1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2013:
Queridos amigos,
É mesmo consolador de vez em quando encontrar em edições de autor verdadeiras joias.
Nada sabia sobre esta portentosa prosa de José Pais
“Coisas de África e a Senhora da Veiga”, não me regalava com tão boa literatura ou documento de ficar capaz para a História, desde o Diário do Soldado Inácio Maria Góis como agora.
Pergunto a todos os meus confrades se alguém possui e me pode emprestar
“Histórias de guerra: Índia, Angola e Guiné”, que José Pais publicou na Prefácio, tanto quanto sei está esgotado e há muito.
Vou pôr-me em campo, José Pais tem que voltar a ser reeditado, é um dos expoentes da literatura da guerra.
Um abraço do
Mário
“Travessia”, por Costa Monteiro; “Coisas de África e a Senhora da Veiga, por José Pais
Beja Santos
“Travessia”, por Costa Monteiro, Editorial Escritor, 1996, é um livro de contos de um oficial que fez três comissões em África nos três teatros de guerra e mais tarde foi professor no Instituto de Altos Estudos Militares. Justificou este seu primeiro trabalho de pequenas histórias como um modo de ganhar balanço para outras digressões no campo da comunicação escrita. Histórias que nem sempre se inspiram na guerra em si mas graças às oportunidades que teve de contactar com outras terras, civilizações, gentes.
Dedicou quatro contos à Guiné. O primeiro está ligado à elevação de Bafatá a cidade. Descreve este dia de grande ronco, a cidade engalanada, o belo jardim na margem do Geba, não esconde saudades da Sintra de Bafatá, uma frondosa mata onde brotavam puras e frescas as nascentes de água que abasteciam Bafatá. Não esconde, divertido e mordaz, uma crítica:
“O administrador fazia repetir, as vezes que fossem necessárias até sair certo, uma manifestação espontânea na qual, parte selecionada da multidão iria romper o cordão de segurança para saudar o homem-grande que vinha da metrópole”. Primeiro chegou o governado, vindo de helicóptero. Depois aterrou em Dakota, era o ministro em pessoa:
“A população não resiste. Rompe o cordão de segurança e corre para o avião. Uma menina traz-lhe um ramo de flores. O ministro, comovido, pega na criança ao colo e dá-lhe um beijo”. Seguiram-se discursos, as altas personalidades regressaram a Bissau, a calma e a rotina iam tomar conta de Bafatá.
Ficamos a saber que Costa Monteiro era comandante de esquadrão, posição que o obrigava a uma certa ação psicossocial. Os pedidos eram muitos, um agricultor queria que ele comprasse os ananases da sua plantação, outro pedia-lhe que construísse a casa, foi uma negociação longa e difícil, não tinha chapa de zinco para dar, com carros Panhard não podia ir cortar cibes nem capim, o peticionário acabou por se contentar com dois quilos de arroz. “O Mouraria” é dedicado a uma figura excêntrica de um soldado que por tudo e por nada subia para as antenas ou mastros e ameaçava matar-se se não lhe dessem uma certa e determinada compensação, procurava dar nas vistas com as suas excentricidades. Chegado a Bafatá, subia para a antena do VHF, como ninguém lhe prestou atenção lá desceu encabulado. Normalmente só dava problemas no quartel, durante a atividade operacional portava-se bem, era diligente com a metralhadora Browning. A poucos meses de acabar a comissão, foi destacado para Piche. Acabara de regressar de uma escolta a Buruntuma, foi chamado para limpar umas trincheiras. Já vinha bebido, travou-se de razões com um graduado, a insubordinação não ficou impune.
“A prisão em Bissau foi o começo de uma odisseia misturada com uma escalada de atos de indisciplina que acabaram nas enxovias do forte de Elvas. Nascido e criado na marginalidade da rua, incapaz de viver enquadrado por qualquer tipo de disciplina por mais compreensiva que ela fosse, o Mouraria completou assim, no mato e na prisão, cerca de quatro anos de serviço militar”.
São relatos singelos, seguem o fio da memória, não há aqui pretensões de arroubos literários e o resultado é de que temos aqui uma escrita que cumpre o seu dever.
“Coisas de África e a Senhora da Veiga”, por José Pais, edição de autor, 2001, é um grande livro de memórias, tão grande que já ando à procura de outro livro deste coronel que faleceu em Foz Coa em 2006, e que se intitula
“Histórias de guerra: Índia, Angola e Guiné ”, Edições Prefácio. São memórias assombrosas de um experimentado oficial do exército que, alferes, foi prisioneiro na Índia, combateu lá para os lados de Nambuangongo, teve depois uma comissão em Cabo Verde e a quarta na Guiné, à frente da CCAÇ 14, feriu-se com gravidade em Farim, seguiram-se três anos de internamento hospitalar.
É uma prosa enxuta, frases económicas e hábeis, cortantes. O desfiar as recordações anda sempre à volta de um núcleo central cuidadosamente demarcado. São narrativas que podem navegar entre o sentimental e a bruteza mais dura que a guerra permite. E parece-me um desperdício, diante desta arquitetura de contos tersos quase agrestes na geometria, resumir prosa de primeiríssima qualidade. Os contos de José Pais justificam recensão abundante, é a única homenagem que se pode prestar a um combatente de grande escrita. Vamos começar por
“A Xuxa e o soldado Marquito”, uma tocante história de amor.
O cabo Sila procurou nosso capitão, coisa grossa se passa na tabanca, envolve pessoal da CCAÇ 14, tropa Mandinga, sediada no perímetro de Farim, quartel no sentido habitual do termo não havia: uma arrecadação e um cubículo que servia de gabinete ao capitão, ao primeiro-sargento e a um cabo ajudante na papelada. Os poucos furriéis habitavam numa casa na povoação e os soldados na tabanca. Assim começa a história.
– Então diga Sila. Que se passa?
– Tem mesmo “pobrema” nosso capitão. Tem menininha que gosta mesmo do soldado Marquito e já fugiu de casa do pai três “vez” para ir ter com Marquito!
– Então o que há a fazer é casá-los. Se gostam assim tanto um do outro!?
– Mas, nosso capitão, Xuxa é Fula e Marquito é Mandinga.
E Sila continuou:
– Tem ainda outro “probrema” mais difícil.
– Sim. Diga lá.
– Menininha já casou com sobrinho do “Homem Grande” de Jumbembem e “Homem Grande” veio ontem na coluna para saber o que se passa.
Havia para ali coisa séria e explosiva. Foi chamado Marquito, confirmou tudo mas não tinha três mil pesos para casar com a Xuxa. Chamou-se autoridade religiosa, não havia problema de casar Fula com Mandinga, a questão era devolver o dinheiro ao “Homem Grande” de Jumbembem. À cautela, nosso capitão convocou reunião em toda a tabanca, até o chefe administrativo compareceu. Nosso capitão até cita o Corão. Chegou-se a um acerto, nosso capitão adianta os três mil pesos, Marquito depois pagará em prestações. Nosso capitão, finda a reunião, perguntou a Sila se a reunião tinha corrido bem.
– Muito bem nosso capitão. Mas agora “vais ter probrema”, “Vais” ter muito soldado a querer casar.
No dia seguinte o primeiro-sargento, alarmado, comunicou que vinte e sete soldados queriam também casar!
Estabeleceram-se umas regras que o general comandante-chefe, Spínola de seu nome, aprovou e casaram-se todos. Só os que ainda não tinham “mujer”.
José Pais puxa bem os cordões ao hílare e ao picaresco. Mas veremos adiante que manobra com mestria os episódios mais dramáticos.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11855: Notas de leitura (503): "Guinea-Bissau - alfabeto", um alfabeto de grande beleza (Mário Beja Santos)