Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > À esquerda o nosso tertuliano Silva da CART 1689 com o protagonista desta história, o camarada Dionísio
Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > Nesta foto, parece que o Dionísio conta a sua aventura ao Silva, enquanto que de pé, seguem atentamente a narrativa, os camaradas Antero, à esquerda, e o (outro) Silva, à direita.
Fotos (e legendas): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013)
1. Em mensagem do dia 12 de Março de 2013 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta história verídica para as Ouras memórias da sua guerra:
Outras memórias da minha guerra
16 - É guerra é guerra… (será?)
Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, destinava à próxima quadra natalícia.
Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:
– Quem está doente?
Logo a resposta veio célere:
– É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.
E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:
– Onde andaste?
– Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.
– Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.
O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.
Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.
E foi assim:
É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom. Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª Classe, uma vez que já sabia ler.
Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.
Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano, no sector dos componentes eléctricos.
Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:
– Senhor Zé, tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.
– Desembucha, rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.
– Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.
–Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.
E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.
Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “LIVRE”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “APURADO PARA TODO O SERVIÇO MILITAR!” Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.
Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um Aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal Ten Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.
Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no Ralis de Lisboa. Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.
– Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei.
E ele iniciou:
– Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.
Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“OP Azimute”), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximamo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.
Avançavam as equipas de 2 de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.
Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?
Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o Sub-Cmdt Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
– Cada um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos.
O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:
–Após algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.
Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça.
Estávamos aquartelados em Brá – Bissau e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o Navio Uíge, que havia trazido mais militares (Bat.1913) e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.
Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.
As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.
Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.
Quando cheguei a Lisboa fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado. Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.
Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.
Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.
- *
Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia:
– O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras.
Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre, programa do conhecido Manuel Alegre.
Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.
Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.
Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:
–Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.
– Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.
No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:
– Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!
Duas praças da Policia Militar, esperavam-no. Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá.
Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:
– Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.
Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:
– Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?
– Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.
– Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu Alferes Sampaio Faria.
–Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou 2 vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor/Comando Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo Sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó.
Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné: “Op. Bola de Fogo”, para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade.
Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta Op., o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.
O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-Furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.
– Entretanto, o Sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra Comissão de serviço.
O Dionísio, chateado, ainda perguntou:
– Quem foi que lhe disse que vou para os Adidos?
– Foi a informação que chegou do Quartel-General. – Respondeu o Sargento.
O Dionísio, saiu ao encontro do Capitão.
– Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.
– Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – Perguntou o Capitão.
– O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.
– Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação. – Disse o Capitão.
Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rollis Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.
(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).
Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última Operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.
O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.
– Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.
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Notas do autor:
1 - Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.
2 - Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:
– Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.
– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?
– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?
– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.
Foi então que o Dionísio rematou:
– Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.