1. Segundo episódio de "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios*, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.
PORTO DE ABRIGO - II
A nossa estada em Fulacunda
Durante o tempo de permanência na colónia tivemos contacto com a tremenda realidade de uma guerra no que do pior pode acontecer. Enterrámo-nos nas bolanhas, dormimos em buracos escavados à pressa, abrigámo-nos à sombra das árvores esguias e altas, bebemos a chuva escorrida entre as folhas ou chupámos as gotas de um punhado de lama amassada, bem como em muitas operações ao romper da madrugada lambíamos a humidade acumulada nas folhas do capim, tal era a sede, fome e cansaço acumulados por longas e tremendas caminhadas feitas sob o efeito da ansiedade e do medo, porque não dizê-lo; chegámos a caminhar 36 horas consecutivas alimentados a ração de combate e sendo diversas vezes flagelados por emboscadas do IN; o nosso sangue para além de ser derramado em profusão por alguns queridos camaradas, foi ainda sugado pelos mosquitos; o paludismo foi contraído por alguns de nós; o nosso suor e algumas vezes, as nossas lágrimas ajudaram a molhar a terra ressequida. Andámos dezenas e dezenas de quilómetros em picadas ou abrindo clareiras na mata espessa com o nosso próprio corpo; conhecemos as tabancas; falámos com as pessoas e entendemo-las num português incipiente, com ajuda de meia dúzia de expressões na língua local e até através da linguagem universal do gesto; pegámos ao colo tantas crianças, ajudámos a matar a fome de tantos homens e mulheres. Mas também matámos. Também morremos, e principalmente sofremos com a omnipresença da nossa vida dos nossos entes queridos; quanta nostalgia!
Sim! Porque as coisas mais lindas ou horríveis que nos marcam ou emocionam não podem ser vistas ou tocadas mas sim sentidas pelo coração.
Deslocados para o Quartel de Santa Luzia, ali recebemos directamente o armamento de outra Companhia que estava de regresso a Portugal, ali se entrecruzaram dois grupos de homens cujos estados de espírito eram perfeitamente antagónicos; enquanto entre nós reinava a ansiedade e a contrariedade, nos nossos camaradas vivia a descompressão e a expectativa do regresso.
Ainda me lembro das palavras ditas em tom de grande amizade pelo furriel que me antecedeu e me entregou a arma: - Toma lá oh periquito, aqui tens a formosa, vê se a tratas bem porque vai ser a tua melhor amiga.
Por entre a vozearia ouvia-se a espaços: vai pró mato periquito.
Começava a tomar contacto com um infindável e curioso léxico novo e utilizado pelo pessoal durante o tempo ali passado a par com imensas frases e palavras do crioulo e de dialectos gentílicos.
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Embarcados em lanchas LDM ou LDG, não tenho já a certeza, lá partimos para o nosso local de destino. É o primeiro contacto com a realidade da misteriosa e esmagadora mata, a viagem pelos canais circundantes e por último pelo rio Corubal. Além da intranquilidade interior e ansiedade permanente, a viagem decorre tranquilamente numa linda paisagem envolvente até que chegamos ao porto de desembarque localizado a 4 quilómetros, por uma assustadora picada em péssimo estado até Fulacunda, onde se encontra instalado o Quartel, um rectângulo rodeado por arame farpado com edifícios da antiga colonização – é uma sede de circunscrição – onde foram instaladas e construídos abrigos subterrâneos e postos de sentinela em pontos estratégicos da cerca. Ainda há um Posto de Correio e um comerciante branco – o Sr. Pires – que vive sozinho. Existe no exterior bastante população, e a sensivelmente 100 metros, uma pista de aterragem, onde está instalado um posto avançado apetrechado com uma metralhadora Breda e que está permanentemente ocupado por uma Secção. As únicas ligações são o já falado porto de embarque, onde curiosamente vem carregar e descarregar uma barcaça com todo o tipo de géneros para nós e a população, da qual alguns elementos também se fazem transportar naquele meio e o aeródromo. Nas chegadas e partidas da mesma um Pelotão da Companhia monta a segurança, francamente, não creio, o barco nunca teve o mais pequeno problema, haver necessidade da mesma. O único problema havido teve a ver com um militar nosso que se meteu no rio e ia a ser levado pela maré, valeu-lhe a generosidade e valentia do recém-chegado Alf. Mil. Rui Ferreira que o resgatou às águas já a mais de 50 metros do local onde se encontrava. Começava a aparecer a valentia, voluntariedade e humanidade de um líder nato. A população dedicava-se nos limites da zona capinada envolvente ao quartel, ao cultivo de mancarra (amendoim) e proliferava a pesca; enfim um conjunto de actividades que francamente nunca entendi.
O chefe da tabanca (aldeia) era Tenente de 2.ª Linha, havia muitos pela Guiné, Não participava em nenhuma actividade em que estivéssemos envolvidos, limitando-se como todos os que vim a conhecer, a passear pela tabanca e arredores uma ridícula fardeta. Creio hoje que era um método criado pela administração de subornar e dividir as populações já tribalizadas e em conflitos. Havia na Guiné mais de trinta etnias, grupos e sub-grupos. Estes creio que eram mandingas e islamizados, praticando a poligamia. O nosso amigo Tenente tinha mais de uma dezena de mulheres.
Junto à saída para Lamane, local onde nunca nos deslocámos porquanto, segundo a Companhia de açorianos que fomos render, era local de perigoso acesso devido às fortes forças do inimigo, tanto na tabanca como em todos os acessos. Existia uma palhota pequena circular colocada no sitio mais agreste do aquartelamento onde se encontrava um elemento que também segundo os mesmos era um perigoso terrorista. Não sabia ou não queria pronunciar uma única palavra de português ou crioulo, segundo vim a saber, porque nunca me aproximei do local. Abaixo se vê imagem do local onde se manteve inamovível o elemento referido durante todo o tempo que aqui me mantive.
Durante a estadia aqui em Fulacunda dá-se o desaparecimento em combate da Alf. Nil. Vasco Cardoso e de mais cinco praças conforme explicito noutro local. Aqui perfeitamente angustiado e deprimido ouvi pela primeira vez, a canção de Zeca Afonso “Os vampiros” pela bela voz do meu camarada Ernesto Fernandes. Pela primeira vez também ouvi falar da coisa politica.
No porto um barco de cabotagem chegou. Depois da segurança montada um pequeno bote faz o transbordo de pessoas e mercadorias. A altura é aproveitada para umas banhocas.
Eis a barcaça que refiro e o local de onde o 610 foi arrastado pela corrente e o Rui Ferreira o foi pescar 50 metros mais abaixo. Na altura excedi-me e proferi uma série de imprecações dirigidas aos nossos rapazes sobre a sua imberbidade e falta de sentido de responsabilidade que punham em risco as suas vidas e dos seus camaradas. A intervenção do Rui foi de uma dificuldade e perigosidade extremas. Só quem conhece a força das águas na vazante naquele local pode aquilatar. Pouco tempo depois numa das correntes patrulhas feitas na estrada que conduzia a S. João, um dos nossos Pelotões sofreu uma tremenda emboscada que provocou o primeiro morto na nossa Companhia. Um sentimento de tremenda angústia e impotência me assaltou. Apenas me lembro que o corpo do desditoso camarada ficou toda a noite em improvisada câmara ardente. Poucos tiveram a coragem de o acompanhar. Os olhares de amargura eram visíveis não recordo mais qualquer actividade, que de facto houve.
Aspecto geral da tabanca.
O interior do aquartelamento em dia de grande temporal.
Assim se ia passando o tempo num isolamento total no coração de uma mata que já se apresentava hostil e perigosamente condicionante. Neste ambiente doentio na nossa pequena e isolada Fulacunda em situação de permanente angustia e omnipresente desconforto, o mais singelo desvio da rotina é acontecimento marcante, que preenche as conversas de vários dias. Talvez por isso mesmo, a importância que ganhava tudo o resto.
Foi-nos comunicado ser possível ver cinema o que parecia ousado admitir, mas em África muitas vezes é possível o impensável.
Tinha chegado, nunca soube como, uma figura típica, o sr. Machado, um septuagenário de longas barbas brancas que se dedicava a levar o cinema às povoações mais recônditas da Guiné, e dezenas e dezenas de anos de África já o tinham feito praticamente esquecer o seu cantinho natal em Trás-os-Montes. Personalidade forte que se propunha apresentar uma sessão de cinema ao ar livre para que toda a população também pudesse assistir. Nem mesmo a eclosão da guerra impedira que o sr. Machado continuasse a levar a sétima arte aonde quer que meia dúzia de pessoas pudesse pagar um bilhete. Isso acontecia, naturalmente, nas concentrações da tropa portuguesa. O Sr. Machado fazia questão em que se soubesse que ele não percebia nada de guerra nem de política. Ao princípio da noite, reforçada a vigilância e o patrulhamento da povoação, lá íamos para o cinema, muitos de nós sem sequer sabermos o nome ou o género de filme que íamos ver. O filme apresentado era já bastante antigo, mas qualquer um era susceptível de dispor bem um punhado de homens isolados há tempo nas matas africanas. Depois das peripécias da entrada no recinto, marcada pela preocupação do bom sr. Machado de assegurar que ninguém ia ver o seu filme à borla, eis-nos instalados a esmo pelo chão o que para a população era trivial, e à soldadagem permitia uma maior aproximação às bajudas, na esperança de que a animação na tela desviasse a atenção do barulho infernal do gerador ali muito perto. Poucos minutos depois do inicio da sessão e após um pequeno intervalo, levanta-se um coro de protestos, alguma coisa acontecera uma vez que não se entendia a historia que tinha começado muito expectante e deixara de fazer sentido. Não havia dúvida de que o bom do sr. Machado trocara as bobinas do filme e o que estávamos a ver não era sequencial. Aumentaram os protestos, forçando à interrupção do filme. Mas ele, teimoso, enfrentando a plateia, garantia que a sequência estava correcta, que já tinha passado dezenas de vezes aquele filme e que nós é que não percebíamos nada de cinema. É claro que a partir daí a história do filme perdera todo o interesse e alguns começaram a sair. O sr. Machado, que então já admitia o seu engano, esforçava-se por convencer que a troca não tinha importância, porque agora é que era mais bonito. Realmente só as circunstâncias e acompanhamento podiam explicar a razão porque uma percentagem dos homens ali se manteve até final! Passados que foram alguns meses depois de termos sido confrontados com a série se acontecimentos traumáticos a que faço alusão nas cópias de alguns blogues e de sentir na pele os efeitos dum clima de tremenda humidade e calor potenciadores de possíveis doenças, sujeitos muitas vezes em plenas bolanhas ou na misteriosa selva a apocalípticos vendavais, onde a chuva caía em cascatas e os relâmpagos ininterruptos em centenas de metros iluminavam a tremenda escuridão com uma claridade inacreditável. Lá emalámos novamente as nossas embembas e fomos embarcados com destino a Bissorã.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9082: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (1): Dedicatória, início da vida militar e viagem para a Guiné