Meus queridos editor e co-editores Luís, Carlos e Eduardo:
Uns percalços vivenciais atrasaram o envio de mais um "item" desta série.
Este tema de hoje estava já alinhavado e, assim, foi o que mais depressa pude arranjar.
Vamos lá a ver se recupero aquele atraso que estou a sentir (não tenho mais nada pronto).
Receio que o tema de hoje seja "mixuruca" para muitos. Para mim não é mas, como sempre, respeito totalmente o v/ "criterioso critério".
Para o valioso "trio de ataque" deste blogue
Um grande abraço
Manuel Joaquim
CARTAS DE AMOR E GUERRA
8. A falta de notícias na retaguarda
Quando se fala da guerra colonial é normal referir o sofrimento dos combatentes mas não é comum falar-se, ao mesmo nível, da dor suportada pelos seus entes queridos (pais, avós, irmãos, namoradas, etc.).
Dizer que os combatentes, a maioria, ligavam o seu maior ou menor sofrimento ao nível de perigo que corriam, é excessivo? Acho que não. Até podiam sentir “folgas” no perigo, quer dizer, podiam passar um ou outro período mais ou menos longo em que a situação de periculosidade era como que esquecida. Acrescia ser também natural que as preocupações quanto aos seus entes queridos pudessem ser sublimadas pela ideia de que estes não corriam perigo algum a não ser de doença ou de acidente (em que, normalmente, não se pensa). Ideia esta que os podia levar a menosprezar o valor da sua comunicação. E isto aconteceu muitas vezes.
Na retaguarda a situação era diferente: quem ficou queria notícias frequentes do seu combatente querido, de modo a amenizar a sua insegurança quanto à verdade da situação. Vivia como se ele estivesse constantemente em perigo, isto é, nunca poderia saber se ele estava doente, ferido ou morto quando nele pensava ou quando para ele escrevia.
Ver, como eu vi, um monte de cartas dirigidas a quem tinha falecido umas horas antes, é coisa que não se esquece. Foi uma visão brutal que me ficou marcada para sempre. Hoje me penitencio pelo sofrimento que provoquei junto dos meus entes queridos com as minhas falhas em dar notícia. Tenho a certeza que teria mitigado algum do sofrimento que a minha ausência lhes provocava.
Termos alguém muito querido numa situação perigosa, sem notícias dele em tempo real e sem se poder fazer nada para o proteger, deve ser amargurante: sempre à espera, qual lotaria “a contrario”, ansiando que os números sorteados não nos contemplem com um “prémio” de desastre, qualquer que ele seja, desde a “terminação” à “taluda”.
Segue-se um exemplo, na parte que me diz respeito:
Vale de Figueira, 27. Set. 1965
(… … …)
Vou-me contentando com as tuas notícias (embora poucas) (…). Depois, se não dizes mais nada, (…), que hei-de eu fazer? Levar a mal e zangar-me? Não. Não seria razoável. Então que fazer? (…) analisar bem a situação em que te encontras para não me atormentar a imaginar, (…) problemas onde os não há.
(… … …)
Vale de Figueira, 5. Out. 1965
(… … …)
Temo a distância. E eu, (…) nem sempre sei (…) manter a calma, agir com condescendência e benevolência que sempre me foram peculiares para [com ] o teu procedimento, (…). Por vezes o sofrimento torna-nos duros, incomunicáveis e sobretudo incompreensíveis. Mas (…), continua a dar-me notícias quando e como te for possível.
(… … …)
Lisboa, 18 – Outubro – 1965
( … … … )
As saudades são muitas, meu amor. É justamente quando preparo tudo para me dedicar à leitura ou para te escrever que o sossego e o isolamento do meu quarto avivam a lembrança de tudo o que me deixou. Essas recordações surgem mais nítidas, mais agudas, e fico liquidada.
Ou sonho acordada contigo ou tenho tanta vontade (…) de correr para junto de ti que tudo aqui me parece odioso. Que ninguém me venha falar! Chego a ser cruel, violenta, mal-educada. Acabo sempre por chorar, por ficar abatida e enervada. Não sou tão forte como supunha e como tu imaginas. Sinto-me mesmo mais frágil, mais inútil do que nunca. Ora para que isso não aconteça é preciso que exija de mim mesma um esforço de vontade em grau mais ou menos heróico. (…).
Mas eu vejo-te tão longe! Tu que és parte da minha vida. Tu que és complemento indispensável à continuidade da minha existência válida (…).
(… … …). Meu Amor querido, (…), lutei para não deixar, para não te expor o que se estava passando comigo. Mas agora que estou sem notícias tuas é-me impossível resistir por mais tempo.
(… … …)
Lisboa, 24-Outubro-1965
Não sei porquê mas continuo sem notícias. Afinal, vives ou não vives meu M.? Há quinze dias que espero umas palavras tuas mas em vão. Já deixo de esperar para não sofrer cada dia mais desilusões. Não podes, ou não queres fazê-lo, é o que deduzo (…).
(… … …)
E já lá vão duas semanas, meu querido. (…) não acredito que não escrevas por de algum modo estares ressentido comigo. (…). Se algum problema surgisse, expor-mo-ias para que o discutíssemos e chegássemos a um possível acordo. Disso tenho a certeza. Mas também é certo que não deixo de estar preocupada. Mesmo com as tuas cartas semanais os dias sem ti parecem-me mais longos, sombrios, sem sentido. Agora (…), com falta de notícias, navego em mar largo sem rumo certo, vivo na escuridão.
Assim não. Não pode ser, meu querido. Não suporto esta situação desesperada em que vivo actualmente. (…) sem nada saber de ti, se isto assim continuar eu afirmo-te convictamente que não aguento. (…).
Gostar – o simples facto de gostar de alguém – desperta poderes estranhos e emocionantes. Quanto mais gosto de ti, com mais confiança posso agir mas também mais te desejo ou, pelo menos, mais desejo algo que me fale de ti.
Diz-me o que queres, querido! Farei tudo para te agradar. Nenhuma realização me parece impossível, não há derrotas que não possam ser superadas quando desejo, de corpo e alma, ajudar-te e buscar nessa ajuda força para mim, acreditar que a vida vale a pena ser vivida e essa crença ajudará a transformar isso numa realidade. Mas num momento tudo pode ser desfeito e todas as nossas esperanças, quais nuvens de fumo, dispersas pelo vento.
(… … …)
P.S. Suplico-te que me expliques o que se está passando. Quero saber a verdade. Sou a tua D.
Vale de Figueira, 8 - Nov. 1965
(… … …)
(…) a tua D. não vive o dia a dia alheia, insensível à dor de que são feitos os teus dias (…). É guerra. É sacrifício, incerteza em cada minuto que se segue. É duro como duras são as palavras que me dirigiste. E a guerra torna os homens duros, ásperos, insensíveis. Não era minha intenção criticar-te e parece-me que o não fiz. Aliás não havia razão que o justificasse. Compreendo muito bem que é impossível uma brevidade regular na expedição do correio. Nem tão pouco escreves quando queres mas apenas quando podes. Seria egoísta se não compreendesse isto mas tenho a certeza de que não o sou. (…). E muito menos insinuei afastamento ou esquecimento do teu lado. Só o teu mau humor poderia levar-te a deduzir isso. Não me lembro bem do que te disse mas mostrei-me preocupada apenas pelo facto de pensar que qualquer deficiência física poderia ter sido o motivo dessa falta de notícias.
(… … …)
Vale de Figueira, 9-Fevereiro. 1966
Meu M. querido acho um pouco estranho não ter recebido notícias tuas (…). Esperava-as com ansiedade, (…).
(… … …)
Desculpa as minhas palavras de hoje, meu M. Estou descontrolada. Acredito que o atraso do correio não dependa de ti. (…).
Lisboa, 1-Março-1966
(… … …)
(…), peço a tua benevolência para o facto de nem sempre saber controlar-me quando, por qualquer motivo, há um período mais longo sem informações tuas.
(… … …)
Vale de Figueira, 9-Março-66
(… … …)
Na nossa actual situação o que me interessa sobretudo é que semanalmente me dês testemunho de que ainda há vida nesse corpo tão massacrado, de que vais vivendo na esperança de ver chegar a hora do regresso. (…). (…) um “estou bem”, género telegrama, é uma felicidade para mim. É um lenitivo tão forte e um incentivo (…) para continuar a esperar.
(… … …)
Cacém, 4-Novembro-1966
(… … …)
(…) a preocupação e a angústia de que estou tomada ao riscar no calendário mais um dia, dias consecutivos, semanas, sem receber a retribuição dos meus contactos contigo. (…). É um período considerável sem receber notícias e não pode deixar de me afectar.
(… … …)
Cacém, 25.12.1966
(…), com medo de uma decepção, rodo a chave na caixa do correio. Expectativa, enervação … mas zás! (…). Oh alegria, oh que felicidade, meu Amor. Que maravilhoso prémio de Natal quando os [dias] precedentes eram a escuridão, o silêncio.
E o conteúdo será de molde a corroborar a alegria anteriormente manifestada, (…) ao encarar o envelope surpresa?
Nervosamente (…) rasgo o envelope. Para a frente é que é o caminho (…). Os meus olhos buscam avidamente o final da carta. Talvez porque a maneira como estaria encerrada me daria já uma ideia do seu conteúdo. “Gracias”, meu M. querido. Estive feliz (…) no dia de Natal, na medida em que a felicidade é permitida e se pode viver longe dos que se amam.
(… … …)
Cacém, 16-Janeiro-1967
(… … …)
Acredito que nestas folhas de papel que semanalmente cortam a atmosfera transportadas num avião, voe cada um de nós para junto do seu Amor. (…). Eu iria agora mesmo, inteirinha, se pudesse ser transportada com um rótulo [selo?] de 2$50 na fronte.
Ah, meu Amor querido, cada vez com mais ardor te quero meu (…)
Técnica mista, Mario Coopé (pintor guineense).
Imagem retirada de www.didinho.org, com a devida vénia.
Vê que até em sonhos sinto os teus contactos (…). Reflexo da necessidade insatisfeita que vivo de ti, motivada por esta maldita separação tão prolongada.
Se ainda sofresse de pudicícia exagerada diria que estava a ser tentada pelo Diabo. (…). Eu seria agora, aqui mesmo não tinha importância … (estou na cama), o mais completo diabrete.
Efusivamente, num frenesim de amor e de paixão que tu, agora, (…) me proporcionarias e eu correspondo, beijo-te (…).
(… … …)
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 27 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11163: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (7): E a morte apareceu