sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9350: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (10): Fragmentos Genuínos - 8

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 8

Por Carlos Rios,
Ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66



Quartel de Mansoa visto do cimo do depósito da água


Entretanto via-me envolvido por uma situação de ansiedade e constrangimento, na medida em que o nível de solidariedade, amizade e confiança que existiam já no grupo, para além da responsabilidade que sentia por ter sido um dos mais entusiastas na formação do mesmo, e depois das experiências negativas da participação em conjunto com alguns dos Grupos de Comandos, levavam-me a não querer já vir a ser transferido para aquela força. Completamente inibido de autonomamente me dirigir ao Comando para transmitir esta questão fui logo após ter chegado a Mansoa, mandado chamar ao Comandante de Batalhão, Ten.Cor. Ferreira de Lemos, que se me dirigiu com toda a educação e respeito, que eram seu timbre, e argumentando com lisonja e na convicção de que me estava a convencer, do que eu mais desejava.

Disse: - Então o nosso Furriel quer deixar-nos - e mais um prolixo discurso que praticamente não ouvi, tal era o sentimento de satisfação por me resolverem uma encrenca, da qual não me conseguia ver livre. Apenas respondi:
- Mas, meu Coronel eu já não quero ir!

Palavras ditas e de imediato chamou o chefe da secretaria para mandar fazer um requerimento que de imediato assinei sem sequer o ler.
Saí dali leve que nem uma pena. Nunca mais se falou no assunto.

Não tive tempo de saborear esta pequena satisfação porque, penso que logo no dia seguinte, numa das colunas que fazíamos frequentemente na estrada para Bissau e a partir da antiga escola de Jugudul, fomos vítimas de violenta emboscada, que apanhando a retaguarda da coluna, cravou de tiros uma viatura com a nítida intenção de alvejar o condutor, o que não aconteceu devido ao extraordinário sangue frio deste, que ao ouvir o primeiro tiro, travou a fundo e se atirou para o chão, ficando a viatura inoperacional, sendo que inclusive o motor foi atingido; menos sorte teve o 527, 1.º Cabo Domingos Pereira, que sentado num dos bancos em cima da carroçaria foi atingido com seis tiros que o puseram à beira da morte. Reagimos de imediato e em poucos segundos depois de silenciada por parte do Rui, a metralhadora pesada que tinha provocado aquele grave acidente de guerra, este encarregou-me de fazer uma batida pela zona tendo a minha Secção reforçada com alguns milícias vasculhado por toda a tabanca e numa mata adjacente sem qualquer efeito. Do inimigo nem sombra nem qualquer informação por parte da pouca população que se manteve no local, pelo que regressado à estrada fui encarregado, depois de o Rui e o Monteiro terem rapidamente arrancado com o Pereira já extremamente debilitado pela perca de sangue para o quartel, viradas que tinham sido entretanto as viaturas naquele sentido, de preparar e rebocar a viatura atingida, no que o meu pessoal foi impressionantemente lesto e lá conseguimos regressar. Depois de um conjunto de incompreensões e observações perante um caso de extrema gravidade. nada abonatórios para alguns elementos combatentes de secretária do Comando do Batahão e que me eximo de pormenorizar, porquanto se tinha feito noite e os helicópteros não podiam aterrar, lá conseguiram ser demovidos e aceitar as opiniões apresentadas pelos mais jovens, sendo que de maneira pouco ortodoxa, a pista foi iluminada pelos faróis de todas as viaturas disponíveis, aquele meio foi posto em movimento, e o Pereira pôde ser evacuado para o Hospital de Bissau já a soro e em estado critico pela perca de sangue. Operado de urgência debateu-se entre a vida e a morte, vindo a ser evacuado para a Metrópole e conseguindo safar-se pois não tinha sido atingido nenhum órgão vital. Foi com um sentimento de profunda emoção e alegria que o pude abraçar num dos almoços de confraternização que fizemos, e onde conversámos e vim a saber que tinha já terminado a sua actividade profissional, fora emigrante em França, sendo que ainda tem alojada atrás do joelho esquerdo uma das balas.

Um heli faz uma evacuação. Ao fundo, mas bem perto, vê-se o fumo dos rebentamentos que persistem. O heli tem que sair rápido (“goss, goss”).

Durante o decorrer deste tempo e em altura que não tenho de memória, o Comandante de Companhia que tinha vindo substituir o inefável Manuel Caria, terminava a sua comissão. Não tenho do mesmo praticamente qualquer recordação excepto que se fazia acompanhar pela esposa, ficando o casal alojado numa vivenda fora do Quartel. Não era o nome da senhora mas o pessoal resolveu baptizá-la de “Delfina” e foi autora da nova frase carismática a par de “Rumo a Fulacunda”.

Numa das saídas fomos buscar o Capitão a casa e a Srª. D. “Delfina”, disse: - Cuidado Herberto – chamava-se o Comandante Herberto Nascimento; pronto, aquela Companhia era terrível, e a partir daí o simpático Cap. Nascimento, passou a ser o “tem cuidado Herberto”.

Em sua substituição apresentou-se o Cap. M. dos S. Recebido como de costume com todos os “novatos”, com o desinteresse e desconfiança daquele grupo de desmiolados. Este militar fazia questão de salientar já ter feito uma comissão na guerra de Angola como alferes miliciano. E perorava actos e acções de destemor e valentia durante aquele período. Pouco tempo passou e deu-se a primeira saída do novel Comandante da Companhia. Numa noite debaixo de forte temporal, sob chuva intensa e constante, com uma escuridão como só mesmo em África, no comando de um grupo constituído pelo nosso pelotão e o do Malaca dos Santos, avançámos através da floresta cada vez mais densa o que nos punha os sentidos em alerta permanente, que felizmente veio a sublimar-se com o amanhecer quando nos aproximámos de uma pequena bolanha onde, mais uma vez renasce o leit motiv da nossa presença nesta terra, no atravessamento da qual fomos vítimas de intenso tiroteio, o que levou a que a coluna se partisse, ficando ainda na retaguarda do outro lado da bolanha um conjunto do Malaca dos Santos. Na cabeça da coluna, como de costume corri de imediato acompanhado pelo incomparável Fajões e a sua bazooka e o Amorim (era o enfermeiro do Pelotão mas um inigualável combatente) e respondendo com a valentia e eficácia do Fajões que galvanizou o restante grupo que avançando a metralhar o sitio de onde vinha o tiroteio e desbaratou a emboscada, vindo o ouvir-se apenas esporadicamente alguns acordes da costureirinha “PPSH”. Tivemos de atravessar duas vezes a bolanha para trazer a reboque os elementos atrasados e reunificar as tropas.

O inaudito M. dos S. alapado atrás de um baga-baga, sem um som ou movimento olhos esbugalhados, olhava para tudo aquilo com um ar assarapantado e imbecilizado. O Fajões que passamos por ele diversas vezes disse que “o homem parece um Capador” daí lhe ficou o nome pelo qual entre a soldadagem ficou a ser conhecido por esse apodo.

Alguém o ouviu comentar junto de diversos elementos do Comando.
Foi uma actuação de loucos!
Nunca vi nada assim! Correram mais de duzentos metros de peito aberto para cima dos turras, desprotegidos no meio de um intenso tiroteio! São doidos! Perfeitamente doidos.

A investida suicida de peito aberto de frente para as posições inimigas, foi remédio santo, emudeceu para sempre as suas basófias. Mas, a verdade, é que era a nossa única chance, ou os desalojavamo-los, ou deixávamos um pequeno grupo isolado à sua mercê e já tínhamos na Companhia uma triste experiência dessa situação.

Alguns pequenos intervalos com que procurava-mos descomprimir, mais não eram que o reconhecimento da intensa e profunda entrega à missão que desenvolvíamos com desesperante angustia, profundo desgaste e sofrimento, eram gotas balsâmicas, numa permanente situação de tormento, ansiedade e cansaço físico e psicológico que era o nosso quotidiano em permanente estado de guerra, com fugidios e muitas vezes atrozmente interrompidos momentos de descanso.
A certeza adquirida nesta permanência em Mansoa era para além das dificuldades, sofrimento e revezes da Companhia, ainda uma constatação de violência e tragédia na área da nossa intervenção.

Algum tempo após estes graves incidentes, fui confrontado com o reactivar de uma realidade já sublimada pelo tempo e que me reactivou os sentidos de terror, pequenez e impotência ao enfrentar um inimigo invisível e tremendo: as minas.

Encontrando-me com alguns camaradas, de entre os quais estava o meu amigo J.M.Bastos, na esplanada do clube os Balantas, vestido eu à civil, (ainda me lembro da vestimenta - calções de caqui e uma camisa de seda multicolorida, ao bom estilo africano, e uns mocassins) - estava pinoca o saloio, quando ouvimos um grande rebentamento para os lados de Encheia. De imediato corremos ao quartel e tal e qual como estava pus o cinturão em que tinha sempre para além das cartucheiras, quatro granadas e pegando na G3, material que sempre mantinha pendurado à cabeceira da cama, pedindo ainda a entrega de um dilagrama, e montados os diversos pelotões em viaturas, dirigimo-nos para a estrada de Encheia.

O quadro com que nos deparámos foi aterrador. Sendo aquela picada, junto da qual haviam diversas tabancas considerada “controlada”, uma carrinha (mini-autocarro) vinha com alguma frequência de Bissau até junto da cambança para Encheia, transportando população e toda uma parafernalha de utensílios para a localidade e para as já referidas tabancas. Nesta viagem e a pouco menos de 500 metros do local onde habitualmente parava, pisou uma mina, que explodindo desfez literalmente a viatura, espalhando pelas redondezas mortos e feridos, um horror incomensurável, de tal maneira que o Zé Manuel Bastos e o seu grupo tiveram que recolher para cima de um Unimog, corpos e pedaços dos mesmos chegando em alguns casos a haver membros decepados e esquartejados de tal modo que não se sabia a quem pertenciam, uma vez feito este pungente e dramático trabalho, lá seguiu o calmo e sensível J.M Bastos e o seu grupo com a macabra carga, sanguinolenta a tal ponto que escorria para o chão, sozinhos no Unimog para Bissau, vindo ainda já dentro da cidade a ser mandado parar pela P.M. O desenlace foi um imberbe e sobranceiro alferes ficar tremelicando e sem voz na beira da Avenida, acabando o Bastos a sua missão.

Paradas as viaturas e tendo entretanto o meu grupo intervindo por ali nas tabancas e arredores, enquanto outro grupo procedia à picagem da estrada, a população fugiu em massa para uma pequena mata pegada com uma bolanha onde cultivavam arroz, sendo que ainda fomos fustigados de longe ao que reagimos de imediato saltando eu para dentro da bolanha e disparando o dilagrama para dentro da mata, o que provocou um absoluto silêncio mantendo-me no mesmo local donde só saí (lá ficaram os meus queridos mocassins) quando a população, creio que se terá julgado entre dois fogos, começou a caminhar no nosso sentido. Na frente um encorpado gentio vestia uma camisola onde no peito era bem visível o emblema da Mocidade Portuguesa. Entretanto o pessoal que procedia à picagem do resto do troço viria a encontrar poucos metros depois de onde tínhamos parado outra mina que desmontaram e levantaram.

O contacto com esta atroz tragédia, demolidora do mais forte controlo de um ser humano, os diversos acontecimentos subsequentes incluindo a visão do elemento com a camisola referida fizeram despoletar em mim uma crise de nervos que me fez dizer e praticar todos os desmandos possíveis e que só no dia seguinte, já praticamente recuperado, a guerra continuava e eu era tido como preponderante no meu grupo, vim a saber.
Mandei com a arma fora… desatando em completa convulsão a gritar "podia ser o meu irmão", "maldita guerra", etc …etc..

Valeu-me o perspicaz e desembaraçado Rui, que pegando em mim ordenou a um condutor que me conduzisse de imediato ao Quartel o que ele acatou de bom grado mas clamando eu ainda que queria levar a mina.
E lá foi aquela boa alma sozinho ao volante de um camião Mercedes, com um maluquinho sentado ao seu lado com uma mina de cinco quilos de trotil ao colo. Chegados ao Quartel o meu bom amigo Carolino,(infelizmente já falecido, na sua terra - Marinha Grande), já de seringa em riste injectou-me uma mistela que só me deixou acordar no dia seguinte, tornando-se assim o motivo de conversas ditoches e conselhos assizados, que puseram tudo no lugar.

Nos dias seguintes verificou-se alguma acalmia, sendo-nos destinada, entre outras a função de apoio e segurança na escolta a uma coluna de reabastecimentos ao Olossato e durante a qual detectámos e fizemos accionar e destruir duas minas anti-carro e três anti-pessoal.

Ainda da estadia em Mansoa recordo com precisão uma deslocação a Mansabá que me mereceu o comentário no notável blogue do grande camarada e amigo Henrique Sacadura Cabral, com o titulo Rumo a Fulacunda que abaixo transcrevo.

Carlos Rios Fur.Milº CCaç1420 Diz:
15 Março 2011 às 13:48
Curiosa miscelânea de emoções e sentimentos se extrapolam do que os camaradas aqui escrevem. Não quero deixar passar a oportunidade sem comentar a nossa passagem por aqui, de uma das vezes que para aqui viemos foi para participarmos numa operação de grande envergadura em que saíram companhias de diversos acantonamentos, Olossato, Bissorâ, Mansabá etc.. para o Morés e onde uma das companhias apanhou imenso armamento, já não me lembro, creio que foi a do Olossato. A ansiedade era imensa, ainda recordo que estando alguns de nós no Bar, eu me entregava ao consumo desmesurado de aguardente antes de irmos para o Morés, o amigo José Manuel Bastos dizer “é pá logo tu (acho que aquela malta tinha a mania que eu era o Rambo) estás a agir assim? Curiosidade de Mansabá: não precisámos de mosquiteiro para dormir, praticamente não havia mosquitos. Um espanto.

Vindo de Cutia em trânsito por Mansoa com destino ao Hospital de Bissau para ser observado pelo facto de ter dado uma violenta queda que me provocava fortes dores no peito, e tive a alegria de encontrar já recuperado o meu amigo Rui que aguardava transporte para se juntar a nós, em quem notei imediatamente um sentimento de revolta e inconformismo. Então não é que, porque o Comandante do 4.º Pelotão que se encontrava ausente para Bissau, e estando aquele grupo para sair com a missão de avançar para o mato para o desalojamento e eliminação de alguns focos referenciados, o Comando de Batalhão, o tinha indigitado para comandar aquele grupo ao que ele reagiu acabando no fim praticamente por ser coagido a aceitar a missão; de imediato abandonei a ideia de ir para o hospital e lhe transmiti:
- Se vais eu também vou, assim já seremos dois a aguentar o barco! - Oh diabo, voaram mosquitos por cordas.
- Nnão penses nisso, nem em sonhos, se for preciso proíbo-te de ires porque sou teu superior.

Era um poço de humanidade e brincalhão este Rui, depois de acesa discussão com este teimoso lá verificou que não merecia a pena insistir, pelo que lá nos juntámos aos camaradas do 4.º Pelotão. Depois de diversas peripécias no atravessamento de imensas bolanhas aproximamo-nos de uma tabanca isolada na extremidade de uma pequena mata, indo como de costume na frente da coluna, avistei em fuga um elemento pelo que, impetuosa e impensadamente, me lancei em sua perseguição, vindo a ser gravemente ferido quando um grupo de elementos emboscados estrategicamente dispararam diversas rajadas de metralhadora, atingindo-me duas balas que me provocaram perfuração intestinal e o esmagamento de diversos ossos da bacia que me condenaram ao estropiado que hoje sou. Felizmente não houve mais feridos porquanto vinham ligeiramente mais atrasados e puderam abrigar-se e eliminar aquela frente de fogo. Fui em pouco tempo evacuado de helicóptero para Bissau, vindo ao fim de 15 dias para o HMP e posteriormente para a semi-clausura do Anexo vindo a terminar no DI no largo da Graça, locais de onde guardo a mais confrangedora das recordações. E assim termina a saga africana deste anónimo saloio.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9342: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (9): Fragmentos Genuínos - 7

Guiné 63/74 - P9349: Notas de leitura (322): Malhas que os Impérios Tecem (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Recomendo vivamente a leitura de “Malhas que os Impérios Tecem”, um projecto em que está envolvida a Prof.ª Manuela Ribeiro Sanches, que obrigatoriamente revolve a memória da guerra colonial e abre espaço para que os leitores interessados e sobretudo as gerações mais novas possam reflectir sobre um passado colonial que tem um fundo histórico de pensamento anticolonial agitado, complexo, com resistências transnacionais, um fermento que levou à constituição do Terceiro Mundo e à deslocalização da Europa e do Ocidente. É uma soberba viagem antológica e uma viagem que está longe por se dar concluída, nem todo o pensamento está recolhido e no caso português e das suas antigas colónias até se pode correr o risco de não recolher alguns depoimentos essenciais.

Um abraço do
Mário


Malhas que os impérios tecem:
Como reflectir hoje sobre os libelos anticoloniais do século XX


Beja Santos

“Malhas que os Impérios Tecem – textos anticoloniais, contextos pós-coloniais”, com organização de Manuela Ribeiro Sanches (Edições 70, 2011) é uma investigação suculenta e arrojada que abre um amplo leque de interrogações aos múltiplos olhares anticoloniais que conduziram a reivindicações à autodeterminação e à independência das antigas colónias europeias.

Se a Europa mudou de rumo no termo da II Guerra Mundial, foi a descolonização o acontecimento mais complexo nas novas relações internacionais: influiu na Guerra Fria, foi determinante para um novo valor das matérias-primas, significou para os EUA uma enorme capacidade de relacionamento com novos Estados e determinou a sua poderosa e incontestável ubiquidade diplomática, financeira, comercial e tecnológica, arrastando as antigas potências colonizadoras para uma revisão no tratamento dos problemas económicos, das esferas de influência e na ajuda humanitária.

O pensamento anticolonial é um dado assente nos EUA, logo no início do século XX. Incorre perigos de simplificação redutora quem pretenda analisar o pensamento anticolonial a partir de meados do século XX, este livro organizado por Manuela Ribeiro Sanches tem um inegável mérito de, com o recurso a textos antológicos do maior relevo, mostrar como a descolonização teve uma preparação anterior aos ideais libertadores propugnados pela diplomacia norte-americana quando acabou o conflito mundial, em 1945.

Os fundadores do pensamento anticolonial mobilizaram-se à volta da questão do negro primeiro nos EUA e mais tarde nas Caraíbas. Tomaram consciência da diferença racial, da discriminação e da hierarquização fundada na pele. Estes pensadores foram à procura das raízes da negritude em África e construíram um projecto que está na base do pan-africanismo. É por isso que a antologia tem início com um texto de W. E. B. Du Bois publicado em 1903 em que este autor reivindique uma dignidade perdida a par da denúncia da falta de direitos políticos e cívicos. Esta será a tónica dos libelos anticoloniais durante décadas enquanto o Harlem se tornou num santuário do protesto afro-americano. Na esteira de Du Bois, outro autor influente, Alain Locke, nos anos 20, veio a escrever: “O Harlem atraiu o Africano, o Caribenho, o Americano negro; reuniu o negro do Norte e do Sul, o homem da cidade e da aldeia; o camponês, o estudante, o homem de negócios, o profissional, o artista, o poeta, o músico, o aventureiro e o operário, o pregador e o criminoso, o oportunista e o pária social… há que admitir que, até agora, os negros americanos foram mais uma designação racial do que uma realidade factual, mais um sentimento do que uma experiência”. E culmina toda esta reflexão com uma frase que iria ser motivo de escândalo: “A perseguição está a tornar o Negro internacional, tal como sucedeu com o judeu”.

No apropriado estudo prévio à antologia, Manuel Ribeiro Sanches traça o percurso destas itinerâncias, as viagens destes afroamericanos até à Europa e a influência que acabaram por exercer em duas figuras da maior importância para a organização da negritude, já nas vésperas da descolonização: Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire. Estes dois homens vão cruzar os seus destinos em Paris, no início dos anos 30. Evoluirão de modo distinto: Senghor para uma noção de crioulidade, em estreita ligação com a francofonia e recusando a via marxista; Césaire começará por aderir ao internacionalismo comunista de que se irá distanciar. Estava já encetado o processo da formação de elites africanas nas respectivas colónias. É por essa altura que intelectuais como caribenho George Lamming viajam até África, estabelecem diferenças e afinidades entre o mundo de onde vêm do local que observam, outros ficarão desiludidos com as novas nações independentes e no caso do Haiti entende-se que a sua independência foi um produto directo da revolução francesa.

É em plena encruzilhada e teia de afinidades entre negritude e pan-africanismo que vão emergir três pensadores oriundos de colónias portuguesas e seguramente os três nomes de maior projecção no pensamento anticolonial: Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane e Amílcar Cabral. A antologia privilegia o modo como eles rejeitaram o estatuto de assimilados ou coniventes com os formatos coloniais enquadradores dos civilizados/assimilados em oposição aos indígenas. Mário Pinto Andrade, no prefácio à Antologia Temática de Poesia Africana, que só viria a ser publicada em Portugal em 1975, escreve sem deixar margem para equívocos: “A poesia africana de escrita portuguesa e crioula, sob o condicionamento da dominação colonialista, articula-se intimamente ao movimento de libertação nacional. Ela ritma o longo combate: negar a negação e realizar a emergência histórica dos povos. Actores sociais no acto cultural por excelência, a luta armada, formularam então um novo discurso poético. Nos dois momentos, os poetas universalizaram os signos da luta pela independência nacional”.

Estamos pois no novo contexto, os movimentos anticoloniais desabrocham, mas as questões da cultura e da identidade inquietam os pensadores favoráveis às lutas de inquietação. E os avisos e as comparações com o passado recente vieram à tona. Em meados do século, Georges Balandier escreveu um texto seminal sobre a situação colonial no pós-guerra, à semelhança da queda dos impérios ocorrida na I Guerra Mundial, os colonizados descobriam a sua história, as suas elites, educadas nas metrópoles coloniais, lançavam o grito de protesto e foram obtendo independência, com variados graus de vinculação com a potência colonizadora. Daí a necessidade de voltar aos locais da cultura nacional, condição indispensável para expurgar ou condicionar a cultura dos colonos.

Em meados dos anos 50, a questão colonial e o processo da descolonização relevam como um dos problemas de civilização com pedido de urgência. É um tempo de grandes documentos e de grandes intervenções, como as de Sartre, Simone de Beauvoir e Camus, Richard Wright e Frantz Fanon. No pensamento anticolonial começa a denunciar-se os artifícios da potência colonial para manter as suas prerrogativas junto da antiga colónia (neocolonialismo) ou o uso das estruturas sociais para cavar divisões na sociedade colonizada. Kwame Nkruhmah escreve: “O maior perigo que África enfrenta é o neocolonialismo, cujo principal instrumento é a balcanização. Este termo define de modo particularmente correcto a fragmentação da África em Estados pequenos e fracos; foi inventado para designar a política das grandes potências que dividiram a parte europeia do antigo Império Turco e criaram na península balcânica vários Estados dependentes e rivais entre si”. Eduardo Mondlane desmonta o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, observando que os administradores coloniais com a dimensão de António Enes ou Mouzinho de Albuquerque não se preocuparam em esconder a base de desigualdade e racismo contida nos seus pontos de vista sobre a questão colonial. Mondlane, à semelhança de Amílcar Cabral, denuncia o conceito de civilizado, de assimilado e de indígena e como tal categorização exacerbou conflitos étnicos com base em desigualdades raciais.

“Malhas que os Impérios Tecem” ajudam a compreender que o que se passou em África, em 1961, foi muito mais que o acirramento das superpotências que se aproveitaram dos sonhos de independência, há uma longa história anticolonial que aqui se revela e esclarece que aquelas lutas de independência tinham o tempo longo a seu favor.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9334: Notas de leitura (321): Prática e Utensilagem Agrícolas na Guiné, por F. Rogado Quitino (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9348: Parabéns a você (367): Maria Ivone Reis, 83 anos: enfermeiras, paraquedistas, amigas, companheiras de aventura e camaradas para sempre! (Maria Arminda)

No dia do 83.º aniversário da nossa Enfermeira Paraquedista Maria Ivone Quintino dos Reis, a nossa tertuliana e também Enfermeira Paraquedista, Maria Arminda Santos, presta aqui, no nosso Blogue, uma sentida homenagem à sua amiga, camarada e companheira de aventura.


Os meus parabéns à minha colega Maria Ivone Quintino dos Reis:  Boa amiga, fazes hoje, dia 13 de janeiro, oitenta e três anos de existência!

Como é bom chegar-se a esta idade e poder-se recordar todo o percurso de vida, que Deus nos facultou.

Como não é presentemente o teu caso [, por razões de saúde,], venho deste modo e à laia de missiva, recordar a mim mesma, mas em tua homenagem, o modo como nos conhecemos, a vida que partilhámos em conjunto, com momentos bons, menos bons e por vezes com opiniões diferentes e algumas brincadeiras pelo meio que tu com o ar mais sério, as achavas como desadequadas e inoportunas, mas que eu as reconhecia, como atos próprios das jovens raparigas, que éramos.

Lembro-me do primeiro dia que te conheci. Saímos do Aeroporto da Portela a vinte e seis de Maio de 1961, cerca das 9h30 e a bordo de um velho “Junker” (JU 52), que passou a partir desse momento a ser o nosso fiel amigo, íamos prestar provas psicofísicas ao Batalhão de Caçadores Paraquedistas em Tancos. Como estava um dia com chuviscos, algumas de nós íamos de lenços na cabeça, tipo meninas do colégio em jeito de passeio de fim de curso.


Realmente apesar de todas nós já sermos enfermeiras, parecíamos umas colegiais, gente simples e em nada sofisticadas.

Foi um dia de “gozo”, para os militares que observaram aquele grupo de onze mulheres que,  invadindo o quartel daquela tropa especial e de elite, se aprontavam para que num futuro próximo, passassem também a fazer parte dela, mas na situação de pessoal equiparado a militares paraquedistas. Quem diria que naquela época de tão brandos costumes e num mundo tão fechado às mulheres isso pudesse vir a acontecer.

Fizeram-nos correr, saltar e suar, mas o modo pouco habitual como o fizemos, apelidaram-nos de imediato, “OS PRIMEIROS CEPOS DA AERONÁUTICA"

A Mª Ivone está ao lado do Cap Pára Cunha, seguida da Mª da Nazaré, (falecida), Mª Arminda, Mª de Lurdes, Mª. Margarida Costa, Mª do Céu Bernardes, Mª do Céu Policarpo, Mª Zulmira André (falecida), Mª Helena, Mª Margarida Pinto, Mª Irene e Major Lelo Ribeiro.

Continuaste como todas nós a correr, marchar e a saltar daquela medonha “Torre Francesa”.

Nessa fase algumas de nós, passaram a ter mais dificuldade nalguns exercícios. Recordo hoje,  com algum sorriso, o dia em que nos apearam junto à ponte da Chamusca, para uma prova de orientação (de azimutes), sem que antes nos recomendassem que, se à hora combinada não estivéssemos no ponto de reunião, que afinal era a barcaça da margem esquerda do rio Tejo, que nos levaria até à viatura de regresso ao quartel, teríamos que regressar (desenrascar), de qualquer modo.

Dividiram-nos em dois grupos, num dia tórrido de Julho, e tu fazias parte do meu. Com aquelas combinações de salto, que nos deram para a instrução, revestidas de borracha aos níveis das regiões sagrada, joelhos e cotovelos, ao andarmos terreno acima e abaixo, sem água e cheias de sede, recordo-me que ias entrando em choque, não fora o arejamento acidental, com a despida de tal uniforme, porque ao passarmos por um silvado, ficou com carraças e terias tu e eu, caído para o lado desmaiadas tal era o cansaço.

Passaram-se as semanas e parte do grupo extraordinariamente amigo e unido, foi-se desfazendo pelo medo que algumas tiveram ao não conseguirem,  repetidamente, voltarem a saltar daquela célebre “Torre de saída”, que simultaneamente também servia para treinos de aterragem.


Tu e outras de nós, conseguimos chegar ao fim do curso e conquistarmos a tão almejada “Boina Verde e as Asas ao peito” de que tanto nos orgulhamos.


Na foto superior estás em penúltima, na de baixo estás na 2.ª posição à esquerda. Falta a Mª da Nazaré que por motivo de uma entorse ao (4.º salto), acabou dias depois.

A partir daí começaste a fazer parte daquelas “Seis Marias que desceram do Céu.”

Embarcamos pela primeira vez para a África, (Luanda-Angola) a vinte e dois de Agosto de 1961, para acompanharmos na qualidade de enfermeiras, o lançamento de paraquedistas na Serra da Canda.

Partimos juntas e felizes para a nossa primeira missão à Africa, a bordo de um DC6 da nossa Força Aérea, que tinha como comandante o Ten Coronel Francisco Rosa, que no meio aeronáutico entre os pilotos, era chamado pelo Chico Rosa.

Após a descolagem em São Tomé, onde também fizemos escala, pregou-nos uma partida e,  tendo-nos chamado à cabine de pilotagem, nos mandou olhar pelo vidro da frente do avião, o que aceitámos fazer de imediato, sem nada vislumbrarmos de especial, pois disseram-nos que observássemos a linha que iria aparecer no horizonte. Foi então que o outro membro da tripulação nos regou a cabeça com uma garrafa de água, que nos deixou o penteado todo molhado. Era a tradição de batismo para quem pela primeira vez como nós, passávamos para o outro hemisfério, cruzando a linha do Equador. Foi uma risada entre todos, o que nos facilitou o relacionamento com as tripulações.

Tivemos o privilégio de assistirmos aos procedimentos de aproximação à aterragem e pela vida fora não mais esquecemos aquele e outros comandantes das tripulações, e vários pilotos com quem fizemos muitas missões e que de um modo geral, se mantiveram amigos.

Chegamos a Luanda com uma boa receção dos nossos camaradas paraquedistas que vieram receber-nos com muita cordialidade e conhecer aquelas “Aves raras”, que se tinham introduzido no seu meio, mas que eles não conheciam, porque já estavam colocados em Angola, quando iniciámos o nosso curso.


Na 1.ª foto o Comandante Francisco Rosa está de costas, ao cimo da escada.

A chegada foi propalada e a Comunicação Social apanhou-te para uma declaração. Eu ia pagando uma “Completa de 10”, por trazer um botão desabotoado da farda. Ao tempo era o que me dizia o Cap Marques da Costa que arrancou um franco sorriso do Tenente Mansilha, na 2ª foto. Salvou-me estar de farda n.º 1, (havia de ser bonito em pleno aeroporto!..). Testemunharam o facto o Alf Moura Martins, Tenentes Ruivinho e Proença, além do Cap Almendra (meio encoberto, na 3ª foto).

Depois,  amiga, lá embarcámos a bordo do Nord-Atlas a acompanhar aquele lançamento, com muita pena por não termos saltado também, e ainda por cima com a enorme angústia de vermos um dos nossos militares ficar preso ao avião. Felizmente safou-se por pouco e não foi necessária a nossa intervenção, nessa missão.

Nesta foto a Ivone olha para um militar que,  50 anos depois, aquando da Homenagem e entrega de Diplomas em Tancos, promovida pela UPP (União Portuguesa de Paraquedistas) a 27 de outubro de 2011, a todos os “Páras” brevetados em 1961, a aborda e lhe mostra o seu álbum que continha esta foto, que aqui registo. Senti uma grande mágoa por ela a não ter reconhecido, como já era esperado.


A tua e a minha vida continuaram e passados uns meses precisamente, no dia 18 de dezembro de 1961 aquando da invasão de Goa, pelas tropas da União Indiana, juntámo-nos em Carachi no Paquistão Ocidental, onde já te encontravas com a Maria do Céu Policarpo a assegurar a evacuação de mulheres e crianças familiares dos nossos militares e outras da população civil, que pretenderam sair de Goa.

Tivemos um regresso atribulado a bordo de um DC4 dos TAIP (Transportes Aéreos da ex-Índia Portuguesa), cujo comandante,  Solano de Almeida,  o tinha conseguido retirar com estilhaços, e fugido com a pista inoperativa, conjuntamente com um avião da TAP que ainda vinha mais esburacado e que ficou a reparar em Carachi.

Na primeira aterragem na cidade de Damasco brindaste-nos com o teu lado brincalhão. Estavam a embarcar num avião DC3 - Dakota um grupo de árabes e tu, com um véu branco na cabeça e os cordões à volta da cabeça, começaste a imitar a fala dos árabes o que fez com que olhassem para trás. Felizmente que era de noite e a situação não trouxe complicações.

Trouxemos uma nova passageira e recém-nascida, que é tua afilhada,  e chegámos a Lisboa em vésperas de Natal, sem antes termos aterrado de emergência em Palma de Maiorca, o que permitiu à tripulação e a nós algumas horas de repouso noturno. Antes da descolagem ainda deu para uma partilha de descontração com os mecânicos do avião à beira da piscina do hotel, onde se pernoitou.

Mª do Céu Policarpo, a Mª Ivone, de pé segura a mangueira, Mª Arminda, um dos tripulantes, e a Mª da Nazaré.


Com este ar jovial e alegre, quem pensaria que tivéssemos passado por noites sem dormir, uma certa angústia com os acontecimentos e a incerteza do que se estaria a passar nos territórios na Índia, a par do cansaço pelas muitas horas de voo e alguns sustos.

Graças a Deus hoje duas de nós ainda cá estamos para os recordar, embora não contemos contigo para o efeito, mas não esqueço que para além desta missão ainda lá voltaste no repatriamento dos nossos militares aprisionados. Tu e a Zulmira cumpriram essa missão, mas foi a ti que coube, ir mesmo à Índia a um campo de prisioneiros, numa situação perigosa e difícil.

Ivone,  estou a relatar tudo isto, mas gostava que tivesses a possibilidade de seres tu mesma a fazê-lo. Tal como sempre afirmo – A vida é os dias de que nos lembramos - e porque tenho ainda a faculdade de me recordar de algumas passagens, ofereço-te como presente de aniversário, este texto para a “Tabanca Grande”, que traduz uma ínfima parte do teu percurso profissional, não esquecendo que tu passaste também pelas três frentes da “Guerra” e naquela terra, a Guiné, onde de uma forma ou de outra, todos os que lá estiveram e que a trouxeram no coração, tu noutra situação de saúde, terias com certeza muitas das tuas vivências para lhes contar.

Por não me ser possível abraçar-te neste dia, deixo-te com duas das imagens do nosso reencontro no dia 8/8/2011, data do 50.º aniversário do nosso curso e da Festa da entrega do Diploma em Tancos, a 27/10/2011.

Associação da Força Aérea Portuguesa (AFAP)
Mª do Céu Policarpo, Mª Arminda Santos, Mª Ivone Reis e Mª de Lurdes Rodrigues.

Mª Ivone e Mª Arminda

Texto e fotos: Mª Arminda Santos.
Enf Paraquedista
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9347: Parabéns a você (366): Maria Ivone Reis, ex-Ten Enf Pára, 83 anos!

Guiné 63/74 - P9347: Parabéns a você (366): Maria Ivone Reis, ex-Ten Enf Pára, 83 anos!


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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9339: Parabéns a você (365): Bernardino Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365 e CCAÇ 16 (Guiné, 1971/73)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9346: Tabanca Grande (317): Anabela Pires, voluntária no projeto Ecoturismo do Cantanhez, nossa tabanqueira nº 536, aqui saudada pelo Hélder Sousa

1. A Anabela Pires [, foto à direita],   mais uma amiga da Guiné-Bissau,  aceitou o nosso convite para integrar a nossa Tabanca Grande, como se depreende do comentário que deixou no poste P9325 (*):


Caros camarigas:


Obrigada, do fundo do coração, pelos vossos votos, pelas vossas cartas/mapas, pelo livro do Jero, que estou a ler.


Ainda nada fiz, só estou para embarcar, com sorte na próxima 6ª feira, dia 13 [de janeiro de 2012, a caminho de Bissau e depois Iemberém, Cantanhez, Região de Tombali].


Quando estava no aeroporto para embarcar, no dia 6, o que não sucedeu, recebi de uma amiga um livro de Paulo Freire, 4ª edição de 1984, intitulado Cartas à Guiné-Bissau (**). Na contracapa li "....o verdadeiro sentido da ajuda, aquela em cuja prática os que nela se envolvem se ajudam mutuamente, crescendo juntos no esforço comum de conhecer a realidade que buscam transformar. Assim, o ato (a ajuda) não se distorce em dominação do que ajuda sobre o que é ajudado."


Terei esta frase sempre presente e a minha ajuda não será, neste sentido, fácil, uma vez que vou trabalhar no projecto ecocantanhez, [da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento]. Há que ter, em primeiro lugar, presente a realidade, os intereses da população mas também a noção de qualidade dos "clientes", provavelmente provindos de culturas bem diferentes. Haja "engenho e arte"!


Bem, ao fazer este comentário, acabei por aceitar, muito antes do que tinha previsto, o honroso convite para me associar à Tabanca Grande! (***)


Um abraço para todos(as),


Anabela Pires


2. Elogio da nova tabanqueira [, nº 536,]   feita pelo colaborador permanente deste blogue, Hélder Sousa [, foto à direita,], em comentário ao poste P9325 (*):


Caros amigos:

Esta notícia que o JERO [, José Eduardo Oliveira, ] nos enviou, com todos os ingredientes que a compõem, bem assim como as achegas que vieram dos comentários, tem várias coisas que são notáveis.

A primeira é, obviamente, a decisão de Anabela Pires em ocupar a sua reforma em algo que lhe é útil (também) mas em que dirige os seus conhecimentos, saberes e força de vontade em algo que enriquece quem toma esse tipo de atitudes e que é o de 'ajudar os outros'. Provavelmente o seu nascimento em África pode ter contribuído para o 'apelo' mas acho que o 'contágio' com a Guiné explica-se através do que foi referido sobre os contactos e os conhecimentos.

Depois, serve também para sabermos como os problemas burocráticos, as necessidades de 'afirmação' de pequenos peões se acabam por agigantar e complicar o que pode ser simples. Nem toda a gente tem a paciência necessária para enfrentar essas contrariedades, o que, felizmente, não é o caso de Anabela Pires.

Saltando por cima de mais algum outro pormenor sublinho agora o comentário que a Anabela faz em que toca exactamente no ponto essencial do que deve ser (ou não) uma atitude correcta em termos de cooperação. É isso mesmo!

Já tinha lido num relatório de actividades da AD alguma posição crítica à forma como algumas 'cooperações' foram feitas e como disso nada resultou e às vezes 'antes pelo contrário' e a chave do sucesso é sempre o que a Anabela acabou por citar. Igualmente o mesmo tipo de conclusão já me tinha sido feito chegar pela a minha amiga Marta [Ceitil] aquando dos seus relatos como cooperante onde se apercebeu perfeitamente dessa situação de troca de conhecimento e de reciprocidade de ganhos.

Do meu ponto de vista a Anabela está no caminho certo, vai ter sucesso na sua actuação e vamos ter conhecimento de várias situações relatadas ao vivo e actuais.

Boa viagem e bom trabalho.

Quanto ao JERO, o mesmo de sempre. Grande sensibilidade, bom 'olho' para os bons valores e sempre aquela disponibilidade desinteressada que o caracterizam.

Abraço. Hélder S.
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Notas dos editores:


(*) Vd, poste de 7 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9325: Ser solidário (119): Anabela Pires: A caminho de Iemberém como voluntária da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento (JERO)

(**) FREIRE, Paulo  [1921-1997] - Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Sinopse: Escrito e compilado em 1976 e 1977, este livro é o registro do primeiro ano de trabalho de Paulo Freire na construção de um modelo de alfabetização de adultos em Guiné-Bissau, então recém-independente. Através da correspondência trocada entre o educador e a Comissão Coordenadora dos trabalhos de alfabetização em Bissau, o espírito de colaboração e de transformação da realidade que norteia o pensamento de Paulo Freire nos incentiva a olhar para a África, histórica e socialmente tão próxima de nós. [Fonte: Editora Paz e Terra].

Ficha técnica:
Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro 
2011
5ª edição
264 páginas
Formato: 13,5 x 20,8 cm
ISBN: 9788577531899
Brochura
R$ 39,90

(***) Último poste da série > 3 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9307: Tabanca Grande (316): Vasco da Gama foi operado ao coração, mas está já em casa em convalescença

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 – P9345: Memórias de Gabú (José Saúde) (21): Rádios dos tempos da Guerra do Ultramar



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Rádios dos tempos da Guerra do Ultramar

De Tete, Moçambique a Gabu, Guiné


Recebi, recentemente, uma mensagem deveras interessante enviada por um camarada Ranger de nome Jaime Froufe Andrade que refere a curiosidade em manter em seu poder um rádio pertencente a um ex guerrilheiro capturado na região de Tete, Moçambique, no dia 17 de Setembro de 1968. Segundo o relato do camarada, esse audacioso pequeno aparelho (funciona a pilhas) e revela uma história interessante a registar para a posterioridade, faltando, porém, conhecer o seu epílogo. 



Resumindo: O conteúdo do alerta deixado pelo Ranger Andrade, friso, também, o meu aviso, visando juntar as peças do puzzle entretanto desarrumado. Mas, e há sempre um mas, nestas coisas da internet tudo hoje se processa de uma forma simples e singela onde o carregar numa tecla – “enter” - poderá apresentar-se de seguida como a prova reconhecida para desmistificar um sonho que tende permanecer escondido num canto da saudade.

Fala o camarada que a celebridade que teima em manter no seu espólio ultramarino, lembra-lhe um golpe de mão efectuado lá para as bandas de Tete, Moçambique, sendo que do assalto resultou a captura de um ex guerrilheiro da FRELIMO que transportava consigo um rádio o qual ele próprio recolheu, sendo que a celebre preciosidade ainda se mantém, intacta, na vitrina dos seus troféus.

O apelo do Ranger Andrade é procurar encontrar o fim do fio da meada para, finalmente, entregar a telefonia ao seu verdadeiro dono: o homem capturado pela tropa lusa, perto de Tete, no já longínquo ano de 1968, precisamente no dia 17 de Setembro, reforço.

Sabes, camarada, que na Guiné também era comum os guerrilheiros transportarem roncos dessa natureza. Aliás, um aparte: os roncos não se quedavam apenas a nível das tropas inimigas, nós, brancos de rija tempera, curtíamos também os sons dos nossos nostálgicos rádios, aqueles comprados nas lojas dos libaneses em terras guineenses, enquanto em Moçambique, vocês, adquiriam-nos junto aos monhés, penso que era assim que na altura os baptizavam. Hoje, reconheço que se tratava de um desapreço multicultural, e racial, trazido fluentemente à estampa nesses remotos tempos.

Não obstante a verdade conhecida, o rádio, em poder do Ranger Andrade, assume-se ainda hoje como um pequeno brinquedo que não obedeceu a custos adicionais, sendo que o seu regresso às mãos do seu eloquente dono permanece em aberto. As portas continuam escancaradas!

Como nota de roda pé, passo a citar em seguida a história do meu velho rádio em Gabu, Guiné 1973/74.


O rádio do nosso contentamento 
Música para omitir a dor 

O dia de folga, de abençoado descanso, propunha aventuras deveras concertantes. A malta vestia roupa civil, aprumava-se à maneira, curtia tardes de convívio e espreitava o movimento das ruas de Gabu. 

Com uma camisa cingida ao corpo, uma calça de ganga, umas peúgas brancas, mania de uma juventude irreverente, e um sapato de pala, já agora uma cueca também branca, formalizavam uma indumentária do turista de Gabu. 

Depois vinha o passeio. 

Empapuçado com a minha presença lá ia eu desbravando territórios adversos aos campos de batalha. O camuflado, arrumado a um canto, mostrava-se paciente com a trégua que lhe foi dada. Amanhã, ou logo, lá estava ele operacional. 


No quarto partilhado com outros camaradas o velho rádio emitia sons que traziam até nós disseminadas notícias da metrópole que nos davam gozo. Sabíamos as últimas do país. Um país que além-mar se deparava com três frentes de guerra. 

Por outro lado notícias desportivas sobre as virtualidades do ciclista do Sporting, Joaquim Agostinho que, não obstante a idade, continuava a brilhar para gáudio do antigo homem do pedal João Roque que o tinha descoberto lá para as bandas de Torres Vedras; a última vitória do Benfica para o campeonato; os hoquistas portuguesas que continuam na senda como os melhores do mundo; o jovem Fernando Mamede que ao serviço do Sporting se afirmava como atleta de alta competição; enfim, notícias diversas sobre o mundo do desporto português que nos chegavam através do rádio. 

No campo musical, Amália Rodrigues, Fernando Farinha, António Calvário, Madalena Iglésias, Simone de Oliveira, Tony de Matos, Francisco José e toda uma elite de cantores lusos afamados, apresentavam-se ao rubro como artistas modelos para jovens que se deparavam com o factor de isolamento algures num ponto mais híbrido numa qualquer mata do Ultramar. 

Aquele rádio foi um dos meus fiéis amigos. Comprei-o numa loja de libaneses em Gabu. Na altura adquiri também uma ventoinha. 

Após a independência fiz questão em deixar como herança para os tropas do PAIGC essa maravilhosa relíquia! Uma dádiva caída do céu. 

Um abraço deste alentejano de gema, 
José Saúde 
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados. 
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.  
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:
4 DE JANEIRO DE 2012 > Guiné 63/74 – P9313: Memórias de Gabú (José Saúde) (20): Passagem de ano 1973/74


Guiné 63/74 – P9344: Armamento (7): O foguetão de 122 mm (Luís Dias)


1. O nosso Camarada Luís Dias, ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872,Dulombi e Galomaro, 1971/74, enviou-nos mais uma mensagem desta série: 

O FOGUETÃO 122 mm 


Caros Camaradas,

Embora este tipo de armamento não seja propriamente da minha especialidade desejo dar este pequeno contributo, retirado de elementos colhidos na net.



Guiné > Cabuca > 1º Pel. da 2ª CART/BART 6523 > O Alf Mil Op Esp António Barbosa, junto dos restos de foguetões de 122 mm

O lançador de foguetes Katyusha é uma arma de artilharia (lançador de foguetes múltiplos) desenvolvida e utilizada pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Foi apelidado na época de "Órgão de Estaline" pelas tropas alemãs (em alemão: Stalinorgel) em referência ao dirigente soviético com o mesmo nome. Já o nome Katyusha foi dado pelo Exército Vermelho retirado de uma música famosa durante o período da guerra, que contava a história de uma jovem russa (Katyuhsa, diminutivo russo para Catarina) cujo namorado estava longe em virtude da guerra.



O desenvolvimento dos foguetes lançados por artilharia na URSS iniciou-se em finais dos anos 40, a fim de se substituírem ou complementarem os Katyusha de 82mm, 132mm e 300mm, da IIª GM. A fábrica estatal situada em Tula, sob a liderança de A. Ganichev, apresentou um foguete (míssil) no calibre 122mm, em 1963, denominado 122mm BM-21 GRAD. 

Ao longo de 1964 foram produzidos diversos tipos desta série e a serem transportados em camiões e outros veículos de vários tipos e dimensões, com diversos conjuntos e combinações de lançamento múltiplo. Também foi fabricado o Foguete 9P132/BM-21-P, no calibre 122mm (mais curto que o modelo standard, embora também pudesse ser usado por um multi-tubo, a ser lançado por um único tubo – o lançador 9M28/DKZ-B.

O modelo standard é composto por uma cabeça (ogiva) explosiva de alta fragmentação (havia apontamentos no Exército Português que referiam que a cabeça se fragmentava em 14 000 estilhaços), um corpo em aço e um motor eléctrico de propulsão situado na cauda. 

A estabilização durante o voo é conferida por 4 alhetas estabilizadoras, situadas na parte de trás do foguete e quando completamente abertas atingem os 226mm. 

A cabeça contém 6,4 kg de explosivo e o detonador é armado por inércia, após percorrer entre 150 a 400 m. Podem ser aplicadas outro tipo de ogivas (químicas, fumos, incendiárias). 

O motor consiste em 20,5 kg de um propelente sólido. O peso total do foguete varia entre os 49,4 Kg e os 66 Kg e o seu comprimento entre os 2, 46 m e os 3, 22 m, também o seu alcance varia entre os 10 900 m e os 20 750 m. 

O míssil é reconhecível pelos seis tubos de descarga propulsora existente na cauda.

Sabemos que a arma (original) não era muito precisa e eram necessários muitos foguetes para que a sua eficiência fosse assinalável. No entanto, tinha um impacto psicológico enorme face ao volume e intensidade de som das saídas dos tubos.

Assim, a arma Katyusha era originalmente a denominação para os foguetões utilizados pelos multi-lançadores, que eram transportados em diversos tipos de camiões. Depois da guerra, os soviéticos aperfeiçoaram estes multi-lançadores, com o surgimento do míssil 122mm BM-21 GRAD, colocados em viaturas diversas e com diverso número de tubos. 

Aperfeiçoaram também um míssil portátil, na origem do anterior, mas ligeiramente mais curto, com o mesmo calibre, com a denominação 9P132/BM-21-P, que era lançado pelo uni-tubo 9M28/DKZ-B e era este o míssil mais utilizado nos ataques por foguetões na Guiné, pelo menos dentro do território, tendo sido, inclusive, capturadas diversas rampas de lançamento do tipo referido, conforme diversas fotos existente (CCAÇ 4740, 72/74 – Cufar).

Hoje, o uso de lançadores múltiplos de mísseis encontra-se difundido pela maior parte dos exércitos de todo o mundo.

De facto, a denominação Katyusha foi atribuída aos mísseis do tempo da IIª GM, que usavam vários calibres e eram transportados em camiões, mas tornou-se usual utilizar este nome, como “nick name”, uma alcunha, para os foguetões usados em multi-lançadores, mesmo os fabricados por outros países.

Eu, na Guiné, sempre utilizei a terminologia foguetão 122, quando me referia a esta arma (o IN usou-a na nossa zona, depois de passar entre a área de Cancolim e Galomaro e atacou Bafatá em 1972, embora sem grandes prejuízos), mas ouvi, também, muita gente referir-se como foguetão do tipo katyusha. No entanto, do que li, a terminologia katyusha é usada, unicamente, para os mísseis usados em lançadores múltiplos.

Espero ter dado uma ajuda sobre este tema.


Um abraço

Luís Dias

Fotos: © António Barbosa (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. também o último poste desta série em:

9 de julho de 2011 > Guiné 63/74 – P8533: Armamento (6): As caixas de madeira ou de metal que nos causavam muito respeito (Luís Dias)

Guiné 63/74 – P9343: In Memoriam (104): Carlos Adrião Geraldes (1941-2012), ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Guiné > Zona Leste > Pirada, 1965 > Da esquerda para a direita: Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Mil Médico Duarte e Alf Mil Carlos Geraldes

Fotos: © Carlos Geraldes (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.




Mais um camarada que desaparece do reino dos vivos, mas não da nossa memória. Ontem, por telefone, soubemos da notícia da morte do Carlos Geraldes. O coração pregou-lhe a grande partida. Aos 70 anos. Na noite de quarta para quinta-feira passadas, o Carlos morreu, no Hospital de Viana do Castelo, vítima de ataque cardíaco.



Rui Vieira, seu amigo, 30 anos mais novo, foi o mensageiro da funesta notícia. Foi também ele quem nos deu mais pormenores biográficos sobre o Carlos Geraldes, membro da nossa Tabanca Grande desde 2009, e ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Nasceu em Lisboa, a 23 de Junho de 1941. Foi para Viana do Castelo, aos 4 anos, quando o pai, desenhador técnico, foi trabalhar para os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Os pais do Rui e do Carlos eram amigos. Daí a amizade (e a admiração) que ligava o Rui ao Carlos, uma figura tutelar, de referência, um cidadão exemplar, um homem do seu tempo… O Rui é também leitor e admirador do nosso blogue. Acompanhava os escritos do seu amigo, publicados no nosso blogue, e que vão da poesia ao conto. Recorde-se que da sua série Gavetas da Memória publicaram-se 14 postes, mas também um conjunto de Cartas (Carlos Geraldes) (em 10 postes) revelando o seu dia no nordeste da Guiné, até ao seu regresso.

Rui Vieira aceitou o nosso convite para escrever um texto de homenagem póstuma ao seu amigo e nosso camarada. Prontificou-se também a falar com a Dona Isabel, viúva, no sentido de salvaguardar o espólio do Carlos relativo à Guiné (cartas, fotos, textos e outros documentos).

Ao Rui, à Isabel, ao irmão, arquiteto, sobrinhos, demais família, amigos do Carlos, bem como pessoal da CART 676, aqui a fica manifestação do nosso pesar mas também da nossa admiração por este camarada que nos honrou com a sua presença e a sua colaboração na Tabanca Grande. Nunca o chegámos a conhecer pessoalmente, nem nunca participou nos nossos encontros. O seu nome passará a figurar, no nosso blogue, na lista dos amigos e /ou camaradas que da lei da morte se foram libertando. E com ele já soma 19. Paz à sua alma.
Os editores.

PS1 – O Rui Vieira, natural de Lisboa, está a fazer o seu doutoramento em história contemporânea. É investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É especialista no domínio da história da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Estamos-lhe gratos por ter contactado os editores do blogue. Ficamos a guardar o seu prometido texto de homenagem ao Carlos Geraldes.

PS2 - A nossa melhor homenagem ao Carlos, que era um homem culto e sensível, é dizer-lhe que está aqui connosco nos poemas, ora mais tristes ou pungentes, ora mais irónicos ou líricos, com que nos brindou em vida… Aqui fica uma pequena seleção de um conjunto de poemas a que ele deu o título “Guiné: A Face Oculta”, e que nos mandou com a seguinte nota, em 22/11/2009: “ (…) Peço desculpa pela desfaçatez, mas também eu escrevi ‘poemas’ em noites de maior solidão. Reuni aqui alguns que me parecem retratar melhor os sentimentos despertados pelas noites africanas. Curiosamente tinha-lhes dado um título, ‘Guiné: A Face Oculta’, mas era a minha face que sentia e queria manter oculta. Nada tem a ver com essa escandaleira que nos dia de hoje está a vir a lume em todos os meios de comunicação (…)".


A toalha branca

Pousada aos pés da cama
Está uma toalha branca,
Onde limpo o rosto após a jornada.

Dá-me calma, alento, vigor.
Mas hoje está para ali,
Inútil, enxovalhada.

Haverá alguém que diga:
Pronto, tudo acabou!
Já não há mais nada!

Será que é hoje? Amanhã?
Quem sabe?
Qual será o fim da derrocada?

Pirada, Abril de 1965


Os meus amigos

Os meus amigos
São as lentas sombras da memória,
Que me visitam em dias de chuva.

São aqueles com quem respirámos
A alma, os tormentos e a glória,
Dos heróicos dias do passado.

São aqueles com quem chorámos
As tristezas e as breves alegrias,
Deste mundo inacabado.

(E também a melancolia das tardes frias...)

Os meus amigos (os mais queridos),
São as palavras e as cores
Que vão morrendo aqui e agora.

(Os meus amigos voltaram esta noite.)

Pirada, 24 de Agosto de 1965


Noites de Paúnca

Depois vem a noite.
Plena de luzes brilhantes
Parecendo tão longe
Como sóis agonizantes.

Gritos horríveis, gritos de bichos
Rasgam o silêncio das trevas
Sem abalar a indiferença
Dos que adormecem nas casernas.

E as coisas cómicas,
E as coisas tristes,
Acabam por se misturar,
Ficando tudo mais indiferente.

Quando nasce o Sol, finalmente,
As coisas cómicas e as coisas tristes
Ficam novamente cómicas,
Ficam novamente tristes...

Paúnca, 21 de Outubro de 1965


A patrulha

Alargam-se os caminhos da povoação
Já se distinguem as enormes mangueiras,
Ouve-se o rumor abafado do pilão,
O falso matraquear de armas traiçoeiras.

Perdida a prudência, exauridos,
Pelas crianças, caem vencidos.
Pois em troca de balas e tiros,
Recebem longos abraços e risos.

Agora, já é tarde,
Muito tarde para voltar,
Ninguém mais recorda o ódio,
A crueldade ignóbil de matar.

Lá longe, a caminho da bolanha,
Vai uma rapariguinha a cantar,
Lembra aos tristes soldados
As longas saudades do mar.

Paúnca, 16 de Janeiro de 1966
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Nota de CV:

 - Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9330: In Memoriam (103): Maria Manuela Flores França, ex-Cap Enf.ª Paraquedista (Maria Arminda Santos)