sábado, 12 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3050: A Guerra estava militarmente perdida? (25). Vou pensando em voz alta (I) (A. Marques Lopes)

Não entro nessa polémica... (I)

A. Marques Lopes (1)



Caros camaradas


Tenho lido o terçar de razões sobre se a guerra na Guiné estava perdida ou se podia ser ganha.

Não entro nessa polémica. Mas fui espevitado pelo Vítor Junqueira, homem de concretos, e pelo Jorge Belo, habitante nórdico de raciocínio frio, e deu-me, só por razões de curiosidade pessoal, para fazer umas pesquisas, ler uns livros, consultar quem tem escrito sobre a Guiné.

Vou pensando em voz alta, faço comentários para mim mesmo. Coisas da velhice... já falo sozinho. Este livro do António Graça Abreu, "Diário da Guiné – Lama, Sangue e Água Pura", é um livro notável que já tinha lido, mas que tornei a ler agora com mais calma.

Acho que o René Pélissier tem razão quando diz dele:

"Um assunto verdadeiramente angustiante é tratado num excelente livro do género 'memórias de uma derrota anunciada'. Este Diário da Guiné é a via-sacra, a derrota lúcida e frouxa de um exército desmoralizado e ultrapassado. O autor, alferes de Junho de 1972 a 17 de Abril de 1974, redigiu a sua obra a partir do seu diário pessoal e dos aerogramas que enviou à família.

"Teixeira Pinto, Mansoa, Cufar (no Sudeste) foram as etapas desta derrocada, à qual assiste sem, no entanto, participar nas operações, pois pertencia à sacrossanta Administração Militar. Graça de Abreu observa a política contestada de Spínola e permanece duvidoso quanto às pretensões do PAIGC em dominar todo o território, mas cedo se apercebe de que, pelo menos entre os manjacos, décadas de exploração colonial não podem ser apagadas por tardias reformas materiais. Apesar da calma na zona de Teixeira Pinto, as emboscadas na estrada de Bissau intensificam-se. A partir de Fevereiro de 1973, quando chega a chão Balanta, os guerrilheiros encontram-se a 4 ou 5 quilómetros. Os guerrilheiros e o exército português bombardeiam-se à distância, mas acotovelam-se no cinema local. Em Março são abatidos os primeiros aviões por mísseis e as operações terrestres portuguesas diminuem, pois os helicópteros já não descolam com frequência para evacuar os feridos. O PAIGC reforça o seu armamento e multiplica as suas picadas de vespa. Em Junho uma parte do batalhão do autor é transferida para Cufar (nas rias do Sul), reconquistado por Spínola. À medida que a data da desmobilização se aproxima, a indisciplina dos soldados aumenta. No final de 1973, Cufar e todas as guarnições em redor são bombardeados pelos 122, 'órgãos de Estaline' do PAIGC. As tropas sabem que vão para a morte na ofensiva contra o Cantanhez e as minas que os esperam. Os 'sábios' de uniforme escrevem poemas que Camões não teria imaginado, mas todos mergulham no álcool para adormecerem os seus medos. O estado-maior e os serviços de saúde pública terão elaborado, posteriormente, estatísticas sobre a dependência alcoólica dos antigos combatentes portugueses? A água pura era rara na Guiné no início de 1974. Sabemos a que é que tudo isto conduziu o exército e o Estado Novo."

Li isto há dias num texto seu intitulado "Soldados, gorilas, diplomatas e outros literatos", e publicado nas páginas 1107 e 1108 da revista Análise Social, vol. XLII (185), 2007).
Acho curioso que ele tenha visto os filmes "O Milagre dos Lobos", com Jean Marais, e "Mr. Solo" no cinema de Canchungo e, no Clube de Oficiais em Bissau, as "Duas Raparigas da Cortina de Ferro".

Bem, acho curioso porque eu também vi esses filmes. Quando já estava no "puto", claro. Eu era para esquecer a guerra e ele era para desopilar, certamente, e, como ele diz, era óptimo desopilador "o bem-bom das mordomias do Clube de Oficiais". Ah, mas ganhei-lhe numa coisa! Ele escreveu "Ontem fui às putas", em Bissau, a 15 de Dezembro de 1973... mas eu, quando regressei da guerra, fui às putas ontem, anteontem, amanhã e depois de amanhã! Para me ressarcir de todo o tempo em que nunca "lá fui" quando estive no mato.

...Deixa-te de brincadeiras. Ele teve conhecimento, em Mansoa e, sobretudo, em Cufar dos percalços da tropa, dos feridos, dos mortos, dos ataques e bombardeamentos, da loucura... sim, da loucura, quando escreve, em 13 de Agosto de 1973, que viu em Cufar o 1.º Cabo cripto que se embebedou e gritava que odiava a guerra e que matava todo o "rebanho de carneiros sem cornos" que não se rebelavam contra a humilhação da guerra. E também diz, a certa altura, que "custa muito ver tanta gente destruída, de ambos os lados."

O que me espanta é que, agora, a mais de trinta anos de distância, ele tenha as certezas que então não tinha.

"O Spínola retirou-se estrategicamente da guerra da Guiné. É fácil de entender porquê. Com o agravamento do conflito, não quis assumir derrotas. Foi a Lisboa, falou com o Marcello Caetano, pediu mais meios, mais tropa, mais aviões, e disseram-lhe que não havia, não era possível. O general pediu a exoneração e acho que fez bem. Para os guineenses acabou o 'mito Spínola'. O novo governador, General Bettencourt Rodrigues, parece ser um homem com um curriculum notável, mas que pode fazer na Guiné? Vai-se meter em grandes assados. Há muita descrença, cansaço, passividade a povoar o quotidiano da tropa portuguesa. E, de certeza, haverá mais feridos e mortos. De que aspectos se revestirá a fase final da guerra na Guiné? Ninguém sabe (negrito meu)”. (Cufar, 4 de Setembro de 1973).

Mas o António Graça de Abreu sabe, agora, que a guerra não estava militarmente perdida. É o que depreendo daquilo que tenho lido. Não sei, se calhar terá mais elementos do que tinha antes, repensou. Ou não se aplicará aqui que "As grandes revoluções vitoriosas, fazendo desaparecer as causas que as haviam originado, tornam-se desta forma incompreensíveis graças aos seus próprios êxitos", como disse Charles Alexis de Tocqueville?... Sei que isto se aplicará mais ao nosso 25 de Abril, mas acho que, embora mantendo algumas nuances, talvez possamos aplicá-la ao que se pensa agora sobre o desenlace da guerra.

Como vou agarrar a questão da evolução da guerra e o seu fim?... Não é fácil para quem, como eu, tem conhecimentos restritos de toda a situação da guerra passada na Guiné.

Estive na Guiné em 1967, 1968 e princípios de 1969, e andei sempre pelo mato, em operações, emboscadas, reconhecimentos, patrulhas, colunas de abastecimento, e outras que tais, à excepção de algum tempo em Bissau, e mesmo aí tive de ir montar uma emboscada perto do aeroporto... Além do tempo que estive no hospital, ferido.

Por um lado nunca tive conhecimento dos meandros e esquemas globais da guerra, apenas a prática na mata, por outro lado, mesmo no terreno, não tive a experiência, de certeza mais rica, que outros tiveram nos anos subsequentes até 1974.

É claro que tenho de me socorrer de alguma obras. Mas elas já são tantas, não é possível lê-las todas, e nem sequer as tenho todas...

Vou agarrar-me a uma que tenho mesmo aqui à mão: "Guerra Colonial", de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes (Editorial Notícias, 1972).

O Aniceto foi da Comissão Coordenadora do MFA em Moçambique e era Director do Arquivo Histórico Militar quando a obra foi escrita. É considerado um dos oficiais mais cultos do Exército; o Matos Gomes foi da Comissão Coordenadora do MFA na Guiné e foi um grande operacional e conhecedor dos meandros do Estado-Maior do Comando-Chefe do CTIG. Merecem-me toda a consideração e credibilidade.

E vou também à internet, onde me parece que o V. Briote e o Carlos Fortunato, nomeadamente, têm elementos de interesse nos seus Guiné, ir e voltar e Portalguine.

Os meus agradecimentos a todos eles. E fica claro que alguns dos meus pensamentos em voz alta são, ipsis verbis, o que eles escreveram, Porque é o que eu acho e, confesso, não tenho pachorra para glosar (ou embaralhar...) o que eles já escreveram.

A. Marques Lopes
__________

Notas de vb:

1. A. Marques Lopes, ex- Alf Mil Inf ( hoje Cor DFA, reformado), CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro

2. Adapatação do texto da responsabilidade de vb;

3. Artigo relacionado em:

9 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3042: A Guerra estava militarmente perdida? (24). Comentário do J. Mexia Alves.

Guiné 63/74 - P3049: Estórias Avulsas (17): As cadelinhas de Jumbembém (Artur Conceição)

Artur Conceição
Sold Trms Inf e Cond Auto
CART 730
Bissorã, Farim e Jumbembém
1965/67


Na foto > O Loke, um Golden Retriever que estava num canil da Holanda por ter sido abandonado, foi adoptado pelo meu sobrinho Rui, temporariamente a viver naquele país, vive hoje em Portugal rodeado do maior carinho. (C.V.)
Foto: © Rui Pereira (2008). Direitos reservados


As cadelinhas de Jumbembém
(Até os animais sofriam)
Por Artur Conceição

Uns camaradas da minha Companhia apanharam durante uma saída, duas cadelinhas que haviam ficado órfãs. Como eram ainda bebés foi preciso alimentá-las com muito cuidado para que resistissem.

Eram a alegria do pessoal, porque como qualquer mamífero brincavam o dia inteiro mesmo com aquela temperatura. A pelagem era igual à dos Golden Retriever e era muito brilhante porque de vez em quando as bichas tinham direito a ração de combate, e a conserva torna o pelo dos cães mais luzidio.

Um certo dia, ou melhor uma certa noite, veio um cachorro vadio dos que andavam no mato, cheios de fome e doença, e ferraram as duas cadelinhas, transmitindo-lhe raiva. Tiveram de ser abatidas e queimadas perante a tristeza de todos.

Em ataques de surpresa, com cães pelo meio, não dava jeito a nenhuma das partes em conflito, e daí que os cães não fossem animais muito simpáticos, principalmente fora do nosso acampamento, embora houvesse animais bem mais perigosos.

A partir desta situação, embora continuasse a gostar de animais, fiquei com muito receio de ser mordido e apanhar raiva.


Vista aérea de Jumbembém
Foto: © Alf Mil Roda da CCAÇ 14 (2008). Direitos reservados


Quando fui para Guiné a bordo do Timor as Companhias que iam no barco, 762 e 763, já iam com farda verde. Como eu ia com destino à 730 que ainda tinha ido de amarelo eu ia também de amarelo. Isto levou a que no final da comissão eu andava a destoar de todos os outros, e fui alvo dos mais variados comentários principalmente dos que chegavam, tais como: - Deve estar mesmo a ir embora, outros diziam, deve ter levado uma “porrada” e nunca mais daqui sai, terá metido o Chico ? e outros parecidos. Mas era também uma foram de ser respeitado uma vez que a antiguidade também era um posto.

Sensivelmente a um mês do regresso, vinha eu com o meu amigo Manuel Carvalho de uma taina num Restaurante de um Casal de Alentejanos, que tinham uma filha bem bonita, e que ficava na estrada que ligava o QG ao Hospital Militar, logo a seguir à Granja Agrícola mas do lado contrário.

Era já meio da tarde; vínhamos bem comidos e melhor bebidos, quando de repente aparece pela frente e direito a mim um cão com um aspecto assustador. A minha primeira reacção foi apanhar uma pedrita para lhe atirar no sentido de lhe mudar a direcção. Só que tive azar e acertei-lhe numa orelha. O animal estava de tal maneira mal tratado que gritou como se tivesse levado uma grande pedrada.

No mesmo sentido, e logo atrás de nós vinha um carro civil que transportava o Senhor Director da Granja Agrícola, que de imediato saltou da viatura e me ordenou que entrasse. Argumentei que estava fardado e que não me era permitido entrar num carro civil.

O argumento foi aceite, mas tive de ir de imediato para o QG, que era a minha morada, para onde o Senhor Director se dirigiu. Quando lá cheguei já o encontrei a falar com o Oficial Dia a quem já tinha apresentado a queixa verbal. Depois de uma repreensão, ordenou-me que no dia seguinte pelas 9 horas estivesse na Granja para falar comigo. Ainda disse ao Senhor Oficial Dia que não punha lá os pés, mas o Senhor Capitão disse-me que era melhor não fazer isso porque ele era unha com carne com o Governador e que com um bocadinho de sorte eu ficava na Guiné mais uns tempos.

Em Bissau estava-se bem protegido de ataques, mas devo dizer que não foi das noites que dormi melhor.

Pelas 9 da manhã do dia seguinte, fardado a rigor, lá fui direito à Granja sem saber muito bem o que me ia acontecer.

Fui recebido no Gabinete do Senhor Director, mandou-me sentar, e após um longo interrogatório sobre a minha vida militar, sobre os locais por onde tinha andado na Guiné, onde não me esqueci de frisar de que os cães nos denunciava especialmente em saídas nocturnas e também a história das cadelinhas de Jumbembem, também algumas perguntas relativas à parte da vida civil até à idade do sarampo, até que chegou a pergunta sobre a minha naturalidade.

Quando lhe disse que era de Vouzela logo percebi que nada de muito mau me iria acontecer.

Nunca cheguei a saber qual a naturalidade do Senhor Director, mas que tinha muita admiração pelas pessoas de Vouzela isso era verdade, só não compreendia como é que alguém de Vouzela, que era terra de tão boa gente, tinha tido aquela atitude. Apenas argumentei que analisar o carácter de alguém só por atirar uma pedra a um cão ao fim de dois anos de guerra não seria a melhor forma.

Ao fim de uma hora de moral, e depois de me desejar um bom regresso, mandou-me em paz depois de oferecer um cartão dos seus, para se um dia na vida civil necessitasse de ajuda o poderia procurar.
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Nota de CV:

Vd. último de poste de Artur Conceição de 10 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3045: Convívios (72): Em Campia, Vouzela, homenageando os esquecidos da guerra (Artur Conceição / José Manuel Lopes)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

Guiné > Bissau > Abril de 1970 > "A Cristina em Bissau... A Cristina chegou a 15 de Abril [de 1970],vivemos em Bissau cerca de três semanas, incluindo a minha baixa à neuropsiquiatria, no HM241. Passeámos, fomos muito bem acolhidos, jantámos em todos os tasquinhos da Península. Bissau, confirmo por estas fotografias, tinha um cosmopolitismo de guerra, era um crescimento articial de bem-estar em torno da presença das tropas" (BS).


Guiné > Bissau > Maio de 1970 > "A Cristina chegou a 18 de Abril [de 1970] e praticamente nunca saiu de Bissau a não ser umas curtas visitas a Safim, Nhacra e Quinhamel. Não podíamos, evidentemente, ir passear a quaisquer teatros de operações. Durante os praticamente 20 dias que ela aqui viveu, visitámos as amizades feitas em Bambadinca e Bissau e fomos recebidos regularmente pelo David Payne, Emílio Rosa e mulheres. Não resistíamos à curiosidade de andar pelos mercados, ver artesanato e pequenas festas locais. Muitas vezes, o Cherno acompanhou-nos, insistia que não havia pausas no seu papel de guarda-costas.

"À volta do mercado velho havia uma excitação entusiasmante, era o colorido, os pregões, os encontros imprevistos, a discussão dos preços, os odores de África. Depois da lua de mel no Grande Hotel (nome sofisticado para uma pensão onde se comia razoavelmente) fomos viver em casa do Emílio Rosa e começaram aqui as idas à praça. Recordo a fruta, o peixe e alguns legumes. Fugi sempre da carne na Guiné e nunca esqueci os meus 19 dias a pé de porco com feijão verde enlatado, tudo acompanhado com leite achocolatado holandês" (BS).

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 11 de Abril de 2008:


Meu caro Luís, Segunda-feira mandar-te-ei imagens dos livros aqui referidos. Não te esqueças que tens fotografias da Cristina em Bissau e há igualmente imagens do HM 241. Vê se nos podemos encontrar sexta-feira , 21, para mim era o ideal. Gostava que a nossa reunião de Monte Real aprovasse novos projectos e eu estou disponível para continuar a contribuir com a minha dedicação ao blogue.

Um abraço do Mário



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVIII > NOS LABIRINTOS DA FEBRE CEREBRAL (*)
por Beja Santos



(i) Os duelos entre o capitão Oliveira e o furriel Alves


O capitão Oliveira, para quem o ouve, repete a todo o instante que quer ver clarificada a razão do seu internamento compulsivo, pretexta em tom muito alto que as evacuações Y eram um dever para quem tem uma mãe tão frágil e só como a sua.

O furriel Alves, que não pára de mexer as mãos, e que também fala em tom muito alto, continua incrédulo por não ter perdido uma grama do seu corpo nas minas que pisou, por não ter uma só fractura, um simples hematoma, lança-lhe um riso escarninho, chama-lhe tarado, um capitão que pede por duas vezes uma evacuação Y para mandar aerogramas à mãe e não percebe a gravidade do seu gesto, insiste ele com o dedo em riste, ou perdeu o siso ou então (aí a sua voz ganha uma cor escura, e vai silabando e escorrendo a insinuação em tom lento) não passa de uma comédia ardilosamente montada para regressar à metrópole. E resmoneia entre dentes:
- Apanhado pelo clima, o tanas!”.

Estes duelos tinham a particularidade de se tornarem mais dramáticos num momento crucial para o meu sono. Passo a explicar. Com o toque de alvorada, o primeiro cabo Morais entrava na enfermaria e ferrava as injecções em três rabos, pondo em cima da mesa da cabeceira os respectivos comprimidos multicolores. Dóceis, seguíamos para o refeitório onde nos aguardava uma cafeteira de alumínio, havia pão e marmelada à disposição. No regresso à enfermaria, o 1º cabo Morais apontava para os comprimidos e seguia a trajectória dos mesmos até às nossas bocas. Dóceis, ingurgitávamos as cápsulas, mecanicamente.

Quando era esperável que serenassem os ânimos e fizéssemos o primeiro sono do dia, o Alves subvertia os efeitos da química, excitava o Oliveira. Em quinze minutos estava armada a cena, eu deitado na cama do meio com vontade de dormir, sujeitava-me à gritaria infrene e quando tenho o corpo já mole e o cérebro noutro sítio, voavam cadeiras, caiam as mesas, soltavam-se os impropérios mais soezes.

No terceiro dia, ainda a tentar adaptar-me a este espectáculo ensurdecedor, vejo os dois em cima das respectivas camas, pegam nas facas da marmelada e ameaçam-se. À cautela, gritei por socorro, já com a voz empastada, foi bom assim, descobri que a loucura é democrática, da enfermaria das praças acorreram dois calmeirões de olhar embrandecido pelos comprimidos, Oliveira e Alves foram separados e levados não sei para onde, respirei de alívio, adormeci até à hora do banho.


(ii) A visita das ilustríssimas senhoras


Enquanto almoçamos comida intragável com o corpo a cheirar a sabonete, o nosso zelador informa:
- Agora vão descansar, atrevam-se a desobedecer-me e verão. Pelas 15h30, vem a esposa do nosso brigadeiro e as senhoras do Movimento Nacional Feminino. Como é a primeira visita que vão ter, digam às senhoras do que é que precisam, elas são prestáveis e trazem umas revistas até em línguas estrangeiras. Vão estar deitados, ai de quem usar de maus modos com as senhoras, carrego-vos na dose dos comprimidos, vocês quando saírem daqui nunca mais serão gente!.

Lá fomos para a deita, tomámos nova porção de comprimidos multicolores, o 1º cabo Morais, à hora aprazada, depois de confirmar a decência da nossa postura, deu passagem a um conjunto de senhoras capitaneadas pela mulher do comandante militar da Guiné, trazia uma bata com as insígnias do Movimento e uma braçada de revistas encostadas ao peito. Sorriu, vinha muito bem penteada e falou suavemente:
- Boas tardes aos três. É muito triste estar doente, viemos para vos fazer companhia, tomar nota se precisam dos nossos préstimos, trazemos aqui algumas revistas para vos aliviar o sofrimento. As vossas mães, as vossas irmãs e namoradas estão certamente intranquilas. Peçam, nós contactamo-las. Façam o possível por ler. Ler promove o espírito.

Eram de facto revistas estrangeiras, Paris Match, Jours de France, havia até uma revista que falava de casamentos e baptizados da realeza europeia. A visita foi confrangedora para quem trazia tanta cordialidade, tiveram que enfrentar o nosso silêncio glacial, nada havia a pedir às senhoras, o 1º cabo Morais recolhia as revistas e agradecia por nós aquela prova de tanta bondade. As senhoras saíram, o 1º cabo Morais felicitou o nosso comportamento.

Uma hora mais tarde, de novo com as mãos fora do lençol, devidamente esticadas, foi a vez de recebermos a mulher do comandante-chefe das forças armadas e a sua comitiva, todas com a indumentária da Cruz Vermelha Portuguesa. Igualmente bem penteada e portadora de um sorriso doce, D. Maria Helena Spínola revelou-se solícita, perguntou se queríamos escrever para a família e foi aí que o capitão Oliveira estragou tudo, contou a história da mãe com a tensão alta e diabética, a simplicidade tocante do seu gesto em querer mandar-lhe um aerograma, a brutalidade das leis militares, ele sabia muito bem que uma evacuação Y não era para uso comum, desviar uma avioneta ou um helicóptero pode ceifar vidas, mas ele era filho único, aquele grupo de seis senhoras avançava para a cama dele, ouviam-no atentamente, o olhar era de puro pesar, alegaram nada poder fazer mas se o senhor capitão entendesse que deviam contactar a mãe, elas fariam isso prontamente.

Com o tronco soerguido na cama, agitando as mãos, o capitão Oliveira, de olhar súplice, lançou um apelo dramático:
- Minhas senhoras, perdi a reputação, sou um homem desonrado, imagino o que me vão dizer quando regressar ao meu quartel, vêem-me aqui rodeado destes dois doentes mentais, o da ponta se as senhoras lhe derem trela não engana ninguém, tem o juízo despachado, pisou umas minas e não pára de falar, este aqui ao meu lado tem a calma fria dos assassinos, até me arrepio quando penso que ele andou a fazer atrocidades lá no mato, quem vê caras não vê corações. Por favor, tirem-me daqui, eu não quero ficar doente, eu sou um bom filho.

Foi aqui que o furriel Alves começou a disparatar, a chamar tratante ao capitão Oliveira, os ânimos aqueceram, as senhoras recuaram com olhar atónito, o 1º cabo Morais atropelou uma explicação dizendo às senhoras que o senhor capitão sofria de um forte distúrbio, pediu-lhes para abandonar imediatamente a enfermaria, à saída de um grupo atarantado e compungido apanhámos com o olhar furibundo do nosso zelador. O 1º cabo Morais regressou momentos depois e deu-nos notícia do castigo: estavam proibidas as visitas às enfermarias, hoje e amanhã. Olhou-me depois da sua sentença e disse-me:
- Um dos médicos psiquiatras, o nosso alferes Payne, quer vê-lo daqui a um bocado. Arranje-se e venha comigo.

(iii) A minha confissão a David Payne


Depois de inúmeras lavagens em autoclave, visto um pijama descolorido, entre o azul desmaiado e o cinzento cor de rato, uso sandálias de plástico e inexplicavelmente apresento-me na consulta com dois livros, na presunção de que vou ter muito tempo para ler. O David Payne gaba-me o ar repousado, o ar bem dormido, os movimentos sem nenhuma tensão. Refere que já falou com o psiquiatra de serviço, saio feita uma semana de enfermaria, fico ainda uma outra semana em consulta externa. Ainda hoje não sei o que se passou, mas senti que me estava a confessar a este grande amigo:
- David, nunca te poderei agradecer esta possibilidade que me deste de estar com a Cristina, o que era impossível aconteceu, senti-me muito feliz por ela ter vindo. Não medi as consequências de um casamento com internamento psiquiátrico forjado, tens que me ajudar a esclarecer esta terrível sensação de estar feliz por ter a Cristina em Bissau e ao mesmo tempo sentir que isto é um estado que me divide e dificulta a exteriorização de sentimentos. Não paro de pensar que tenho que regressar mais uns meses a Bambadinca, ainda ontem aqui esteve o Teixeira das transmissões a despedir-se, regressa dentro de dias à metrópole, falei com o Teixeira como se estivéssemos operacionais activos, houve um momento em que lhe estendi a mão como se fosse receber uma mensagem para ir a Mato de Cão. Não devo ser caso único, mas sinto que este estado não me faz bem nem à Cristina. Vou propor-lhe que cada um regresse ao seu ponto de partida, aceito esta tua ideia de ficarmos mais uns dias juntos, vê lá o que é que me aconselhas como boa comunicação para a nossa despedida temporária.

O David olhava-me com o seu olhar penetrante, fazendo circular a língua nos seus lábios finos, de próximo e centrado na minha cara passou a divagar pelos móveis e paredes da sala, voltou a olhar-me e serenou-me sobre tudo quanto se estava a passar, concordou que o prolongamento da situação poderia ser danoso para os dois, ele próprio iria falar com a Cristina, hoje ou amanhã. E recomendou-me que tirasse partido destas férias à força, não valorizando as tensões que eu presenciava na enfermaria. Mais me informou que a redução dos medicamentos iria permitir-me regressar a Bambadinca numa quase perfeita desabituação terapêutica.


(iv) Um telefonema para Cherno Suane


É quando arrumo o correio enviado à Cristina a partir de Bambadinca, a partir de fins de Maio de 1970, que me assaltam dúvidas e sou instado a telefonar ao Cherno: ele acompanhara a Cristina em Bissau enquanto eu estava hospitalizado, que visitaram, por onde passearam?

Estava eu ainda em Bissau quando a 7 de Maio ocorreu um patrulhamento ofensivo em Sinchã Corubal, a operação “Gato Irritado”, em que participara o Pel Caç Nat 52, e um grupo de combate da CCaç 12, o que é que acontecera? Numa carta datada do início de Junho, referia uma operação que começara por um patrulhamento entre Amedalai e Moricanhe e numa emboscada em Madina Colhido houvera um contacto com uma coluna do PAIGC em que Mamadu Camará alvejara uma mulher, o que é que realmente se passara?

Ele que me desculpasse o inusitado das perguntas, tinha ainda uma outra dúvida sobre a Sociedade Agrícola do Gambiel, sucessora da antiga Companhia de Fomento Nacional, fundada em 1921, ele que tinha trabalhado na Socotran, ali para os lados de Biassa, a partir de 1978, lembrava-se de ter visto alguma vez vestígios dessa empresa no regulado do Cuor?

Do outro lado do telefone, Cherno não se fez rogado: como se estivesse a gargalhar, referiu que ia buscar a “senhora” ao Grande Hotel, primeiro, e, depois, à pensão da D. Berta, junto da igreja dos cristãos. Que iam aos mercados e passeavam pelo cais e depois sentavam-se no café da Associação Comercial; completamente a despropósito, lembrou-me que passámos a levar o morteiro 81 para Mato de Cão a partir de Junho e até Novembro de 1969, e precisou:
- Era Jam Djaló, milícia de Missirá, quem fazia questão de levar o tubo do morteiro em cima do ombro, o Queirós levava um colar de granadas.

Mais informou que um dia saímos numa coluna com um Unimog 404, ia no seu interior sentada Cadi Soncó, mulher de Mussá Mané, chefe de tabanca de Missirá, com um bebé ao colo, ficou aterrorizada quando o Unimog virou em Canturé a caminho de Gambana, ninguém a avisara que íamos primeiro a Mato de Cão e só depois a Bambadinca, sarilhos destes com população civil tinham sido muitos; que o patrulhamento ofensivo de Sinchã Corubal fora uma grande canseira, sim, continuava a haver indícios de presença da gente de Madina no velho trilho, que fora usado diariamente antes da guerra mas não se encontraram canoas; que nos iríamos reunir em breve para se falar da emboscada de Madina Colhido onde se ficara a saber que os do Buruntoni vinham nas calmas abastecer-se na tabanca do Xime, o que não era novidade para ninguém, era pena não se falar com os soldados africanos sobre aquela situação em que os do mato falavam regularmente com as populações que viviam junto dos nosso quartéis; e surpreendeu-me lembrando que eu nunca lhe fazia perguntas sobre as aulas que dava na escola de Bambadinca e as aulas de ginástica nas imediações do quartel, quando eu regressara de Bissau. Agradeci tudo e finalmente fazia-se luz quanto às referências insistentes que eu encontrara no correio dos últimos três meses acerca das actividades escolares e de um estranhíssimo programa de ginástica que metia manutenção e marcha, tudo em calção, para gáudio do BCaç 2852, que partiu no início de Junho, e do BArt 2917, que o viera render.


Nº3 da Colecção Contemporânea, Portugália Editora,1966.Tradução de Marília Guerra de Vasconcelos, capa de João da Cãmara Leme.É, acima de tudo, um romance inesquecível,perdura na lembrança pela originalidade da trama, mensagem, arquitectura da escrita.1943, Londres, bombardeamentos,uma atmosfera de intimidação e resistência.Um homem naufragado,Arthur Rowe,é apanhado numa estranha conspiração,tudo começa na banalidade de ter ganho um bolo posto a prémio numa quermesse.Segue-se uma perseguição, um encarceramento e depois uma redenção ao serviço da pátria.Mais que a intiga atabafante num enredo kafkiano,é o cheiro de um medo sem direcção que perpassa toda a obra e vai ficar quando tudo ,parece, teve um desfecho favorável à salvação do Reino Unido.Só há redenção depois de se sofrer muito com e pelos vivos...


(v) Uma semana de suculentas leituras britânicas

Os livros que sobraçava quando fui à consulta do David Payne proporcionaram-me momentos de grande satisfação. Começando por “O Ministério do Medo”, de Graham Greene, fui reconduzido ao universo kafkiano, uma mistura de espionagem e intriga, havendo a redenção do herói depois do seu profundo abatimento e desorientação.

É uma história estranha. Estamos em plena guerra, em Londres. Arthur Rowe, que se supõe estar a viver um drama por uma acusação de ter assassinado a mulher, vai a uma quermesse, entra numa barraca de uma quiromante, segredam-lhe o peso exacto de um bolo posto a prémio, e é graças a este bolo que começa uma aventura do medo, feito de sucessivos equívocos. A quermesse tinha a ver com as mães livres (isto é, as mães de todas as nações livres), uma estranha associação de que Rowe nunca tinha ouvido falar. Rowe regressa a casa com o bolo, aparece um desconhecido que adopta um comportamento também bastante bizarro, eis quando um bombardeamento alemão destrói a casa. Rowe procura um detective privado com o objectivo de apurar o que está por detrás da ansiedade daquela associação em reaver o bolo que ele, tudo indica, tinha ganho legitimamente. Recebido na associação das mães livres, descobre que um grupo no seu interior persegue outro, também da associação, pretende-se enviar para fora de Inglaterra um segredo importantíssimo. Está estabelecida a atmosfera de intriga, o irracional ganhou plausibilidade, Rowe vive em fuga, um vendedor de alfarrábios vai conduzi-lo a uma clínica que é um universo concentracionário, sob o pretexto de que é necessário reganhar a memória de tudo quanto Rowe esquecera no passado.

A charada não se consegue esclarecer completamente, quem é inimigo de quem, qual a natureza daquele segredo que pode abalar a Grã-Bretanha pelos alicerces. O medo viera para ficar, mesmo na relação amorosa que une o herói e a sua amada: “Durante largo tempo ficaram sentados, imóveis e silenciosos; acabavam de alcançar a orla da sua provação, semelhante a dois exploradores, que do cume da montanha, contemplam a vasta e perigosa planície. Durante uma vida inteira teriam de caminhar cautelosamente, pensar duas vezes antes de falar; e porque se amavam tanto, teriam de espiar-se mutuamente, como dois adversários. Nunca saberiam o que era viver sem o temor de serem descobertos”.

Romance notável, que comprova o elevado talento de Greene, quando falada da traição e da iniquidade, e como a partir do grotesco e do sórdido se alcança a face de Deus.

Nº162 da Colecção Vampiro,tradução de Lima da Costa,capa de Lima de Freitas.Não é a primeira vez que o potencial assassino se revela imediatamente ao leitor, mas a configuração é original.O único filho de um escritor de livros policiais é mortalmente atropelado à porta de casa.Começa uma investigação metódica em estado de vingança por parte do pai que tudo perdeu, à margem da polícia.Rapidamente se descobre quem e como atropelou a vítima inocente. Começa a congeminação de um plano para executar um motorista imprevidente. É como se o leitor estivesse no cinema, os olhos vêem e lêem o sofrimento de alguém, na maior expectativa. Depois, executor e vítima confrontam-se verbalmente, é a ruptura e, imprevistamente, a vítima aparece morta por envenenamento. Um detective é convocado e descobre que todo o diário que lemos inicialmente do potencial executor está ardilosamente forjado. É uma pedra preciosa do romance policial, assinado por um dos maiores nomes da literatura britânica.

Não menos valiosa foi a leitura de “A Fera Tem de Morrer”, de Nicholas Blake. A trama é original. A primeira parte gira à volta de um diário em que um conceituado escritor de obras policiais pretende vingar-se de um motorista desconhecido que lhe matou o filho, Martie, à porta de casa. Diário intimista de Frank Cairnes, aliás Felix Lane ou vice-versa. Por sua iniciativa, acaba por descobrir quem ia na viatura que dera morte imediata a Martie, o filho que era a sua razão de viver. É ele, e não a polícia, quem descobre a jovem que acompanhava George, o motorista imprevidente que fugira cobardemente. Insinua-se perante a jovem e entra assim na vida de George. Escreve metodicamente no diário os preparativos do assassínio de George.
Na segunda parte do livro, dá-se o frente a frente de Felix Lane com George Rattery, ambos estão informados da morte de Martie, ocorre uma discussão brutal, Felix não tem condições para executar a sua vingança. Na terceira parte, entra em cena um detective que é contactado por Felix depois de George ter aparecido morto por ingestão de estricnina. Julga-se ter sido o filho de George a procurar assassinar o pai, o detective, que entretanto teve acesso ao diário de Felix, vai desvendar a maquinação espantosa de um diário concebido para provocar uma grande ilusão. A despeito de uma vivência na enfermaria psiquiátrica, li assim do bom e do melhor.

Em breve, serei restituído a Bissau. Estou emocionalmente dividido e sem escolhas possíveis. A Cristina regressa a Lisboa e eu parto para Bambadinca. Apanho nova transição de batalhões, o pesadelo da ponte de Udunduma, as últimas operações, acompanharei o dia a dia do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. Mais tarde, para o fim de Julho, converso com o deputado José Pedro Pinto Leite, da ala liberal, em Bambadinca, pouco antes de ele morrer num acidente no rio Mansoa. E, de repente, chega o meu substituto, fonte de grandes preocupações. Tudo isto será aqui contado.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3027: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (37): Com baixa psiquiátrica, no Hospital Militar de Bissau

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3047: Os nossos regressos (9): Uma viagem tranquila...(Belarmino Sardinha).

1. Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, 1972/74, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau


Bilhete? Ida e Volta

A ida

Sem fugir aos factos concretos, vou procurar dar um pouco de cor ao texto para não se tornar uma coisa chata e enfadonha. Pode servir para intercalar com relatos mais dolorosos que chocam e colocam no local aqueles que os viveram.
As guerras não são feitas por homens sábios, são feitas por bestas, apoiadas por interesses de pessoas sem escrúpulos e alimentadas com juventude.

Não posso começar a dizer, fui para o aeroporto …
Decorridos 14 meses de serviço militar e quando, pensava eu, estavam já habituados à minha presença, eu por mim estava habituado a estar por cá, ofereceram-me como prenda de aniversário, presumo, tinha completado 22 anos havia uma semana, uma ida para a Guiné. Propuseram-me que estivesse no aeroporto, no terminal militar, eu e mais 14 ou 15, não me recordo com exactidão se éramos 15 ou 16 no total, mas adiante, pelas 22H00 do dia 15 de Junho de 1972, para embarcarmos num voo às 00H00.
Como nunca tinha andado de avião aceitei.

Não foi lá ninguém levar-nos, nem apareceram a ver se tínhamos comparecido, tal era a confiança que tinham em nós, só fazíamos parte da lista de passageiros. Ainda hoje continuo sem saber o que teria acontecido se não aparecêssemos. Mas não, fomos todos exemplares, o nosso exército sabia-o, embora sem presidentes na despedida, nem o do meu clube, ou ministros de estado ou mesmo só de nome, lá estivemos acompanhados pelas famílias.

Passada a hora das lágrimas e depois de acomodados dentro do DC6 (?), para quem queria ter sido piloto, uma prenda de aniversário destas era o máximo, ir de avião passar dois anos numa terra que ainda não conhecia, que diziam ser ecológica devido à muita vegetação, portanto boa para o ambiente, com cama mesa e roupa lavada (desde que alguém a lavasse), quem é que recusava?

Mas, o avião que levado do terminal militar para a pista da TAP decidiu não levantar

Volta tudo para trás e há que esperar, ninguém sai do avião, são só 15 minutos para ver uma coisa e vamos já seguir. Passada meia hora começámos a ver desmantelar o avião, a impaciência dos 65 ou 75 ocupantes, oficiais, sargentos e praças todos em rendições individuais, a crescer e a vontade de fumar etc., veio a ordem de podermos descer à pista para desentorpecermos as pernas, fumar e aguardarmos, que estava quase.

Passada mais meia hora na pista, era só vir a peça que tinham ido buscar a Alverca e embarcávamos. Claro que já começávamos a ver que indo naquele objecto tínhamos certo o embarque, só não sabíamos era quando e onde íamos desembarcar e de que maneira.

Pelas 02H00 horas da manhã, ou a peça não chegou ou o mecânico já não sabia de onde eram as peças e como o avião tivesse a carcaça cada vez mais à vista, foram levar-nos ao terminal civil do aeroporto com a indicação para estarmos de volta nesse dia à noite, pelas 00H00.

Às 02H00 da manhã só de táxi podíamos ir para o centro de Lisboa. Além de gastarmos o pouco que tínhamos voltávamos para casa e dizíamos o quê à família, que já tinham passado dois anos? No dia seguinte dizíamos ir fazer nova comissão? Ficávamos um dia inteiro em Lisboa a andar de um lado para o outro até às 00H00?

O certo é que assim aconteceu e cada um desenrascou-se como quis e no dia seguinte lá estávamos todos de novo para ver se era mesmo verdade. E não é que foi mesmo?

Que maravilha, ver despontar o dia pelas janelas do avião.

Eram aproximadamente 08H00 quando aterrámos e se abriu a porta. Perante a baforada de ar quente, ficámos todos molhados, parecia termos aterrado no Alentejo em pleno sol de Agosto, não fosse alguém ter gritado "eh pá, é só grilos", o que como alentejano habituado a anedotas não estranhei. E os cheiros? Incómodos mas só até os interiorizarmos. Não serão eles que inconscientemente recordamos hoje e nos ligam e aproximam daquela terra?

Desembarcado e a caminho do quartel, Regimento de Transmissões, situado dentro da parte que englobava também o QG, julgava eu ter uma suite à minha espera, mesmo que o não fosse ou não fosse só para mim, já calculava, pelo menos devia ter ar condicionado e outras mordomias para estarmos sempre prontos e em forma.

Surpresa das surpresas, pelo calor que estava devia ser período de férias, como no Algarve, estava tudo superlotado e tivemos que fazer campismo. Deram-nos três tendas cónicas e mandaram-nos para um sítio ainda por construir e nem nos avisaram que se não tivéssemos cuidado, durante a noite, éramos comidos pelos mosquitos. Como bons militares, sempre prontos e preparados para tudo descobrimos depressa.

Passámos 5 ou 6 dias naqueles aposentos até sermos despachados cada um para seu sítio.
Eu fui para Mansoa, outros para Bafatá, Nova Lamego e os outros não me recordo para onde.

A estada ou estadia, já que também andei de barco e estive a bordo de patrulhas como o "Orion" ou do Navio Hidrográfico "Pedro Nunes", onde tinha colegas de secundário, e os comes e bebes eram diferentes e melhores que na unidade. O meu abraço e agradecimento para o Francisco Correia dos Santos e para o Etelvino Ribeiro Alves.


O regresso

O regresso, esse foi mais simples e sem complicações, tranquilo diria mesmo, passavam 20 dias de ter completado os 24 meses quando embarquei, num 707 ou 727 da Força Aérea. Como não trazia bagagem, apenas aquele saco tipo chouriço que a TAP utilizava para os seus passageiros que tinha guardado das últimas férias à Metrópole, haviam passado apenas três meses, foi sair do aeroporto com destino a Odivelas e aparecer em casa a dizer agora já vim definitivamente, não volto mais, acabou-se. Mas confesso ter sonhado várias vezes, durante algum tempo, que tinha voltado a ser chamado e estava a fazer uma outra comissão.

Depois do regresso tem sido a conversa de ocasião, até que este Blog veio reavivar tudo de novo, mas ainda bem, está vivo e tem sido a forma de os relembrar a todos, sem excepção, embora com muita emoção. Afinal tínhamos apenas vinte e poucos anos e a esperança de toda uma vida pela frente. O que dói e corrói não é o exterior.

Um abraço para todos,
Belarmino Sardinha
__________

Notas:

1. fixação do texto e sublinhados de vb;

2. Artigos relacionados em

1 de Julho de 2008 >
Guiné 63/74 - P3009: Com sangue na guelra: Nós e a mística dos comandos da 38.ª, em Mansoa (Belarmino Sardinha)

8 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3037: Os nossos regressos (8): E vieram todos. Luís Dias.

Guiné 63/74 - P3046: Convívios (73): European Golden Oldies Rugby Festival (Paulo Santiago)

1. No dia 23 de Junho de 2008, recebemos uma mensagem do nosso camarada Paulo Santiago, dando conta de um Festival de Râguebi, no Funchal.

Luís, Briote e Vinhal
Estive a participar no European Golden Oldies Rugby Festival, que decorreu no Funchal de 19 a 22.

Organização impecável a cargo do Porto Old Greens, onde pontificava como um dos dirigentes do Staff o nosso camarada Miguel Vareta, ex-Fur Mil da 38.ª CCMS.
O Miguel foi incansável, vamos ver, passado este trabalho de muitos meses, se arranja tempo para nos contar umas histórias.

O Torneio foi uma festa, como tudo o relacionado com o Rugby, sem classificações, só interessa o prazer de jogar e o convívio das terceiras partes.

Participaram 41 equipas europeias e 1 da Argentina, com atletas que iam dos 35 aos 70 anos.

Se virem interesse, divulguem na Tertúlia.

Abraço
Paulo Santiago

Foto 1 > Vareta (está em excelente forma) e Santiago

Foto 2 > Nesta foto Luís Caldas, antigo atleta do Benfica, dirigente do C.O.P., árbitro de luta greco-romana em várias edições de Jogos Olimpicos, Paulo Santiago, uma belíssima acompanhante da equipa Lituana Gelezinis Vilkas e João P.Sousa dirigente do Porto Old Greens

Foto 3 > Veteranos do Rugby C.Bairrada (a minha equipa)

Foto 4 > Equipa do Porto Old Greens com Miguel Vareta atrás da bola

Guiné 63/74 - P3045: Convívios (72): Em Campia, Vouzela, homenageando os esquecidos da guerra (Artur Conceição / José Manuel Lopes)

Guiné > Região do Oio > Jumbembem > CART 730 (1965/67) > O Sold Trms Artur Conceição, natural da freguesa de Campia, concelho de Vouzela, residente hoje na Damaia/Amadora e membro da nossa Tabanca Grande desde Maio de 2007... Aqui com duas meninas de Jumbembem, a Fili e a Djar. Que será feito delas ? - pergunta o Artur, apreensivo. Também elas são as esquecidas da guerra...


Vouzela > Campia > Monumento aos Combatentes do Século XX > Inaugurado em 13 de Novembro de 1999 e dedicado aos campienses combatentes deste século. Lembra aos vindouros a participação de muitos naturais de Campia na Guerra Colonial, na Primeira Grande Guerra e em expedições a África e à India. A iniciativa inseriu-se no IV Convívio dos Combatentes e Forças Expedicionárias da Freguesia de Campia. Em 2007, realizou-se o XII Convívio. No início da cerimónia, o nosso camarada Artur Conceição no uso da palavra. Ao centro, o Capitão Álvaro Dório Correia Tavres, que esteve em Bedanda.

___________________



Gostava de vos falar
dos esquecidos,
dos heróis que a história
não narra,
que as viúvas choraram
mas já não recordam,
daqueles
que nem tempo tiveram
de ter filhos
que os amassem,
descendentes
que os lembrassem,
daqueles
que nunca tiveram
o dia do pai,
vítimas de guerras
que não inventaram,
em tempo que já lá vai;
falar deles é prevenir,
se bem que de nada lhes valha,
de guerras que possam vir,
geradas pela ambição
dos que nunca morrerão
num campo de batalha.


josema

[s/d nem local,
possivelmente escrito em Mampatá,
no sul da Guiné,
c.1972/74](*)

Revisão e fixação do texto (pontuação): L.G.

Poema: © José Manuel Lopes (2008). Direitos reservados.
_____________________

1. Mensagem do Artur Conceição. com data de 9 do corrente, dirigida ao José Manuel Lopes (que assina os seus poemas por josema):

Assunto - Permissão

Olá, José Manuel

Os Combatentes da Freguesia de Campia vão efectuar o seu convívio anual no dia 13 de Setembro do corrente ano.

De alguns anos a esta parte cabe-me a missão de Relações Públicas e redactor de algumas palavras alusivas ao evento.

Leio os teus poemas, e procuro entendê-los da mesma forma que me obrigavam a entender os Lusíadas, e juro que não encontro nenhum adjectivo para os classificar.

Seguindo o princípio "O seu a seu dono" ou a "César o que é de César", quero pedir-te permissão para ler o teu poema [,acima transcrito]:

Gostava de vos falar
dos esquecidos
dos heróis que a história
não narra (...)


aquando da homenagem aos que tombaram, junto ao monumento aos Combatentes do século XX, sediado em Campia.

Um abraço

Artur António da Conceição (**)
Damaia / Amadora

2. Comentário de L.G.: Meu caro Artur, ainda não sei qual será a resposta do José Manuel... Mas, como camarada generoso e solidário que ele é, terá todo o gosto que recites este seu poema, no dia do XIII Convívio dos Antigos Combatentes de Campia, no dia 10 de Setembro de 2008.

A pensar em ti, e em futuras declamações, em público, tomei a liberdade de, ao arrepio do poeta (mas procurando sempre respeitar o espírito e a letra), fazer a necessária pontuação. Ajudar-te-á a recitar melhor estes versos que calam fundo na alma da gente. Os poetas têm liberdades que os outros utentes da língua portuguesa não têm E uma delas é o não uso da pontuação, por razões estéticas ou de liberdade criativa. O josema nunca usa pontuação. Para quem diz poesia, a pontuação ajuda muito... Espero que o autor concorde com a minha pontuação... Vou interpretar o seu silêncio como um OK (para ti, Artur, e para mim).

_______

Notas dos editores:

(*) Enviado em 14 de Março e último e já publicado no
Poemário do José Manuel. Sobre o José Manuel Lopes, vd. o último poste publicado: 9 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3039: Poemário do José Manuel (20): Mãe, se eu não regressar, lembra-te do meu sorriso...

(**)
Artur Conceição, ex-soldado de Trms, CART 730 (1965/67), Bissorã, Farim e Jumbembem (actual Região do Oio). Vd. os postes do nosso camarada, publicados no nosso blogue:

16 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2355: O meu Natal no mato (1): Jumbembem, 1965: Os homens às vezes também choram... (Artur Conceição)

8 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2335: A trágica morte do Cap Rui Romero: 10 de Julho de 1966, dia de correio (Artur Conceição)

21 de Novembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2291: Convívios (36): XII Convívio dos combatentes da Freguesia de Campia, no dia 10 de Novembro de 2007 (Artur Conceição)

24 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1989: Homenagem ao António da Silva Batista (Artur Conceição, CART 730, Jumbembem, 1965/67)

8 de Junho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1824: O Aeroporto de Jumbembem e os ecologistas 'avant la lettre' (Artur Conceição)

21 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1772: Tabanca Grande (5): Também quero estar ao lado dos que não permitem o virar da página (Artur Conceição, CART 730, 1965/67)

Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (3): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 > 1969 > Um periquito em Bambadinca, ao tempo do BCAÇ 2852 (1968/70) o editor deste blogue, quando Fur Mil Armas Pesadas Inf, pertencente à unidade de intervenção CÇAÇ 2590 / CCAÇ 12... Nas suas costas, a grande bolanha de Bambadinca... Um anos depois, já após a chegada do BART 2917, os cães vadios enxameavam a parada do aquartelamento e tornavam-se um pesadelo, à noite, não deixando ninguém dormir... Foi na sequência dessa situação, calamitosa, que se decidiu preparar e executar a Op A Noite das Facas Longas, de que resultou talvez a maior mortandade em canídeos de toda a guerra da Guiné...

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


1. Mensagem, com data de 7 do corrente, de Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 83 (Bambadinca, 1961/63)


2. Estórias avulsas (16) > A Matilha de Bambadinca (*)
por Alberto Nascimento


Alguém apareceu um dia no quartel, com dois cachorros recém desmamados, que foram imediatamente adoptados e baptizados com os nomes de Gorco, ele, e Djiu, ela.

Adaptaram-se facilmente ao hotel e, quando começaram a vadiar pelas imediações, devem ter feito grande publicidade porque passado pouco tempo veio outro e mais outro e mais uns quantos, até perto da dezena de rafeiros que, agora bem nutridos, não mostravam vontade nenhuma de voltar à antiga vida de privações e maus tratos.

Mais tarde, o tenente Castro, comandante do destacamento, juntou à matilha um boxer, o Lobo que, pelo seu pedigree, foi aceite como comandante da tropa canina, que passou a segui-lo para todo o lado.

Embora alguns dos rafeiros se desenfiassem durante algumas horas de dia, a hora das refeições e a pernoita eram sagradas e após a última refeição esparramavam-se num espaço entre as duas construções que constituíam o quartel, formando uma roda de cães no meio da qual, não sei se por estratégia, se acomodava o Lobo.

Uma noite, estava eu num posto guarda a trocar umas palavras com o sargento Leote Mendes, quando o Lobo se levantou subitamente e saiu a grande velocidade, seguido com grande algazarra pelo resto da matilha. Atravessaram a estrada e durante algum tempo continuámos a ouvir um barulho infernal, sem conseguirmos compreender o que se estava a passar, até que os latidos cessaram e pudemos vislumbrar o regresso da matilha.

Ficámos preocupados a pensar que a reacção dos cães se devia à passagem de algum viajante, já que era hábito quando a distância a percorrer era grande, fazerem os percursos de noite a pé enquanto mastigavam noz de cola e mais preocupados ficámos quando vimos que o Lobo trazia na boca um cantil de plástico cheio de leite. Deduzimos e desejámos que alguém tivesse tido a ideia de desviar a atenção dos cães, das suas canelas para o cantil de leite, largando-o enquanto fugia.

Depois da operação de Samba Silate (**), alguns prisioneiros disseram que nessa noite o quartel estava já cercado e seria atacado, não fora o alarme dado pelos cães, o que os levou a pensar que factor surpresa já não surtiria efeito.

Felizmente para nós, enganaram-se. Não sei que armas traziam mas a nossa surpresa ia com certeza ser grande. Nunca se soube com certeza absoluta, eu pelo menos não soube, com que apoios esta operação contava do exterior e do interior do quartel, mas um dia depois, um cabo indígena de Bafatá que reforçava o nosso destacamento, desertou.

Depois deste episódio, que recordamos sempre nos nossos encontros anuais, a matilha começou a desaparecer. Uns nunca mais voltaram ao quartel, outros voltaram doentes, acabando por morrer por envenenamento e nós passámos a redobrar a nossa atenção aos sistemas de vigilância e defesa, que dependiam mais de nós que do equipamento que possuíamos, na altura limitado às G3, granadas e uma metralhadora fixa num ponto estratégico.

Todos os camaradas que estavam na altura em Bambadinca sabem, julgo eu, o que ficaram a dever àqueles animais que, por acção indirecta, acabaram por ser as únicas vítimas, pelo seu natural instinto de guardiães e defensores de um território, que também era seu.


Alberto Nascimento

3. Comentário de L.G.:


Alberto:

É uma história fabulosa!!!... Manda mais, temos tão poucas referências aos primeiros tempos da guerra... Dá-me mais elementos sobre a tua companhia. E fala-nos da Bambadinca desse tempo. Como sabes, eu estive lá em 1969/71, seis anos depois de ti... No meu tempo tanbém havia muitos cães, famélicos e vadios... Não nos deixavam dormir... Um dia, às tantas da noite, pegámos num jipe, nas pistolas Walther, e matámo-los todos... Ainda hoje essa cena me incomoda... Evoquei-a ou tentei exorcizá-la num dos meus poemas, Esquecer a Guiné:


Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada centímetro quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe.

As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
No manicómio de Bambadinca.

Um a um,
Às tantas da madrugada,
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De que... não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
A todos nós, almas penadas...
Chamei-lhe a Operação
Noite das Facas Longas. (...)


Nessa noite nem o pobre do Chichas, que era a nossa mascote, escapou da morte anunciada:

Segundo esclarecimento posterior do Humberto Reis [vd. poste de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXII: Op Noite das Facas Longas ], meu camarada da CCAÇ 12 e meu companheiro de quarto em Bambadinca, "o cão, que dormia à porta do nosso quarto, era o Chichas, alcunha vinda do 2º sargento corneteiro do BCAÇ 2852, que também era o Chichas. O condutor do jipe nessa Noite das Facas Longas era o major de operações do BART 2917 (o tal que mandou ir para lá a mulher quando se casou) e o assassino... fui eu".

Acrescento eu: esse tal major era conhecido como o B.B.... Gostava de saber notícias dele...

__________

Notas de L.G.:


(*) Vd. último poste desta série, Estórias Avulsas: 1 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2598: Estórias avulsas (15): O bom pastor (Luís Fonseca)


(**) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63)

(...) " a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá.

"O primeiro destacamento, ainda em Julho de 1961, foi para Farim, após os primeiros e ainda pouco violentos ataques a Bigene e Guidaje. Seguiu-se o destacamento de Nova Lamego, conforme é dito no seu blogue (P 1292 - Contributos) onde o pelotão foi dividido por Buruntuma, Piche e Canquelifá.

"Só estou a mencionar o 1º pelotão da Companhia, porque à grande maioria dos camaradas dos outros pelotões só voltei a ver nos dias que antecederam o embarque para a Metrópole.

"Como a memória se perde no tempo por indocumentação, ou porque a essa memória se teve medo de atribuir qualquer importância (existiam e ainda existem muitos complexos sobre a guerra colonial), resolvi dar o meu contributo para esclarecer uma dúvida colocada no seu blogue, sobre quem teria participado nos massacres de Samba Silate e Poindom, no início de 63.

"Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia, se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate" (...).

Guiné 63/74 - P3043: Em busca de ... (33): Memórias do príncipe Abdulai Jamanca, irmão do meu tio Gonçalves Dias (Miguel Ribeiro de Almeida)

Guiné > Brá > 1965 ou 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos, os Diabólicos. Em vésperas da Op Atraca. O Jamanca será mais tarde ofical da 1º Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da CCAÇ 12 Enquanto a CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, a CCAÇ 21, comandada pelo Tenente Jamanca [lê-se Djamanca], ficará em Bambadinca como unidade de intervenção.


Guiné > Bissalanca > o 1º Cabo Abdulai Jamanca a ser condecorado com a Cruz de Guerra pelo Coronel Kruz Abecasis (Cmdt da BA 12) em 10 de Junho de 1967 (?).

Abdulai Queta Jamanca (1937-1975), de seu nome completo, Príncipe Fula por nascimento, era natural de Farim. Foi alistado nas NT a 12 de Janeiro de 1956. Foi um dos militares que em Outubro de 1963 se deslocaram a Angola para frequentar o curso de comandos. Fez parte do grupo que actuou na Ilha do Como, na Op Tridente (Jan-Mar 1964).

Em Brá colaborou na instrução do 1º curso de comandos e, em data não determinada, foi evacuado, por acidente em serviço, para o HMP, de Lisboa , onde foi tratado durante alguns meses. Regressou à Guiné, já o curso tinha terminado, ficando a pertencer ao grupo de comandos Panteras. Em Setembro de 1965, ingressou nos Comandos do CTIG, tendo feito parte, no período de 1965/66, dos Grupos Vampiros e Diabólicos (neste último, sob o comando do Alf Mil Comando Virgínio Briote).

Mais tarde, fez parte, em 1969, ingressou na 1ª CCmds/BCA, tendo participado na invasão a Conacri, Op Mar Verde, que levou à libertação dos nossos prisioneiros de guerra, em poder do PAICG.

O então 1º tenente Jamanca foi, em Junho de 1973, nomeado como comandante da CCAÇ 21, extinta em Agosto de 1974. Regressou à CCmds a que pertencia. Foi fuzilado em Bambadinca, em dia não apurado de Março de 1975.

Fotos e legendas: © Virgínio Briote (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem de Miguel Ribeiro de Almeida, sobrinho de do ex-Alf Mil J. M. Gonçalves Dias, que pertenceu à CART 3492 ( Xitole) e depois à CCS do BART 3873 ( Bambadinca) (1971/74):


Meu caro Luís Graça,

Venho agradecer-lhe, bem como ao seu camarada Beja Santos, pessoalmente e em nome do meu tio, a vossa inestimável ajuda, sem a qual não teria sido possível localizar o 2º Sargento Fodé Dahaba e família [, que moram em Mem Martins].

Acabo de abrir a minha caixa de correio e encontro a sua mensagem, pelo que vou de imediato telefonar ao meu tio para lhe dar esta magnífica notícia [, a morada, o telefone e o telemóvel do Fodé Dahaba, 2 ºSargento do Pel Mil nº102, Finete].

Tenho pesquisado no seu blogue para encontrar notícias de um outro camarada vosso, infelizmente assassinado pelo PAIGC em 1975. Trata-se do Tenente Abdulai Jamanca. O meu tio conheceu-o em Bambadinca, e ficaram muito amigos, como irmãos. O Tenente Jamanca ofereceu-lhe uma foto, tirada no aquartelamento de Bambadinca aí por 1972/3, dedicando-a ao meu tio, e nela escrevendo "Para o meu irmão José M. Gonçalves Dias". Esta foto está na sala de casa do meu tio desde que ele regressou da Guiné.

Pesquisando no vosso blogue, como dizia, encontrei uma foto do Tenente Jamanca a ser condecorado com a Cruz de Guerra, a alguns posts a ele referentes que mostrarei ao meu tio assim que estivermos juntos. Um desses posts é escrito por um cidadão guineense, hoje a residir e a trabalhar em Lisboa, que viu o camião do PAIGC levar o Tenente Jamanca para o local onde seria assassinado. No post, que é de 2006, estão os telefones de contacto dessa pessoa. O Luís acha que nós, eu e o meu tio, poderíamos contactá-lo?

Sei que é também um desejo de longa data do meu tio encontrar familiares do Tenente Jamanca. Caso o Luís, ou um seu camarada, saibam de alguma forma de contactar com algum parente do Tenente Jamanca, por favor diga-me.

Continuarei a acompanhar o vosso blogue, com muito gosto e todo o interesse. É um espaço que preserva a memória da nossa história contemporânea e que abre lugar ao debate e à convivência entre os antigos combatentes. Numa época em que se fala tanto de serviço público, talvez fizesse bem a muitos programadores dos canais de televisão portugueses ler o vosso blogue.

Assim que entrar de férias e estiver com o meu tio, que vive em Viseu, levo comigo o PC portátil para ver se o convenço a aderir ao ciberespaço e a entrar na vossa tertúlia. Ele ficou entusiasmado com as coisas que eu lhe contei sobre o vosso blogue - a infinidade de posts, textos e fotos, a possibilidade de ele próprio vos enviar textos e comentários e, sobretudo, a facilidade de contactar com os seus camaradas da Guiné de uma forma rápida - , por isso espero "levá-lo"
em breve até vós.

Mais uma vez, o nosso muito obrigado pela ajuda prestada. Um abraço da minha parte, um Alfa Bravo para o Luís Graça e Beja Santos da parte do meu tio, e votos de boa saúde. Até breve.

Miguel

2. Comentário de L.G.:


Meu caro Miguel: Tens uma missão delicada: converter o teu tio à nossa mística bloguística, e ajudar a desenvolver a sua literacia informática de modo a poder comunicar connosco. Para já, podes servir de elo de ligação. Mais tarde, teremos todo o gosto em recebê-lo como camarada nosso, nesta Tabanca Grande, de que tu passas de imediato a fazer parte como amigo... (Temos vários familiares de camaradas nossos, a maior parte já falecidos - o que não é felizmente o caso do teu tio Gonçalves Dias - nessa condição).

Aqui te deixamos mais alguns elementos informativos sobre o Abdulai Jamanca, que eu conheci em Fá Mandinga e em Bambadinca, em 1969/70, e que uns anos antes (1965/66) fez parte do grupo de comandos liderado pelo nosso co-editor Virgínio Briote. Se puderes, e com a autorização do teu tio, manda-nos a tal foto autografada que o Jamanca lhe ofereceu, possivelmente em meados de 1973 quando ele foi comandar a CCAÇ 21 (que também tinha graduados africanos da minha antiga CCAÇ 12, a que eu pertenci entre Junho de 1969 e Março de 1971; homens, portanto, que eu ajudei a formar e que enquadrei).

Quanto ao nosso amigo José Carlos Mussá Biai, que é natural do Xime, é engenheiro agrónomo e trabalha no Instituto Geográfico Português, estás autorizado a telefonar-lhe. Oxalá consigas o contacto de algum familiar do saudoso amigo do teu tio e grande combatente fula ao serviço das NT. O seu fuzilamento foi uma tragédia e, como todos os outros, ensombrou a festa que deveria ser a independência da Guiné-Bissau.

__________

Notas de L.G.:


(1) Vd. poste de 3 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3016: Em busca de... (32): Margarida Dahaba, professora, filha do 2º Sargento Fodé Dahaba (M. Ribeiro de Almeida / J.M. Gonçalves Dias)

(2) Sobre o 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXII: Dos comandos de Brá ao pelotão de fuzilamento (Virgínio Briote)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

14 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2843: Ainda os Comandos fuzilados após a independência (III): Alguns dados de 1965/66: Abdulai Queta Jamanca (Virgínio Briote)

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3042: A Guerra estava militarmente perdida? (24). Comentário do J. Mexia Alves.

Guiné - Guerra e Descolonização…


Mexia Alves


Quem me conhece sabe que tenho as emoções à "flor da pele", que rio e choro com a mesma facilidade, que me empenho nas causas e com elas sofro e me alegro, que não tenho problema em mostrar as minhas emoções e que como referências da minha vida, para além de Deus em primeiro lugar, tenho a amizade, a fidelidade, a gratidão.

Este intróito é para vos dizer que ontem, ao ler o post 18 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2959: A guerra estava militarmente perdida? (19): MIGS e Aliados. Juvenal Amado. M. Beja Santos. ", me irritei, com uma irritação daquelas que fazem sair de dentro de nós golfadas de revolta, e que nos "tiram do sério" como se costuma dizer.

Sentei-me ao computador e comecei a escrever, mas depois, como já me vou conhecendo ao longo destes 59 anos de existência pensei:
"Joaquim, irritado como estás, vais fazer merda. Vais escrever coisas que depois perceberás que não querias escrever ou que colocarias de outro modo."
Assim, levantei-me dali, fui dar uma volta, estar com a família e depois voltei.

Fui alegremente surpreendido com a minha "declamação" no Encontro de Monte Real, (obrigado Luís), o que logo acalmou o meu espírito e me trouxe uma qualquer água aos olhos.
Decidi então que a noite é boa conselheira e portanto que deixava para hoje a minha resposta, ou melhor, os meus considerandos sobre o referido post.

E então o que é que tanto me irritou?
O que tanto me irritou foi isto:

"Quanto se utiliza o relato de actos de bravura dos nossos soldados, para se negar o que era inegável.
A derrota militar era uma realidade.
As derrotas militares são normalmente precedidas do sofrimento das populações civis. O Povo Português estava casado de sofrer.
Se não se tem promovido etnias em desfavor de outras. Se não se tem promovido a cavaleiros do Império, soldados oriundos das populações indígena, que fizeram em muitos casos o trabalho ‘sujo’, a guerra teria durado ainda menos.
Quando li as opiniões de alguns nossos camaradas sobre a questão, fiquei perplexo.
Parece que falam de outra realidade.
Na opinião deles, este país que vivia num atraso tal que competia com as próprias colónias, tinha condições para se manter como a última potência colonial. Contra tudo e contra todos.
Na minha opinião há de facto falta de realismo nesta visão e 34 anos após a revolta dos que lá combatiam, alguns ainda mantêm o sonho inexplicável do Império Colonial."


Apetecia-me responder ponto por ponto ao que aqui está escrito, mas confesso não tenho paciência para isso.
Mas mais uma vez vou dizer aquilo que tenho repetido até à exaustão:

Não gosto da guerra, não queria a guerra, fiquei muito feliz por a guerra ter acabado, e não tenho nenhum sonho com o Império Colonial.
E tenham paciência, é inadmissível que torçam as palavras e que se retire delas o que elas não contêm.
Quando iniciei esta "polémica" foi no sentido de afirmar que à data do 25 de Abril a guerra na Guiné não estava militarmente perdida, e neste desiderato não coloquei quaisquer intenções politicas, ou outras que sejam a não ser a afirmação de que, para mim, a guerra na Guiné, na altura do 25 de Abril, não estava militarmente perdida.
Vir-se agora com conotações políticas, chamando colonialistas e sei lá mais o quê a quem defende esta afirmação, é no mínimo trazer argumentos políticos para uma discussão que nada tem de político, (embora a guerra envolva o político, obviamente), e é vir colocar labéus infelizes sobre camaradas que respeitam e devem ser respeitados.

"Parece que falam de outra realidade.”

Porquê? Também lá estive e até estava nessa altura, ou será que a realidade de uns é mais realidade que a dos outros?
Quanto aos guineenses que lutaram connosco apenas digo que tenho muito orgulho neles e tenho muito orgulho em os ter comandado.
Quanto aos considerandos da guerra deixo ao Graça de Abreu a resposta que já deu, e que o faz bem melhor do que eu, mas deixo a talhe de foice, que por esses tempos a CCaç 12, comandada brilhantemente pelo Cap. Bordalo, numa operação, salvo erro na zona do Xime, eliminaram em combate, (andei a escolher a palavra), o comandante da zona do PAIGC, Mário Mendes.

Quanto a ti meu caro comandante e amigo Mário Beja Santos já to disse uma vez e volto a repetir:
Estou-me borrifando, (desculpa porque não é menos consideração por ti, que a tenho como sabes), para o Kissinger, Nixon, Marcelo Caetano e todos esses políticos que apenas falam do que julgam saber.
É curioso reparar que mesmo ao nível dos militares a diferença é abissal nas opiniões sobre este assunto da guerra perdida ou não militarmente:
Aqueles que nela mais se empenharam e participaram operacionalmente são da opinião que não estava perdida, aqueles que ocupavam outro tipo de posições e depois se voltaram mais para a política têm opinião contrária.
Já agora deixa-me dizer-te que Freire Antunes não é, nem de perto nem de longe, o oráculo fiel da guerra de África e que se percebe nalgumas entrevistas que a opinião dos entrevistados já vem influenciada pelas mudanças, em boa hora (repito em boa hora), ocorridas no país.

Como é mesmo o "motivo" do nosso blogue?

Não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti.

Sem mais palavras.
Apenas para confirmar aquilo que já sabes, ou seja, que as informações, os relatórios, nem sempre correspondiam à verdade, digo-te aqui que a história oficial da minha companhia do Xitole, relata a certa altura uma tentativa de "golpe de mão" ao quartel pelo PAIGC.
Como nunca tinha ouvido falar em tal coisa perguntei aos meus camaradas e amigos que tinham ficado no Xitole como tinha sido: ficaram tão admirados como eu!!!

"Por favor, não se insinue que os militares portugueses estiveram associados ao colapso."

Não, caro Mário, não insinuo nada disso, nem sei onde vais buscar tal ideia!
Afirmo pelo contrário, que não houve colapso nenhum e que a não existência desse colapso, ou derrota militar, se deveu, apesar de todas as dificuldades que tão bem enumeras, à incrível valentia, coragem, empenho e heroicidade dos soldados, furriéis e oficiais portugueses, na sua esmagadora maioria milicianos.

Quanto a este assunto, dou por terminada a minha intervenção, pois me parece que é polémica sem fim, a não ser que algo me faça por imperativo de consciência voltar à liça, com o respeito e amizade que todos me merecem.

Duas palavras finais neste já longo escrito para dizer que gostei do texto do José Belo, no qual me revejo em muitas coisas e que foi uma alegria poder vir a saber que fomos colegas de colégio, em Lisboa, embora ele mais adiantado, porque nasceu primeiro!
A outra para os textos do Carmo Vicente e apenas para dizer que são muito vivos e impressionantes, mas desculpem-me porque para a guerra do "nós somos bestiais, e os outros não prestam", já dei e não volto a dar.
Os Fuzileiros fogem, os Comandos descansam, a Força Aérea não voa, os oficiais não prestam e a tropa do "arre-macho" é uma desgraça, apenas os Pára-quedistas se safam no meio disto tudo!

Termino como comecei, ou seja, com as emoções à "flor da pele", para dizer que tenho os braços do tamanho do mundo e que nunca os fecharei a ninguém, porque todos neles cabem, como eu acredito que caibo nos braços de todos.

Abraço camarigo do

Joaquim Mexia Alves
__________

Notas:

1. Adapatação do texto da responsabilidade de vb;

2. Mensagem perdida e recuperada graças ao Joaquim Mexia Alves;

2. vd. artigos relacionados em:30 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3002: A Guerra estava militarmente perdida? (23). Comentário do Cor Amaro Bernardo.

Guiné 63/74 - P3041: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (6): O cabaço da bajuda

Foto 1 > Soldados da Milícia de Mampatá

Foto 2 > A Ádada, mulher do régulo Suleimane


Foto 3 > O Aliu Baldé
Foto 4 > A mulher do régulo Shambel de Contabane, mãe do Suleimane
Foto 5 > Nobia na tem kabaço. Manga de ronco Fotos e legendas: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.


1. Publicamos hoje mais umas Notas Soltas do nosso camarada José Teixeira, ainda a propósito da sua ida à Guiné-Bissau, por altura do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008).

2. O Cabaço da Bajuda. 

Por José Teixeira 

 Na minha recente peregrinação à Guiné-Bissau, fui visitar um velho amigo de Mampatá, agora régulo em Sinchã-Shambel – Saltinho. O Suleimane Shambel é filho do falecido régulo de Contabane, tabanca assaltada e queimada pelo IN em 22 de Julho de 1968. 

Parte de uma Companhia operacional que lá estava estacionada, regressou em 24 de Junho do mesmo ano a Aldeia Formosa com a roupa que tinham aquando o ataque, tal foi a violência do mesmo. O régulo Shambel fixou-se em Aldeia Formosa. A população dividiu-se entre Aldeia Formosa e Saltinho, até ser reagrupada em Sinchã-Shambel. 

O meu amigo Suleimane fixou-se em Mampatá, integrando o Pelotão de Caçadores Nativos (Milícia local), tendo casado com a Ádada (*), filha do régulo local, Aliu Baldé. 

 Aí convivemos durante seis meses. Agora voltámo-nos a encontrar, para reviver velhos tempos. Sentado num trepo (banco de três pernas) conversávamos os três animadamente, recordando outros tempos, recordando amigos(as), alguns vivos e localizáveis, outros em lugar incerto e tantos que já partiram… 

 Eram cerca de três da tarde, quando se começa ouvir um burburinho, que se deslocava na nossa direcção. Um coro de vozes femininas a cantarolar em simultâneo com gritos e risos que reflectiam alegria e boa disposição. Poucos segundos depois, passa à nossa frente uma procissão de bajudas e jovens mulheres. Uma das da frente levava um pau tipo bandeira com um pequeno pano vermelho pendurado na ponta. A algazarra era enorme. As mulheres espreitavam e batiam palmas, os homens lançavam uns sorrisinhos marotos, face àquela festa. 

 Eu, embasbacado, perguntei: 

- Ádada, que festa é esta? 

 Ela com um sorriso malandro retorquiu: 

- Ontem houve casamento, grande ronco. A noiva ergueu-se agora da cama e mostrou o lençol com sangue. Bajuda na tem kabaço. É ronco, é festa. As outro bajudas estão a mostrar a população qui noiva na tem kabaço mesmo

- Até ontem! - Comentei. 

- Sim, hoje já não tem. 

- O lençol tinha sangue dela ou de alguma galinha que lá puseste. - disse eu com ar de malandro. 

 Uma gargalhada geral encerrou a conversa enquanto eu seguia com os olhos o grupo de mulheres que se deslocava tabanca fora na sua alegre cantilena. 

 Hoje recordo como foi diferente o casamento em Dezembro de 1968 da Mariama de Mampatá: 

 (i) Os preparativos, desde o pentear do cabelo que demorou horas; 

(ii) A chegada do noivo e sua comitiva, vindo de Aldeia Formosa; 

(iii) A festa contida pela necessidade de não se fazer demasiado barulho para não acordar o IN; 

(iv) O batuque que acabou ao escurecer para que o silêncio se impusesse e os ouvidos se concentrassem em possíveis ruídos ameaçadores; 

(v) A expectativa no dia seguinte em ver o lençol pintalgado de manchas vermelhas, sinal de que a Mariama ainda tinha kabaço. Cena de que fui delicadamente afastado por uma mulher grande. 

 Zé Teixeira

(*) Em escritos anteriores falei da alegria que senti quando a Ádada me reconheceu em 2005, 

altura da minha primeira visita à Guiné-Bissau no pós-guerra.

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  Nota de CV: 

 Vd. último poste da série de 7 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2816: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (5): Água, fonte de vida para as gentes de Cabedu