1. O nosso Camarada Belmiro Tavares, ex-Alf Mil da CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos em 20 de Janeiro último a seguinte mensagem. Os Adidos
Durante os mais de treze anos que durou a guerra do Ultramar (legalmente naquela época já não havia colónias) foram muitas as companhias ditas independentes que actuaram nos três T.O. – Angola, Moçambique e Guiné. Talvez não só por razões economicistas, mas também com o intuito de se conseguir uma melhor e mais efectiva coordenação de esforços, estas companhias, no terreno, adiam a um batalhão do qual passavam a depender operacional e administrativamente.
Estes adidos andavam inicialmente um pouco ao “Deus dará” sem saber de quem iriam depender e como iria ser a sua dependência. Se lhes calhava um batalhão com mais tempo de comissão, eles eram os maçaricos (mais tarde periquitos) e os “bombos” da festa; se os adidos eram já experientes, chamavam-lhes “velhotes” e ninguém acreditava no que tinham ou não tinham feito.
A conjuntura era diferente apenas quando a adida tinha uma estrutura consistente, porque era comandada por um capitão bem mais experiente e com muito mais conhecimentos, senhor do seu nariz, de “antes quebrar que torcer”. Este capitão, como diz o poeta “era mais para mandar que para mandado” e a sua companhia nunca se sentiria subjugada. Raramente isto acontecia ou porque o capitão “adido” não tinha as características atrás citadas ou porque, por questões de hierarquia, (que na tropa daquela época era extremamente rígida) se sentia atrofiado.
Assim a maioria dos adidos sentia na pele as consequências de serem simplesmente adidos (e também mal pagos).
O relacionamento entre as companhias do batalhão (uma CCS e três operacionais) e as “bastardas” nem sempre era o melhor, por vezes, nem sequer o desejável ou aceitável.
- De quem seria a culpa?
- Ora mais de uns; ora mais de outros; muitas vezes das duas partes. Na verdade “ninguém discute sozinho” como a minha mãe me dizia.
As “pegas” frequentemente aconteciam porque as unidades eram oriundas de “Armas” diferentes. Os oficiais de acordo com a “Arma” donde provinham pensavam e agiam cada um à sua maneira puxando cada qual a brasa à sua sardinha como se o objectivo de todos não fosse o mesmo e/ou não estivessem todos ao serviço do mesmo “patrão”.
Essas rivalidades, se não fossem intencionalmente maldosas, até podiam (deviam) ser salutares; bastava que cada um se esforçasse no sentido de trabalhar mais e melhor que o outro sem molestar ou atropelar quem quer que fosse.
Estas querelas iniciavam-se, por regra, entre os oficiais do quadro; os subalternos, sargentos e praças de cada companhia seguiam as pegadas do seu capitão e cada companhia passava a defender as cores do seu chefe.
O mais deplorável acontecia quando as desavenças iam para além da cor das “Armas” e se entrava no ataque (e defesa) pessoal ou de grupo. Uma companhia prejudicava intencionalmente, malèvolamente a unidade do lado (adida) apenas porque o capitão desta era doutra “Arma”, mais moderno e/ou mais “macio”. Assistia-se por vezes a pura perseguição e até atropelo.
Na base das desavenças havia por vezes muita inveja e/ou também aquela crise hepática tipo D.C. (leia-se “dor de corno”). Neste caso a convivência tornava-se insustentável, ou quase.
A minha companhia, a gloriosa CCaç 675, nasceu em Évora em Janeiro de 1964 e pisou solo guineense, pela primeira vez, em Maio do mesmo ano.
Depois de mes e meio em Bissau, nos fins de Junho, marchámos (navegámos no Cargueiro Alexandre da Silva) para Binta na margem direita do Cacheu, lá quase no extremo norte da Guiné; fomos adir ao BCav 490 com sede em Farim.
Este batalhão celebrizou-se na tristemente afamada “guerra do Como”, guerra inglória (como inglório foi o esforço e o sacrifício de todos nós); os seus soldados bateram-se ali galhardamente com grande abnegação, coragem e estoicismo em condições que, mesmo naquele tempo, podíamos considerar infra-humanas sobreviveram cerca de quatro meses com rações de combate tendo diariamente direito de uma sopa fornecida pelo “Vouga” que apoiava a operação. Apoio puramente teórico porque o navio não podia fazer fogo: já não se fabricava material daquele calibre... e o existente destinava-se apenas ao “ronco”.
Há pouco tempo encontrei-me com um coronel de Infantaria que tirou o curso de História. Contou-me que estava a elaborar uma obra sobre as mais célebres e significativas batalhas do nosso Exército desde a Fundação da Nacionalidade até aos nossos dias. Seleccionou três batalhas da Guerra do Ultramar – uma de cada T.O. da Guiné distinguiu aquela a que chamou “Batalha do Como”.
Sugeri que com mais precisão, lhe chamasse “batalha sem-fim” e expliquei as minhas razões. Já meti a foice em seara alheia e não era essa a minha intenção. Retomaremos o nosso rumo.
Durante o nosso primeiro mês de mato (Julho de 1964) as relações com o batalhão não foram as melhores... mas o caldo nunca chegou a entornar-se; houve como que um pequeno “ranger de dentes”, chamemos-lhe assim.
À frente do Batalhão estava o Ten Cor F. Cavaleiro, de Cavalaria; o Cap Tomé Pinto era de Infantaria; não se conheciam mas tratando-se de oficiais dignos, briosos, honestos, trabalhadores, valentes, corajosos, respeitavam-se mutuamente. Era essencial que assim fosse.
A primeira ordem que o comandante batalhão transmitiu à minha companhia foi, como segue: -“Antes de mais reabrir a estrada Binta/Farim”.
O Capitão Tomé Pinto adiou o cumprimento daquela ordem por cerca de um mês – eis a razão do tal desaguisado. Não quero nem aceito que alguém pense que o Cap Tomé Pinto adiou o cumprimento daquela ordem (sem nunca o manifestar) pelo mero prazer de desobedecer. Não era (não é) Homem para brincar às guerras nem às escondidas.
Como escrevi em texto anterior o Cap Tomé Pinto sabia de guerrilha bem mais que a maioria dos capitães daquele tempo. Ele sabia que, antes de retirar as abatises e utilizar aquela via, era primordial “afugentar” o inimigo para bem longe dali para que não pudesse abeirar-se facilmente da estrada incomodando-nos com tiros e/ou novas abatises. Por outro lado, o Cap Tomé Pinto, sendo um transmontano puro, era rijo como aço, persistente (quase teimoso – peço perdão) sempre disposto a enfrentar e ultrapassar obstáculos que pudessem de qualquer modo prejudicar os seus comandados. Ele era mais que ninguém o tal “Homem dum só parecer, dum só rosto e duma só Fé d’antes quebrar que torcer...!!” Como escreveu o poeta.
Antes da nossa entrada na quadrícula, a CCav 487 tentou várias vezes desobstruir aquela estrada mas sem sucesso. Retiravam umas tantas pesadas abatises; sofriam algumas emboscadas mais ou menos perigosas e quando regressavam ao quartel já havia novas árvores a entupir a estrada - era jogo do gato e do rato -.
Reabrimos a dita estrada no dia 2 de Agosto de 1964; retirámos todas as abatises excepto numa – ver foto – porque não impedia a passagem das viaturas; parecia um viaduto. O inimigo, talvez por razões ambientalistas, não cortou outras árvores para aquela estrada.
Durante cerca de dois anos houve ali apenas numa emboscada... mas essa foi da nossa autoria: desbaratámos os últimos resistentes (defensores) do corredor Sanjalo/Canicó; eles foram atraídos à “zona de morte” e até houve luta corpo-a-corpo entre o nosso Manuel Castro, soldado nº 2146 e um combatente africano: a coragem e a força quase sobre-humana do Castro desequilibraram a favor das NT.
A partir daquela data o nosso relacionamento com o batalhão 490 não podia ser melhor; tudo rolava sobre esferas; não houve mais atritos.
Numa época em que muitas unidades quase não saíam ou não conseguiam sair dos quartéis, a CCaç 675, devido a uma actividade sem par desalojou o inimigo, afugentando-o da zona. Para que tal fosse possível calcorreámos intensamente o nosso território, dando milhões de passos em todas as direcções. Só assim, ao fim de quinze meses, podíamos afirmar com toda a verdade que havia pegadas nossas (só nossas) em todos os recantos da zona. Se alguém aterrasse no local mais recôndito da nossa zona, (20 x 20 Km) nós podíamos garantir que no mínimo a 50 m desse local já tínhamos passado.
Alem disso recuperámos a população que se tinha refugiado no Senegal e construímos de raiz dois grandes aldeamentos em Guidage e em Binta – a Vila Tomé Pinto; proporcionámos àquela gente condições de vida, de trabalho, segurança e confiança no futuro com que nunca antes tinham sonhado.
Rasgámos ruas perpendiculares (à Marquês de pombal), edificaram-se moranças, abriu-se uma CREB (circular Regional Exterior de Binta); Os jovens aprenderam instrução militar e faziam a auto defesa da povoação. Construímos duas pistas de aterragem, uma igreja, um posto de socorros para nativos e uma escola; os miúdos (alunos da escola) cantavam “a Portuguesa” enquanto se hasteava ou arreava a Bandeira.
Conseguimos sementes (muitas sementes) graças ao apoio prestimoso e extraordinário do Sr. Governador da Guiné, Gen. Schultz; em suma: os nativos passaram a usufruir de pão, paz, instrução, saúde e segurança. Por tudo isto – e por muito mais que não cabe em poucas linhas – a CCaç 675 foi louvada colectivamente pelo Comdt do Batalhão 490, Ten Cor F. Cavaleiro.
Soube recentemente que este oficial comentou, na época, que sentia uma grande mágoa porque a melhor companhia do batalhão não pertencia ao batalhão: era uma adida – era a CCaç675.
Um dia Ten Cor Cavaleiro apareceu de surpresa no nosso aquartelamento: pretendia visitar os militares destacados em Guidage, um posto fronteiriço defendido por um pelotão reforçado por alguns militares africanos.
Este vosso escriba foi incumbido de o escoltar; Nunca tal me tinha acontecido.
Eu era um alferes “imberbe e loiro” e não sabia se tinha de proceder a qualquer diligência especial; nunca tinha ido para o mato na companhia dum oficial superior.
Passou-me pela cabeça pedir apoio ao capitão mas faltou coragem.
- O Ten Cor – Conjecturei eu – não vai comandar o meu pelotão porque... o grupo é meu; além disso oficial superior não desce a este nível.
- Seja o que Deus quiser, segredei eu aos meus botões.
À hora pré-determinada, os meus soldados, ainda ensonados aproximavam-se das viaturas; apareceu o nosso Ten. Coronel e perguntou em voz alta.
- Oh nosso Alferes! Qual é a minha viatura?
Com alívio senti que o nó estava a desfazer-se.
- O meu Coronel não vai na primeira nem na última! Pode escolher uma das restantes.
- Se houver uma emboscada qual é o meu papel?
- Como o meu coronel nunca actuou connosco, o melhor, portanto, é meter-se debaixo da viatura e aguardar; nós tratamos do assunto!
Ele não retorquiu... mas eu sei (sabia) que ele não era homem para se esconder debaixo da viatura. Sei que um dia um pleno mato, debaixo de grande tiroteio, ele ordenou a um capitão que se levantasse do solo porque “está a falar com o seu comandante”; o Ten. Coronel, debaixo de fogo intenso, mantinha-se de pé, dando ordens – ousadia e temeridade.
Mais um problema resolvido, pensei sozinho.
Não houve complicações no itinerário o qual nós conhecíamos bem de mais.
O BCav 490 concluiu a comissão... para mal dos nossos pecados; não imaginávamos o que viria a seguir.
Em 1965, em Maio ou Junho, entrou na zona o BArt 733; a CCS e uma companhia operacional instalaram-se em Farim; as outras rumaram a Jumbembem e Cuntima (colina do norte).
Eu tinha na cabeça que a companhia de Farim era a do Ten Azevedo mas um companheiro tertuliano corrigiu-me e certamente com razão. Isto, porém, em nada altera o que vou narrar. Em causa está apenas o Sr. Azevedo.
Poucos meses depois de entrar na zona, o Ten Azevedo era promovido a Capitão – nada de anormal. Pouco tempo depois, o já capitão foi promovido a major passando a 2º comandante do batalhão. Com a saída do Ten Cor Glória Alves (num velho ídolo do atletismo do Benfica), o nóvel major Azevedo passou a comandar interinamente o batalhão. Que grande cavalgada! E era de artilharia!
Um dia, no colégio militar, falei desta ascensão meteórica e nada usual a um grupo de oficiais; um capitão, provocando gargalhada geral, comentou:
- Mas a mulher dele era cá uma brasa!
No consulado do Ten Cor Glória Alves houve um óptimo entendimento entre as partes; a nossa actividade operacional foi abrandando lentamente (era humanamente impossível manter o ritmo intenso dos primeiros 13/16 meses) mas nunca descurando ou negligenciando a vigilância e a segurança; os patrulhamentos, embora perdendo alguma intensidade, mantinham-se a um ritmo que causava inveja a muita tropa com bastante menos tempo de mato que nós. A nossa zona continuou a ser patrulhada palmilhada de lés-a-lés. Seria muito perigoso para nós e uma grande perda de prestígio se “alguém” reocupasse as posições perdidas na nossa zona.
Por tudo quanto continuávamos a operar com grande esforço, coragem e sacrifício (no mato e no apoio à população recuperada) a CCaç 675 foi comtemplada com mais um louvor colectivo – prova evidente que o nosso trabalho continuava a ser meritório e era reconhecido. Este louvor, porém, engasgou alguém provocando-lhe a tal “complicação hepática” de que atrás se falou.
O pelotão de morteiros 980 viajou connosco no navio Uige na ida e na volta.
Como nós, esteve também adido no BCav 490 de inicio e ao BArt 733 na fase final.
Este pelotão entrava na escala de saídas com os grupos da companhia de Farim. Enquanto o “980” procedia, por exemplo, a uma distribuição de géneros a Junbembem e Cuntima, tarefa complicada, um pelotão patrulhava Mato Grosso, outro fazia uma batida em Mato Cão e o 3º recolhia lenha para as cozinhas. Quando o “980” regressava à base, estava de novo no topo da escala. A fava ia saindo sempre ao mesmo!
Devemos deixar aqui bem claro que um dos “matos” atrás citados situava-se no fim da pista de aterragem e o outro atrás do quartel da 1ª CC.
No fim de Setembro o cap Tomé Pinto foi chamado a frequentar o curso do E.M. O Ten Cruz que comandara por algum tempo o “980”, depois de algumas “andanças” veio comandar a CCaç 675.
Como nós tínhamos conhecimento do que se havia passado em Farim acordámos com o novo comandante da CCaç 675 que ele não iria a Farim receber ordens, ficando essa missão destinada a um dos subalternos. Esta missão, pelo menos duas vezes, coube ao autor destas linhas.
Da primeira vez fui recebido pelo Sr. Major Azevedo que, aparentemente, com um sorriso sarcástico nos lábios (digo eu), comunicou, ter sido informado pela F.A. que a 3/4Km de Binta, na mata entre o rio Cacheu e a estrada de Bigene, havia um acampamento de, aproximadamente, 200 casas de mato – impunha como missão a “sua urgente destruição”.
Lamentei que se pretendesse fazer crer que havia inimigos onde eles não estavam nem ousariam, sequer, pensar nisso. Informei que, dois dias antes, em próprio havia patrulhado aquela zona até para além da Bolanha de Sansancutoto sem encontrar qualquer vestígio de ocupação ou passagem. Duzentas casas de mato albergariam perto de um milhar de pessoas que, necessariamente, se deslocariam na mata abrindo trilhos cada vez mais vincados. O Sr Major Azevedo sugeriu que “baptizasse” aquela “operação” e fizesse um relatório circunstanciado da mesma.
Recusei! Tratava-se apenas de mais numa patrulha rotineira.
O Sr Major não desarmava. Caia-lhe a matar que houvesse um acampamento mesmo nas barbas da CCaç 675.
Sugeri que a F.A. enviasse a Binta o piloto “descobridor” e com ele sobrevoaríamos a zona; neste ponto houve acordo e foi enviada uma mensagem urgente à F.A. Minutos depois chegou a resposta... absolutamente lacónica: “houve erro de coordenadas”!
O Sr. Major ficou sem cor e perdeu o pio.
Da 2ª vez que fui a Farim receber uma ordem operacional, o caldo entornou-se... azedou quase completamente. Agora a nova (má nova) provinha de informadores indígenas: - há um acampamento na região de Sanjalo; detectem-no e destruam-no urgentemente.
Aleguei:
- Do nosso lado não há qualquer acampamento; se existe, está na zona da Companhia de Farim.
O Sr. Major defendia dispor de informações absolutamente seguras e propôs que pernoitássemos em Guidage e atacássemos a zona de norte para sul, porque eles “tinham sentinelas do lado do Senegal”.
Senti que a situação era absolutamente ridícula.
- Se há sentinelas do lado do Senegal (o que considero nada fiável) nunca atacaremos por esse lado; o Cap Tomé Pinto ensinou-nos que devemos evitar sempre os sentinelas!
O Sr Major levou as mãos rapidamente ao estômago porque, ouvir falar do Cap Tomé Pinto, causava-lhe uma azia insuportável.
Depois de longa discussão (altercação) por vezes em tom acalorado ou mesmo exaltado, concordei que faríamos uma “batida” naquela zona (será mais uma!) mas quando e como nós decidíssemos.
Fui ameaçado com prisão; respondi que preferia a prisão ao suicídio.
Por fim, com grande relutância, a minha proposta foi aceite.
A operação – que “baptizámos” de “centrífuga” – realizou-se e o tal acampamento foi destruído... mas ficava na zona da companhia de Farim.
Esta acção foi por mim descrita em texto anterior intitulado Disciplina – parte II – salvo pelo capacete. É inútil repeti-la aqui.
O fim da nossa comissão aproximava-se... com grande lentidão! Deu azo a que surgisse mais um grave e inesperado obstáculo – (era só mais um!)
Desta vez o Alf. Santos – António Duarte dos Santos, um algarvio de gema, natural de Alferce – foi a Farim saber com que linhas nos “queriam coser”.
A CCaç 675 foi “delicadamente” convidada a operar na península de Sambuia, onde a base mais poderosa a norte do Cacheu, continuava a provocar estragos sérios e frequentes.
Em 5 de Janeiro de 1965 nós destruímos todas as moranças e muitas casas de mato em toda a península. Encurralámos o in no canto sudeste (junção do rio Malibolon com o Cacheu) mas devido ao tremendo acidente com pelotão de morteiros 980 (7 ou 8 soldados afogaram-se nas infernais águas cinzentas do Cacheu) a ponte de Malibolon não foi defendida como planeado e o inimigo escapou por ali. Ninguém deu continuidade à nossa actuação... e a base continuou lá – não se elimina uma base por decreto!
A zona era portanto nossa conhecida mas quando por lá “passeámos” a situação era totalmente diferente: a nossa força física e anímica estavam no auge; não temíamos obstáculos e nada nos impedia de atingir qualquer objectivo mesmo fora do nosso terreno quer fosse em Sambuiá ou no tão badalado Oio... mas à beira do fim da comissão já não podíamos, como soe dizer-se, com uma gata pelo rabo – dependia da gata!
Ordem de operações: destruir Sambuiá! A CCaç 675 desloca-se em viaturas, passa por Guidage e bate o terreno de norte para sul; a companhia de Farim viaja num navio de guerra (vedeta), desembarca e ataca de sul para norte.
O Alf Santos argumentou:
- Em Binta há apenas 2 Gr Comb mas metade do pessoal está no HMP a fazer desparasitização intestinal; o quartel não pode ficar desamparado e as viaturas têm de ser protegidas. Assim não é possível reunir sequer um Grupo de Combate para actuar na perigosa zona de Sambuiá.
Resposta do Comdt interino do batalhão;
- Tanto quanto sei em Binta está uma companhia; não há motivo válido para não participarem na destruição daquela base.
- No papel, na verdade, em Binta estará uma companhia: um Gr Comb permanece em Guidage; o efectivo equivalente a um pelotão está internado no HMP; retirando pessoal para a defesa do quartel e das viaturas, iremos a Sambuiá apenas com um pelotão reduzido, o que me parece uma loucura... fatídica!
Mais uma vez a força dos galões venceu!
No entanto o Sr Major deve ter sentido um peso na consciência (será que a tinha?!) e enviou cerca 40 milícias para defesa do quartel e protecção das viaturas enquanto as NT actuavam sobre o objectivo.
A CCaç 675 conseguiu reunir um Gr Comb com dois alferes... mas faltava um furriel. O nosso amigo Jero, sendo furriel enfermeiro, esqueceu a seringa por umas horas e, substituindo-a pela G3, comandou com grande eficácia e muita perícia uma secção de atiradores: das tripas fez-se coração!
A companhia de Farim, cujo lema era "audazes, corajosos, valorosos" (não me recordo se era exactamente assim), desembarcou no local previsto, avançou sem dificuldade em direcção ao objectivo (que teoricamente já não existia) até que... de repente, foram não só impedidos de progredir como se viram logo obrigados a retroceder “velozmente” em direcção ao Cacheu; foram tão “velozes” que chegaram ao navio bem antes da hora prevista. Para que conseguissem reembarcar, o pessoal da vedeta teve de fazer fogo farto com metralhadoras e “peças” de 4,5cm.
Ficou provado que Sambuiá não era local para brinca às guerras ou fazer exibições sem sentido e desconexadas.
Quero realçar que não nos movia (em nove) qualquer animosidade ou ressentimento contra os militares do BArt 733; Porém ainda hoje sentimos um quase “ódio de estimação” quando falamos do tenente/capitão/Major Azevedo! No entanto se ele não existisse, eu não escreveria esta crónica!
Mas vai mais uma... mais hilariante. Não cito aqui a estória cómica dos “ananases” do régulo de Canicó, (alferes de 2ª linha Mamadu Baldé, irmão do nosso malogrado guia Baldé, abatido no assalto a Cansenha), porque esta “estória” foi tratada com muita arte e engenho pelo companheiro Jero no seu livro “Golpes de Mão’s”.
O BArt 733 organizou campeonato de “pontapé na bola” entre as companhias do batalhão. A CCaç 675 não foi convidada a participar – não por ser adida, claro – mas talvez porque, em jogo amigável, venceu a companhia do batalhão a qual estaria antecipadamente destinada a ganhar a prova.
O pelotão de morteiros 980, sendo adido como nós, participou e discutiu campeonato palmo a palmo. O último jogo era uma autêntica final: quem ganhasse era campeão. O “980” venceu por 1 a 0 e festejou a vitória; os vencidos... no terreno, porém, não aceitaram a derrota; recorreram às altas esferas desportivas do Batalhão e “ganharam”... na secretaria, alegando que o adversário (adido) fez alinhar, na guarda da sua baliza, um atleta que não pertencia de raiz aos seus quadros.
Na verdade o guarda-redes que defendeu as cores do 980 era também adido (adido ao adido) enquanto aguardava transporte para Bissau.
Este “adido”, de seu nome completo Fernando Marques da Silva, Sold At nº 2575 fez uma exibição dita de outra galáxia (não é exagero!)... defendeu até uma grande penalidade!
Logo os “três grandes” da nossa praça quiseram contratá-lo mas ele borrifou-se nos milhões que lhe ofereceram... e ainda hoje, com muita honra, veste a camisola da gloriosa CCaç 675.
O comandante interino puniu com derrota (no papel) a equipa considerada fraudulenta e a companhia pré-destinada a vencer... cantou de galo.
Inspirando-se nestes factos, alguns dos então futuros e honrados dirigentes desportivos nacionais também se dedicaram a semelhantes tropelias como é do conhecimento geral.
Quanto vale um mau exemplo?
Um bom exemplo vale mais que mil palavras!
Um mau exemplo... vale tudo!
Belmiro Tavares
Ten Mil da CAÇ 675
Fotos: © Belmiro Tavares (2010). Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:
Vd. último poste desta série de 17 de Setembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7001: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (3): A(s) Disciplina(s): Ser ou não ser... disciplinado, eis a questão