Trigésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
O Tony, hoje vai contar a história do Zé Quina, cujo nome de guerra era o “Marafado”, seu companheiro de armas na então província da Guiné, história esta contada por ele, com a ajuda de sua esposa e principalmente da sua sogra, que não parava de o interromper, criticando-o a todo o momento, e mais tarde, coisas que o Tony ia presenciando, portanto cá vai.
O Zé d’Aurora gritava olhando o céu com o pensamento nos seus dois filhos, que agarrados aos remos da bateira, tentavam entrar a barra, com o mar mais violento e feroz do que um leão esfomeado.
- Ai, Virgem Santíssima! Salva-nos, por misericórdia das almas bondosas que estão no céu!
Tinham saído a barra com bom tempo, lançaram uma pequena rede, não tinham pescado quase nada, só peixe miúdo. O peixe miúdo, serviu de isca, depois com a corda dos anzóis, aí sim, tinham muito peixe e algum graúdo.
De repente, levanta-se uma aragem que se transformou em forte vento, as ondas
levantaram-se.
O Zé d’Aurora, continuava a gritar para os filhos:
- Vamos embora, direitos à barra, pois isto vem do lado da Espanha, e da Espanha, nem bons ventos, nem bons casamentos!
Remaram o mais que puderam, mas o mar apanhou-os quase a dobrarem a barra.
O Zé Quina e o irmão, cada um agarrado ao seu remo, quase que batiam com a ponta do remo um no outro, tal era a força e o desespero com que remavam, ouvindo os gritos de angústia do seu pai.
Não sabem se foram salvos pelas almas bondosas que estavam no céu, ou pelo seu esforço em remar. A verdade, é que entraram a barra, ancoraram a bateira, descarregaram o peixe, e como sempre, e que aqui algumas vezes já foi dito, foram direitos à taverna do “Manhoso”, onde beberam dois copos de “abafado” cada um, em sinal de agradecimento, por estarem vivos.
O Zé Quina andava com o pai e o irmão mais novo ao mar, e como já foi dito em outras ocasiões, também ajudava num circo que visitava a vila no verão.
Tinha dias em que valia a pena, outros não. Quando havia boa pescaria, gastava-se, quando não havia pescaria, gastava-se na mesma, só que era fiado, o “Manhoso”, apontava no livro.
O Zé Quina, chega à idade de ir “às sortes”, como todos os outros rapazes na sua idade, e como Portugal estava em guerra, leva um carimbo a letras vermelhas no papel com os resultados da inspecção onde dizia, “apurado para todo o serviço militar”.
Na altura devida, apresenta-se num quartel da província, recebe um treino básico, depois aprende a disparar uma arma com alguma precisão, e vem para a então província da Guiné, para um cenário de guerra defender a sua Pátria.
Era do
Algarve, e vem no mesmo barco onde vinha o Cifra, e é baptizado com o nome de guerra de o “Marafado”, porque cantava uns fados muito desafinados.
Cumpriu dois anos em cenário de guerra, era militar de combate, como tal sofreu angústias e desesperos, chorou, riu, embora para o final, não falasse muito, era uma pessoa calada, a guerra marcou-o, enfim passou por todos os sentimentos que os seus companheiros, na mesma situação passaram, e que os leitores já conhecem de algumas histórias que o Cifra já mencionou, onde ele era o protagonista, teve alguma sorte, regressou a Portugal vivo.
Como militar de combate, era corajoso e com espírito de aventura, e dizia sempre, “que não era pássaro de gaiola”.
Sai de portugal, primeiro vai para o Canadá, depois já com alguns contactos atravessa a fronteira e entra nos Estados Unidos. Começa a trabalhar num barco de pesca, num Estado do norte, e como é bom pescador a companhia proprietária do barco, legaliza-o ao fim de algum tempo.
Já legal, e com autorização de trabalhar e viver nos Estados Unidos, o Zé Quina vem para Nova Jersey. Vem viver no meio de uma comunidade portuguesa, que vive numa cidade ao sul do rio Passaic, quase na sua foz. Aí conhece a Isabel, cujos pais também são oriundos do Algarve. Gosta dela, ela corresponde, namoram e casam-se.
O sogro, como trabalhava há muitos anos numa grande companhia, no sul de Nova Jersey, arranja-lhe emprego nessa mesma companhia. Ele novo e ambicioso, e como essa companhia tinha sempre falta de pessoal, e os altos fornos de fundição, quando chegava a hora de descarregarem, não podiam esperar, ofereciam-lhe muitas horas extraordinárias.
Ele trabalhava sempre dois turnos seguidos, não trabalhava mais porque era proibido. Praticamente vinha a casa só para dormir.
A Isabel também trabalha numa fábrica de curtir peles, era a “fábrica das peles”. Compraram uma casa junto dos pais da Isabel. O Zé Quina trabalha por turnos de oito horas, em diferentes dias, incluindo fins de semana, portanto encontra-se com a Isabel no intervalo desses turnos, ou seja raras vezes estão juntos em casa, praticamente só alguns dias e à noite.
Ela fica grávida, têm um filho e o trabalho continua. O Zé Quina, quando vinha para casa, normalmente parava num bar que ficava próximo de sua casa, bebia um copo e não perdia oportunidade para mostrar o cheque, dizendo:
- Não acredito que ninguém ganhe mais dinheiro à semana do que eu. Vejam só este cheque!
O dinheiro tinha tomado conta do seu pensamento. Por vezes, passavam necessidade em casa, mas tinham que pôr aquela quantia no banco, todas as semanas.
A Isabel fica grávida de novo, têm mais um menino.
O ritmo de trabalho, não pára. A mãe da Isabel toma conta das crianças nas horas em que esta trabalha. O Zé Quina não pára de fazer horas extraordinárias.
A Isabel, torna a ficar grávida, nasce outro rapaz, portanto, têm três filhos.
Os sogros, dizem-lhe:
- Entendemos que já chega, se querem mais filhos, tomem vocês conta deles.
A Isabel tinha tido complicações no último parto e tinham- lhe tirado alguns órgãos interiores. Não podia ter mais filhos, pelo menos era o que os médicos diziam.
Entretanto os filhos foram crescendo, a Isabel trabalhando na “fábrica das peles” e o Zé Quina, na companhia de altos fornos.
Os filhos, enquanto eram pequenos, a avó ia controlando, levava-os à escola, esperava por eles à saída e trazia-os para casa.
Com o crescimento deles, e já sem controle nos mais velhos, a avó, certa noite em que o Zé Quina e a Isabel estavam em casa juntos, diz-lhes:
- Vocês têm que parar com o trabalho e tomarem conta dos vossos filhos, o dinheiro não é tudo na vida. Eu já não tenho mão nos mais velhos, continuando assim, vão ser uns filhos da rua!
E saiu, porta fora, irritada.
O Zé Quina diz para a Isabel:
- O que é que está mal com a tua mãe?
Ao que a Isabel, responde:
- Eu não sei, deixa-a para lá, e a propósito, onde é que estão os garotos?
Os garotos andavam na rua, e já era noite.
Os anos passaram.
O Cifra, que agora se chamava única e simplesmente Tony, um dia lendo o jornal português que se publicava na comunidade também portuguesa, vê a fotografia e a notícia de um acidente, onde logo reconheceu o “Marafado”. Vai ao hospital onde o jornal dizia que estava internado, deparando com ele, que agora era única e simplesmente Zé Quina.
Estava muito mal tratado, tinha tido um grande acidente, na óptica da sua sogra, talvez se devesse ao desgaste físico.
Vinha do trabalho, conduzindo o seu carro, saiu da faixa de rodagem, foi abalroado por um camião que vinha em sentido contrário. Sobreviveu, como tinha sobrevivido da guerra na então província da Guiné.
Passado um certo tempo saiu do hospital, mas não sente um braço e caminha com certa dificuldade. No inverno usa uma bengala especial.
O filho do meio apareceu morto nuns terrenos debaixo duma ponte, onde passa a auto estrada. No hospital, na altura da autópsia, o diagnóstico médico foi “overdose”.
O mais novo, por diversas vezes foi internado para reabilitação, pois é dependente, saía curado, mas passado um tempo, voltava a drogar- se.
Era bom rapaz, mas o vício era mais forte. Ficou internado permanentemente e ajuda na clínica de reabilitação.
O mais velho estava preso, cumprindo pena por assalto com arma de fogo. Estava quase a acabar de cumprir a pena, e portanto em breve iria sair em liberdade.
Os vizinhos diziam:
- Deus o mantenha preso por toda a vida, pois se regressar vai ser o martírio daqueles pais.
A Mãe Isabel anda vestida de preto, passa a vida a caminhar para a igreja de Nossa Senhora de Fátima, que existe na comunidade portuguesa, pedindo para que Deus a leve.
O Zé Quina anda pela rua, quando há bom tempo. Vai ao bar, onde mostrava o cheque, e quando pede uma bebida, fecha os olhos, levanta a cabeça em direcção ao céu, talvez pensando no seu pai e no irmão, e quando iam juntos à taverna do “Manhoso”. Balbucia umas palavras que ninguém entende, limpa umas lágrimas com a mão do braço que está bom e pede a alguém que lhe tire umas moedas do bolso, que está no outro lado das calças, a que não pode chegar, para pagar a bebida.
Da última vez que o Tony foi ao norte visitar os filhos, procurou o Zé Quina, e foi vê-lo ao cemitério, onde a Isabel o
levou, banhada em lágrimas, mostrando-lhe a sua campa, onde o Tony deixou algumas flores, fechou os olhos e no seu pensamento, viu-o a ir junto com o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Mister Hóstia, e com o Furriel Miliciano, a fumar o seu cigarro feito à mão, com a sua G3 nas mãos, a irem combater para o interior das florestas e pântanos, da então província da Guiné.
Paz à sua alma.
Tony Borie,
Junho de 2010.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11985: Bom ou mau tempo na bolanha (29): Herói Combatente (Toni Borié)