A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado
No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.
CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES
7 - Os meses seguintes, até Bafatá
Ainda com a cabeça, mais lá do que cá, ainda a pensar nas férias, dei-me conta da enorme carga de trabalho que ficara às costas do meu camarada. Mesmo com a ajuda do nosso ajudante, um jovem futa-fula de seu nome Galé Djaló que gostava de ser tratado por António Galé, a tarefa de cuidar da saúde de uma companhia e da população não era nada fácil.
Um mês depois do meu regresso, “alinhei” em mais uma operação, uma vez mais por Galo Corubal, Seco Braima e Satecuta, a que se chamou “Quadrilha Sagaz”. A nossa companhia na progressão para o objectivo, num só dia, teve três contactos com o inimigo, felizmente sem feridos graves. Para este resultado, foi determinante o comportamento de um dos nossos camaradas que, com a sua acção arrojada, contribuiu para que as armas do PAIGC se calassem. Este nosso camarada viria a ser distinguido com o Prémio Governador que lhe deu o direito a umas merecidas férias na Metrópole. De Satecuta, eu e mais dois camaradas, trouxemos cada um o seu cachorrinho, ainda bebés. Transportei a minha cadelinha, sim era uma “mulher”, aconchegada ao meu peito na abertura da camisa, que fui alimentando com a bisnaga do leite condensado da minha ração de combate. Desafortunadamente só a minha “Gudhiu”, que em fula significa cão, chegaria com vida ao Xitole. Era o meu troféu de guerra.
O trabalho era intenso, quase não dava descanso. Depois dos insistentes pedidos, o Comando do Batalhão decidiu-se a enviar mais um elemento para reforçar a equipa de Saúde. Viria, na próxima coluna de reabastecimentos que iria até ao Saltinho, um camarada maqueiro de Bambadinca, que era natural do Porto. Quiseram os deuses que esse camarada não ficasse no Xitole.
Esta coluna ficou marcada por um episódio insólito e dramático.
Após a paragem no Xitole, seguiria para o Saltinho. O retomar da marcha fez-se de forma muito desorganizada. Logo à saída do Xitole a coluna ficou “partida”. Algumas viaturas, militares e civis, já haviam seguido, e outras ficaram para trás. Um Unimog, na tentativa de se reaproximar da viatura seguinte, terá excedido a velocidade para uma picada cheia de cavernas e curvas apertadas, o que provocou o seu despiste, tendo-se voltado e projectado os seus ocupantes.
Dado o alarme, desloquei-me ao local do acidente e deparei-me com uma cena muito triste. Todos os militares estavam estendidos e espalhados pelo chão, embrulhados na vegetação do local. Alguns gemiam, outros não davam acordo de si e um outro, o condutor africano, estava morto. Todos os militares europeus apresentavam sinais de fracturas diversas e o africano, tinha o crânio desfeito por uma bala. Tinha-se suicidado com a sua G3, talvez porque pensou ter morto toda aquela gente e a sua consciência não aceitasse o peso desse fardo.
O corpo do condutor africano, depois de autopsiado no Xitole, foi entregue à família. Todos os feridos foram evacuados e entre eles, por ironia do destino, estava o camarada que tinha vindo para integrar a nossa equipa de enfermagem. Má sorte a dele e, também a nossa que continuamos os mesmos para tanto trabalho.
Por estas alturas, falava-se que o nosso Capitão estaria preocupado com o excessivo número de caninos que habitava o quartel. Era um drama, cada abrigo queria o seu. Quase todos baptizados com nomes de clubes de futebol, era uma delícia quando na época do cio se assistia ao Porto a f…….. o Benfica e outros encontros caninos.
Por mais absurdo que pareça, este espectáculo tinha assistência garantida em dias ou horas de pasmaceira, quando não por outras razões.
E eu afeiçoei-me à minha Gudhiu, a quem dava vitaminas e o melhor da minha ração do rancho. Tinha uma pelagem brilhante, mesmo sedosa. Era o meu orgulho e a dona dos meus afectos mais próximos. Até que um dia, quando a GMC que estacionava defronte do Posto de Socorros se pôs em marcha, atropelou a minha cadelinha que se abrigava do sol debaixo da viatura. Era o fim. Por mais que me custasse admitir, a minha Gudhiu estava condenada. Os camaradas do abrigo dos condutores, sabendo do estado do animal, esperaram que me ausentasse e, no fim da pista, abateram o animal. Foi duro perder aquela que sonhei trazer comigo no fim da comissão.
Já assumíamos que o tempo entrara em contagem decrescente.
Chegados aqui, já sabíamos porque é que o Domingo era quase sempre diferente dos outros dias. Seria, porque o nosso Capitão reunia semanalmente o pessoal da Companhia na parada, ali ao lado da capelinha e, nos transmitia as suas preocupações quanto às questões da nossa segurança, nos alertava para os cuidados a ter com a saúde e nos incutia a obrigação de sermos respeitadores das tradições dos guineenses. Seria porque, quase sempre, saíam nesse dia três a quatro viaturas com destino a Cusselinta, com passagem pelas tabancas. Eram os grandes saltos do cimo da rocha para a piscina natural criada pelos rápidos, eram os mergulhos em que íamos armados de faca de mato à “caça” das ostras, eram os lançamentos de granadas para se recolher uma sacada de peixes e, na época, comiam-se as laranjas doces de casca verde, surripiadas do cima das viaturas á passagem por Sinchã Madiu. Eram os nossos Domingos, quase sempre, quase sempre.
E nesse, como nos outros dias, era também a atenção aos nossos camaradas que se encontravam acamados nos abrigos, quase sempre com a malária. Até que um dia, nessas andanças de cuidar dos nossos, saía eu do Posto de Socorros levando nas mãos uma caixa que continha seringas e agulhas esterilizadas para aplicar a um camarada ali nos fundos do quartel, junto da cozinha, quando deparei com um ajuntamento da nossa malta, formada em círculo. Quando tentava perceber o que se passava, ouvi uma voz que me chamava; “o nosso militar aonde vai?”.
Soou-me estranha aquela voz e levantei o olhar tentando identificar a origem do chamamento. Era o nosso Comandante-Chefe, General António Spínola, que nos fazia uma visita relâmpago. Mal fardado, sem boné, de chinelos e de barba descuidada dirigi-me para o local. O círculo partiu-se para eu entrar. Estava apreensivo e expectante. Perfilei-me respeitosamente. O monóculo e o bengalim impunham muito respeitinho. O General Spínola percebeu o óbvio quando verificou o que eu tinha nas mãos. Com aquele timbre de voz, serena e pausada disse-me:
- Continue o que estava a fazer.
Respirei fundo e retirei-me. Este encontro, tão inesperado e tão próximo, marcou-me de tal maneira que fiquei admirar o Homem e o Militar. Passei aceitá-lo como um dos nossos, mais próximo e atento aos nossos problemas e despido das suas estrelas.
E os dias iam passando. A vida no quartel era preenchida aqui e ali com uns acontecimentos mais ou menos pitorescos. Os jogos de futebol ao final da tarde entre os pelotões, quantas vezes debaixo de trovoadas, marcavam a nossa principal forma de enganar o tempo.
Até que um dia, dois pelotões acertaram mais uma peladinha de tira-teimas. Era quase como que uma desforra entre os melhores e, muito aguardada pelo pessoal. Estávamos nas nossas tarefas diárias quando, o Alferes de um dos pelotões chega ao Posto de Socorros e nos pede para lhe fazermos umas massagens. Era a vedeta da equipa, e queria estar à altura das expectativas. Talvez por excesso de trabalho, talvez porque se aceitássemos a excepção seria o "fim da macacada” com todos a bater-nos à porta, talvez porque talvez ou, não sabendo bem porquê, a resposta saiu pronta: - Nem pensar.
A reacção do Alferes veio embrulhada nos seus galões e em ameaças subtis. Fizemos saber ao oficial que, dentro do Posto de Socorros só entrava quem viesse tratar-se e que os galões ficavam fora da porta. O bom senso imperou, o assunto ficou encerrado e com o passar do tempo o episódio foi esquecido.
Outro episódio bem pitoresco tem como protagonistas o mesmo Alferes, o seu cabrito e alguns “malandrecos” do seu pelotão.
O oficial mantinha preso próximo do seu quarto um cabrito que havia adquirido nas tabancas. Mas, alguns membros do seu grupo, e não só, entenderam que o rancho estava muito repetitivo e vai daí, se bem pensaram melhor o fizeram, abotoaram-se durante a noite ao cabrito e, com a cumplicidade do cozinheiro do rancho abateram o animal e prepararam um lauto assado. O principal convidado do repasto era naturalmente o dito cujo oficial. Quando do animal só eram visíveis alguns dos fragmentos do seu esqueleto e todos se encontravam já bem bebidos, alguém solta uma “boca” deixando entender a proveniência do animal. Foi a risada geral.
No primeiro momento o oficial passou do encarnado ao rubro, mas acabou por achar piada à partida do seu pessoal. A malta esteve à altura da brincadeira e do respeito pelo seu superior e ofereceram-se para lhe repor o animal, o que não aceitou.
Dentro e fora do quartel a equipa de saúde dedicava-se com empenho no apoio às populações. Tínhamos conquistado a sua estima e disso nos davam testemunho com a oferta de ovos, frangos, carnes, frutas etc. O sentimento era recíproco. Entre tantos momentos vividos com as populações destaco a tarefa de apoio às parturientes.
Sem preparação técnica e sem qualquer experiência prática, só a vontade de ajudar e alguma intuição me permitiram ser útil nesses momentos. De entre os vários casos, um caso em particular mereceu o registo na minha memória.
Ali para os fundos do Xitole, à saída para as tabancas, vivia uma família que incluía uma jovem e bonita mulher. Esta jovem era de quase todos conhecida porque, caso raro, tinha um peito bastante maior que o outro. Um dia, sou chamado a prestar assistência a essa jovem que entrara em trabalhos de parto e que as mulheres grandes que a acompanhavam consideravam difícil.
Munido de injectáveis para facilitar a dilatação, deitei mãos à obra. Sempre na presença das “parteiras” ministrei a medicação e esperei, deixando que a tradição e a ciência funcionassem. Mas a criança teimava em não querer ver a luz do dia. Repetida a medicação e depois de nova espera o resultado seria o mesmo.
A criança estava sujeita a sofrimento e, depois de nova tentativa, acabaria por nascer sem vida. Segundo a voz da tabanca, dizia-se que a criança poderia ser filha de um branco e que a jovem dificultou o parto para esconder esse facto.
Enquanto acontecia mais um ataque à Ponte dos Fulas e às tabancas de Cambêssê e de Sinchã Madiu, a Comissão caminhava para o fim. Estávamos no início de 1972 e, para minha surpresa, fui informado de que iria ser colocado em Bafatá. Explicaram-me que iria para descansar, simplesmente. Custava-me o afastamento dos meus camaradas, mas a ideia agradou-me.
Piscina natural em Cussilinta – Corubal
Na esplanada da messe dos oficiais
Entrada do posto de socorros do Xitole
Picada Xitole/ Saltinho na época das chuvas
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 5 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12010: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole