1. O nosso tertuliano Nelson Herbert*, jornalista na Voz da América, em mensagem do dia 7 de Dezembro de 2011, deu-nos conta do artigo "África no tempo das belas Signares" de autoria de Arsénio Fermino de Pina e publicado no diário online "A Semana" deste mesmo dia, que transcrevemos com a devida vénia ao referido diário e ao seu autor.
OPINIÃO
ÁFRICA NO TEMPO DAS BELAS SIGNARES
Por Arsénio Fermino de Pina
Remexendo nos meus papéis, encontrei um artigo bastante interessante do historiador congolês Likia M’Bokolo, com ilustração de Hoa-Qui, sobre as “
signares” do Senegal, e, por associação de ideias, veio-me à mente um trabalho recheado de humor saudável apresentado ao 2.º Congresso dos Quadros e Dirigentes Associativos Cabo-Verdianos da Diáspora, pelo amigo e colega Dr. Daniel Neves sobre os cha¬mados lançados ou tangomaos no Senegal. Escreveu o colega, a certo passo, que “os lançados, por razões diversas e em particular pela concorrência dos franceses cada vez mais numerosos em África, desapareceram no século XVII, mas ficou o termo lançado no nosso crioulo que, na sua acepção de homem temerário teria, aí, talvez, a sua origem semântica”, acrescentando, com sorriso matreiro num cantinho da boca, que, rezam crónicas apócrifas que teve a sorte de encontrar nas suas laboriosas pesquisas históricas, que alguns desses lançados teriam frequentado o Liceu Gil Eanes, em S. Vicente de Cabo Verde: Nhunha de Bia Gaxa, Tchenta (Gomes), Coxim, Nhelas de Ti Pede, Torres e Bitim Leite.
Mas, deixemos de lado estes e outros lançados da investi¬gação histórica do colega e respiguemos alguns elementos do citado artigo sobre as “signares”, cuja origem e fama deve o Dr. Nhelas conhecer melhor do que eu por viver dias-há no Senegal enroscado a Dakar como moreia anzolada em buraco de rochedo, ingratamente sem dia de regresso ao torrão natal. Escreve M’Bokolo que é aos portugueses que senhoras elegan¬tes dessa época devem o nome de signares: a palavra portuguesa senhoras, rapidamente deformada, deu origem a “signares”. De resto, foram eles quem, dos europeus, primeiro pisou terra afri¬cana, montou negócios entabulando relações com as suas gentes e, obviamente, como costuma dizer o amigo Neco — a carne é fraca —, os primeiros a ter relações amorosas com mulheres africanas.
Não se sabe, ao certo, quando começou esse relacionamento horizontal, isto é, ao nível da cama, entre europeu e mulher africa¬na. Na crónica da Guiné de Gomes de Zurara (meados do século XV), quase que não se encontra referência a essa aventura amo¬rosa. Foi um pouco mais tarde, na última metade do século, que jovens portugueses, de espírito aventureiro e sem preconceitos, se ligaram a mulheres africanas, com grande escândalo da chamada boa sociedade branca. No início do século XVI, o padre Manuel Alvares descreve-os da seguinte guisa: “são tudo que há de mau, idólatras, perjuros, desobedientes do Céu, assassinos, debochados, ladrões ..., gente sem lei, não respeitando nada a não ser os seus apetites libidinosos, sementes do inferno”. O padre devia estar danado, muito provavelmente por não poder fazer outro tanto, embora, posteriormente, fosse tolerado aos padres portugueses tomar, sem escândalo, mulher indígena, jamais europeia, nes¬ses climas miasmáticos.
Daí nasceram muitos descendentes da Eclesia, à cautela e hipocritamente denominados de sobrinhos e afilhados, raríssimos com apelidos dos respectivos pais. Em Cabo Verde, por exemplo, quase que não se encontra família mais ou menos graúda que não tenha um padre e cónegos progenitor no passado, que viveu maritalmente e sem escândalo com a mãe dos filhos, respeitado por todos da comunidade e sem grandes objecções, nessa época, por parte da Igreja Católica.
Todavia, não obstante condenações do tipo das do Padre Álva¬res e atropelos à moral oficial, foi-se tornando hábito entre todos os outros europeus, por imitação dos iniciadores portugueses, viver com mulheres indígenas, ao longo de toda a costa africana onde se fazia comércio de produtos preciosos (ouro, marfim, etc.) e, sobretudo, o rendoso e criminoso tráfico de escravos. Foi sobretudo nas ilhas e portos da chamada Senegâmbia — Gorée, Saint-Louis, Portudal e Joal (terra natal do ex-presidente Leopold Senghor, nome derivado do português Senhor, que cantou em lindos versos a beleza da mulher africana, mas ... se casou com europeia) — que as “signares” mais se notabilizaram.
Apesar da proibição de certos oficiais e empregados franceses de mandarem buscar as respectivas mulheres de França para o Senegal, a Companhia da Senegâmbia e do Senegal decidiram interditar aos seus empregados viver com mulheres africanas. O resultado foi que a relação entre europeus e africanas teve de ser, a princípio, concubinagem, para se transformar, com o decorrer dos anos, numa espécie de política oficiosa, por se ter constatado que os europeus que viviam com mulheres negras resistiam melhor às condições climáticas e sanitárias do meio, isso porque a sua en¬trada na sociedade indígena permitia-lhes beneficiar dos serviços de curandeiros que dominavam melhor o tratamento das doenças tropicais.
Tal facto levou a que entre 1728 e 1730 alguns gover¬nadores do Senegal tivessem pedido a essas Companhias que amenizassem essa proibição. Disso resultou que durante cerca de um século, até meados de 1830, os europeus adoptaram a prática do chamado “casamento à moda do país”.
Um casamento com europeu, geralmente um funcionário da Companhia do Senegal ou do Estado, portanto, com alguém de¬tentor de poder económico e político, constituía a melhor garantia para se ganhar um lugar no mundo novo, euro-africano, que se constituía. “Os casamentos à moda do país” eram, de facto, uniões reconhecidas: os africanos tomavam-no como tal e os europeus também reconheciam aos filhos dessas uniões um certo número de direitos (herança, direito de uso do apelido do pai, etc.). As beneficiárias desses casamentos obtinham, também, a libertação da escravatura.
As “signares” desempenhavam um importante papel económi¬co e social na sociedade local e como conselheiras dos maridos, e algumas até participavam no rendoso negócio de tráfico de escravos, portanto, compravam e vendiam irmãos de raça. Em 1788, assinalam-se três “signares” entre os armadores mais importantes de Saint Louis (primeira capital do Senegal).
A beleza, elegância e “boeza” dessas “signares” fascinavam os europeus. Jean-Baptiste Durant, um dos directores da Companhia do Senegal, escreveu: “elas são belas, dóceis, ternas e fiéis. O seu olhar tem um certo ar de inocência e o falar uma timidez que se alia ao seu encanto. Elas têm um pendor invencível para o amor e a volúpia”. Foi com esses trunfos que as nossas mães ancestrais africanas levaram à certa os europeus. Não admira, pois, que a mestiçagem se intensificasse, cons¬tituindo-se, assim, uma pequena comunidade muito influente de mestiços e de “negros franceses”. Até se ouviu falar deles na Revolução Francesa. Em 1789, na véspera da convocatória dos Estados Gerais, os negros e mestiços de Saint-Louis associaram-se aos brancos para redigir as “muito simples queixas e exortações dos habitantes do Senegal aos cidadãos franceses”. Proclamaram, particularmente: “o sangue francês corre nas nossas veias”, e assinaram, orgulhosos da sua componente sanguínea francesa, “Negros e mulatos, todos franceses”.
É difícil, se não impossível, dizer quando terminou a in¬fluência económica e social das “signares”. Custou-lhes cara a ocupação colonial do século XIX, bem como a chegada regular de mulheres europeias em África. Todavia, ainda em 1902, o Dr. Barbot, num livro de conselhos aos europeus que emigravam para África, recomendava o “casamento à moda do país”. De salientar que até à eleição do primeiro deputado negro do Senegal, Blaise Diagne, em 1914, foram os mestiços, filhos das “signares” que incarnavam, bem ou mal, as confusas aspirações de então das elites africanas.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 23 de Setembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8811: Recortes de imprensa (49): Expresso das Ilhas - Morreu Aristides Pereira (1923-2011), o primeiro Presidente de Cabo Verde (Nelson Herbert)
Vd. último poste da série de 5 de Dezembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9140: Recortes de imprensa (52): Revista Expresso , nº 1299 - Memórias de Alexandre Carvalho Neto, secretário de Spínola e de Marcello Caetano (Arménio Estorninho)