sábado, 31 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2906: Estórias de Jorge Picado (3): Cutia, II Parte (Jorge Picado)



Jorge Picado,
ex-Cap Mil,
CCAÇ 2589 e CART 2732,
Guiné 1970/72




1. No dia 24 de Maio de 2008, recebemos esta mensagem do camarada Jorge Picado, com algumas palavras ainda sobre o nosso Encontro Nacional e com a segunda parte do trabalho que ele intitulou como Cutia.

Caro Carlos
Antes de mais quero felicitar-te - e ao Mexia Alves também - pelo excelente trabalho que desenvolveram para que o III Encontro tivesse aquele explendor. Passei um dia magnifico na companhia de tantos camaradas, quase todos desconhecidos para mim, mas que fazem parte da Grande Família Guineense.

Obrigado igualmente por destacares a foto do nosso convívio, que também já tinha arquivado à parte.

Assim que tiver disponibilidade podes crer que darei um salto até Matosinhos.

Seguem então umas palavras sobre a emboscada, que o destino determinou que não ocorresse, pois caso contrário que de certeza não se podia realizar agora esta troca de mensagens.

Jorge Picado
ex-Cap Mil


Guiné> Região do Oio> Destacamento de Cutia, situado na estrada Mansoa/Mansabá.
Foto: © César Dias (2008). Direitos reservados.


Guiné> Região do Oio> Vista aérea do Aquartelamento e Tabanca de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.

2. Destacamento de Cutia (Parte II)
Por Jorge Picado

Tal como prometi, vou tentar alinhavar algumas palavras sobre certos factos que se passaram após o Natal de 1970.
No entanto, antes de prosseguir, quero aqui deixar um esclarecimento.

No III Encontro realizado no passado dia 17 de Maio na Quinta do Paul – gostei muito de ter abraçado ao fim de quase 37 anos três camaradas (*) com quem partilhei 52 dias de estadia nas Terras do Oio entre Mansabá e o Rio Cacheu, bem como conhecer todos os restantes – comentava-se, num dos muitos grupos que se iam formando e entre outras coisas, que era preciso ter cuidado com a precisão com que por vezes se escrevia no blogue, talvez com recurso a meras recordações, o que a esta distância temporal podia ser ficção.

Concordo plenamente. Por isso quero desde já afirmar que ao citar por exemplo, números concretos quanto a horários, faço-o, porque são aqueles que constam das parcas anotações existentes na pequena agenda de bolso que mantenho e foram lá colocados, quando me encontrava no terreno. Estes, dos horários das colunas, tem apenas a precisão de quartos de hora, mas estão lá. Por isso devo citá-los. Aliás, já nas minhas notas sobre a emboscada do Infandre (1), transcrevi precisamente aquilo a que chamei hieróglifos e procurei depois traduzir.

Quando não tenho a certeza, mas apenas uma ideia, deixo sempre expressa a dúvida ou assinalo com (?). Nesses casos, ficarei muito contente que outros confirmem ou corrijam.

Por julgar que de facto só se deve transmitir algo de que se tenha uma relativa certeza, para quem não se documentou enquanto lá esteve, é que, apesar de ter passado por tantas localidades como referi na minha apresentação ao blogue, tenho muito pouco para contar.

Passemos então aos factos sobre Cutia.

Em virtude das decisões tomadas pelo COMCHEFE de prosseguir com a melhoria (alargamento e asfaltamento) do itinerário para Farim, que à data, creio chegava ao Bironque, foi activado o COP 6, reforçados os meios estacionados em Mansabá (com a colocação de Paras, CAV – viaturas Panhard(?) e não sei se mais), além de 1 CCAÇ colocada no K-3 comandada pelo Cap Mil Cupido (natural e ainda residente em Mira, meu conhecido e do mesmo curso do CPC) e ao mesmo tempo reorganizadas as Forças estacionadas em Cutia, razão pela qual eu aí fui colocado.

A missão de que fui incumbido foi a de proteger as colunas de viaturas civis que transportavam o pessoal, maquinaria e todo o tipo de material necessário à execução de tal empreitada, entre Mansoa e Mansabá.

Assentei arraiais neste Destacamento no dia 27 de Novembro de 1970 - uma sexta-feira, mas não 13 – e iniciei a nova actividade sobre rodas logo pelas 7 horas de domingo, 29, indo a Mansabá para a partir daí efectuar a primeira das 24 escoltas a colunas que realizei levando-a a Mansoa. Aqui formei nova coluna com as máquinas e viaturas vindas de Bissau, escoltando-as até ao seu destino em Mansabá, para depois regressar a penates ao princípio da tarde.

Apesar de durante o período que decorreu até 3 de Fevereiro de 1971 (quando a CCAÇ 2589 realizou a última coluna escolta Mansabá-Mansoa 15H) ter deixado algumas vezes o comando do Destacamento ao Alferes mais graduado durante ausências que nunca excederam 2 dias seguidos, apenas falhei uma escolta no dia em que fui ao dentista ao HM de Bissau, tendo regressado a Mansoa já depois da coluna ter saído para Mansabá.

Confesso que ao efectuar esta última coluna foi com grande satisfação que, comungando com a alegria do pessoal da CCAÇ ao despedir-se daquelas paragens – já que iam aguardar em Mansoa a sua retirada para Bissau a fim de serem recambiados para as suas terras de origem –, também eu me despedi de Cutia e Mansabá onde acreditava não mais colocar os pés. Puro engano e ingenuidade deste vosso camarada de Tabanca, que julgava ser possível, só lá porque tinha 1 ano de mato, arranjar uma colocaçãozita em qualquer secretária das muitas existentes em Bissau, mas que pelos vistos se destinavam aos predestinados… Porém isso já são outras estórias…

Nestas colunas muitas vezes também se incorporavam forças da CART 2753 e, excluindo as dores de cabeça – pelo menos para mim – que os condutores civis me davam por não cumprirem as normas de manterem uma certa distância entre eles e nunca perderem a ligação com a viatura que vinha na sua retaguarda, decorreram sem que houvesse qualquer facto digno de nota, com excepção da realizada no dia 28 de Dezembro que era para se realizar em 27.

Quando a 21 de Dezembro realizei a escolta Mansabá-Mansoa 07H – 12H, para levar a coluna onde viajava todo o pessoal das obras que ia passar o Natal a Bissau, logo me foi determinado que no domingo, 27, estaria pela manhã em Mansoa para pegar na coluna de regresso. Devia trazer forças condicentes com o número de viaturas que seria maior que o normal. Assim, quando às 7 horas de 27 já nos encontrávamos sobre rodas prontos a arrancar, fomos surpreendidos pelo operador de serviço às transmissões que aos berros, dada a distância, nos avisa de que o movimento estava cancelado, por ordem de Mansoa. Confirmando via rádio tal facto, sou informado que por nova ordem de Bissau a coluna seria no dia seguinte, devendo apresentar-me em Mansoa às 15 horas.

Cumprindo ordens – para mim e para todo o pessoal foi um domingo de desfrute e ataque às bazucas de cerveja – a 28 lá estava em Mansoa a enquadrar a coluna. Na realidade maior do que o habitual – seriam perto de 20(?), quando o normal rondaria a dúzia – e com viaturas ainda mais velhas, para arrastar mais a progressão.

Desta vez não dispúnhamos de protecção das Panhard, como por vezes acontecia. Na frente coloquei três Unimog, os dois primeiros com pessoal do Pel Caç Nat e o terceiro, onde me colocava com 1 Secção da CCAÇ. Parámos em Cutia para deixar elementos da população e reordenar o combóio.

Seguindo, passámos o carreiro, a zona de estrada desmatada (tinha-o sido logo após 12 de Outubro) e entrámos no concelho de Mansabá, cujas bermas se mantinham com a vegetação natural, isto é, com o capim no auge do seu desenvolvimento, quase na berma.

Por norma fazia estes percursos a maior parte do tempo de pé e costas para a frente de modo a vigiar o atraso das viaturas da retaguarda, dando indicações ao condutor, para afrouxar ou acelerar conforme o comportamento das mesmas.

Eis se não quando sinto a viatura a parar, sem que ordenasse. Viro-me e vejo as outras duas viaturas, lá à frente, paradas e vazias. O pessoal deitado nas bermas ou melhor, numas pequenas valetas. Secou-se-me a boca. O pessoal africano sempre tão descontraído… fora das viaturas? Não tinha havido tiros aos macacos – como noutra ocasião tinham feito e depois saltaram em andamento e tudo para apanhar os feridos e mortos – então porquê?

Salto também para a estrada. Dou ordem para efectuarem a segurança e avisar o resto da coluna para manter o afastamento entre as viaturas (talvez das poucas artes guerreiras que tinha fixado nas aulas de Mafra, além evidentemente das respeitantes à Manutenção Militar). Corro pela berma esquerda para contactar com o furriel da frente. Nem sequer me passava pela cabeça qual a causa por não ouvir tiros, tal o nervosismo que de mim se apoderou!

Chegado à frente e à fala com o furriel fico estupefacto com o que vejo. Uma cratera com o diâmetro da faixa alcatroada impedia-nos o avanço. Uns bons metros mais à frente, outra. Depois, outra (**).

Começo a ficar cada vez mais apreensivo, para não dizer outra coisa. Os camaradas compreendem naturalmente como me quero expressar aos momentos vividos naquela altura. Nem sequer tive a frieza de raciocinar que durante os longos minutos que se passaram, ainda não tinha sido disparado qualquer tiro!!! Só pensava no que estaria para vir… e, afinal, não vinha nem veio nada.

Entro imediatamente em contacto com Mansabá. Transmito-lhe o que se passava. Peço reforços…e até o helicanhão e mantenho-me em contacto permanente com eles.

Entretanto mantinha tudo em guarda e à defesa… não fosse o diabo tecê-las, sem compreender ainda bem o que se passava e com toda a coluna civil nervosa.

Conferenciando com o furriel e um alferes que entretanto se chegou à frente, começámos a serenar, uma vez que o IN não aparecia e decidimos que o Sapador fosse pesquisando o capinzal, para saber da sua viabilidade de passagem apeada de modo a poder-se observar o que estava para a frente, relatando tudo para Mansabá, que já satisfizera os meus pedidos e enviava Panhard e Páras, entre outros.

A estrada mais para a frente descrevia uma ligeira curva para a direita e então, com a progressão apeada, ao mesmo tempo que se fazia avançar as viaturas meio por fora da estrada, contabilizaram-se 5 crateras no total, num percurso de 2 a 3 centenas de metros ou talvez mais…

Verdadeiramente só respirámos de alívio com a chegada dos camaradas de Mansabá e do helicanhão que, depois de bater toda zona envolvente, nos comunicou não ver sinal de presença de IN e regressou a Bissau.

Deixámos então a coluna aos cuidados do pessoal de Mansabá e regressámos a Cutia, eram 18h45m, mas como já tinha aí ordem do meu Comandante para me apresentar em Mansoa, o pessoal teve de fazer mais umas horas extras para lá me colocar.

Tendo relatado verbalmente a ocorrência, dei então conhecimento ao Comandante de que no final da tarde do dia anterior tínhamos escutado – em Cutia –, fortes rebentações relativamente perto, vindas do Norte, que nos alertaram porque julgámos serem de ataque a Mansabá, mas como via rádio nos responderam negativamente e mais ninguém referia qualquer dificuldade, esquecemos o sucedido.

Concluíram que teria estado montada uma emboscada para apanhar a coluna que deveria ter sido efectuada na manhã do dia 27, mas chegado ao fim da tarde sem que tal ocorresse, tiveram de fazer rebentar as minas colocadas na estrada e abortar a emboscada.

Não sei se isto foi comunicado ao COMCHEFE, mas naturalmente que teria sido, só sei que no dia seguinte, 30 de Dezembro, arranquei de madrugada para Cutia às 5h30m indo de seguida efectuar a segurança (próxima?) aos trabalhos de capinação e restauro da estrada até às 15h30m, actividade repetida (segurança à capinação), no dia 2 de Janeiro de 1971 (depois de ter deixado uma coluna em Mansabá) e no dia 3 das 6h30m até às 15 horas.

Uma vez explicados os 5 enormes buracos com cerca de 2 a 2,5m de diâmetro e 60 a 80cm de profundidade, ao longo de 200 a 250m a que o tertuliano Carlos Vinhal se me referiu, não posso terminar sem acrescentar o seguinte:

i) – nos dias que se seguiram à ocorrência, inclusive enquanto se fez a capinação, não me lembro de qualquer reconhecimento efectuado no terreno para verificar rastos da emboscada;

ii) – quando mais tarde, já no CAOP 1 em []Teixeira Pinto, depois de ter contado o sucedido ao meu camarada de quarto, o Cap Art do QP Borges, certo dia aparece-me com um Perintrep ou seria Supintrep(?) acabado de chegar onde vinha esquematizada a emboscada, tal como constava de documentos apreendidos numa posterior operação de assalto ao Morés, efectuada por diversas forças entre as quais a CCMDS e CCPáras, fiquei atordoado. O poder de fogo dessa emboscada era fortíssimo, incluindo posições de Canhão s/r, várias metralhadoras pesadas, além dos vulgares RPG 7 e Kalash. Ainda gostaria de saber onde existirão esses documentos, para alguém confirmar;

iii) – por outro lado e tendo-se realizado 15 escoltas até ao Natal, sem qualquer anormalidade, como é que sabiam que a 16.ª se realizava no dia 27, ainda por cima ao domingo? Como uma emboscada daquela natureza não podia ser montada dum momento para o outro, i.e. a partir por exemplo do momento em que tivessem conhecimento da nossa saída de Cutia – até porque saíamos muitas vezes para ir somente a Mansoa abastecermo-nos – ou do arranque da coluna de Mansoa, como adivinharam que era naquele dia que havia coluna e daquela importância? Não podia ser por mero acaso. Tinham obviamente de ter bons informadores… e certamente em Bissau.

iv) – pela terceira vez – na Guiné – a sorte tinha-me acompanhado, reforçando a crença que se tinha apoderado de mim, de que ao nascer já trazemos todo o percurso de vida inscrito no BI, como se fora uma fita de tempo com todos os passos marcados, ainda que a desconheçamos. Passei a acreditar que a vida está predeterminada e o que tiver e quando acontecer, acontecerá. Para mim, não há volta a dar-lhe, como se costuma dizer;


Parte de Carta Militar com a estrada Cutia-Mansabá, com os pontos A e B assinalados como locais prováveis de montagem da emboscada abortada.

v) – finalmente e à distância de 36 anos procuro localizar no mapa (que anexo) a zona da emboscada, partindo apenas de 3 pressupostos: a designação de Mamboncò e a recordação de que a estrada plana descrevia, do lado Norte das primeiras crateras, uma curva ligeira para a direita. Assim na quadrícula superior esquerda da folha 1/50.000 MANBONCÒ, está traçada a estrada que ia para Mansabá e, depois do limite dos concelhos começava a zona não capinada. Aí deparo-me com duas possíveis localizações, antes da antiga povoação de Mamboncò e que considero como mais prováveis. São essas as posições A e B. Praticamente equidistantes de Cutia e Mansabá (a 6 ou 7 quilómetros) e entre 2 pontões (1 a Sul e outro a Norte logo depois de Mamboncò) onde seria fácil criarem dificuldades aos reforços enviados de ambos os aquartelamentos e muito perto dos locais de refúgio, quer a Oeste (Santambato/Morés) quer a Este (Sara/Canjambari). Inclino-me mais para o ponto B, por ser aquele da zona mais plana, já que o A se encontra entre duas curvas de nível (dos 20 e 30 metros) muito próximas.

Um abraço
Jorge Picado
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Anotações de Carlos Vinhal:

(*) - Jorge Picado refere-se a Vitor Junqueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 2753, Inácio Silva, ex-1.º Cabo da CART 2732 que também esteve destacado no COP 6 em funções administrativas e a mim próprio que com o Jorge participei numa perigosa peregrinação a
Fátima, como ele ironicamente sita.

(**) - Da História da Unidade CART 2732, Capítulo II, Fascículo VI Período de 01DEZ70 a 31DEZ70, página 16:
Dia 28 - Encontrados 5 buracos na estrada alcatroada em MAMBONCÓ 3E6.74, feitos por explosivos, com cerca de 2 a 2,5m de diâmetro e 60 a 80cm de profundidade, ao longo de 200 a 250 metros.

Ainda da História da Unidade CART 2732, Capítulo II, Fascículo XVIII Período de 01DEZ71 a 31DEZ71, página 34:
(um ano depois, sensivelmente no mesmo local)

Dia 06 - Pelas 11h15m 1 GCOMB REF 1 SEC+1 SEC/PEL MIL 253, efectuou coluna auto a MANSOA a fim de transportar militares.
No regresso, em MAMBONCÓ 3F2.56, foi emboscado por GR IN estimado em 50 elementos, armados de RPG, granadas de mão, armas automáticas ligeiras e morteiro 82, durante 20 minutos.
O IN instalado a 2 metros da estrada; alguns elementos armados de RPG saltaram à estrada a fim de alvejarem as viaturas.
1 GCOMB do Destacamento de Cutia saiu em socorro imediato. De Mansabá saiu igualmente 1 GCOMB em socorro. NT reagiram pelo fogo de todas as armas pondo o IN em fuga. A Artilharia da MANSABÁ e a FAP apoiaram as tropas emboscadas a pedido das mesmas.
As NT sofreram 1 morto, 11 feridos graves evacuados para Bissau, 9 feridos também evacuados, 8 feridos ligeiros.
1 Unimog 404 destruído e 1 Unimog 411 parcialmente destruído
OBS:-1 dos feridos graves acabou por falecer no HM 241.
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Notas de CV:

(1) - Vd. poste de 3 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2807: Estórias de Jorge Picado (1): A emboscada do Infandre vivida pelo CMDT da CCAÇ 2589 (Jorge Picado)

(2) - Vd primeiro poste da série Cutia, de 24 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2881: Estórias de Jorge Picado (2): Cutia, I Parte (Jorge Picado)

Guiné 63/74 - P2905: Estórias de Guileje (11): A besta do Celestino (José Neto † , CART 1613, 1966/68)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 > 1968> Estrada de Guileje > Em primeiro, uma Daimler.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 > 1968> O obus 8,8 cm.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 > 1968> Aspecto parcial da tabanca.


Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Fotos do José Neto † , reeditadas por Albano Costa). Direitos reservados.


Estórias de Guileje (11) (*) > A besta do Celestino (**) por José Neto (Subtítulos: L.G. / Homenagem ao nosso Cap Ref José Neto, que nos deixou há 1 ano) (***)


(i) Quatro obuses 8,8 cm apontados para o corredor da morte

O ano de 1968 entrou com uma novidade. O esforço sobre o corredor de Guileje diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guileje.

Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guileje com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau.

As colunas de reabastecimento passaram a ser mais frequentes e despejaram toneladas de mantimentos numa zona contígua ao perímetro fortificado que foi desminado e aplanado para o efeito.

Numa destas colunas, o Alferes Michael, que teimava em postar-se bem alto na torre da sua Fox, até já tinha sofrido ferimentos ligeiros, foi atingido com alguma gravidade pelo fogo duma emboscada.

Veio o helicóptero para a evacuação e foi a muito custo que a 2º sargento enfermeira pára-quedista convenceu o Alferes a deitar-se na maca para ir para o hospital. Era um bravo este alferes. Uma semana depois, ainda cheio de pensos, voltou para junto dos seus homens.

Ao mesmo tempo apareceram-nos uns civis e uma secção de Engenharia, comandada por um sargento, com material para abrir um furo hertziano na área do quartel para obtenção da preciosa água potável.

Estes tiveram o azar de apanhar um festival corriqueiro logo à chegada e, após uma semana de perfuração ao ralenti, um olho na máquina e outro na mata, diagnosticaram a impossibilidade de apanhar um qualquer lençol subterrâneo de água que passasse por ali, desmontaram a traquineta e puseram-se a andar para o sossego de Bissau.

Entretanto chegaram as duas companhias, pertencentes ao BCAÇ 2835 e tivemos notícias de que a 5ª Companhia de Comandos (comandada pelo Capitão de Artilharia Comando Gonçalves) tinha sido afecta ao nosso Batalhão e estava pronta a actuar na área de Aldeia Formosa, o que adensava as expectativas do que ia suceder nos próximos tempos.

A chegada dum pelotão de Artilharia de 8,8 cm com quatro bocas de fogo, instaladas com a direcção nor-nordeste, acabou com as dúvidas de que ia haver “porrada de criar bicho”.

(ii) A Op Bola de Fogo e o Celestino em pessoa


E no dia D, fins de Fevereiro [de 1968], desencadeou-se a Operação Bola de Fogo (****). A finalidade desta mega-operação era implantar um aquartelamento em Gandembel, perto da ponte do rio Balana, a ser reconstruída e guarnecida com um destacamento de segurança, sensivelmente a meio caminho entre Guilege e Chamarra.

Aquele local era praticamente o grande portão de entrada do Corredor de Guileje e assim pretendia-se, se não acabar, pelo menos dificultar a penetração do IN no interior sul do território.

A primeira fase consistia em limpar e tornar transitável a picada, havia anos abandonada, que ia do cruzamento de Guileje a Gandembel, ou seja, a continuação do itinerário Cacine – Gadamael – Gandembel e daí para norte até Aldeia Formosa. Esta primeira fase da operação estava a ser comandada, a partir de Guileje, pelo Celestino. [Celestino era o nome com que depreciativamente tratávamos o Ten-Cor Celestino da Cunha Rodrigues, comandante do BART 1896, sediado em Buba, personagem muito sombria da minha memória pois ameaçou-me com cinco punições, nunca concretizadas. Algumas vezes o trato por besta nesta narrativa, com alguma propriedade] (*****).


(iii) Gazela caída em armadilha, rancho melhorado

Foi então que ele me ameaçou pela quinta (e última) vez com uma porrada. Para descomprimir vale a pena contar a cena:

O pessoal combatente tinha saído quase todo e, contando com a besta, estávamos vinte e três militares europeus no quartel. A segurança era feita pelo Pel Caç Nat 51 e Milícias.

Durante a noite anterior tinha sido accionada uma das nossas armadilhas e de manhã deparamos com uma gazela morta no local. Claro que o Álvaro, cabo cozinheiro, se preparou para ser dia de rancho melhorado. Não era todos os dias que nos aparecia a gostosa e suculenta carne fresquinha de gazela.

Como era da praxe, foi anunciar ao Celestino a composição da refeição, neste caso o almoço. Este, fazendo jus à sua fama de bom garfo, disse ao Álvaro para juntar uma lata de chouriço (dois quilos) para refinar a especialidade gastronómica.

Um tanto encavacado o cozinheiro observou que o animal tinha dado vinte e dois quilos de carne limpa o que, para vinte e três comensais, chegava e sobrava.
-Faça o que eu lhe mando! - berrou o Celestino.

De cabeça baixa, o Álvaro retirou-se congeminando o processo de o quarteleiro dos géneros, o soldado Melo, lhe fornecer a lata de chouriço.

O Melo não foi na cantiga. Ele conhecia bem as regras adoptadas para a recuperação dos prejuízos que já descrevi, e chutou a bola para mim.

Tomei a decisão de não se meter chouriço no tacho, mas levar, para os oficiais, um prato com um desses enchidos cortado às rodelas e preparei-me para o temporal que se adivinhava.

(iv) Um segundo-sargento que manda mais do que um tenente-coronel

Quando o Celestino enfiou o guardanapo no colarinho e inspeccionou o manjar, ordenou que o cozinheiro viesse à sua real presença.O Álvaro passou pelo sítio onde eu estava a almoçar e disse-me que o comandante, se calhasse, o ia mandar prender.
-Sossegue. Eu vou consigo.

Antes que o trombone começasse a tocar, eu adiantei-me e disse que toda a responsabilidade era minha. O cabo tinha cumprido uma ordem legítima, salientei.
-Legítima?!!! Então você contraria uma determinação do seu comandante e acha que a sua ordem é legítima?
-É sim, meu comandante. A administração desta companhia é da responsabilidade do nosso Capitão Corvacho e minha. E, como é do conhecimento de V. Exª., nós estamos a arcar com muitos prejuízos na alimentação e não nos podemos dar ao luxo de desprezar uma migalha que seja.

O homem emborcava garfadas e ia rosnando os impropérios do costume. A certa altura, virou-se para o Dr. Oliveira Martins [, o Alf Mil Médico,] e disse-lhe:
-Oh doutor, já viu a tropa que eu estou a comandar? Um reles segundo sargento manda mais que um tenente-coronel!!!

O médico, que também não morria de amores pela besta, abriu a sua resposta contemporizadora com a expressão:
-Bem, meu comandante, eu julgo...
-Você julga? Julga o quê? Você é médico, ou juiz? - interrompeu o Celestino.

Bom. Julga ou cura. Cura ou julga, o fulcro da questão desviou-me para os dois verbos e o médico, que não era pêra doce, aproveitou para lhas cantar, como se costuma dizer, forte e feio.

A porrada ficou pendente, mas o pêndulo às vezes tem caprichos do diabo, como se verá mais adiante (3)
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 7 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

(**) Originalmente publicado como Parte VIII das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e na altura, capitão reformado, entretanto falecido em 29 de Maio de 2007).

Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

(***) Vd. poste de 29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2898: Efemérides (8): O Cap Zé Neto deixou-nos há um ano (Carlos Vinhal)

(****) Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo

(*****) Vd. poste de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(6): dos Lordes e das bestas

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2904: Memória dos lugares (8): Missirá, Cuor, cemitério mandinga: sepultura do guerreiro Quebá Soncó (Sales Moreira / Beja Santos)

Guiné-Bissau >Região de Bafatá > Bambadinca > Regulado do Cuor > Missirá > 2006 > Cemitério mandinga de Missirá, sepultura de Quebá Soncó.


Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do Beja Santos;


A fotografia é do tenente-coronel Henrique Jales Moreira, que foi 2º comandante do BART 3873 (penúltima unidade militar em Bambadinca, até ao início de 1974).

É assim que se referencia um túmulo, na Guiné. Bacari Soncó, um dos filhos de Quebá Soncó, primogénito do régulo Malã, indica a sepultura de seu pai, um grande e destemido combatente que ficou gravemente ferido numa incursão a Madina do Cuor, antes de eu chegar a Missirá.

Quebá Soncó apresentava-se como "guerreiro africano da Guiné Portuguesa".


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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 24 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2880: Memória dos Lugares (6): Missirá, Cuor, região de Bafatá, 2006 (Jales Moreira / Beja Santos)

Guiné 63/74 - P2903: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (1): Palavras e expressões do crioulo


1. Mensagem do Alberto Branquinho, que foi alferes miliciano na CART 1689 (1967/69), tendo passado por Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá (1).

Com este gesto e esta colaboração, que há que saudar, o nosso camarada Alberto Branquinho, jurista de formação, irmão de um outro Branquinho, o António (que foi Fur Mil, no Pel Caç Nat 63, ao tempo do Jorge Cabral, 1969/71) (2),fica automaticamente ligado à nossa Tabanca Grande. 

Camarada: não querendo falares de ti (nem do teu umbigo), ficas com a liberdade de nos mandar umas fotos tuas para o nosso álbum...E esperaremos conhecer-te pessoalmente num próximo encontro. Até lá, obrigado, pelas tuas eruditas e interessantes reflexões sobre algumas palavras e expressões do crioulo guineense que nós utilizávamos/utilizamos, nem sempre com a devida propriedade e rigor... Espero que alguns dos nossos camaradas e amigos (o Mário Dias, o Pepito, o Leopoldo Amado...), que conhecem e falam bem o crioulo da Guiné-Bissau (mas também os que o arranham, como o Zé Teixeira...), também possam dar o seu contributo... (LG).

Caro Luis Graça:

Proponho-me escrever (sob o título que vai no anexo a este mail) àcerca de assuntos e acontecimentos relacionados com a minha experiência na Guiné, mas nunca sendo eu o centro ou o tema.

Para o primeiro tinha coligido um conjunto de palavras do crioulo guineense. Depois vi que constavam já do léxico que está no blogue, à esquerda. De qualquer modo, é esse o tema que vai junto.

Um abraço
Alberto Branquinho


1. Nova série: Não quero falar de mim... nem do meu umbigo (1) > Palavras e expressões do crioulo da Guiné

por Alberto Branquinho


Decidi respigar da minha memória palavras e expressões do crioulo da Guiné, procurando encontrar a origem ou explicação para elas. Se quanto a algumas a sua origem é óbvia, por ser fácil detectar a palavra de onde provêm, quanto a outras é um mistério, o que as torna interessantes.

O crioulo cabo-verdeano, embora semelhante, é substancialmente diferente e, além disso, difere, também, entre os grupos de ilhas.

Ao confrontar essa lista de palavras e expressões com as do léxico da coluna da esquerda no blogue, verifiquei que, afinal, estavam lá todas. Tenho, no entanto, comentários quanto a algumas delas.

Haverá obra(s) de linguística sobre o crioulo guineense ? Se alguém souber ou desejar, comente e acrescente p.f., porque a mim cá sibe ( como disse Diana Andringa, em jeito de despedida, nas vésperas do último 25 de Abril, depois da projecção de As duas faces da guerra no Malaposta, ao Senhor Roubado).
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ASSIM:


a) Abo – você, tu

Tal como quando o próprio se refere a si mesmo diz A mim (eu), também, quando se dirige ao seu interloctor deveria escrever-se A bô, isto é, não só separando o “a” de “bô” como acentuando, com acento circunflexo, o “bô”, visto que o som do “o” é fechado.

E, já agora, uma questão: a palavra não será a adaptação crioula do francês “vous” ?


b) Bianda – comida, arroz...

Qual será a origem desta palavra ?

Temos, do francês, “viande” – carne, mas ao balaio de arroz cozido não era habitual juntar carne, mas sim peixe, peixe seco. As refeições eram tomadas no grupo familiar, sentados nas esteiras, em círculo, fazendo uma mistura em bolinhas, tendo como base o arroz, comidas à mão.

Tenho para mim que, observando a maneira de comer e de apresentar os alimentos, observação acompanhada de um sentimento pejorativo (ia dizer racista ). Os primeiros portugueses terão desighado “tudo aquilo” por vianda – comida para porcos. Ao verem que o “branco” assim a nomeava, terão concluido que “comida” seria designada por “vianda”.


c) Cibe– palmeira...

Sempre ouvi chamar-lhe "cibo” e não “cibe”.

Atenda-se a que o tronco das palmeiras era partido em pedaços e assim utilizados. Em Trás-os-Montes existe a palavra cibo, que vem da palavra latina “cibus,i “, que significa pedaço. Exemplos: “Um cibo de pão”, “um cibo de presunto”.

Será esta a origem ?


d) - não

Exemplos; “ Galinha cá tem”, “ A mim cá sibe”.

Avento uma hipótese – aqui entre nós, em Portugal, quando alguém quer afastar alguém que o importuna com perguntas e mais perguntas, enfadado responde; “ Eu sei cá !“

Quero aproveitar, ao falar da palavra crioula “cá”, falar de outra palavra – “na”- que os periquitos entendiam como ”não”. Pode traduzir-se por “mesmo”. Ex., “A mim na bai”, que, em contraposição “A mim bai”, enfatiza a decisão de “ir”, mesmo contra todas as dificuldades.

Assim, tomou a decisão de ir: “A mim bai.”

Tomou a decisão de ir, mesmo apesar das dificuldades: “A mim na bai”.


e) Djubi – olha !

É minha opinião que a palavra “djubi”, como vocativo, poderá ser traduzida por "Olha!", mas só quando dirigida a um rapaz, pois sempre entendi que é a palavra do crioulo correspondente a "jovem".

f) Goss-goss - depressa

Tenho pensado muitas vezes sobre a origem desta expressão. Será a assimilação pelo crioulo do som que se faz, entre dentes, ao atiçar os cães, incentivando-os a correr – guesse, guesse, guesse... ?

Um exemplo engraçado que ouvi da utilização da expressão: “ Alfero, a mim bai na goss-goss, corpo todo stá mojado, bala num entra “.


g) Macaréu – vaga impetuosa...

Não é, propriamente, uma palavra crioula. Em Portugal não há macaréu com aquela força. Na Guiné tem aquela impetuosidade devido, também, à ausência de relevo e é a
causa da salinidade dos rios até ao interior do País.

Havia, nos princípios do século XX, um fenómeno inverso no Rio Douro, quando não tinha barragens (movimentos brutais de água de montante para juzante em épocas de chuva e degelo) – a rebofa. Seria um movimento de águas fundamental para provocar o final de um outro macar...éu que nunca mais acaba.

No Brasil chamam-lhe pororoca.

h) Manga de ronco – sucesso militar

Traduzir Misti – querer ou manga di ronco por sucesso militar é muito redutivo. Ronco é todo o acontecimento, atitude, postura, efeito, que, pela sua grandeza e excepcionalidade, se torna grandemente apreciado e aplaudido. Exemplos: as mulheres vestem os seus trajes mais coloridos e garridos, uma festa de estrondo, a chegada ou a passagem de um conjunto de peças de artilharia, a marcha de uma grande quantidade de tropas acompanhadas de fanfarra, etc..

A propósito – Qual será a razão da expressão "manga de" , transmitindo a ideia de grande quantidade de qualquer coisa ou seja muito/a ? Exemplos: ”manga di patacão”, “manga di pessoal”, “manga di porada”. Será que a ideia de muito, traduzida em “manga de”, vem da associação ao número de colheitas que os mangueiros (- mangas) têm em cada por ano ? Assim, “manga de” seria tal como... a quantidade de mangas que nós temos.

i) Misti - querer...

“Misti” ou “misst” ? Parece-me, pelo som que recordo, que a segunda grafia será mais correcta.

Gostaria saber qual a proveniência desta simpática palavra.


j) Partir – dar

A sabedoria é grande. Habitualmente quem dá não dá tudo, dá parte e, muitas vezes, o acto de dar é precedido do acto de partir, arrancar áquilo que temos o pedaço que vamos dar.


l) Sancu – macaco

Peço desculpa por corrigir. Da minha experiência, a grafia da palavra deve ser “sanjiu”, em que o “j” é pronunciado como em “bajuda” (em crioulo). E não tenho dúvidas, neste caso, porque a associei imediatamente a “singe”, macaco em francês.

m) Suma – como, igual

“Suma” – semelhante.

Ser a corruptela/contracção de semelhante é difícl de imaginar e muito menos de aceitar. Suma em Português nada tem a ver com a ideia que a palavra transmite em crioulo guineense.

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Termino como já atrás escrevi – comentem e acrescentem p.f., porque esta é uma matéria muito interessante.

Alberto Branquinho

ex-Alf Mil Op Esp
(sem fita e, como então, sem pena da dita).

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Notas dos editores:

(1) Vd. postes de:

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2692: Construtores de Gandembel / Balana (3): Nunca falei em protagonismo pessoal, mas sim da CART 1689 (Alberto Branquinho)

26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2688: Construtores de Gandembel/Balana (1): Op Bola de Bogo, em que participou a CART 1689, a engenharia e outros (Alberto Branquinho)

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1535: Subsídios para a história da CART 1689, a que pertencia o Belmiro dos Santos João (Vitor Condeço)



(2) Vd. poste de 6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2033: In Memoriam (2): O saudoso Amaral da horta e dos presuntos de Missirá (Jorge Cabral / António Branquinho)

Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

Angola > Luanda > Abril de 1970 > "O meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, um dos homens mais generosos que conheci, advogado brilhante em Luanda, angolano como a minha Mãe, enviou-me um outro tipo de aerograma, uma edição que não tinha nada a ver com o Movimento Nacional Feminino. Pedi ao José Augusto para receber o Comandante Teixeira da Mota, então colocado no Comando Naval. Recebi muita e imprevista ternura epistolar, quando me casei".


Portugal > Açores > São Miguel > 1967 > "Muitas saudades dos soldados açoreanos! Foi este o pelotão que me caíu na rifa, entre Outubro e Dezembro de 1967, nos Arrifes, ilha de S.Miguel. Eram predominantemente micaelenses, mas havia gente de mais 4 ilhas. Ajudaram-me a preparar a festa de Natal, com satisfação andei, na companhia da minha amiga Cremilde Tapia, a levar lembranças a suas casas, tudo coisas que angariei através dos familiares e amigos, em Lisboa".


Portugal > Açores > S. Miguel "Os meus amigos de Arrifes, 1967-1968. Estes meninos, mal me apanhavam de oficial de dia no BII18, S.Miguel (mais propriamente nos Arrifes), apareciam a contar com as sobras do rancho. Há 40 anos atrás, havia muita provação nos Açores, os soldados gostavam da vida de quartel pois comia-se carne ou peixe todos os dias. O menino da esquerda chamava-se Gabriel, no dia de Natal teve roupa nova. Como eu gostava de os rever!"


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 29de Fevereiro de 2008:


Luís, As ilustrações já seguiram. Imagina tu que num dos livros que consultei na Sociedade de Geografia de Lisboa encontrei uma fotografia do régulo Abdul Indjai, dilecto amigo de Teixeira Pinto, régulo do Oio, e que mais tarde caiu em desgraça. É uma figura enigmática, tem este chamariz de procurar desvendar o segredo da sua queda: traição? cabala organizada pelos invejosos? excesso da administração que teve medo da sua popularidade? É palpitante andar à procura da verdade. Estamos a cerca de vinte episódios de concluir este livro, vê tu. Eu ainda não acredito que isto está a acontecer, um abraço do Mário.


Operação Macaréu à Vsta -Parte II Episódio XXXIII > CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (4) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA
por Beja Santos (*)


(1) Para Comandante Avelino Teixeira da Mota

Senhor Comandante e meu querido amigo,

Parto amanhã para Bissau, onde casarei no próximo dia 16. Pode imaginar a felicidade que estou a viver. Participei em várias operações, de Fevereiro a Abril, nos últimos dias de Março regressei à zona mais ocidental do Cuor, tanto quanto sei é a primeira vez que tropas não especiais entram em Belel desde que há guerra, e a destroem. Foi um sacrifício tremendo, não sei se alguma vez me vou perdoar ter-me esquecido, durante os preparativos da operação, de ter levado carregadores com jerricans de água. O mal está feito, regressámos com dois feridos ligeiros e muita gente febril e com insolações.

Imagine que uma professora em Bambadinca me tem facilitado documentação interessantíssima e que bem gostaria de um dia poder divulgar, para um melhor conhecimento sobre as gentes da Guiné. Encontrei um relato de um seu camarada da Armada, Frederico Pinheiro Chagas, publicado nos Anais do Club Militar Naval, em 1909, sobre Infali Soncó. Penso que Sambel Nhanta é hoje Sansão (está abandonada, como sabe, fui lá visitar o túmulo de Infali Soncó) e Gã Sapateiro é Caranquecunda. A propósito, o Pinheiro Chagas fala em Ponta Joaquim da Costa, do outro lado do Xime, já a caminho de Bambadinca, não será Mato de Cão?

Gostei igualmente de ler um artigo do Rogado Quintino sobre os povos da Guiné, veio num Boletim Cultural aqui da Guiné, de 1967. Repertoriei cobras, espécies aladas, aves e mamíferos, tenho tido a preocupação de pedir a toda a gente a confirmação destes nomes, asseguro-lhe que é a primeira vez que oiço falar no papa-figos dourado e na cabra cinzenta. Um dos meus caçadores, Cibo Indjai, falava-me no sim-sim, uma espécie de porco selvagem que ele trazia para Missirá, o Rogado Quintino também fala nele.

A propósito de madeiras, venho pedir a sua ajuda sobre o seguinte: encontrei referências a ébano, bissilão, pau-sangue, pau-carvão, pau-conta, maceta, poilão, pau-bicho e zimbrão ou goma arábica. Ora ninguém conhece o que é o zimbrão. Não pode adiantar mais pormenores? Lembra-se de me ter escrito um aerograma a propósito da fundação de Bucol, no regulado de Joladu, e de me ter falado que estava a escrever um artigo sobre os sônôs?

Finalmente encontrei um texto, trata-se do artigo “Usos e costumes jurídicos dos mandingas”, por Artur Augusto da Silva, foi publicado no Boletim Cultural, também em 1967. Leio em determinada altura: “Soninqués, beafadas e mandingas tinham uma cultura específica, caso dos sônôs, hastes de ferro com cerca de 1,2 metros de altura com vários braços laterais terminando em esculturas de bronze, geralmente pequenas cabeças humanas”. Se o seu trabalho sobre os sônôs já estiver publicado, envie-me, por favor.

Já que estou em maré de pedidos, ainda a propósito de madeiras, gostava de saber se há literatura sobre o uso das madeiras na Guiné, por exemplo no madeiramento das casas, a madeira que é usada nas esculturas ou na construção das canoas, peças caseiras, etc. No trabalho do António Carreira sobre os mandingas da Guiné Portuguesa, ele fala nos artífices mandingas e fala concretamente nos ferreiros, sapateiros, alfaiates, ourives, tintureiros e tecelões. Conheci um ourives em Bafatá onde comprei lindas peças como prenda de casamento para a Cristina. Esta tradição de ourivesaria é uma constante da cultura mandinga?

Estou consciente do abuso dos meus pedidos. Deixo para o fim uma notícia que provavelmente ainda não lhe foi dada pelas suas fontes de informação daqui. Consta que o comandante-chefe mandou suspender temporariamente toda a actividade operacional, estão em curso negociações para se chegar a um processo de paz. A mim a notícia surpreende-me pois estive num patrulhamento ofensivo no Poidom de onde voltei no passado dia 10. É provável que em Bissau haja informações mais consistentes, depois escrevo-lhe. Receba a gratidão deste seu jovem amigo que tem sido contemplado por inúmeras manifestações da sua generosidade.

(2) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Querida Mãezinha,

Tem sido um tempo muito duro, foi um mês com intensa actividade operacional, muitas deslocações e as noites que passo na tal ponte de Udunduma são um perfeito inferno. Amanhã parto para Bissau, a Cristina chega a 15, iremos fazer compras juntos, caso das alianças, tenho que tratar do fotógrafo e de alguma roupa, juntei dinheiro para pagar a boda, na noite de 16 haverá um jantar para o qual já convidei os nossos padrinhos e amigos. Penso que me vou emocionar muito, participarão na cerimónia todos aqueles que me têm ajudado em Bissau, alguns dos meus soldados e até camaradas de Bambadinca.

A missão católica é muito reduzida, creio que os católicos na Guiné não passam de 2 a 3 por cento, são missões de franciscanos e de padres italianos muito ligados à educação e ao apoio aos leprosos. Vou pedir acompanhamento com música de Bach, mas é um assunto que ainda quero conversar com a Cristina. Ficaremos cerca de dez dias em Bissau e depois eu tenho de ser hospitalizado, faz parte do acordo com o comandante de Bambadinca. Não gosto mesmo nada deste acordo, ter que ser internado na neuropsiquiatria, ainda resmunguei, o comandante perguntou-me seu eu tinha alternativa, é evidente que eu não tinha nenhuma.

Depois volto para o comando do meu pelotão, prevê-se que de fins de Maio até Julho ou Agosto, quando terminará a minha comissão, eu ficarei a colaborar diariamente nos patrulhamentos de uma estrada que está a ser alcatroada entre o Xime e Bambadinca, é uma solução que irá permitir que as tropas e o armamento, bem como as mercadorias e as matérias primas não afluam todos ao o porto de Bambadinca, que começa a estar muito saturado. A Cristina regressa a Lisboa em Maio, irá procurar casa e mobilá-la. Entretanto, concluirá os seus estudos, eu estou ansioso de recomeçar os meus mas sei muito bem que antes de mais irei decidir o meu rumo profissional.

Obrigado por ter ido aos funerais do Carlos Sampaio e ter consolado a sua mãe. Sei que foi de bengala e muito mal das suas pernas. Rezo para que tenha alivio das suas dores. O nosso primo José Augusto enviou-me felicitações pelo casamento, virá breve a Lisboa e vai visitá-la, ele é profundamente seu amigo.

Agora que a minha vida vai mudar, agora que se abrem novos sonhos e promessas com o meu casamento, não me canso de agradecer a Deus todo o bem que me fez, os princípios que me inculcou, preparou-me para tarefas difíceis e estou absolutamente certo que não a desapontei. Em breve, telefono-lhe de Bissau e dentro de meses vou ter a enorme alegria de a beijar e abraçar. Tive muita sorte na vida, a começar pela mãe que Deus me deu. Despeço-me com muita saudade e não se esqueça que eu tenho o coração em festa.

Carta, datada de lisboa, 4 de Abril de 1970 > "O Eduardo é o Amigo mais antigo, começámos a relacionarmo-nos aí pelos 11 anos, já lá vão mais de 50. Nunca me escrevera, eis que me envia as felicitações, com que entusiasmo e afecto. Carta inesquecível, que tão bem me fez naquele tempo"... A carta começava assim: "Caro Mário: Quero em primerio começar por felicitar-te pelo teu casamento com a Cristina: não há dúvida que o Amor é qualquer coisa que vem dar significado à Vida, por mais 'racionalistas' que às vezes as pessoas pretendam ser"...


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(3) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

É claro que só lerás esta carta quando regressares a Lisboa. Não podes imaginar o contentamento das mensagens que recebo. É o Eduardo Canto e Castro a falar de uma amizade que começou quando tínhamos onze anos e que nos deseja as maiores felicidades. É o José Augusto Gândara de Oliveira, o meu querido primo em Luanda que nos felicita e comunica que aguarda a visita do Teixeira da Mota, agora colocado no Comando Naval de Angola. São mensagens risonhas, portadoras de optimismo.

Quero que saibas que vou muito confiante para Bissau, que iremos fazer compras e preparar a nossa cerimónia. Quero igualmente que saibas que não encontrei alternativa a partir para Bissau com guias para a consulta externa de neuropsiquiatria e oftalmologia, ao princípio barafustei, achei indecoroso ir tratar de problemas inexistentes, agora estou resignado, sempre são mais uns dias em que te vejo, tu vais visitar-me ao hospital, espero que não seja acabrunhante.

Termino esta cartinha dizendo-te aquilo que sinto: até amanhã, meu querido amor. Cuida de ti é bom que estejas feliz como eu me sinto neste momento, é bom que saibas que te amo tanto e que te quero oferecer uma doce companhia.

Cap do romance de A. Moravia, O Desprezo. Editora Ulisseia, s/data, tradução de M.Teresa de Barros Brito, prefácio de Pedro de Moura e Sá, sem indicação de autor da capa. Foi o primeiro livro que li de Moravia, trouxe-me a novidade do ambiente italiano do após-guerra,recusa do neo-realismo,uma crueza e uma recusa da narrativa fácil, Moravia era cultíssimo e não tinha vergonha. O Desprezo centra-se numa ruptura dilacerante,é uma evocação serena e dolorosa que espelha a solidão do homem contemporâneo.O romance impressionou-me,marcou-me até hoje,seja a qualidade litérária seja a temática do casal nuclear,,nada lera de semelhante até então.
Fotos (e legendas): ©
Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(4) Para Ruy Cinatti

Ruy, dear Father,

Recebi o disco com a música do Aaron Copland, adorei sobretudo Rodeo, mas gostei também muito de El Salón México, a sinfonia do Utah é muito bem dirigida pelo Maurice Abravanel. Muito obrigado pela surpresa, como igualmente lhe agradeço “O desprezo” do Alberto Moravia.

Como é diferente ler um escritor sobre o qual já ouvi referências depreciativas chamando-lhe amoral ou materialista. Moravia é cultíssimo, já sabia que estudara encenação e fizera cinema, ele trabalha muito bem estes caracteres, tal como a cultura clássica a propósito da Odisseia de Homero. O que me maravilhou foi a escrita, uma evocação serena e melancólica de um marido desprezado e que nunca entendeu o afastamento da mulher. Moravia é magistral na construção de um enredo possível numa sociedade desenvolvida em que o casal já não presta constas nem à sociedade e dispõe de vínculo precário, sempre ameaçado. Temos Ricardo, Emília e Battista, um falso triângulo amoroso, num dado momento veio a revelação do desamor, perfila-se uma relação vazia que só é salva porque Ricardo é dominado pela profissão e Emília estabelece consigo uma dissolução doce. Desculpe estar a escrever o que para si é obvio, estou rendido à escrita de Moravia, ao seu talento, ao enunciado e desenvolvimento de caracteres. É um falso livro de memórias, um grande romance.

Não se admire se lhe telefonar de Bissau, caso a 16 e penso que lá estarei três semanas. Nem coragem tenho para lhe contar que para casar aceitei baixar à neuropsiquiatria, ainda me arrepio cada vez que penso no assunto. Vivi um período intenso no plano operacional, o resto é penar naquele posto avançado que dá pelo nome de ponte de Udunduma. A novidade é que fizemos reparações na ponte e que passámos a picar até à povoação mais próxima, que se chama Amedalai, há rumores que o PAIGC decidiu minar a estrada. As noites são um inferno, nem ler posso, não pode haver iluminação para não sermos avistados, caso o inimigo pretenda flagelar-nos.

Não sei o que será o nosso futuro nos próximos meses, estarei cá pelo menos até fins de Julho ou princípios de Agosto. Muito obrigado por ter levado os meus soldados ao Cais do Sodré, o Alcino escreveu-me e contou-me o jantar que lhes ofereceu. Suspiro por conversar consigo em breve, em Bissau vou escolher uma escultura para lhe levar. Até breve, pois, receba todo o reconhecimento pelo bem que me tem estado a fazer .

(5) Para José Luís Botelho de Melo

Meu estimado amigo,

É para mim um desconforto voltar a Bissau e saber que não o vou ver. Habituei-me à sua companhia, a ouvi-lo falar dos feridos que trata, foi graças a si que pude conversar sobre a minha experiência em São Miguel. Adorei aquela natureza, tenho muito orgulho nas amizades que fiz, escrevo regularmente a um dos meus soldados que está agora em Moçambique. Venho, cheio de entusiasmo, informá-lo que caso no dia 16 e conto visitar a nossa ilha muito em breve. Acima de tudo, escrevo-lhe porque estou muito feliz e desejo que o regresso à sua vida familiar e profissional esteja a decorrer sem sobressaltos. Ou talvez o mais importante seja dizer-lhe que gosto muito da sua amizade e não esqueço o bem que me fez. Até São Miguel e aqui vai toda a minha estima.


Capa de O Túmulo de Prata, de Frank Grube. Colecção Vampiro nº98,capa de Cândido da Costa Pinto, tradução de A. Maldonado Rodrigues.

Estão permanentemente em cena Johnny Fletcher e Sam Cragg, uma dupla espantosa da Grande Depressão dos EUA: pelintras mas ardilosos, um inteligente, outro latagão,vendendo livros para adquirir musculatura, safando-se umas vezes com expedientes, outras vezes envolvendos em investigações policiais,sempre com uma acusação de envolvimento no homicídio. Desta feita,há minas abandonadas,há um estranho filão de prata,aparece um morto no carro da dupla,começa a investigação, Johnny encontra a solução num velho alfarrábio. Ainda hoje se lê com pleno agrado.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


(6)Para Paulo Simões da Costa

Paulo, meu querido amigo,

Obrigado pelo bilhete postal que me mandaste de Durban, durante as tuas férias. Em Moçambique estás tu e um soldado mariense, de quem sou profundamente amigo. Aconteceu-me uma tragédia que foi a morte do Carlos Sampaio. São perdas atrás de perdas, depois há este mistério das amizades que chegam, que ficam a fermentar. Mandei-te livros, poucos porque o porte dos correios é muito caro e tenho as despesas do casamento. Ainda não te disse, caso dentro de dias.

Por muito que te surpreenda (afianço-te que eu próprio me surpreendo), continua a ter vontade para ler coisas muito sérias, só que a vadiagem em que vivo impede-me a atmosfera propícia. Aproveito as viagens dentro dos regulados aqui próximo, havendo um bocadinho disponível, distancio-me e leio. Os policiais têm sido uma boa companhia. Por exemplo, acabei agora a leitura de “O túmulo de prata”, de Frank Gruber. É uma dupla espantosa de vendedores de livros sobre musculatura, são dois aldrabões de feira, um é o detective cerebral e imaginativo, o outro uma carga de músculos, um amigo seguidor e inocente que pede sempre ao primeiro para nunca se envolver nessas histórias de descobrir assassinos. Já li vários destes livros e dão-me sempre imenso prazer. Desta vez á uma mina de prata abandonada mas com vários compradores interessados, aparece um cadáver no carro da dupla, o detective cerebral vai desvendar as razões do homicídio e o nome do assassino graças a um alfarrábio que guarda um segredo.

Se te conto isto é porque há muitas maneiras de resistirmos, ler policiais é uma, também encontro na música um poderoso refúgio, escrevo sempre que posso, não me esqueço que em breve vou recomeçar tudo quanto interrompi e de que tanto gosto. Mas agora, agora mesmo, só me interessa ver a mulher amada e como meu amigo posso imaginar que tu partilhas esta alegria de partir rumo à felicidade. Não te esqueças que qualquer dia estamos em Lisboa e vamos estudar juntos. Um grande, um grande abraço e obrigado pelas tuas cartas.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 19 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2861: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (32): Operação Pavão Real

Este episódio devia ter sido publicado na semana passada, o que não aconteceu, por razões de sobrecarga editorial. Pede-se desculpa ao autor, aos amigos e camaradas da nossa tertúlia, aos fãs da série Operação Macaréu à Vista e aos demais leitores do blogue.

Guiné 63/74 - P2901: O Nosso Livro de Visitas (15): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491 (Dulombi e Galomaro, 1971/74)

1. No dia 27 de Maio de 2008, recebemos uma mensagem de Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491 que esteve na Guiné, entre Dezembro de 1971 e Março de 1974, na Zona Leste, em Dulombi e Galomaro. Este nosso camarada tem um Blogue dedicado à sua Companhia: Histórias da Guiné 71/74 - A CCAÇ 3491 - Dulombi.

O blogue, cujo aparecimento saudamos, é apresentado nestes termos:

Espaço de confraternização para todos aqueles que, como combatentes, tiveram de percorrer as matas, as bolanhas, as picadas e os rios da Guiné, em especial invocar aqui a história e as 'estórias' dos elementos da CCAÇ 3491, aquartelados em Dulombi e também em Galomaro, entre Dezembro de 1971 e Março de 1974. Fomos dos últimos combatentes do denominado 'Império Português'.

Caro Luís Graça & Camaradas da Guiné:

Dou-lhe os meu parabéns pelo vosso excelente blogue e pela oportunidade que dão aos ex-combatentes da Guiné de poderem confraternizar, trocar ideias e informações sobre momentos tão importantes da sua vida e que passados tantos anos ainda hoje os revivemos com uma certa paixão.

Gostaria de lhe pedir que dessem publicidade ao Blogue da CCAÇ 3491, que esteve no Dulombi e Galomaro, entre Dezembro de 1971 e 9 de Março de 1974 e que é o seguinte: wwwccac3491guine7174.blogspot.com.

Caso o entendam, podem publicar uma das histórias ali contadas e que reproduzo abaixo.

Com os melhores cumprimentos
Luís Dias
Ex-Alf Mil Inf


2. A estória do Alferes L. Dias

A história passa-se no Leste da Guiné, no Sector do BCAÇ 3872, na CCAÇ 3491, aquartelada no Dulombi, na fase de sobreposição operacional entre a nossa Companhia e a dos velhinhos.

Depois de uma Operação de dois dias (Operação Varina Alegre, em 01FEV72), em que intervieram 1 GComb da CCAÇ 2700, 3 GComb da CCAÇ 3491 (2.º GComb, 3.º GComb e 4.º GComb) e 1 Secção do Pel Mil 288.

Ao fim da tarde, já no regresso ao Dulombi, a nossa coluna caminhava por um trilho em fila indiana, tendo sido dada ordem aos últimos para irem pegando fogo ao capim, que estava seco, para dar uma maior visibilidade da zona em próximas operações.

A determinada altura, veio a palavra da frente a dizerem: Ataque de abelhas, o que originou alguma debandada, com excepção de mim (Alf Dias), isto porque fiquei de imediato coberto delas. Estavam por todo o lado, cabelo, cara, braços e mãos, num zumbido ensurcedor. Sabedor da sua habitual ferocidade naquelas paragens (comprovada muitos meses mais tarde numa operação à zona de Madina do Boé, em que elementos de outra companhia foram atacados por um enxame originando a evacuação de helicóptero de vários militares e a morte infeliz de um outro, o qual vendo-se envolvido por elas efectuou diversos disparos d G3, lançou uma granada ofensiva e como tal não resultou na sua dispersão, deu um tiro nele próprio - tal seria o seu desespero!), limitei-me a deitar-me no capim, sem me mexer, suando as estopinhas e rezando para que elas não me picassem.

Não sei quanto se tempo se passou mas foi bastante, quando, finalmente, elas se foram embora - não sofri nem uma beliscadura - porque devem ter sentido o fogo a chegar. Levantei-me e chamei pelos soldados e nada...! Vi-me sozinho, com o fogo à perna, sem saber ao certo onde estava e para que lado ficava o quartel.

Esta era a minha primeira operação (e podia ter sido a última) e tinham-me deixado ali... Como era possível!!! Continuei pelo trilho, caminhando apressadamente porque o raio do fogo continuava a crepitar lá atrás.

Depois de andar algum tempo, ouvi disparos intervalados e pensei: bom já deram pela minha falta! Notei, entretanto, que estava indo na direcção errada e efectuei também 3 disparos, mas não me ouviram, porque não houve outros tiros em resposta. Acalmei-me; a noite caía e tinha dificuldade em orientar-me no escuro. Ainda pensei subir a uma árvore e aguardar pela manhã para conseguir descobrir o caminho certo para o aquartelamento, mas havia o problema do fogo, aliado a estar numa zona em que o In podia surgir. Vi-me obrigado a prosseguir, orientando-me pelo Cruzeiro do Sul e seguindo a corta-mato em direcção à zona de onde tinha vindo o som dos disparos de G3.

Depois de muito andar, notei ao longe um clarão intenso e fixo que presumi ser do Dulombi, pois não havia outro quartel em redor. Cheguei a um enorme Vendu e atravessei-o, em direcção à luz, tendo começado a ouvir o barulho de um motor, que pensei ser o gerador da electricidade. A seguir tinha um problema: na linha da frente do quartel, na parte que se situava virada para os Vendu, havia um campo de minas, dispostas em linha e colocadas em cima de ferros, a meia-altura, com arame de tropeçar. Embora os velhinhos nos tivessem dito que a maioria já tinha estoirado, devido à passagem de animais, havia a hipótese real de ainda estarem algumas activas.

A opção não era simples, mas era clara: ou ser apanhado pelo fogo ou ter a sorte de aproximar-me do descampado que antecedia o quartel, onde estaria protegido do fogo. Foi a sorte que me conduziu por um caminho sem que nada me sucedesse e avancei com cuidado pelo descampada até junto de um baga baga (monte feito pelas formigas brancas, que mais tarde viria a demolir com explosivos por ser um local onde se podia alvejar o quartel com facilidade sem se ser visto e protegido de tiro directo), situado perto do torreão, localizado junto do campo de futebol, onde ainda vi dois elementos na base do mesmo, a comerem, tendo pensado em chamá-los, mas o facto de sermos periquitos retraiu-me, com o receio que desatassem aos tiros ou pior, à morteirada.

Adormeci pela madrugada, devido ao cansaço, tendo sido acordado manhã cedo, pelo som das culatras das espingardas G3 a irem à frente, sinal de que a tropa ía sair. Então levantei-me, tirei o dólmen e em tronco nu avancei para o quartel, entrando no mesmo, sob o olhar espantado dos militares que aguardavam a ordem de partida para irem à minha procura, já tendo solicitado, inclusive, a presença de um helicóptero.

Estava bastante sujo, tinha criado duas ínguas nas virilhas, devido ao esforço efectuado de andar a corta-mato. Estão a ver a bronca que dei no soldado que me precedia e no que vinha atrás de mim, por terem perdido a ligação, que considerávamos extremamente importante nas instruções que lhes dávamos.

Depois de um banho retemperador dormi o dia todo.

Soube mais tarde, que aquando do ataque de abelhas, a coluna desviara-se para um outro trilho paralelo e prosseguiram a marcha, só dando pela minha falta mais tarde, pensando até que eu teria morrido, devido ao fogo que lavrava naquela zona. A excepção era o meu amigo Alf Farinha (que efectuou os disparos espaçados e que me ajudaram a localizar mais tarde o quartel) que referia que se eu tivesse sido apanhado pelo fogo, as granadas de mão que eu transportava teriam rebentado e não tinha ouvido nenhuma explosão.

Durante muito tempo esta estória foi muito comentada pela Guiné fora. Uma das vezes que estive em Bissau, ouvi-a na messe de oficiais dos adidos, embora contada com outros condimentos, onde já metia os guerrilheiros do PAIGC, enfim...

Já sabem do provérbio: Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto.

Começou aqui a minha sorte, dado que mais tarde iria novamente precisar dela... várias vezes.Quando voltei, eu costumava dizer aos amigos:
-Tenho de andar certinho porque já esgotei a sorte toda lá na Guiné!

Luís Dias
Ex-Alf Mil


3. Comentário de Carlos Vinhal

Caro Luís Dias:

Depois de ler a tua aventura, fiquei arrepiado só de imaginar a situação.

Mesmo em pelotão, de noite, fora do quartel sentia-me tão desprotegido que o que mais queria era a hora de me ver de novo entre o arame farpado, no conforto das nossas instalações militares.

Com respeito ao teu Blogue, já lá o visitei. Vou fazer um link na nossa página para lá.

Caso queiras, teremos muito gosto em que adiras ao nosso Blogue, sem prejuízo da actividade que desenvolves no teu.

Obrigado por nos visitares e nos contactares.

Carlos Vinhal, co-editor

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2900: Blogoterapia (54): Chorar faz bem, chorar fez-me bem, camarada Jorge Félix (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Região do Oio > 10 de Março de 2008 > Samba Culo> Passando por Samba Culo a caminho de Canjambari > Mais uma recepção entusiástica...



Guiné-Bissau > Região Oio> 10 de Março de 2008 > Picada entre Samba Culo e Canjambari> "A poeira para recordar velhos tempos das colunas"...


Fotos (e legendas): Página de Carlos Silva > Guerra da Guiné 63/74 - BCAÇ 2879 > Viagens > Guiné 2008 (com a devida vénia...)


1. Mensagem do A. Marques Lopes, dirigida ao Jorge Félix, antigo piloto de helicóptero (Guiné, BA12, 1968/70):

Caro amigo:

Chorar fez-me bem, porque alimenta esta dor que eu não consigo (nem quero) apagar. Contei-te que tive de matar uma professora em Samba Culo e, como sempre que o faço, tive de chorar.Porque nunca quiz matar, porque fui obrigado a matar. Já disse uma vez, e é verdade que tentei ao longo da minha vida banir esta mágoa, mas sem o conseguir. Muitos copos bebi para tal, mas, como viste, por mais copos que beba não consigo. Disseste-me que, como piloto de helicóptero, também matas-te com certeza. Tabém eu te disse que, nas emboscadas, se calhar tinha matado também, assim como eles mataram dos meus. Nunca sabemos. Mas esta soube. Era eu que estava à frente dela e fui eu que disparei. E não queria.

Reavivou-me a dor, mas esta catarse do nosso encontro permitiu-me manifestar esta mágoa. É bom, sempre que possível.
Obrigado.

A. Marques Lopes

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Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 24 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - 2879: Blogoterapia (53): Falar da Guiné e verter lágrimas, faz bem (Jorge Félix)

(2) Vd. postes de:

29 Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

(...) "Tenho de partir, de voltar a Portugal. Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!” e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quizesses ouvir... E nunca mais dormi descansado até agora. (...)

"Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou. Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio. Fala com ele agora". (...)

7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II (A. Marques Lopes)

" (...) o que mais me impressionou nesta operação foi o seguinte: Samba Culo tinha uma escola; quando lá chegámos, vi escrito no quadro preto, em perfeito português: "Um vaso de flores". Tinha desenhado, a giz, por baixo, um vaso de flores.

"E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito
prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência.

"Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida" (...).

Guiné 63/74 - P2899: A guerra estava militarmente perdida? (11): Correspondência entre Mexia Alves e Beja Santos.

Eram as armas que iam decidir o conflito?
Em 1974, a grande maioria do povo português desejava a continuação da guerra?

Entre os militares estacionados na Guiné a contestação era cada vez mais aberta. E às claras. Em Março de 1974, algumas unidades dispersas pelo território receberam uma mensagem assinada pelo Ten Cor Banazol, em nome do “Movimento de Resistência das Forças Armadas”, apelando à rebelião e programando uma operação de retracção do dispositivo militar para o mês de Maio próximo...estou a citar o então Capitão J. Golias.

E, depois do 25 de Abril, o grande público veio a saber que o governo de então já não pensava de maneira muito diferente. Marcello Caetano tinha enviado a Londres o diplomata José Villas-Boas para uma reunião com dirigentes do PAIGC (Victor Saúde Maria, Silvino da Luz e Gil Fernandes), reunião que ocorreu entre 25 e 26 de Março e na qual ficou agendada novo encontro para 5 de Maio seguinte...

vb

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A Guerra estava militarmente perdida?

Troca de correspondência entre dois antigos comandantes do Pel Caç 52

1. Mensagem do Mexia Alves para o Beja Santos, c/c à Tertúlia, em 25 de Maio de 2008



Meu caro Mário Beja Santos, Luís Graça, co-editores e camaradas amigos

Claro que tenho de meter a colher!
Julgo, salvo o erro, que até fui eu quem despoletou um pouco esta polémica quando há uns meses atrás, a propósito de uns postes colocados no blogue afirmei que lá por se repetir permanentemente que "a guerra estava militarmente perdida", isso não se transformaria numa verdade, que não é de facto, a meu ver.

Aliás, esta frase, "a guerra estava militarmente perdida", começou de inicio por referir-se às três frentes de Angola, Moçambique e Guiné, mas perante a evidência da mesma não corresponder à verdade, passou a referir-se exclusivamente à Guiné, o que repito, a meu ver, também não corresponde à verdade.

Que fique bem entendido, mais uma vez, que não desejei a guerra, não a desejo e que o melhor que aconteceu foi a mesma ter acabado e a Guiné ser hoje um país independente apesar de todas as suas dificuldades.

Vou tentar responder ao Mário, com amizade e camaradagem, servindo-me do seu texto.


1 - A segunda tem a ver com aquilo que eu designo por patamares mínimos da elevação no debate. Por exemplo, recuso-me a entrar no terreno do denegrimento no tocante aos quadros do PAIGC que não viviam permanentemente em território português. Além do mais, é deslustroso num blogue como o nosso onde intervêm guineenses que tem uma pátria cimentada pela luta desses guerrilheiros. Citando Beja Santos.


Não fui eu quem dissertei sobre o assunto mas parece-me Mário, que estás a colocar intenções de denegrimento onde elas não existem.
Não é uma realidade que a maior parte dos quadros do PAIGC não viviam em território da Guiné?
Julgo que o contexto em que tal foi afirmado, servia para dizer que, não havia verdadeiramente território ocupado pelo PAIGC com estruturas suficientes para aí se manterem esses quadros em contraposição aos quadros portugueses que estavam instalados nas suas unidades de quadrícula, ocupando território e defendendo-o.

Não é colocado em causa o valor extraordinário desses homens por quem nutrimos todo o respeito, podendo até afirmar, julgo eu, sem medo de errar muito, que respeito mais eu o Nino Vieira e o seu passado, que muitos guineenses provavelmente.


2 - A terceira tem a ver com o facto de eu não vir buscar adesões, não pertenço a nenhuma maioria ou minoria, não procuro claques nem cliques. No que estou errado, o Graça Abreu torna a verdade inequívoca. E eu dar-lhe-ei razão, ainda estou em muito boa idade de rever conceitos. Citando Beja Santos


Esta não percebo! Que eu saiba ninguém procura claques ou cliques, mas sim discutirmos saudavelmente um assunto que nos diz respeito.
Se alguém concorda com uns e com outros é normal e é bom o que não significa que haja "partidos" ou "exércitos de opinião".
Por mim estou sempre pronto a dar a mão à palmatória.


3 - A quarta prende-se com uma comunicação fraterna que é devida entre nós: não embarco em demagogias de querer associar o que penso ter sido o colapso militar da Guiné e a luta dos soldados portugueses, que nunca minimizei e em tal terreno não aceitarei insinuações, seja de quem for. Postas estas ressalvas, avanço para o primeiro apontamento. Citando Beja Santos


Ó meu caro Mário, parece que gostas de rotular as coisas, afastando tu mesmo essa tal comunicação fraterna ao colocares intenções onde elas não existem.
Claro que sei não ser essa a tua intenção, mas também não é a minha com certeza.
Ninguém afirmou que minimizaste a luta dos soldados portugueses, nem tal me passa pela cabeça, mas ao afirmares que a guerra estava perdida militarmente o que é que julgas que os soldados portugueses que lá estiveram pensam?
Estiveram na guerra, nada lhes foi dado em contrapartida, e para além disso até somos quase proscritos nesta sociedade!
Se agora para além do mais lhes dizemos, ou nos dizemos, que perdemos a guerra, o que nos resta?
E o problema é que tal corresponde à verdade!


E agora o resto:


Baseias-te muito em livros, documentos, etc. e apenas te quero lembrar, (e disso sabes muito mais do que eu), que a quantidade de livros sobre a guerra, a politica e por aí fora, a seguir ao 25 de Abril, são às centenas, para não dizer mais, e que em muitos casos, se opõe totalmente nas suas conclusões.
Sabemos também, não sou só eu que o afirmo, que as informações recebidas em Lisboa, se calhar até em Bissau, não correspondiam muitas vezes á verdade, por isso, documentos, etc, embora sirvam de estudo não são muitas vezes totalmente credíveis.

Marcelo Caetano decide, pelos vistos, propor negociações para estabelecer um cessar-fogo que levasse à independência da Guiné e isso para ti significa que a guerra estava perdida!
Porquê? Então o homem não poderia estar a perceber o rumo da história?

Repara como de algum modo é incoerente aquilo que referes:
O diplomata ia a Londres como representante pessoal do Ministro dos Negócios Estrangeiros propor uma oferta de independência à Guiné-Bissau, a troco de um cessar-fogo, e o PAIGC não aceita tal proposta porque prefere continuar na luta armada até á "derrota das forças portuguesas", continuando a morrerem não só portugueses mas também guineenses?
Que lógica tem isto?
A proposta terá sido essa?


Pois se o 25 de Abril tinha como fim primeiro, diga-se o que se disser, acabar com a guerra, não era normal que fossem feitos todos os esforços para alcançar um cessar-fogo onde a guerra era realmente mais difícil e intensa?
Toda a gente sabia, e tu também cá estavas, que não seria possível mandar mais soldados para África a seguir ao 25 de Abril, porque o povo a isso se opunha, por isso o que havia a fazer era conseguir o mais rapidamente possível um cessar fogo que colocasse um fim à guerra.
Onde é que isto significa que a guerra estivesse perdida?
Aliás em Angola não se podia pedir um cessar-fogo numa guerra que já praticamente não existia.
Diz-nos tu, por favor, que posições perdemos nós, já que o afirmas novamente.
Digo-te eu que as "tuas" bolanhas cultivadas do teu tempo, já não o estavam no meu, para além de outras coisas, pelo que a tua prestação e dos teus pares, foi bem conseguida, pois levou a uma forte diminuição da guerra naquelas zonas.

Meu caro Mário, claro que a situação era caótica!
Pois se todas as intervenções politicas, e nessa altura as intervenções dos militares eram todas politicas, apontavam para a independência, para o fim da guerra a qualquer preço, como querias tu que soldados, furriéis, alferes que estavam contra a sua vontade numa guerra, estivessem moralizados ou lhes apetecesse sequer morrer por algo que estava já decidido?

A compra de armamento nunca seria feita por canais diplomáticos, sabe-lo bem, e quando foram precisas AK47 para a "invasão de Conakry" elas foram compradas sem grandes problemas.
Não encontrarás obviamente documentos sobre essas compras ou possíveis compras.
Mas à gente que o sabe muito bem, posso te afirmar!

Carlos Fabião conhecia a Guiné como ninguém? E Alpoim Calvão, e Almeida Bruno, e Manuel Monge e por aí fora?
Sabemos bem com quem Carlos Fabião estava alinhado!
Meu caro Mário, eu falo-te do que acontecia no terreno, ou pelo menos naquele que eu calcorreei, e aí meu caro amigo "a guerra não estava perdida militarmente".

Continuaremos para a semana, ou calar-me-ei e darei espaço a outros, mas é fácil perceber que esta polémica não dará grandes resultados.
Terá pelo menos um bem importante: leva-nos a falar de coisas que a alguns, como eu, ainda incomodam e vai exorcizando fantasmas, para utilizar uma expressão muito em voga.

Recebe um abraço amigo do

Joaquim Mexia Alves



Mexia Alves, Beja Santos e Henrique Matos, três dos antigos Comandantes do Pel Caç Nat 52, no lançamento do "Diário da Guiné" do Mário Beja Santos.

2. E a resposta do M. Beja Santos:

Meu nunca assaz louvado penúltimo comandante do Pel Caç Nat 52,
Sabia muito bem que a polémica contaria contigo. Saúdo que venhas meter a colher, tanto por razões afectivas como civilizacionais (sempre pobrezinho, gosto de gente bem educada e aprecio o teu aprumo no trato). Vamos sinteticamente aos quatro pontos que abordas.

1 - Todos sabíamos onde vivia Amílcar Cabral, sabíamos que os dirigentes do PAIGC não tinham condições para viver dentro da Guiné. Tal como o general Bettencourt Rodrigues não podia viver em Madina do Boé. Os guerrilheiros viviam nas suas bases que nós atacávamos com tropas especiais ou com Exército.
O facto de a maior parte dos quadros do PAIGC não viver em território da Guiné só prova que vivíamos em guerrilha. Não tira nem adianta à supremacia militar de ambas as partes.
Já lá vão mais de 30 anos, parece-me de mau gosto repetirmos os chavões da propaganda da Emissora Oficial da Guiné.

2 - O Graça Abreu referiu por duas vezes que tem do seu lado a maioria das opiniões, eu não venho à procura de maioria nenhuma, não venho pedir aplausos, venho pedir que me responsabilizem pelo o meu argumentário, pretendo explicar porque é que sou levado a supor que a guerra, antes do pedido de cessar-fogo decidido pelo Governo de Marcello Caetano, estava militarmente perdida na Guiné (repito na Guiné).

3 - Juro que não sei o que é que os militares portugueses, a combater na Guiné, no seu todo, pensam sobre a minha afirmação de que a guerra estava ali militarmente perdida.
Nenhum deles, que eu saiba, podia comprar ou manusear armas compatíveis com o Strella.
Os MIG já estavam em Conacri, havia quarenta pilotos do PAIGC em preparação. As nossas chefias militares sabiam. O Governo também.

Na continuação da polémica, irei abordar esta semana as relações entre a Administração Nixon e o Governo de Marcello Caetano, no período dramático de Outubro de 1973.
Prometeram o Red Eye, a resposta possível ao Strella, nunca cumpriram. Em é que os militares portugueses na Guiné podem ser responsabilizados por esta situação?
A que propósito é que eles têm que sofrer com o desfecho da guerra quando perdemos a paridade ou a supremacia? Tu não te lembras do banzé que houve na Europa e na NATO quando os soviéticos colocaram os SS-20 e SS-21 na fronteira do mundo ocidental? A resposta foram os mísseis cruzeiro, depois foi a vez dos soviéticos gritarem aqui d'el rei...

4 - Num dos próximos testemunhos, vamos pôr o Rui Patrício a falar. E não só: iremos ouvir as doutas opiniões acerca da redução de quartéis em pontos nevrálgicos da Guiné. Quanto à compra de armas, mesmo que estivéssemos em condições de comprar equipamento na candonga (Mirage, mísseis...) já não tínhamos dinheiro.
Mete isso na cabeça: no 1ª trimestre de 1974 a inflação chegou aos 30%. O Champalimaud pediu ao Spínola para intervir, os capitalistas perceberam que a usura colonial chegara ao fim.

Não sei se respondi a tudo, Amizade não me falta. Pergunta mais.

Um abraço do Mário
__________

Notas:

1. adaptação dos textos da responsabilidade de vb.

2. Artigos relacionados em

28 de Maio > Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)
27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)

25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)

22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)