Guiné > Região de Tombali > Rio Cacine a caminho de Gadamael; s/d> O Alf Mil Méd Amaral Bernardo, que pertencia à CCS/BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72), e passou mais de um ano (1971) em Bedanda (CCAÇ 6).
Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1971 > Vista aérea
Fotos (e legendas) : © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados.
1. Resposta de Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med, CCS / BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72), ao ex-Cap Art, António Carlos Morais da Silva comandante da CCAÇ 2769 (Gadamael e Quinhamel, de Janeiro de 1971 a Outubro de 1972) (*)
Ex.mº.Senhor
Coronel Morais da Silva
Após a leitura do seu desmentido ao P7756 da minha autoria, a primeira reacção foi de estupefacção e angústia…e, a seguir ,de constrangimento, em que ainda me encontro. Tinha vivido todo este tempo convicto que a CCaç 2796 tinha sido deslocada de Gadamael meses depois da morte do capitão Assunção Silva e que para essa decisão eu teria contribuído de algum modo, na minha qualidade da médico da CCaç e conhecedor da realidade de Gadamael e da pressão constante que exercia sobre o pessoal aí colocado.
Mas os factos são factos, e a realidade é que a Companhia só saiu a 12 de Fevereiro de 72, sendo óbvio que a informação é FALSA e IMPERDOÁVEL, como diz!
Do erro me penitencio e, com humildade e sinceridade, peço desculpa a todos os elementos da CCaç 2796, a toda a TABANCA GRANDE e ao seu Editor Luís Graça, de quem aceito desde já todas as consequências que achar adequadas (incluindo a minha expulsão do Blog, retirada do post, sua correcção…, enfim, o que for por bem entendido).
O que alegar em minha defesa?... Por mais que procure, só a “convicção” que eu tinha até agora e a espontaneidade e emoção com que escrevi. E quando há Emoção… a Razão deixa praticamente de existir e a Emoção, sempre que pode, trai-nos.
Não houve qualquer intencionalidade (seria absurdo, no tempo da Net, com este blogue e com os intervenientes praticamente todos vivos, com datas e locais…),foi um acto falhado que assumo e com que terei que viver. Mais uma vez peço que aceitem as minhas desculpas, todos.
É obvio que neste ponto, a sua indignação é natural e eu aceito-a , senhor Coronel, e, se assim o entender e não me tomar por persona non grata, estou disponível para, pessoalmente, num encontro-convívio da Companhia, me retratar. À sua consideração.
Antes de prosseguir, e se me permite, gostava de deixar algumas considerações gerais que, penso, na minha maneira de ver e de estar, ajudarão a melhor entender e a ajuizar a essência do que está em causa quando , na sequência do facto acima referenciado, o senhor Coronel se permite, ainda que de forma aparentemente cuidada, lançar urbi et orbi e através deste meio (de veteranos de guerra na Guiné) dúvidas sobre a minha conduta médica no terreno, pondo em causa a minha dignidade e obrigações profissionais, assim como a minha atitude enquanto pessoa em relação aos que necessitassem da minha ajuda.
Uma delas diz respeito a um aspecto que é importante trazer para aqui e que merece meditação serena e isenta — a da prática médica na guerra, em situações como as de Gadamael ou outras semelhantes , em que o risco de vida é igual para todos, e só há um médico.
Não vou desenvolver este tema agora, mas gostaria de o poder discutir a frio e estarei sempre disponível para o fazer logo que achado pertinente. Em qualquer fórum.
Deixe-me, contudo, perguntar-lhe: acha que o médico, o único existente neste cenário, não deve pensar na sua segurança, não terá que avaliar o risco, se há condições para poder ser médico, vivo e não morto ou ferido, incapacitado? E se ele for ferido? Quem o trata? E se morrer… será útil a alguém, onde ele era preciso?
Imagine um cenário como o que descrevo (não, não sou eu): médico, miopia incapacitante sem óculos (cerca de seis dioptrias em cada olho), em pânico com os rebentamentos a correr para uma vala ou pseudo-abrigo, de noite, com medo de cair, ficar sem óculos e sem autonomia, que ferido só contará com os cuidados dos enfermeiros, sem possibilidade de evacuação nocturna (salvo em raríssimos casos)… Não, senhor Coronel, sabe bem que este cenário não é filme!
Acha que os médicos, nestas circunstâncias ou idênticas, tiveram a segurança e as condições mínimas para actuar?
Se calhar esta análise deve ser tomada na devida conta antes de qualquer juízo de valor, digo eu!
Eu estive em algumas situações destas e, não sei bem como (talvez a ainda resistência dos esfincteres), consegui resolvê-las.
Com medo, MUITO MEDO e ANGÚSTIA… Herói? Não, em absoluto. Desejei até, muitas vezes, ser ferido para poder ser evacuado.(Síndrome muito comum em todas as guerras, como sabe).
Às vezes interrogo-me se estas perguntas terão razão de ser, sentido, para um militar de carreira que foi estruturado para situações que, para nós, comuns mortais, era suposto nunca vivermos. Só na ficção. Não sei, sinceramente. (Não entenda que estou a desculpar ou ilibar seja quem for. Estou só a contextualizar.)
Perguntará: Porque não fugiram à mobilização como outros? Porque foram?
É uma pergunta para a qual ainda não tenho resposta. Mas penso que andará à volta desta: por ignorância da monstruosidade e aberração que ia vivenciar e, como disse um colega, PARA VIVER EM LIBERDADE NA MINHA TERRA.
Feitas as considerações que me propus e que, penso, importantes no contexto, vou responder às suas insinuações.
Pondo de lado “Este médico deve ter andado distraído durante 11 meses…” ( o senhor Coronel sabe que a guerra na Guiné foi uma distração permanente para os milicianos ,incluindo os médicos!), a sua indignação não pode legitimar, de modo nenhum, que tente pôr em causa, mesmo que insinuando só, a minha conduta como médico, no teatro operacional. Um parênteses só para esclarecer: eu nunca estive em Bissau com médico (a não ser agora, a fazer formação posgraduada a médicos do Hospital Simão Mendes, antigo hospital civil). Estive sempre colocado em aquartelamentos do sul e só no último mês de comissão em Bolama.
A minha conduta como médico pode ser testemunhada pela hierarquia militar de quem dependia e, que eu saiba, está toda viva, felizmente:
(i) Em Cacine era comandante o cap Magalhães (não sei que posto terá agora), em Bedanda o cap Ayala Botto (depois ajudante do Gen Spínola);
(ii) a CCS de Catió, minha Companhia, era comandada pelo major Vieira Correia (com quem ainda me encontro quase anualmente na reunião convívio ), em Tite o major Valente, o major Castanheira 2ºcmdt;
(iii) Como disse, passei o último mês em Bolama, mas não me lembro do nome do comandante; mas estive lá algum tempo com o agora Gen Carlos Azeredo com quem também ocasionalmente me encontro ainda.
Como complemento, (passe a imodéstia,) acrescento que me foi atribuído um louvor pelo cap Ayala Botto, a nível de Companhia, e outro pelo Com-Chefe (não sei se é assim que se diz), este por proposta do Cmdt de Tite, major Valente, ambos a dar testemunho da minha estrura pessoal e do meu desempenho, quer a nível militar, quer em relação à população civil.(Infelizmente não posso apresentar esses documentos agora porque mudei de casa e o arquivo morto está ainda encaixotado e na aldeia; logo que estejam à mão, penso que no Verão, terei muito gosto em lhe enviar uma cópia, para que conste).
Se outra prova não houvesse, penso que o anteriormente dito me ilibaria das suas insinuações sobre a minha conduta como médico( eu poderia andar distraído, mas as personalidades que acabo de referenciar … todas, e os louvores que recebi por quase 20 meses de mato, por certo não).
Mas, para que fique claro, na data em questão [, 8 de Maio de 1971,] eu já estava colocado em Bedanda já há meses.
Portanto, o senhor Coronel, por um erro involuntário que cometi (que, repito, me constrange e pelo qual me penitencio) , e sem que as situações em causa possam ter qualquer relação — de um lado um erro involuntário de data e a convicção que as minhas recomendações teriam servido para alguma coisa, do outro uma situação dramática, com mortos e feridos e o suposto não cumprimento por parte de um médico dos seus deveres profissionais, independentemente de todos os condicionalismos do momento — põe em causa o meu sentido de dever para com o meu semelhante e a minha dignidade profissional
“….queira Deus que o autor da falsidade não seja o médico que ocasionalmente em Cacine, se recusou…”. Porquê eu? pergunto-lhe. No Batalhão havia mais médicos e, “ocasionalmente em Cacine “ passavam outros médicos.
O que o fez, embora interrogando-se, ao lançar para a praça pública o meu nome profissional — AMARAL BERNARDO — colado a uma situação completamente fora do contexto, é incompreensível (para não adjectivar mais) e altamente estigmatizante para mim.
Mesmo com a dúvida, o senhor Coronel teria que tentar certificar-se, com recato e discrição, da veracidade ou não dessas suas INTERROGADAS DÚVIDAS.
Para minha informação — porque não foram apurados os factos no momento em que aconteceram? por certo fez esses diligencias? Porque nunca se soube o nome do médico? O senhor afirma que o "proibiu” (mas não foi em abstracto, teve que ser um médico em concreto) de voltar a Gadamael ? De 8 de Maio de 1971 a Fevereiro de 1972, não foi mais nenhum médico a Gadamael ? E, se foi outro, nunca conversaram sobre o assunto?
Para além de ter família e amigos, como toda a gente, sou formador de médicos (de alunos e na posgraduação, incluindo médicos em Bissau, como já referi).Que lhes responderei quando me questionarem por constar que foi lançada a suspeita, num blog de veteranos de guerra, de me ter recusado a prestar assistência a feridos graves? E a todos aqueles que estiveram comigo na guerra, que me deram a sua amizade e solidariedade e em mim confiaram ?
Lamento e respeito o sofrimento que esta situação lhe causou e expressa de forma pungente forma no in+icio do parágrafo: “É com muita dor que, após 41 anos, sou obrigado a recordar e trazer à tona do meu íntimo uma das piores noites que tive em combate….”
Saberá , contudo, que os flash back (passe o anglicismo) são parte integrante de quem passou por traumas violentos e que estamos (eu estou) sujeitos a tê-los quando existem condições desencadeantes.
Sem querer comparar o que não é comparável, também vivo, neste momento, duas das mais marcantes vivências da guerra, da minha guerra (todos nós temos a nossa guerra, mesmo quando no mesmo território, e no mesmo espaço temporal):
(i) A minha primeira ida a Gadamael. De forma resumida e poupando detalhes — recém- chegado a Cacine , para iniciar a comissão, no do dia seguinte à tarde tive que ir para Gadamael. A informação que me foi dada, é que tinha havido na véspera um violentíssimo ataque, com ida ao “arame” dos guerrilheiros e que havia baixas. Periquito, sem penugem ainda sequer, fui e, ao chegar, dei conta que tinha entrado na guerra: chão e algumas paredes das instalações do aquartelamento com os sinais elucidativos da violência da noite anterior, três militares mortos ( executados a tiro por um guerrilheiro pela abertura superior de uma Daimler imobilizada junto ao arame por fogo IN ; um outro militar não foi morto por ter ficado debaixo dos companheiros ; sem ferimentos físicos , foi evacuado em estado de choque e de profunda alienação mental); pessoas esgotadas, transtornadas…. Surrealismo puro para quem ainda estava em estado de graça.
Fui ajudado a começar a estar naquele mundo ajudado pelo acolhimento que o cap Assunção Silva e seu pessoal me dispensaram, apesar das circunstâncias! E lá fiquei nessa noite.
(ii) Em Cacine esperávamos nesse domingo a chegada do cap Assunção Silva. Vinha almoçar connosco a convite do cap Magalhães .As horas passaram, chegou a hora combinada para almoçar… mas não veio! Veio a notícia brutal da sua morte em combate, fora do aquartelamento, no princípio da manhã. Não havia feridos graves.
Ao fim da tarde cheguei a Gadamael( só com o condutor do sintex, como era hábito).O que senti, sinto…deixe que fique na minha intimidade.
Passei lá a noite com os demais da Companhia — e nessa noite, não pertencendo à companhia, oficial, só estava eu, o médico. O capelão, Mário de Oliveira, sediado em Catió, só teve voo de manhã.
Durante todo o dia e a noite, aquela gente, naquelas circunstâncias, esteve entregue e a si mesma e ao seu desespero. Comandava, no momento, com a serenidade, segurança e determinação possíveis, o Alf Mil Fontes que é e está no Porto.
“Pior do que dizerem mal de mim, é não falarem de mim.” Só não lhe agradeço o seu contributo para que eu não caia no esquecimento porque esta insinuação é 'FALSA e IMPERDOÁVEL'
“Nós só valemos o que os outros queiram que nós valhamos.” Mas não pode ser usada uma suspeição que é 'FALSA e IMPERDOÁVEL'.
Ao seu dispor, senhor Coronel.
Cumprimenta
Amaral Bernardo
P.S.-O Mário de Oliveira citado não é o da Lixa.
amaralbern@gmail.com
915676614 / 967070758 / 917745306(93)
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Nota de L.G.: