durar!
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”
Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.


(Continua)

[Revisão e fixação de texto, ilustrações, links e notas, exclusivamente para este poste: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 23 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15531: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1954, aos bancos de pesca do bacalhau: Parte I

(**) Último poste da série > 28 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15548: Notas de leitura (792): “Bichos da Guiné, Caça, fauna, natureza”, por Júlio de Araújo Ferreira, Edição de Autor, 1973 (2) (Mário Beja Santos)



segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15550: Tabanca Grande (481): Osvaldo Pereira da Cruz, 1.º Cabo Radiotelegrafista (rendição individual) – Piche 1969/71. É o grã-tabanqueiro n.º 710

1. O nosso Camarada [António M. ] Sousa de Castro (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74), enviou-nos a apresentação de mais um camarada nosso, com a seguinte mensagem: 



Camaradas



Envio a apresentação de um novo Tertuliano, Osvaldo Pereira da Cruz, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista em Piche – Guiné,  1968/71. Para além de camarada d’armas também foi meu colega de trabalho nos ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo). 

Saudações,
A. Sousa de Castro


OSVALDO PEREIRA DA CRUZ, EX-1.º CABO RADIOTELEGRAFISTA EM RENDIÇÃO INDIVIDUAL NA GUINÉ – PICHE, 1969/71

PARA DAR UM ABRAÇO AO IRMÃO QUE IA CHEGAR À GUINÉ PARA CUMPRIR A SUA COMISSÃO AO SERVIÇO DO ESTADO PORTUGUÊS, INVENTOU PROBLEMAS DENTÁRIOS PARA CONSEGUIR CONSULTA E DESLOCAR-SE A BISSAU, FICOU SEM DOIS DENTES MAS PASSOU O NATAL DE 1970 COM O IRMÃO PAULO. VALEU A PENA! 

HISTÓRIA QUE SUA FILHA PAULA OLIVEIRA DA CRUZ FEZ QUESTÃO DE RECORDAR E PARTILHAR. MUITO BOM! (Sousa de Castro)


4 IRMÃOS NA GUERRA COLONIAL AO SERVIÇO DO ESTADO PORTUGUÊS.

Tenho 68 anos, trabalhei nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. (Fui Serralheiro Mecânico.) Fui para a tropa e daí para a Guerra Colonial na Guiné em rendição individual, fui 1.º Cabo Radiotelegrafista,  tinha 21 anos. Pertenci à Companhia de TRMS sediada em Bissau, no Quartel General, passei por Teixeira Pinto, Farim e completei a maior parte da comissão em Piche (15 meses, zona Leste da Guiné, no STM - Serviço de Transmissões Militares),  adido à CCS do BART 2857.

Foi muito duro para os meus pais pois estivemos na guerra ao mesmo tempo 4 irmãos, 2 na Guiné, 1 em Moçambique e outro em Angola.

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José Cruz

Meu 2.º irmão: José Pereira da Cruz, ex-Fur Mil TRMS INF. Cumpriu na Província de Moçambique desde 1969/71 a sua comissão de serviço,  integrado na CCAÇ 2555 como adjunto do Centro Cripto.


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Paulo Cruz 


Meu 3.º irmão: Paulo Pereira da Cruz, ex-Fur Mil, chegou à Guiné em rendição individual, em 1970/72. Ficou integrado num Pelotão de Nativos até ao fim. Não sei qual a designação do Pelotão e onde pertencia. Faleceu há mais de trinta anos por afogamento no Rio Lima,  no Barco do Porto em Cardielos, Viana do Castelo.


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Domingos Cruz 

Por último o meu irmão mais novo, o 4.º,  Domingos Pereira da Cruz:  cumpriu a sua comissão em Angola,  em rendição individual nos anos  de 1973/74 como Rádio-Montador. 

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- Pai, esta foi, por ventura, a história de Natal mais bonita que me contaste. Talvez não te lembres de a ter escrito no projeto Sénior, mas eu guardei-a para ti. Paula.


Osvaldo Cruz com sua filha Paula




MEMÓRIAS DO LESTE DA GUINÉ QUE NUNCA VÃO DEIXAR DE O SER!



Osvaldo Cruz
Estava na GUERRA COLONIAL da GUINÉ, e como tinha ido em rendição individual, passei por Teixeira Pinto e por Farim, acabando por me fixar em Piche onde estive quinze meses. 

Piche era uma zona do mato, no leste da Guiné. Como era uma zona das mais flageladas pelos ataques do PAIGC, não era fácil uma deslocação a Bissau onde acima de tudo se respirava um pouco melhor aquele ambiente de guerra. Acontece, porém, que eu recebo um aerograma dos meus pais onde me diziam que meu irmão Paulo tinha sido mobilizado e iria embarcar também para a Guiné. Fiquei muito surpreendido, e eis que chega novo aerograma do meu irmão onde me diz a data em que embarcaria em Lisboa,  directo à Guiné.

Eu era Radiotelegrafista, e a partir desta notícia desdobrei-me para saber quando chegava o navio a Bissau pois gostava muito de dar um abraço ao meu irmão, naquela hora da chegada. Então comecei a pensar o que fazer para vir a Bissau, pensa que pensa, e eis que surge uma ideia! Fui falar com um sargento-ajudante, com quem tinha já alguma amizade, e que eu sabia que me poderia ajudar. Contei-lhe a minha pretensão ao que ele me diz: “Tu és maluco, tu nem as pensas!”.

Fiquei triste, mas não saí dali. Então ele diz-me: “Olha lá,  os teus dentes estão bons ou tens algum avariado?” Eu tinha dois dentes atrás que estavam mais ou menos, mas estavam a cariar. Respondi: “Tenho um que volta e meia não o suporto com dores.” “Ora bem” - diz ele - “Sendo assim eu vou falar com o médico para ver se ele ajuda nisto”.

O médico era meu amigo e antes que o sargento falasse com ele falei eu primeiro, onde ele me diz: “Ó Cruz,  por mim não sou problema, deixa-o vir”. No dia seguinte sou chamado ao comandante. Quando chego diz-me o comandante: "Então queres ir à consulta do dentista no hospital militar?" Eu respondi afirmativamente e, olhando para a secretária dele, vejo a guia de marcha para eu ir para Bissau no primeiro meio aéreo que aparecesse. Entretanto ele pega nos papéis,  assina,  põe o carimbo e manda enviar uma mensagem para marcar a consulta. Manda-me sair e esperar por notícias.

Eu via o tempo a passar e nada de notícias, até que chega finalmente a confirmação da consulta e o meu amigo sargento mandou-me chamar. Fui a correr onde ele me diz: "Só falta o avião, o resto já cá está".

Entretanto chega uma mensagem dizendo que um avião DAKOTA chegaria naquele dia e que trazia reabastecimentos. O sargento diz-me: “Eh´, pá, parece que estás com sorte. Vou ver se o Dakota te leva, aguarda”.

Lá viemos para o posto de rádio para comunicar com a Força Aérea para confirmarem a boleia,  o que aconteceu. Fiquei muito contente e lá vim para Bissau. Quando cheguei , apresentei-me na Companhia de Transmissões para me darem alojamento e alimentação. Como ainda faltavam oito dias para a consulta, puseram-me a trabalhar no posto de rádio do Quartel-General.

Os manos Cruz, Paulo e Osvaldo
Dali a dois dias chegava o navio que trazia meu irmão. Como para entrar no cais era preciso uma credencial, fui pedi-la à secretaria e aí não houve problemas, pois fui com o condutor da carrinha de Transmissões que tinha livre-trânsito. 

Já no cais, eis que o navio que já fazia manobras para desembarcar o pessoal é vedado pela Polícia Militar, e não deixam ninguém contactar com os militares que chegavam, e estes são metidos em camiões directo ao Depósito Geral de Adidos que ficava a uns 16 quilómetros. Lá pedi ao condutor e este levou-me aos Adidos. O condutor deixou-me ficar, mas também nos Adidos não era fácil chegar ao contacto com os que chegavam e que estavam a ser encaminhados para os diferentes quartéis. 

Já estava desesperado e vejo aquela cabecita a olhar para todo o lado, não à minha procura porque ele não sabia que eu estava ali, mas porque tudo era diferente para ele a partir daquele momento. Eu gritei: “PAULO! PAULO!” e ele ouviu-me,  saiu da fila e com as lágrimas nos olhos veio dar-me um abraço. 

Como ele já sabia que iam ser alojados temporariamente no Quartel-General e eu tinha que vir para entrar de turno, despedi-me e disse-lhe que o procurava em Bissau. Lá arranjei boleia, o que era fácil, e vim para o Quartel. Ainda não tinha terminado o turno e chega um colega meu que me diz: “Cruz, está lá fora um periquito à tua procura.” 

Pedi-lhe que terminasse o turno por mim, depois de lhe dizer que o periquito era meu irmão que tinha chegado naquele dia. Fomos beber uma cerveja na cantina, pois o calor assim o impunha, conversamos para saber notícias e decidimos ir jantar num restaurante em Bissau.

Fui-me vestir com roupa civil e lá viemos para a cidade que ficava a uns 4 quilómetros. Foi uma noite diferente. Depois todos os dias nos encontrávamos, até que chegou a consulta. Chegado ao Hospital lá sou encaminhado para uma fila com mais de dez pessoas. Chega o enfermeiro faz a chamada e de seguida sem ser visto pelo médico que era um oficial da Marinha, começa a dar anestesia a todos que ali estavam.

Já não sentia a cara quando sou chamado, o médico manda-me deitar na cadeira e pergunta "qual era o dente?” Eu não sabia falar, pois não sentia a cara. Abri a boca, ele olha toca no dente mais estragado e arrancou-o. Meteu uma gaze no buraco olha de novo e diz: "O melhor é tirar aquele também que já não te vai chatear mais". E vai daí fiquei com menos dois dentes.

Entretanto,  trago a alta do médico onde dizia que podia voltar à minha unidade. Faltavam mais ou menos três semanas para o Natal, mas o transporte era difícil e aí eu já não tinha muita pressa. Chegou o Natal e, nem eu nem o meu irmão, tínhamos ainda transporte para os destinos. Então foi muito bom porque passamos juntos o Natal de 1970.

Passados uns dias sou chamado e fui de volta para Piche onde os meus camaradas de transmissões me esperavam, pois já estavam só os dois há mais de um mês e como o turno era de 24 horas, cada um trabalhava doze horas por dia. Passado um mês sou mandado para Bissau, pois tinha terminado a comissão e aguardava por transporte para a Metrópole. (Assim era chamado o nosso Portugal.) Em Abril de 1971 regressei com menos dois dentes, mas com grande alegria porque tinha ido receber o meu saudoso irmão. 

Um abraço, camaradas 

Osvaldo Cruz 
1.º Cabo Radiotelegrafista (rendição individual)

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: