quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7716: Agenda cultural (105): 50 Anos do Início da Guerra do Ultramar. Entrevistas no JN de 6 de Fevereiro de 2011 (Casimiro Carvalho)

1. O nosso Camarada José Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350 - 1972/74 -, e dos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11) - Gadamael, Guileje, Nhacra, Paúnca, alerta-nos para a leitura de várias entrevistas que serão publicadas na edição do Jornal de Notícias, do próximo dia 6 de Fevereiro de 2011:

Camaradas,

Três jornalistas do Jornal de Notícias (JN) deslocaram-se a minha casa, onde me entrevistaram durante mais de uma hora acerca do tema Guerra do ultramar, a propósito do 50º aniversário da data do seu início em Angola.

No meio da conversa acabei por convencê-los a aparecerem na Tabanca de Matosinhos, ontem 4ª feira – dia 2 de Fevereiro -, para que eles vissem e sentissem a camaradagem, animação e alegria que são apanágio dos os nossos habituais almoços/convívios.

Eles apareceram, almoçaram, conviveram connosco e recolheram mais alguns depoimentos entre a malta presente.

Ainda não sei quando é que vai sair no “JN online” um documentário filmado que eles gravaram.

Sei e comunico aos interessados, que as entrevistas vão ser publicadas na edição do próximo dia 6 de Fevereiro (domingo).

Um abraço,

José Carvalho

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350 e CCAÇ 11
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

1 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7705: Agenda cultural (104): 50 Anos do Início da Guerra Colonial. ANGOLA61. Guerra Colonial: Causas e Consequências (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7715: Notas de leitura (198): Repórter de Guerra, de Luís Castro (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Se o repórter é aquele que não vira a cara ao risco e vai desarmando entre os combatentes até à linha de fogo e trabalha com paixão, procurando informar com o recurso adequado da imagem eloquente, Luís Castro é um sortudo, não lhe escapa, no vórtice desses momentos de conflito, a ousadia e a têmpera para ir mais longe e chegar primeiro que todos os outros. Por isso as suas reportagens são tão peculiares, verdadeiros exclusivos para quem contempla o seu trabalho em frente do ecrã.
Como os acontecimentos que ele registou na Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Um extraordinário repórter de guerra na Guiné-Bissau

Beja Santos

“Não escolhi palavras bonitas para embelezar o texto. É meramente factual. O que aqui está, aconteceu. Mesmo. Sou contra as fantasias”. É assim que Luís Castro, jornalista da RTP e que ao serviço desta estação já cobriu um número considerável de guerras ou situações de conflito, com destaque para o Iraque, Afeganistão, Angola e Timor, apresenta “Repórter de Guerra”, um livro de oiro da reportagem (“Repórter de Guerra”, por Luís Castro, Oficina do Livro, 2007). Vamos circunscrever a recensão obviamente ao que se passou na Guiné-Bissau em acontecimentos que ele viveu entre 1998 e 2003. Acerca do que escreve, ele prepara-nos da seguinte maneira: “Pela primeira vez na história da televisão portuguesa, uma equipa da RTP viu como se prepara um golpe de Estado, acompanhou os bastidores nos dias que o antecederam e procederam, conheceu os intervenientes directos e indirectos e sentiu os anseios, medos, pressões, ameaças e ambições. Mas compreender o que foi a guerra civil na Guiné-Bissau é necessário saber como tudo começou em 1998, quando Ansumane Mané se revoltou contra o presidente Nino Vieira”.

Chegam as primeiras notícias de que está em curso um golpe de Estado na Guiné-Bissau, estamos em 1998. Tudo parece surpreendente, para quem nada conhece os antecedentes da história: Nino vem a público acusar Ansumane Mané de contrabandear armas para os guerrilheiros que lutam pela independência de Casamansa, nessa alocução pública pede ajuda aos países vizinhos. Os países vizinhos enviam tropas e armamento, respondem assim ao apelo do Kabi. Só que a situação se vai agravar, Bissau transforma-se numa cidade caótica, brancos, pretos e mestiços o que querem é fugir. Correspondendo ao apelo da RTP, Luís Castro parte para Dakar e daqui para Bissau. Vai acompanhado de Hélder Oliveira, considerado um dos melhores repórteres de imagem da RTP. A bordo da fragata Vasco da Gama vão começando a filmar: os clarões dos bombardeamentos, depois os fuzileiros a trazer nos botes os fugitivos. Quando a fragata atraca em Bissau, Luís Castro lança-se ao trabalho em que ganhou esporas: vai captar imagens no centro do vulcão. Nino está sentado nas escadas do seu palácio, isto quando as ruas de Bissau estão quase desertas. Um religioso muçulmano leva a equipa de reportagem ao encontro dos rebeldes encapuçados por Ansumane Mané. É nessa viagem sob um calor infernal que o repórter conhece o major Manuel Melcíades ou Manuel Mina. É a primeira entrevista dos revoltosos:

“- Quais são as áreas que controlam?

- Todo o país. O Governo não tem tropa. Só soldados do Senegal, de Conacri e alguns franceses. Os nossos estão todos deste lado. Agora lutamos contra franceses, senegaleses e conacris.

- Vão avançar sobre Bissau?

- Não é difícil entrar em Bissau! Temos 10 tanques blindados, daqueles com lagartas e canhão. Podemos entrar a qualquer hora. O problema é a população.

- Aceitam negociações?

- As negociações dependem deles!”.

O repórter está radiante, até apanhou o Hélder enterrado no tarrafo. Nino e os seus acólitos não gostaram da sua reportagem. Depois voltam para conversar com os rebeldes, desta vez na base aérea onde está montado o Comando Supremo da Junta Militar. Ansumane não aceita entrevistas, filma-se o passaporte, imagem que a RTP irá divulgar através da Eurovisão. O repórter regista conversas com sabor a tragédia e comédia. Vão à Rádio Bombolom, é por este meio que os guineenses vão conhecendo o desenvolvimento da guerra, o Manuel Mina vai intoxicando com contra-informação as forças leais a Nino, faz bluff, há muita gente que passa para o lado de Ansumane com medo de ser acusado de traição. Filmam-se depois os soldados senegaleses mortos na linha de combate, afinal as forças internacionais vão sendo destruídas por esses velhos guerrilheiros que conhecem o terreno a palmo e que põem tropas bem equipadas fora de combate. É um quotidiano efervescente, o repórter procura todos os eventos de caixa alta e obtém-nos miraculosamente. É o caso da entrevista com Ansumane Mané, e depois quando este vai encontrar-se com Jaime Gama e Venâncio Moura, a delegação de mediação da CPLP. Aos poucos, o repórter obtém entrevistas que são peças históricas da Guiné-Bissau. Luís Castro volta à Guiné em 1999, no exacto momento em que as forças que apoiam Nino capitulam, ele foge, o povo festeja aquilo a que se chamou a terceira independência, o pessoal da Junta Militar leva o repórter a visitar os prisioneiros de guerra: “Há desde ministros, membros do governo, colaboradores de Nino, comandantes militares, oficiais superiores e simples soldados.

Amontoam-se vinte e tal em pouco mais de dez metros quadrados. Os que não têm espaço cá em baixo penduram-se nas grades das janelas. O cheiro é nauseabundo e os prisioneiros escondem a cara quando se abrem as portas das celas e nos vêm. Entrevisto um que diz ter sido fiel até ao último dia. «Foi o destino», remata”. Acabou a guerra mas o Telejornal tem que ser alimentado. Luís Castro vai à procura de histórias, começa pelas atrocidades de Nino, as falsas intentonas de golpes de Estado e as vítimas das suas câmaras de torturas. Recolhe depoimentos de coronéis e tenentes-coronéis: “Davam-me bocadinhos de comida e água com sal. Durante nove meses não sai da cela para apanhar sol. Espancaram-me até me julgarem morto”, ou “Taparam-me o rosto com um pano, meteram-me fios eléctricos nas mãos e nos pés e ligaram a corrente” ou “Eu tenho um problema de fecundidade. Dera-me choques nos testículos. Nem os colonizadores portugueses fizeram este tipo de tortura”.

Em 2003, Luís Castro cobre o golpe de Estado que afasta Kumba Ialá da presidência da República. Nem Kafka se lembraria de criar esta atmosfera. O golpe é programado por militares, tem hora e lugar preestabelecidos. É um momento extraordinário da história da reportagem escrita em português. Kumba Ialá está sorridente, conversa descontraído com os homens do golpe que o acabou de depor. Kumba ignora o que aconteceu, ri a bandeiras despregadas. É tudo tão surreal que quando os golpistas lhe perguntam: “Quer ficar aqui, no quartel-general ou ir para casa?”, Kumba respondeu: “Prefiro ir para casa, estou cansado”. Forma-se uma coluna militar e levam-no. Quando viu que estava a ser levado para casa, perguntou a um dos seus oficiais: “Para onde vamos? Eu quero ir para a Presidência.”. Seguiu-se um diálogo hilariante: “Não podes”. “Mas não posso porquê?”. “Porque houve um golpe.”. “Um quê?”. “Um golpe de Estado”. “Contra quem?”. “Contra ti”. “Contra mim?”. “Sim. E já não és Presidente!”. “Então quem é?”. “É o Veríssimo”. “O Veríssimo?”. “Sim, o Veríssimo. Tu já não mandas!”. “Ai o filho da puta, cabrão, vou matar-te!”. Foi preciso metê-lo à força dentro de casa.

Claro que a história não acabou aqui. A 6 de Outubro de 2004, militares com patentes inferiores a major assassinaram o general Veríssimo Correia Seabra. Só não conseguiram eliminar todo o Estado-Maior porque os restantes se esconderam na Embaixada Portuguesa. Não se pode entender o poder dos militares na Guiné-Bissau nos dias de hoje, como permanecem intocáveis no seu golpismo, traficando cocaína e numa total impunidade, sem ir atrás e perceber como a partir de 1980 Nino pregou uma grande partida ao poder político e deixou os militares a funcionar com leis arbitrárias e a rirem-se das eleições livres.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7704: Notas de leitura (197): Ordem Para Matar, de Queba Sambu (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7714: Blogoterapia (175): O Regresso, ou quem nos quer ainda ouvir (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 31 de Janeiro de 2011:

Meus camarigos editores
E assim de repente lembrei-me de uma conversa que tive em Lisboa, passados uns tempos de ter chegado da Guiné.
E então escrevi isto a que posso chamar um Conto com Toques de Verdade!

Fica á vosa disposição como sempre.

Um abraço amigo do
Joaquim


O REGRESSO

O homem sentado ao seu lado, ao balcão daquela cervejaria, olhava para ele com uma expressão entre o incrédulo e o trocista.
Há algumas horas que estavam ali sentados, bebendo cervejas atrás de cervejas, e conversando.
Não se conheciam de antes daquele dia, mas o facto de estarem os dois numa tarde de semana sentados ao balcão de uma cervejaria, tinha levado, depois de alguns apartes, ao início de uma conversa sobre tudo e mais alguma coisa e como não podia deixar de ser, ao estado do país.

Destacamento de Mato Cão  > O nome condiz com as instalações

Indubitavelmente a guerra do Ultramar veio à conversa e, perante os comentários errados e ignorantes daquele que estava ao seu lado sobre o assunto, ele decidiu dizer-lhe que tinha regressado há escassas semanas da Guiné, onde terminara uma comissão militar de 24 meses.

Ou pelas expressões do outro, ou pelas cervejas já bebidas, ou por uma necessidade interior de contar o que tinha visto e vivido, (pois que à família e amigos lhe era difícil falar do assunto), deu por si a relatar as operações, as emboscadas, as colunas, as minas, as coragens e os medos porque tinha passado e estavam tão vividas e sentidas em si.

As palavras saíam-lhe em catadupa, e parecia que estava a falar mais para si do que para o outro, que o escutava, por vezes entediado e outras poucas vezes, interessado.

De vez em quando uma frase desgarrada do outro, tal como, “isso é impossível”, ou “foi mesmo assim?”, levavam-no a quase parar a sua narrativa, mas a verdade é que ele ansiava por falar sobre a guerra, e um desconhecido era o interlocutor ideal para o ouvir.

As cervejas iam sendo colocadas no balcão e bebidas, e agora era ele quem as pagava, porque o outro tinha feito menção de se ir embora e ele não queria ficar ali sozinho a remoer nas suas recordações e sobretudo não queria perder aquele momento de contar a sua guerra, sobretudo a si próprio.

Que faço eu aqui?

Parecia-lhe que à medida que ia contando os factos, eles deixavam de fazer tanta mossa nos seus sentimentos, e embora sentisse que tudo aquilo o tinha marcado e continuava a marcar por muito tempo, percebia um certo alívio em libertar-se de algum modo daquelas memórias dolorosas.

Percebia que o outro o olhava de um modo estranho, às vezes quase com medo, mas ele ia-o tranquilizando com expressões mais calmas e sobretudo com mais uma cerveja.

Sucediam-se as emboscadas, as colunas, o medo, o anseio sentido ao levantar esta ou aquela mina.
Queria expressar as dificuldades, a sede, o medo do desconhecido, os sons da mata e os cheiros das bolanhas, mas as palavras pareciam-lhe poucas e sobretudo sem exprimirem verdadeiramente aquilo que ele tinha sentido e ainda sentia.

Falava-lhe já dos soldados africanos que com ele tinham combatido e sentia-os próximos, sentia uma saudade inexplicável daquelas noites no planalto, à luz da vela, tentando perscrutar para além do negro da mata que os rodeava.

A única coisa que naquele momento o ligava àquele balcão era a cerveja e a sua presença física, porque tudo o resto que era o seu ser, se tinha transportado para a Guiné.

Falava de rajada, as palavras lançadas para a frente como facas, a incompreensão das vidas ceifadas tão novas, misturadas com uma noção de dever ainda tão arreigada, mas sobretudo o pensamento de que estava a falar para nada, que estava a falar para ninguém, porque afinal ninguém queria ouvir o que estava a contar.

Primeiro porque pela expressão do outro, percebia a incredulidade com que o ouvia, pois deveria parecer-lhe que ele estava a descrever um qualquer filme americano de guerra.

Um Oficial do Exército Português em pleno uso das suas faculdades mentais. Até o Dick prefere ignorar, olhando para o lado.

Depois, porque percebia também que o outro não queria ser incomodado com algo que podia ser verdade, muito verdade, e se assim fosse teria de ser objecto de uma reflexão que ele, o outro, não queria fazer.

Era essa a sensação que tinha desde que tinha regressado da Guiné!
Os que por aqui estavam e viviam as suas vidinhas, não queriam saber!
Tinha regressado bem? Estava vivo?
Ainda bem! Mas agora escusava de vir contar histórias de uma guerra longe, muito longe, que não tinha nada que vir afectar as suas vidas.

Por um lado as palavras sobre a guerra saíam da sua boca, mas por outro lado o pensamento insistente de que estava a dar uma seca ao outro, que não queria acreditar no que contava, que não queria incomodar-se com guerra nenhuma, cada vez mais era premente na sua cabeça.

De repente calou-se e olhando para o outro perguntou:

- Você não acredita em nada disto pois não?

O outro abriu um sorriso, e numa expressão amigável disse:

- Eu logo vi que o amigo estava a brincar! Mas gaita que você tem cá uma imaginação!

Olhou-o então nos olhos e disse-lhe em tom pausado, mas firme:

- Também eu pensava assim quando lá cheguei, e até ouvir e sentir os primeiros tiros a passarem ao meu lado. Só então tomei consciência que aquilo era uma guerra onde morria gente. Não se preocupe com isso, e vamos beber outra cerveja.

Num instante olhou para o lado contrário, para que o outro não visse a lágrima teimosa que lhe rolou pela cara abaixo.

Estava no seu país, e ninguém o conhecia, ninguém queria saber o que tinha passado.
Era um estranho na sua própria casa!

Monte Real, 31 de Janeiro de 2011
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7592: Blogpoesia (105): P'rá vala, p'ra vala (Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7712: Blogoterapia (174): Posso decepcionar os amigos, mas não os camarigos (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P7713: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (55): Na Kontra Ka Kontra: 19.º episódio




1. Décimo nono episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


19º EPISÓDIO

- Nosso Furriel, o que estou a pensar fazer, o senhor não pode fazer por mim, e como deve imaginar não é ir à orla da mata.

O Furriel afastou-se e o Alferes pensando alto:

- Onde eu vou arranjar uma vaca? Tenho que falar com o João.

Depois de uns momentos a ordenar as ideias, levantou-se e foi procurá-lo para os lados da sua morança, perto do mangueiro, no centro da tabanca. Quando o viu chamou-o à parte e disparou:

- João onde posso arranjar uma vaca?

- Uma vaca? Para que é que o Alferes precisa de uma vaca? Com um cabrito, a sua tropa governa-se dois ou três dias.

- João, João, já se esqueceu da nossa conversa sobre casamentos em que me disse que com uma vaca e uns cabritos se podia “comprar” uma bajuda?

- Ah, então é isso? Desculpe. E pelo que me parece, trata-se da bajuda Asmau. Estou certo? Sempre se quer casar com ela? Quer que o ajude a falar com o chefe Adramane?

- Não, obrigado, eu próprio falarei. O meu único problema, como já disse, é onde vou arranjar uma vaca para dar ao pai da Asmau se ele vier a concordar com o casamento.

- É muito simples Alferes… Quando se fala numa vaca é a mesma coisa que falar no “patacão” que uma vaca vale. O pessoal por aqui dá aos pais das bajudas vacas e cabritos porque é o que tem. Se tivessem dinheiro escusavam de pensar no gado. O Alferes combina com Adramane quanto ele quer e paga-lhe tudo em dinheiro. Além do mais, para ele, que não tem vacas, seria uma grande preocupação ter que tratar só de uma.

Vacas que não são do Adramane.

- Compreendi tudo João. Diga-me só mais uma coisa: Por aqui quanto custa uma vaca, para poder pagar em dinheiro ao Adramane?

- Por mil “pesos” já é bem paga. Quanto aos cabritos uns cinquenta “pesos”.

- Obrigado, João, até logo. Se vier a precisar da sua ajuda, procuro-o.

- Alferes, não se vá já embora pois ainda lhe quero dizer mais umas coisas que é capaz de não saber: Quando for fazer o pedido da bajuda ao Adramane, como eles são muçulmanos não lhe pode levar, como é costume, uma bebida alcoólica como prenda, mas neste caso deve levar uma porção de cola.

- E onde vou arranjar, de hoje para amanhã, a cola?

- Se quiser esperar dois ou três dias, o pessoal como tem que ir a Galomaro, ao comerciante “Regala” fazer algumas compras, podem trazer-lhe a cola mas se não quiser esperar, como eu penso, posso emprestar-lhe alguma e depois dá-ma.

- Agradeço isso. Agora vou mesmo embora. Até logo.

Afasta-se e vai novamente sentar-se na mesa das refeições, de onde se avistavam quase todas as moranças. Via portanto quase tudo o que se passava na tabanca. Alguns dos seus homens, juntamente com milícias, transportavam terra para cima dos abrigos. Outro grupo, que estaria de folga, jogava às cartas na sombra de uma morança, tendo um “pilão” virado ao contrário, como mesa. As mulheres iam e vinham da fonte transportando água. Reparou nos poucos miúdos e bajudinhas que havia na tabanca. Enquanto brincavam iam chupando o miolo das “kabaseras” fruto dos embondeiros, de difícil acesso por se situarem muito alto nas árvores. O vendaval da noite anterior fê-los cair, tendo os miúdos aproveitado essa dádiva da natureza.

Uma Kabasera inteira, outra aberta vendo-se o miolo e
também as sementes depois de chupadas.

Embora longe, a dada altura não teve dúvidas que, num dos extremos da tabanca, a Asmau tinha saído da sua morança e por um carreiro se dirigia provavelmente para a fonte. Era uma oportunidade que tinha para estar com ela, pelo menos para a acompanhar até à fonte. Não se mexe. Continua sentado, seguindo-a com o olhar, apreciando as suas formas perfeitas que a distinguia das demais. Em determinada altura nota que ela olha na sua direcção e então, aí sim, aproveita para lhe acenar com o braço, tendo sido correspondido. Naquele momento foi quanto bastou ao nosso Alferes. Sente-se nas nuvens. Tinha sido correspondido.

Não podia dispersar as ideias. Tinha que pensar na estratégia a usar quando fosse falar com o pai dela. Tudo dependia disso, por mais que ele gostasse da Asmau e ela do Alferes. Tudo estaria nas mãos do Chefe Adramane. Estranhos costumes, que tinham que ser respeitados.

Ao fim de algum tempo chegou a uma conclusão: Pura e simplesmente não havia estratégia, ou melhor, o que havia a fazer não era mais do que rapidamente ir falar com o Adramane, perguntar-lhe se podia casar com a filha e quanto queria de “dote”, saindo da incerteza que o andava a consumir.

Num ímpeto, levanta-se e olhando na direcção da morança do Chefe de Tabanca, como que estabelece o azimute para rapidamente lá chegar. Não chega a dar meia dúzia de passos. Para, estático, qual cão da pradaria pressentindo o perigo.

Com algumas ordens dadas em alta voz aos seus camaradas que estavam mais perto, inflecte o sentido da marcha que tinha iniciado e dirige-se a correr para a sua morança. Iria buscar a G3 e colocar o cinturão onde tinha sempre colocados quatro carregadores de munições e três granadas?

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7707: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (54): Na Kontra Ka Kontra: 18.º episódio

Guiné 63/74 - P7712: Blogoterapia (174): Posso decepcionar os amigos, mas não os camarigos (Luís Graça)


Aos amigos desculpa-se tudo,
e sobretudo as enormidades
que eles dizem, às vezes,
quando falam de nós...
Os amigos são socialmente correctos,
são leais,
são delicados...

Os camarigos, esses,
não têm como mentir
ou fingir:
Aprenderam a olhar a morte de frente,
olhos nos olhos.
E a valorizar a camarigagem,
forjada na luta, na dor, no sacrifício,
no sangue, suor e lágrimas,
nas matas, picadas, tabancas e aquartelamentos da Guiné,
nos céus e nos rios da Guiné...

Podem ser rudes, os camarigos,
apanhados, cacimbados,
contraditórios.
Mas não fazem fretes,
nem escrevem palavras de circunstância…
São directos como as balas…
Nunca poderiam ser politicamente correctos.

As palavras que me dirigiram,
por ocasião do meu aniversário,
posso não as merecer
(não sei, 
não sou juiz em causa própria…),
mas tenho que as receber
com um grande sentimento
de honra, de dever e de gratidão.

Permitam-me,
amigos, camaradas e camarigos,
que seleccione alguns excertos
dessas palavras sentidas,
que calaram fundo no meu coração,
e que eu só posso interpretar
como um encorajamento
e um desafio.
Vou relê-las,
sempre que a dúvida e o desânimo
me assaltarem,
perante as minas e as armadilhas da vida,
e mais concretamente
desta aventura bloguística
em que me meti 
e nos metemos.

Dúvidas, perplexidades, desânimos
que às vezes nos poderão assaltar,
e seguramente nos assaltarão,
(por exemplo, na aplicação
e na interpretação das nossas regras
de bom e são convívio),
a mim e a toda a equipa que faz
e anima o nosso blogue,
vasta equipa,
quase um batalhão,
reunida sob o poilão da nossa Tabanca Grande,
para quem vai o meu apreço,
a minha admiração,
o meu reconhecimento.

Na parte que me diz estritamente respeito,
gostaria de poder dizer,  um dia,
quando chegar a hora de passar o testemunho:
“Poderei ter decepcionado os amigos,
mas não os camarigos!”…

Um Oscar Bravo e um Alfa Bravo.
Luís Graça




2. Selecção de comentários e excertos de texto, retirados do poste P7692 (*)


Ó dia 29 tem precisamente 16 minutos e quis ser um dos primeiros a saudar-te. Já um dia te disse… se tivesse tido um irmão gostava que ele fosse como tu. (Álvaro Basto)


Chefi di tabanka Luís: Mantenha pa bo y kil abrasu di tamanhu di mundu.
Kuma di kurpu y família tudo direito?
(Fernando Gouveia)


Olá, Rei da Tabanca Grande. (Arménio Estorninho)

Espero continuar a ver-te com força para orientares este grande barco que é este 'nosso blog'. (Manuel Resende)

(…) É a graça,
que em mim
é Graça,
afirmo-o 
p’lo meu nariz,
porque a graça
condiz,
com o meu nome Luís,
que juntado à minha graça,
faz de mim,
tão simplesmente
o Graça,
também Luís


(Joaquim Mexia Alves)

Caro Alahje Cherno Luís Graça, Feliz Aniversário. Parabéns. (Luís Borrega)

Amigo Luís, formulo fraternal voto de Parabéns e djarama por tudo o que tens feito para unir tanta gente à volta do nosso blogue. (Manuel Amante)

Tenho aprendido muito com o blogue, até a conhecer-me melhor a mim próprio. Graças a um Senhor que teve a ideia de criar este fabuloso espaço. (António Graça de Abreu)

Continua ao leme, meu Comandante, que a barca é grande mas com a ajuda de todos, arribaremos sempre a bom porto. (Francisco Godinho)

Depois de tudo o que tens feito pelos teus camaradas da Guiné és credor de um reconhecimento enorme, vastíssimo. Falo por mim mas julgo que muitos pensarão como eu. Nesta fase da minha vida, depois dos 70, és das pessoas mais importantes. Reforçastes a minha família da CCaç 675.  Estás lá.Com o meu General Tomé Pinto, com o meu Tenente Belmiro Tavares e com muitos outros que não conheces. Os meus 170 irmãos de Binta. Irmãos de sangue. Até ao fim da vida. (JERO)

De bem longe,mas sempre perto,os sinceros votos de parabéns! (em dialecto nativo...En stor kram av gratulationer med önskan om en lycklig dag!) (J. Belo)

Se me dissessem que 41 anos depois estaria aqui a saudar um camarada da 2ª Companhia do CISMI, que como é normal, por sermos de especialidades diferentes, não me recordava de ti, eu não iria acreditar. Mas em boa hora tiveste a ideia de criar este blogue, pelo qual te estou muito grato. (César Dias)

Hoje é um dia grande para ti, para a tua família e para nós, que nos orgulhamos de te ter como nosso timoneiro neste mar por vezes encarpelado, mas que sabiamente tens sabido orientar. Estamos-te grato por isso. (Manuel Reis)


Saudar-te neste dia com um abraço do tamanho do mundo, é o meu maior prazer.
Entraste na minha vida há já uns anitos. Pena foi que não tivesse sido mais cedo, apesar de sem intenção, tenhas provocado em mim um choque,que se repete a cada passo com histórias de vida vivida numa guerra que não queríamos,pese embora, indirectamente através do blogue, que me transporta todos os dias até à "nossa" Guiné. A culpa não foi só tua, mas de todos os camaradas que aproveitaram a porta que abriste. (Zé Teixeira)


Amigo Henriques: Parabéns, não parece mas já contam quatro décadas que nos conhecemos,parece que foi ontem.  (Fernando Almeida)

Um Abraço, Parabéns,  muita Saúde, e que não te falte a coragem pra continuar esta obra invejável, que é este teu/nosso blogue. Desde que aqui caí,  sinto-me outro, a Engenharia não poderia faltar, obrigado,  Comandante! (José Nunes)

Camarigo HENRIQUES, tal como o AFONSO que nos deu um país e uma pátria tu não lhe quiseste ficar atrás e foste o fundador e és hoje o responsável deste maravilhoso universo onde todos estes combatentes da Guiné se juntam, discutem com maior ou menor intensidade, discordam e concordam, mas acabam sempre num abraço solidário. É o respeito, a solidariedade e a amizade que soubeste semear que eu te quero devolver, deste Algarve frio e ventoso, onde me desloquei a uma reunião. (Vasco da Gama)

Um forte abraço, do outro lado do rio, de Porto Gole.
(Jorge Rosales)


Como alguém disse, graças a este blog, encontrei muitos amigos que não trocaria por nada. (…) Um abraço do tamanho do oceano que nos une. (José Câmara)

(…) Que a nova jornada que hoje inicias seja preenchida com força, alento e vontade, para que como bom timoneiro que és, saibas sempre dar rumo ao leme para orientar o paquete, que já é, a aportar em cais com águas calmas, para não se desconchavar em jangada. (José Corceiro)

Sem muitas palavras, mas com amizade triplicada, das três gerações da família Martins, desde o José (eu-1946) até ao Duarte (neto-2010). (José Martins)

(…) Um abração que encerra a maior consideração, respeito, estima e admiração pelos teus grandes valores intelectuais, culturais e humanos. Ergo um Old Parr pela tua saúde e bem-estar. Bem-hajas, grande dínamo desta sã camaradagem entre os ex-Combatentes da Guiné Portuguesa. (Rui Silva)

Tu mereces que Deus te de força, saúde e coragem para continuares a ajudar os ex- combatentes do stresse da nossa GUINÉ. (Fernando Chapouto)

WHEN I AM SIXTY FOUR

When I get older
loosing my hair
many years from now 
will you still be sending me
a Valentine birthday greeting
botle of wine?
If I'd been out 'til quarter to three 
would you lock the door?
will you still need me
willyou still feed me
when I am sixty four?
(…)  



(Alberto Branquinho)

A vida está carregada de surpresas. Umas boas, outra não. Tu foste uma das melhores que tive ou podia ter nesta fase, tão especial e tão fugaz, da reforma.  De Homem bom e de Homem grande... (Joaquim Luís Mendes Gomes)

Muito obrigado por tudo o que o nosso blogue nos tem propocionado. (António Branco)

"À moda alentejana", (que me perdoem os poetas populares de quem muito gosto), cá vai:

Este nosso camarada
furriel Henriques, a valentia,
é um amigo de eleição
que saudamos com alegria

 (…) Camaradas da Guiné,
vemos todos como ele bom é
na chefia da Tabanca.
Por vezes alguém o desanca
mas bom chefe é o que aguenta
e um sorriso apresenta. (…)


Manuel Joaquim
 
Quero (…) deixar vincadamente expresso o quanto te estimo e admiro, pela tua iniciativa, pela tua coragem, pela tua persistência, mesmo tendo que por vezes enfrentar situações injustas e absurdas. (Hélder Sousa)

Possa Deus compensar-te do muito que tens feito neste blogue, para juntares estes ex-"guerrilheiros", que deram o corpo e infelizmente muitos a alma, naquelas quentes terras da Guiné. (Luís Dias)

Que maravilha da vida " fazer anos "!!! Mais velhotes, mais chatos, mais rabujentos e sempre a pensar que os outros não nos entendem!! Não é nada disto - somos muito válidos, pois podemos transmitir ideias de alguma importância e que poderão ajudar a dar uma nova imagem de vida a algumas pessoas. O exemplo está no trabalho que tens feito em favor dos ex-combatentes da NOSSA GUINÉ. (Mário Bravo)

Criador deste imenso blogue que mantêm unida a geração de sessenta e grande parte da de setenta, causador de muitas alegrias, de reencontros impensáveis de outra forma, guerreiro assumido e acreditado nestes lides, os meus Parabéns! (Felismina Costa)

Pois é. Sempre que o calendário marca 29 de Janeiro, o nosso camarada Luís Graça soma mais um ano de vida. Anda nisto há 64 anos, e propõe-se continuar até pelo menos ao ano 2047. A responsabilidade é grande e o Blogue não pode parar. Como aquelas pilhas, ele tem que durar... durar... durar... (Carlos Vinhal)


Ai que soninho! Nem consigo apagar as 64 velas! (...) (Miguel e Giselda)

(...) Bem dentro deste espaço liberdade,
que ajuda a mitigar nossa saudade,
Luís Graça & Camaradas da Guiné...
Há laços, inquebráveis, solidários
nascidos de vivências e fadários
comuns a todos nós, creiam que é... (...)



(Manuel Maia)


(...) Solidariedade
Amizade
Compreensão
Partilha
Local de encontro
Ponto de partida e de chegada
Diálogo
Controvérsia
Acordo e Desacordo
Pátria comum
Guiné terra alegre e triste
Saudade
Sangue Suor e Lágrimas
Irmão...
Parece impossível, mas tudo isto cabe no teu nome Luís Graça
!!! (...)



(Juvenal Amado)


(...) Esquece o ONTEM.
Vive o HOJE, 

porque ainda não nasceste para o AMANHÃ. (...)


(Joaquim Peixoto)

3. Lista dos amigos, camardas e camarigos  que tiveram a gentileza de se lembrar de mim, no meu dia de anos (por comentário no blogue, por email, por telefone...), e a quem me cabe lembrar aqui, "noblesse oblige" (espero não ter falhado nenhum, mas não confio na minha memória) (**):


A. Santos
Adriano Moreira
Agostinho Gaspar
Alberto Branquinho
Álvaro Basto
Américo Estorninho
Amílcar Ventura
António Barbosa
António Branco
António Estácio
António Graça de Abreu
António Marques
Artur Conceição
Artur Soares
Beja Santos
Belarmino Sardinha
Belmiro Tavares
Bernardino e Maria Teresa Parreira
Caetano
Carlos e Teresa Marques Santos
Carlos  e Dina Vinhal
Castro da Cart 3521
César Dias
Eduardo Campos
Eduardo Magalhães Ribeiro
Felismina Costa
Fernando Almeida
Fernando Chapouto
Fernando Gouveia
Filomena
Francisco Godinho
Gilda Brás
Hélder Sousa
Henrique Matos
Herculano Joaquim
Herlânder Simões
Hugo e Ema Guerra
J. Belo
JERO
Joaquim e Margarida Peixoto
Joaquim Luís Mendes Gomes
Joaquim Mexia Alves
Jorge Cabral
Jorge Fontinha
Jorge Narciso
Jorge Picado
Jorge Rosales
Jorge Teixeira
José Câmara (EUA)
José Casimiro
José Corceiro
José Dinis
José Martins
José Nunes
Juvenal Amado
Luis Borrega
Luís Dias
Luís Faria
Manuel Amante
Manuel Amaro
Manuel Joaquim
Manuel Maia
Manuel Marinho
Manuel Moreira
Manuel Reis
Manuel Resende
Mário Bravo
Mário Miguéis
Miguel e Giselda Pessoa
Paulo Santiago
Pedro Neves
Raul Albino
Rui Silva
Tabanca de Pitche e Arredores
Torcato Mendonça
V. Briote
Valentim Oliveira
Vasco da Gama
Vasco Santos
Zé Manel Cancela

(**) Último poste da série > 13 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7606: Blogoterapia (173): Preciso de todos vós, velhos combatentes, que participam neste blogue, escrevendo ou simplesmente lendo-o (Manuel Joaquim)