quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12030: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (7): Os meses seguintes, até Bafatá

1. Sétimo episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

7 - Os meses seguintes, até Bafatá

Ainda com a cabeça, mais lá do que cá, ainda a pensar nas férias, dei-me conta da enorme carga de trabalho que ficara às costas do meu camarada. Mesmo com a ajuda do nosso ajudante, um jovem futa-fula de seu nome Galé Djaló que gostava de ser tratado por António Galé, a tarefa de cuidar da saúde de uma companhia e da população não era nada fácil.

Um mês depois do meu regresso, “alinhei” em mais uma operação, uma vez mais por Galo Corubal, Seco Braima e Satecuta, a que se chamou “Quadrilha Sagaz”. A nossa companhia na progressão para o objectivo, num só dia, teve três contactos com o inimigo, felizmente sem feridos graves. Para este resultado, foi determinante o comportamento de um dos nossos camaradas que, com a sua acção arrojada, contribuiu para que as armas do PAIGC se calassem. Este nosso camarada viria a ser distinguido com o Prémio Governador que lhe deu o direito a umas merecidas férias na Metrópole. De Satecuta, eu e mais dois camaradas, trouxemos cada um o seu cachorrinho, ainda bebés. Transportei a minha cadelinha, sim era uma “mulher”, aconchegada ao meu peito na abertura da camisa, que fui alimentando com a bisnaga do leite condensado da minha ração de combate. Desafortunadamente só a minha “Gudhiu”, que em fula significa cão, chegaria com vida ao Xitole. Era o meu troféu de guerra.

O trabalho era intenso, quase não dava descanso. Depois dos insistentes pedidos, o Comando do Batalhão decidiu-se a enviar mais um elemento para reforçar a equipa de Saúde. Viria, na próxima coluna de reabastecimentos que iria até ao Saltinho, um camarada maqueiro de Bambadinca, que era natural do Porto. Quiseram os deuses que esse camarada não ficasse no Xitole.

Esta coluna ficou marcada por um episódio insólito e dramático.
Após a paragem no Xitole, seguiria para o Saltinho. O retomar da marcha fez-se de forma muito desorganizada. Logo à saída do Xitole a coluna ficou “partida”. Algumas viaturas, militares e civis, já haviam seguido, e outras ficaram para trás. Um Unimog, na tentativa de se reaproximar da viatura seguinte, terá excedido a velocidade para uma picada cheia de cavernas e curvas apertadas, o que provocou o seu despiste, tendo-se voltado e projectado os seus ocupantes.

Dado o alarme, desloquei-me ao local do acidente e deparei-me com uma cena muito triste. Todos os militares estavam estendidos e espalhados pelo chão, embrulhados na vegetação do local. Alguns gemiam, outros não davam acordo de si e um outro, o condutor africano, estava morto. Todos os militares europeus apresentavam sinais de fracturas diversas e o africano, tinha o crânio desfeito por uma bala. Tinha-se suicidado com a sua G3, talvez porque pensou ter morto toda aquela gente e a sua consciência não aceitasse o peso desse fardo.

O corpo do condutor africano, depois de autopsiado no Xitole, foi entregue à família. Todos os feridos foram evacuados e entre eles, por ironia do destino, estava o camarada que tinha vindo para integrar a nossa equipa de enfermagem. Má sorte a dele e, também a nossa que continuamos os mesmos para tanto trabalho.

Por estas alturas, falava-se que o nosso Capitão estaria preocupado com o excessivo número de caninos que habitava o quartel. Era um drama, cada abrigo queria o seu. Quase todos baptizados com nomes de clubes de futebol, era uma delícia quando na época do cio se assistia ao Porto a f…….. o Benfica e outros encontros caninos.
Por mais absurdo que pareça, este espectáculo tinha assistência garantida em dias ou horas de pasmaceira, quando não por outras razões.

E eu afeiçoei-me à minha Gudhiu, a quem dava vitaminas e o melhor da minha ração do rancho. Tinha uma pelagem brilhante, mesmo sedosa. Era o meu orgulho e a dona dos meus afectos mais próximos. Até que um dia, quando a GMC que estacionava defronte do Posto de Socorros se pôs em marcha, atropelou a minha cadelinha que se abrigava do sol debaixo da viatura. Era o fim. Por mais que me custasse admitir, a minha Gudhiu estava condenada. Os camaradas do abrigo dos condutores, sabendo do estado do animal, esperaram que me ausentasse e, no fim da pista, abateram o animal. Foi duro perder aquela que sonhei trazer comigo no fim da comissão.

Já assumíamos que o tempo entrara em contagem decrescente.

Chegados aqui, já sabíamos porque é que o Domingo era quase sempre diferente dos outros dias. Seria, porque o nosso Capitão reunia semanalmente o pessoal da Companhia na parada, ali ao lado da capelinha e, nos transmitia as suas preocupações quanto às questões da nossa segurança, nos alertava para os cuidados a ter com a saúde e nos incutia a obrigação de sermos respeitadores das tradições dos guineenses. Seria porque, quase sempre, saíam nesse dia três a quatro viaturas com destino a Cusselinta, com passagem pelas tabancas. Eram os grandes saltos do cimo da rocha para a piscina natural criada pelos rápidos, eram os mergulhos em que íamos armados de faca de mato à “caça” das ostras, eram os lançamentos de granadas para se recolher uma sacada de peixes e, na época, comiam-se as laranjas doces de casca verde, surripiadas do cima das viaturas á passagem por Sinchã Madiu. Eram os nossos Domingos, quase sempre, quase sempre.

E nesse, como nos outros dias, era também a atenção aos nossos camaradas que se encontravam acamados nos abrigos, quase sempre com a malária. Até que um dia, nessas andanças de cuidar dos nossos, saía eu do Posto de Socorros levando nas mãos uma caixa que continha seringas e agulhas esterilizadas para aplicar a um camarada ali nos fundos do quartel, junto da cozinha, quando deparei com um ajuntamento da nossa malta, formada em círculo. Quando tentava perceber o que se passava, ouvi uma voz que me chamava; “o nosso militar aonde vai?”.

Soou-me estranha aquela voz e levantei o olhar tentando identificar a origem do chamamento. Era o nosso Comandante-Chefe, General António Spínola, que nos fazia uma visita relâmpago. Mal fardado, sem boné, de chinelos e de barba descuidada dirigi-me para o local. O círculo partiu-se para eu entrar. Estava apreensivo e expectante. Perfilei-me respeitosamente. O monóculo e o bengalim impunham muito respeitinho. O General Spínola percebeu o óbvio quando verificou o que eu tinha nas mãos. Com aquele timbre de voz, serena e pausada disse-me:
- Continue o que estava a fazer.

Respirei fundo e retirei-me. Este encontro, tão inesperado e tão próximo, marcou-me de tal maneira que fiquei admirar o Homem e o Militar. Passei aceitá-lo como um dos nossos, mais próximo e atento aos nossos problemas e despido das suas estrelas.

E os dias iam passando. A vida no quartel era preenchida aqui e ali com uns acontecimentos mais ou menos pitorescos. Os jogos de futebol ao final da tarde entre os pelotões, quantas vezes debaixo de trovoadas, marcavam a nossa principal forma de enganar o tempo.
Até que um dia, dois pelotões acertaram mais uma peladinha de tira-teimas. Era quase como que uma desforra entre os melhores e, muito aguardada pelo pessoal. Estávamos nas nossas tarefas diárias quando, o Alferes de um dos pelotões chega ao Posto de Socorros e nos pede para lhe fazermos umas massagens. Era a vedeta da equipa, e queria estar à altura das expectativas. Talvez por excesso de trabalho, talvez porque se aceitássemos a excepção seria o "fim da macacada” com todos a bater-nos à porta, talvez porque talvez ou, não sabendo bem porquê, a resposta saiu pronta: - Nem pensar.

A reacção do Alferes veio embrulhada nos seus galões e em ameaças subtis. Fizemos saber ao oficial que, dentro do Posto de Socorros só entrava quem viesse tratar-se e que os galões ficavam fora da porta. O bom senso imperou, o assunto ficou encerrado e com o passar do tempo o episódio foi esquecido.

Outro episódio bem pitoresco tem como protagonistas o mesmo Alferes, o seu cabrito e alguns “malandrecos” do seu pelotão.
O oficial mantinha preso próximo do seu quarto um cabrito que havia adquirido nas tabancas. Mas, alguns membros do seu grupo, e não só, entenderam que o rancho estava muito repetitivo e vai daí, se bem pensaram melhor o fizeram, abotoaram-se durante a noite ao cabrito e, com a cumplicidade do cozinheiro do rancho abateram o animal e prepararam um lauto assado. O principal convidado do repasto era naturalmente o dito cujo oficial. Quando do animal só eram visíveis alguns dos fragmentos do seu esqueleto e todos se encontravam já bem bebidos, alguém solta uma “boca” deixando entender a proveniência do animal. Foi a risada geral.
No primeiro momento o oficial passou do encarnado ao rubro, mas acabou por achar piada à partida do seu pessoal. A malta esteve à altura da brincadeira e do respeito pelo seu superior e ofereceram-se para lhe repor o animal, o que não aceitou.

Dentro e fora do quartel a equipa de saúde dedicava-se com empenho no apoio às populações. Tínhamos conquistado a sua estima e disso nos davam testemunho com a oferta de ovos, frangos, carnes, frutas etc. O sentimento era recíproco. Entre tantos momentos vividos com as populações destaco a tarefa de apoio às parturientes.
Sem preparação técnica e sem qualquer experiência prática, só a vontade de ajudar e alguma intuição me permitiram ser útil nesses momentos. De entre os vários casos, um caso em particular mereceu o registo na minha memória.

Ali para os fundos do Xitole, à saída para as tabancas, vivia uma família que incluía uma jovem e bonita mulher. Esta jovem era de quase todos conhecida porque, caso raro, tinha um peito bastante maior que o outro. Um dia, sou chamado a prestar assistência a essa jovem que entrara em trabalhos de parto e que as mulheres grandes que a acompanhavam consideravam difícil.
Munido de injectáveis para facilitar a dilatação, deitei mãos à obra. Sempre na presença das “parteiras” ministrei a medicação e esperei, deixando que a tradição e a ciência funcionassem. Mas a criança teimava em não querer ver a luz do dia. Repetida a medicação e depois de nova espera o resultado seria o mesmo.

A criança estava sujeita a sofrimento e, depois de nova tentativa, acabaria por nascer sem vida. Segundo a voz da tabanca, dizia-se que a criança poderia ser filha de um branco e que a jovem dificultou o parto para esconder esse facto.

Enquanto acontecia mais um ataque à Ponte dos Fulas e às tabancas de Cambêssê e de Sinchã Madiu, a Comissão caminhava para o fim. Estávamos no início de 1972 e, para minha surpresa, fui informado de que iria ser colocado em Bafatá. Explicaram-me que iria para descansar, simplesmente. Custava-me o afastamento dos meus camaradas, mas a ideia agradou-me.

Piscina natural em Cussilinta – Corubal

Na esplanada da messe dos oficiais

Entrada do posto de socorros do Xitole

Picada Xitole/ Saltinho na época das chuvas

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12010: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12029: Um encontro em férias com um embaixador da UE que esteve em Bissau no pico do conflito político-militar 1998-1999 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2013:

Carlos,
Foi uma grande surpresa, de vez em quando temos o choque das grandes alegrias, puras e inesperadas.
[...]
Como é evidente, pedi autorização ao embaixador para publicar as fotografias e aonde.
Recebe um abraço de um amigo que te quer sempre bem,
Mário


Encontro inesperado com um embaixador da UE em Bissau

Beja Santos

2 de Setembro, cerca das 19 horas, Praia Grande, região de Sintra. Tarde magnífica, estive uma hora no banho, ondulação inocente, dava gosto, água quase tépida, as vagas sucessivas da ondulação massajavam, uma maresia de sal e iodo, nem havia vontade de sair tão cedo da água. Depois passeei-me à beira-mar, sequei-me, subi para o passeio e limpava afanosamente os pés quando um vozeirão estoirou ali ao lado:
- O que é que você faz aqui nos meus domínios, ó Beja Santos, há quanto tempo não nos vemos?.

Não fiquei estupefacto muito tempo, quem me aborda assim de supetão está praticamente como quando o conheci, no final de 1977. Abraçámo-nos, era o Miguel Amado, e quando nos conhecemos foi no Ministério do Comércio, ele na rede nacional de frio e eu já nos consumidores. Viajamos pela Dinamarca, em 1978, e quando nos separámos em Copenhaga, no aeroporto, eu seguia para Amesterdão e ele para Lisboa, preguei-lhe uma pequena partida, pedi-lhe para trazer duas pesadas malas com a documentação e filmes que trazia numa visita à Suécia, ele que tivesse pena de mim, ia agora para Haia buscar vários sacos com bobines para os filmes que iria apresentar na RTP. Ele já esquecera essa partida, quase 40 quilos de papelada e película que trouxera até minha casa.

Foi uma alegria este reencontro. Bebemos uma imperial e cavaqueámos pelas várias décadas em que andámos dispersos. A Guiné veio à baila. Ele percebeu que eu tinha os olhos em alvo, bebia tudo quanto ele dizia. Ele foi embaixador da União Europeia, apanhou o conflito político-militar da Guiné em cheio. Já tínhamos falado de Madagáscar, do Burundi, da República Dominicana e do Congo Brazaville, algumas das paragens onde fez diplomacia, conheceu cinco golpes de Estado. Pedi-lhe para voltarmos à Guiné.
- Ó Beja Santos, há muito para contar, venha jantar comigo na quarta-feira, trato-o bem, vamos marcar um ponto de encontro.

E assim foi, encontrámo-nos na Ribeirinha de Colares, pegou em mim e de jipão seguimos para um morro onde ele tem a sua casa. E que panorâmica, meu Deus! Fiquei sem fala, avista-se o espinhaço pétreo onde assentam o Castelo dos Mouros e o Palácio da Pena, avista-se perfeitamente Monserrate, a Quinta da Piedade, em escadaria a Eugaria, pode divisar-se a Estrada Nova da Rainha, estávamos a saborear um fim de tarde cálido, avistava-se uma neblina que tecia cogitações românticas, havia para ali um silêncio monástico, que inibia a conversa. Feita a apresentação do lugar, percorri a sua bela casa, mexi nos livros, obras de arte, bibelôs, como me atrevo a fazer quando me sinto em intimidade.

Aos solavancos, voltámos à década de 1970, percorremos as suas missões, lá o fui manipulando até chegarmos à Guiné.
- Espere lá, vou buscar os álbuns, tenho ali fotografias que o vão entusiasmar. Olhe para esta, a comissária Emma Bonino, que apareceu ali acidentalmente na Guiné, forçou o aperto de mão entre o Ansumane Mané e o Nino Vieira, não percebeu patavina do que eles disseram, e depois veio cá para fora dizer que se tinham dado passos extremamente importantes para a reconciliação… e temos aqui esta fotografia histórica.

Continuou a remexer no álbum, vi a sua residência em derrocada, vi os vestígios das bombardas que o assolaram, ele lá está, sorridente e lampeiro, como sempre.

- Há muito mais a conversar sobre a Guiné, voltaremos ao assunto em próximo encontro.

Aquiesci prontamente. É claro que nos vamos encontrar mais. A Guiné é interminável, ele esteve lá dois anos e meio, tem mesmo muito para contar.

Para não cansar muito o confrade, junto só três fotografias, a de um aperto de mão que não ficou para a História, e as ruínas de uma casa no fragor de uma guerra civil, com os sinais do metal da morte.




Fotos: © Embaixador Miguel Amado

É muito bom conversar com o Miguel Amado, é um homem crente e tem o vigor dos apóstolos, a solicitude dos generosos e, como todos os justos, não há para ali azedumes, rancores nem insinuações pestilenciais. Estou mesmo a aguardar uma nova oportunidade de lá ir a casa, ele recordou a luz de Outubro, quase mística, naquele cenário transcendente. Eu vou. E voltaremos a falar da Guiné.

Guiné 63/74 - P12028: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (8): O Clube de Oficiais

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia 

8 - O Clube de Oficiais




Instalado no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, próximo do Quartel-General, iniciei a 21 de Abril de 1970 a minha actividade nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando Chefe (Amura).

Durante a minha estadia nesse clube tive contacto com vários oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos) que também lá se encontravam instalados ou que, estando sediados fora de Bissau, por lá passaram para tratar assuntos relativos às companhias que comandavam.

Em finais de Abril o General Spínola reuniu numa grande sala do Palácio praticamente todos o capitães em serviço na Guiné.
Eu, praticamente acabado de chegar, também estive presente nessa reunião.

O General traçou novos rumos no que dizia respeito à luta contra a subversão.
Deu a entender que se estavam estabelecendo negociações com os chefes terroristas no sentido da resolução política do diferendo.
Ordenou que as Companhias Operacionais não mais tomassem atitudes ofensivas, mas simplesmente defensivas. Mandou que se procedesse sem ódio nem brutalidade contra os prisioneiros de guerra e as populações afectas ao inimigo, de modo a que se possibilitasse a sua apresentação às autoridades e se pudesse caminhar para a pacificação.

Com a vinda a essa reunião dos capitães que se encontravam espalhados pelo território, pude conhecer alguns e rever o Espinha de Almeida, do meu tempo da Escola Prática de Artilharia, que se encontrava no Xitole (Bambadinca).

Este capitão miliciano, embora de pequena estatura, era corajoso.
Chamavam-lhe, por ser baixo, Capitão Pitaitas.
Mostrou, no entanto, valor militar, uma vez que nunca deixou de acompanhar os seus soldados em diversas missões, expondo-se ao fogo do inimigo.

Em dada altura sabedor do local, na mata, onde estava estacionado um numeroso grupo de "terroristas" fora do alcance do seu obus, resolveu desmanchá-lo e transportá-lo em peças para um lugar donde fosse possível bombardear a posição inimiga.
Depois de montar devidamente as peças do canhão atingiu com êxito a posição "terrorista" causando-lhe diversas baixas.
Pela sua bravura, o Capitão Espinha de Almeida foi galardoado com a medalha de serviços distintos com palma.

Na referida reunião dos capitães com o General Spínola, fui surpreendido pela forma descontraída, directa e muito incisiva, como o Capitão Vasco Lourenço procurou saber do General mais pormenores sobre o modo como actuar futuramente face às novas directivas. Directivas que passados alguns dias foram canceladas, dado que foram mortos três majores e um alferes que, desarmados, procuravam o contacto com chefes terroristas de que havia indicação de se quererem entregar.

Um dos majores (Pereira da Silva) conhecia-o muito bem, pois havia privado com ele no GACA 3 tendo ele, na altura, o posto de Tenente.

A minha vida ia correndo sem grandes sobressaltos entre o Comando-Chefe e o Clube de Oficiais. Aqui no Clube, havia uma piscina e à noite por vezes havia cinema e outros espectáculos ao ar livre.
Lembro-me de ter visto espectáculos de música, de ilusionismo e uma vez de hipnotismo. Neste último um soldado, depois de hipnotizado, foi convencido que estava uma noite gélida (ao contrário do que acontecia, pois tratava-se de uma cálida noite africana) e recordo-me como ele tremeu de frio e se agasalhou o mais que pôde com as roupas que tinha por perto.

Estando à beira da piscina, no dia 19 de Maio de 1970, ouvi pela primeira vez a artilharia dos independentistas em acção.
Eram cerca de 23 horas quando foi desencadeado um ataque com artilharia ao Quartel de Tite.
Os rebentamenros era perfeitamente audíveis em Bissau. O poder de fogo era grande, tendo havido lançamento, por parte das forças inimigas, de cinco mísseis.

No Clube de Oficiais fazia a minha vida depois de findo o meu serviço no Comando-Chefe. Era a minha casa. Lá tinha tudo: alimentação, dormida e até barbearia.
Foi justamente na barbearia onde certo dia fui cortar o cabelo que se deu este episódio com o Capitão Vasco Lourenço que vou passar a contar.

Encontrando-me uma vez sentado numa das cadeiras da barbearia do Clube de Oficiais de Bissau, acomodou-se a meu lado o Capitão Lourenço.
Imediatamente solicitou que lhe cortassem o cabelo. Este pedido surpreendeu o soldado da barbearia que, tartamudeando, se aprontou para o atender.
- Mas... meu capitão, ainda nem há uma hora lhe cortei o cabelo!
- Pois é. Mas vais cortar-mo de novo.

O rapaz não replicou, mas muito em surdina, ainda conseguiu pronunciar duas palavras que só eu pude entender, embora com dificuldade.
- Está "apanhado".

Também fiquei intrigado com o que se passava, pelo que procurei esclarecer o assunto mais tarde.
Quando ambos abandonamos o Clube de Oficiais, o Capitão Lourenço satisfez a minha curiosidade.
Segundo me explicou, havia-se cruzado, após o primeiro corte de cabelo, com um dos chefes militares de Bissau.
O Coronel Onze, como era conhecido e não me perguntem porquê, era muito rigoroso com o atavio e o porte dos seus subordinados, principalmente com os oficiais. Quando se cruzou com o Capitão Lourenço te-lo-á interpelado com severidade, chamando-o à atenção para o facto de o seu corte de cabelo não ser o regulamentar.
- O Senhor Capitão é miliciano?
- Não, não, meu Coronel. Eu pertenço ao quadro permanente.
- Mas isso é indisculpável. Faça o favor de ir cortar o cabelo imediatamente. Essa melena na testa é uma vergonha. Depois apresente-se no meu gabinete.

Seguidamente a este relato, que tentei aproximar tanto quanto me foi possível da realidade, o Capitão Lourenço teceu várias considerações e deu curso à sua revolta interior.
Explicada a razão pela qual o Capitão Lourenço teve necessidade de cortar o cabelo, pela segunda vez no mesmo dia, o referido oficial encaminhou-se para o gabinete do Coronel Onze.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12007: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (7): Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry

Guiné 63/74 - P12027: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (27): Vídeo "Piriquito vai pró mato", gravado recentemente em Gadamael Porto


Vídeo (1' 03''): Piriquito vai pró mato. Alojado em You Tube > ADBissau

1. Gravação feita há dias em Gadamael Porto, e enviada ontem pelo nosso amigo e parceiro Pepito, diretor executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau.

Letra: Piriquito vai pró mato, oh lé, lé, lé /  Piriquito vai pró mato, oh, lé, lé, lé ,lé / Passarinho di gazela, oh lé, lé, lé,  / Piriquito vai pró mato, oh, lé, lé, lé lé /, Velhinho vai prá Lisboa, olé, lé, lé, lé ... 

Acompanhamento: realejo, palmas, vozes.
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Guiné 63/74 - P12026: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (26): Começou a criação do Museu Memória de Gadamael Porto (Pepito, AD - Bissau)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Sede do futuro museu 


 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Estado de conservação do interior (1) 


 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Estado de conservação do interior (2) 


 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Vestígios de marcas lá deixadas (1): uma pintura de parede


Guiné-Bissau> Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Vestígios de marcas lá deixadas (2): CART 6252/72, Os Indiferentes,  1972-74


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Vestígios de marcas lá deixadas (3): os nomes de MARTINS, GUERREIRO, JONATA, MACEDO, FERREIRA e MIRANDA


Guiné-Bissau> Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Conhecido pela tropa como o “Oh Alexandre”... Um dos dois guias de hoje.


 Guiné-Bissau> Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Conhecido pela tropa como Mamadú Mané, o outro dos dois guias de hoje

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Houve peregrinação até ao local... As mulheres da população local fazem a festa.

Fotos (e legendas): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]

COMEÇOU A CRIAÇÃO DO MUSEU MEMÓRIA DE GADAMAEL PORTO

Em Setembro de 2013, a AD, conjugando as vontades da população de Gadamael Porto e dos antigos militares portugueses que lá prestaram serviço, decidiu assinalar uma parte da história dos dois povos: o guineense e o português.

Esta iniciativa inscreve-se no programa de ecoturismo de Cantanhez, na componente histórica, sob a designação de “turismo da saudade”. Com ela pretende-se voltar a colocar Gadamael no mapa das tabancas com pleno direito ao desenvolvimento, tirando-a do isolamento e abandono em que ela se encontra.

A população local está entusiasmada, tendo escolhido o local onde o Museu será instalado (antigo abrigo e caserna dos soldados) e assegurando o seu envolvimento na reconstrução.

Todos os que pretendam apoiar esta iniciativa com fotografias de boa resolução, documentos, relatos, aerogramas, outras recordações e mesmo contributos para as obras de reconstrução, podem contactar o Embaixador do Museu de Gadamael em Portugal, companheiro Manuel Vaz, mais conhecido por Alferes Vaz,  quando por lá esteve em 1965-67; ou então contactar diretamente a AD (adbissau.ad@gmail.com).
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terça-feira, 10 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12025: Efemérides (142): Inauguração do Monumento aos Combatentes em Avintes, dia 14 de Setembro de 2013 (Antero Santos)

1. O nosso Camarada Antero Santos (ex-Fur Mil Atirador/Minas e Armadilhas da CCAÇ 3566 e da CCAÇ 18 - - Empada e Aldeia Formosa -, 1972/74), enviou-nos o seguinte programa/convite:

INAUGURAÇÃO DO MONUMENTO AOS COMBATENTES DE AVINTES

Dia 14 de Setembro de 2013 (próximo Sábado)

Caro Luís Graça

Já o devia ter feito há algum tempo mas somente na passada semana ficou decidida a data de inauguração do Monumento aos Combatentes de Avintes.

Agradeço o favor de dar publicidade a este evento no blogue...

Junto foto da localização e ainda o texto em que o autor Arquitecto Octávio Alves descreve o Monumento. 


MONUMENTO AOS COMBATENTES

No próximo Sábado, dia 14, vai realizar-se a inauguração do Monumento aos Combatentes de Avintes.

O programa é o seguinte:

10:00 - Concentração junto ao Monumento;
10:30 - Recepção dos convidados;
11:00 - Cerimónia de inauguração.

"OS QUE TOMBARAM DEIXARAM EM ABERTO UM VAZIO" 

Vamos prestar a homenagem que é devida a todos os que participaram da Guerra do Ultramar, especialmente aos nossos dez conterrâneos que tombaram ao serviço da Pátria:
04/08/1961 -ANGOLA - Joaquim de Sousa Ferreira - CCAÇ 168/BCAÇ 159
05/09/1965 -GUINÉ - José Rocha da Silva - CCAÇ 1421/BCAÇ 1857
23/06/1967 -GUINÉ - Francisco Monteiro Almeida - CCAV 1616/BCAV 1897
20/10/1968 -MOÇAMB - Manuel Ferreira de Almeida - BCP 12
01/07/1970 -MOÇAMB - António Manuel R.Ferreira - CART 1646/BART2901
16/12/1970 -MOÇAMB - José Franc. Campos Costa - CART 646/BART2901
15/07/1972 -GUINÉ - Idílio Costa Moreira - 38ª CCMDS
26/09/1072 -GUINÉ - José Costa Oliveira - DFE
02/01/1973 -MOÇAMB - Joaquim Costa Gonçalves - CCAÇ 3310/BCAÇ 3834
10/07/1974 -GUINÉ - António dos Santos Sousa - CENG 9147


Associação de Combatentes de Avintes

Antero Santos 


MONUMENTO AOS COMBATENTES DE AVINTES

Os que tombaram deixaram em aberto um vazio, rasgando vãos que nunca serão em vão. Deles se aprende a olhar o futuro e a gritar bem alto a voz da consciência colectiva, que se foi construindo, deitando por terra juízos de valor dum determinado tempo.

Não é de pedras mortas nem de pesadas baixas feito o MONUMENTO, mas de corpos com sangue vivo a pulsar e pureza de alma a abrir o espírito e a dar corpo às perdas, que a história se encarrega de transformar em ganhos, após apuro da máxima responsabilidade, concedendo o devido perdão ao passado e colocando em estado de alto teor de alerta o futuro.

Talhados somos para o construir.

Não se pretende tosco, mas sim revelador de planos de identidade com as três dimensões (comprimento, largura e altura) fiéis ao princípio da unidade universal.

O MURO NÃO CRIARÁ BARREIRA INTRANSPONÍVEL, mas será a sobreposição ordenada de valores, na justaposição do singular com o plural e do plural interesse na singular forma de o construir.

As fronteiras são traçadas para desafiar a passagem.

Aproveitam-se oportunidades de ampliar horizontes, avaliando o pisar dos riscos, e incentivando a sua transposição.

Quando o corpo já não o consegue fazer, o espírito encarrega-se de prosseguir viagem até que o pacto de sangue de corpo e espírito se estabeleça e em comum possam manifestar firmes convicções na existência.

Acidentes de percurso podem levar tudo a perder.

Na Perda se encontra o vazio mais profundo, aí se iniciando uma luta titânica, corpo a corpo, instante a instante, juízo a juízo de princípios de vida que hão-de ajudar a encher a alma até transbordarem fins dignos de condição Humana.

Guerra aberta de princípios e fins (desde o início aos fins dos tempos), gera significações com rodagem constante de sujeitos, predicados e complementos a céu aberto, pela conquista das razões primordiais, na primeira linha de combate.

No plano concreto da existência, surgem ataques em toda a amplitude do ser... Cegos, se levados às últimas consequências.

Em legítima defesa justificam ataques.

Em ataque, se defendem, na barricada oposta.

Cerrando fileiras, abre-se fogo, no posto de trabalho forçado pelas circunstâncias, atraiçoando postos de vigilância lúcida e justa dos tempos.

ALGUNS TOMBARAM,

Dizem que tombaram, dando corpo ao manifesto, mas em terrenos movediços consolidaram posições.

Viva voz se ergue e com dor de alma se aponta o dedo ao vazio resultante do acerto de pontaria, no desacerto do alvo.

Terá valido a pena a queda na Primavera da vida, pela posse indevida da terra?

Debruçam-se interrogações a tentar decifrar nomes e razões pelo sucedido, para encontrar explicações credíveis.

Erguem-se vozes aos céus, a apelar que a trajectória da bala tracejante do passado, não se propague ao futuro.

Presente, O ESPÍRITO COMBATENTE, em silêncio e profundo respeito pelo MONUMENTO aos que tombaram longe, continuando a ser exemplo, situado bem no íntimo do peito, ensinando a entoar, precisamente neste momento a canção da PAZ.

Octávio Alves 

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:



Guiné 63/74 - P12024: Blogoterapia (234): É muito difícil para mim falar da guerra da Guiné (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 6 de Setembro de 2013:

É muito difícil para mim falar da guerra da Guiné.
Porque eu não quis essa guerra nem as das outras colónias.

Três ou quatro anos antes de ser mobilizado comecei a fazer uma reflexão sobre a sua justiça e sobre a sua utilidade e cheguei à conclusão que humanamente não era justa nem sequer útil para Portugal.

Para esse estudo baseei-me em jornais e revistas menos afectos ao regime que a censura permitia e nalguns livros poucos, recordo um livro escrito por um exilado romeno que defendia as ideias do regime (ainda tenho esse livro, na aldeia, já não sei onde). Nesse tempo nunca pertenci a nenhum grupo politico ou associação ideológica de qualquer tipo. As conclusões a que cheguei foram pois independentes e autónomas, naturalmente influenciadas pelas leituras que fiz.

Atendendo a isso travei uma batalha muito desgastante comigo mesmo para decidir qual a melhor atitude a tomar. Quando não se toma nenhuma atitude, os outros tomam-na por nós. Foi o que me aconteceu, obrigaram-me a ir para a tropa e a ir para a Guiné lutar por uma causa que eu considerava perdida.
Outros já tinham entendido o mesmo e muitos outros entenderam isso depois, incluindo estrategas políticos e militares.

Foram muitos, que eu não conheci, que fugiram para a Europa livre, muitos por caminhos difíceis de contrabandistas.
Alguns deles só por medo, e outros porque resolveram votar (e ter voz) da única forma que o regime lhes permitia, com os pés.
Estes últimos admirei-os a par dos outros, esses foram um milhão ou mais, que na década de sessenta fugiram em massa à miséria a que estavam condenados.
Outros houve, encontrei alguns na Guiné, que com mil pretextos ou cunhas procuraram a paz e a segurança de Bissau, não eram maus tipos, talvez só tivessem medo e não tivessem tido a coragem de fugir para a França.
Por causa desses, tendo eu já 17 meses de "mato" em Buba, quando a CCAÇ 2616 regressou, fui empandeirado para a CART 2732 em Mansabá.

Na altura não me queixei porque talvez eu não quisesse mesmo ficar em Bissau, a aturar os burocratas da guerra, Não gostei foi do abuso e falta de consideração das chefias de Bissau.
Aos beneficiários "activos" desses atropelos das regras, sem os apreciar tolero-os.

Lisboa > 4 de julho de 2012 > A lista infindável de mortos... 1969, 1970, 1971, 1972...
Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.

A minha homenagem vai sobretudo porém para todos os camaradas que morreram ou ficaram estropiados no fogo cruzado do regime e dos movimentos de libertação, alguns deles pouco crentes nessa luta.
Vai igualmente para todos os outros combatentes que, por convicção própria, se bateram com coragem por Portugal pois foi como um chamamento da Pátria que entenderam a sua ida para as várias frentes de combate. Muitos deles pertencentes às tropas especiais também por lá ficaram e outros regressaram com marcas terríveis duma guerra atroz.

Continuo a pensar em todos eles com muito respeito e admiração.

Um abraço a todos
Francisco Maria Magalhães Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11868: Blogoterapia (233): A Bem da Nação!... A Medalha Comemorativa das Campanhas das Forças Armadas Portuguesas, Guiné 1968/70... (António Azevedo Rodrigues, Comando de Agrupamento 2957, Bafatá, 1968/70)

Guiné 63/74 - P12023: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (10): Alô Bissorã, cheguei!!!

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 6 de Setembro de 2013:

Caro Carlos Vinhal.
Camarada e Amigo.
Meu caro Editor.
Conforme acordámos, aqui tens o episódio número 10 da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".
Dele farás o que melhor for julgado.
Quero explicar a razão daquela cor sépia que apresentam as duas fotografias de Bissorã. Naquele tempo eu fotografava em slides. E deu-me para colocar (esperteza a minha...) um filtro laranja na lente da máquina. O resultado foi aquilo, não há nada a fazer, não há Photoshop que as salve.

Um abraço que estendo a todos os camarigos.
Armando Pires


FURRIEL ENFERMEIRO, RIBATEJANO E FADISTA

10 - ALÔ BISSORÃ, CHEGUEI!

Portanto, o DO aterrou em Bissorã eram nove da manhã.

Nem fanfarra nem guarda de honra à minha espera.
Apenas um Unimog para me levar a mim, mais ao correio e outras mercadorias que o avião transportara.

Sem esquecer, evidentemente, o Machado, o meu cabo enfermeiro, que viera receber-me, dar-me as boas vindas, e levar-me ao comando onde era devida a minha apresentação ao comandante da companhia.
Duas ou três centenas de metros após termos saído da pista de aviação, seguindo por uma estrada pejada de tabancas de um lado e do outro, primeira surpresa. Entrámos numa enorme rotunda, cuja, ao centro, tinha um monumento em honra de Raimundo António Serrão, que foi governador da Guiné entre 1949/53, na qual desaguavam, contou-me o Machado, as estradas que vinham de Mansoa, a sul, de Mansabá e Olossato, a leste, do Barro, a norte, e onde havia, na tal rotunda de que vos venho falando, o edifício, pasmei, dos correios.
- Ó Machado, mas aqui há correios?
- Há sim, furriel, quando quiser telefonar à família vem aqui – começou ele a “ciceronear” – e aquela casa ao lado é a enfermaria civil, onde nós vamos dar consultas.
- Nós?? - Gritei eu, já a pensar em que trabalhos me ia meter.
- Ó furriel, não comece já a enervar-se que ainda é cedo. Depois explico-lhe tudo.

E como quem quer desviar conversa, o Machado, que tinha esse condão de me irritar primeiro para me acalmar depois, apontou para um enorme casarão que ficava na outra extrema da rotunda e anunciou:
- Ali é a casa do administrador de Bissorã.

Bissorã – 1969/70 – A rotunda de Bissorã. Ao centro, o monumento a Raimundo Serrão. Depois, e da direita para a esquerda, os correios, a enfermaria civil e a sede da administração da vila.

O Unimog fez a rotunda em direcção à casa do administrador e, mesmo em frente à escadaria do edifíco, havia uma rua para a esquerda, vedada por uma cancela que ergueu para nos dar passagem. Era uma rua longa, sempre a descer, ainda que ligeiramente, que começava com duas vivendas, uma à esquerda, “é a casa do comandante”, disse o Machado, outra à direita, “aqui é a messe dos oficiais”, precisou o meu inestimável cicerone, e continuando por aí abaixo foi dizendo, “aqui são as casernas e o refeitório do pessoal… aqui a igreja (como se fosse preciso dizer)… esta casa à sua direita é a secretaria da CCS… também lá fica o posto de rádio, o centro cripto e o centro de mensagens… tudo ali… atrás é o paiol das munições… tá a ver, furriel, os espaldões dos morteiros?”, e já estávamos no fim da rua, com o Unimog outra vez a virar à esquerda mas a parar logo ali.

Tínhamos chegado ao edifício do comando do batalhão.

Era outro casarão, composto de rés-do-chão e primeiro andar. Em cima dormiam os oficiais, em baixo, um enorme espaço preenchido com secretárias onde trabalhava o pessoal da secretaria, e dois gabinetes para os comandantes. Num deles estava o capitão Alcino, comandante da CCS, a quem pedi licença para entrar e me apresentei.

- As férias foram boas, ó Pires?

Bissorã – 1969/70 – À entrada do quartel, as duas árvores que davam sombra às vivendas do comandante e da messe de oficiais. As casernas e o refeitório dos praças, a capela, à direita a secretaria e as transmissões, e lá no fim, onde se vê frondosa árvore, a secretaria do batalhão.

Faltava-me cumprimentar o “meu doutor” Oliveira para ir ao que mais ansiava. Saber das minhas coisas que, recordo, tinham ficado em Bula quando eu parti para férias.
- Ó Machado, onde é que está o doutor Oliveira?
- Está lá em cima, na enfermaria.
- Vamos lá.

E seguimos, agora por uma rua mergulhada na sombra de enormes mangueiras, e o Machado, sempre na sua função de cicerone, a dizer-me que “aqui à esquina é o clube, onde se junta a gente fina cá da terra e onde à noite, quando calha, a malta vem ao cinema… aqui é que o furriel tem de vir comer, é o tasco do Lavinas, um português que fez aqui a tropa (CCAÇ 1419) e ficou cá… aqui é a oficina de armamento e já chegámos”.

"Chegámos onde?" – perguntei cá para dentro de mim, acabado de entrar numa espécie de beco onde só via, ao fundo, as oficinas auto e, ao lado, uma casita azul com uma porta mal amanhada a que se tinha acesso subido três degraus de cimento.

Pois. Era aí a enfermaria.

Entrei e à direita, atrás de um secretária, rodeado de prateleiras com medicamentos, estava o doutor Oliveira a dar consultas.
- Viva, doutor!
- É Pires! Então pá, como é que estava lá a nossa terra?

Não sei se também vos aconteceu, mas parecia não haver ali ninguém que, ao ver-me, não perguntasse “como estava a nossa terra”.
Cumprimentei o resto do meu pessoal, João, Maltez e Teixeira, fiquei a perceber que naquele cubículo, além da secretária do doutor só cabia mais uma marquesa, vi que havia uma ligação para outro espaço atrás daquele, mas tão acanhado quanto ele, com lugar para seis camas montadas em beliche.

- Ó doutor, então isto é que é a nossa enfermaria?
- Já viste pá, com o barulho das oficinas ao lado, está aqui uma merda jeitosa para um gajo recuperar de uma carrada de paludismo.
- Bem, se o doutor dá licença, preciso de me desfardar, tomar banho e saber das minhas coisas.

Não foi necessariamente por esta ordem. Eu queria, acima de tudo, saber das minhas coisas.
E esclareçamos.
As minhas coisas, para além das pouco relevantes, para o caso, peças do fardamento que ficaram em Bula, eram os livros, as fotografias que decoravam a cabeceira da minha cama, as bonecas em miniatura como amuletos, o corno do Aleixo, o cinto do “Rapina” (ver foto em P11567) e, ainda mais importante, a minha mala.

Importante pelo valor afectivo que lhe tinha, ou melhor dizendo, pelo valor afectivo que lhe tenho.

É uma pequena mala de cartão, dentro da qual a minha mãe meteu a roupa com que eu aos quatro anos de idade… repito, aos 4 anos de idade… fui entregue, em Santarém, aos cuidados do revisor do comboio que me levou com destino ao Porto, cidade que adoro e onde fiquei 2 anos, até à idade de entrar para a escola.

Não sei o que levou a minha querida e saudosa mãe a guardar aquela mala, sei que foi dentro dela que eu levei para a Guiné o que me era precioso, que dentro dela tais preciosidades regressaram a casa, e é dentro dela, dentro da “minha caixa dos segredos”, como já por duas vezes aqui lhe chamei, que guardo os meus tesouros.

Com os amigos partilhamos o que de melhor temos. Aqui têm a mala dos meus tesouros, a “minha caixa dos segredos”. No fundo da mala existem mais tesouros. Mas esses respeitam a outras vidas.

Pois quem levou a mala para Bissorã foi o Filipe, furriel miliciano vagomestre, a quem ainda hoje me liga uma sólida amizade, nascida em Chaves, onde formámos batalhão, quando ele, futebolista de pé quente, disparou de fora da grande área um tal pontapé que a este, que sou eu, guarda-redes de mãos rôtas, virou ao contrário o polegar da mão esquerda.

Apanhei o Filipe à porta do comando e avançámos em direcção à casa dos sargentos, ali a três dezenas de metros, num caminho que levava a Missirá.

Era uma habitação com uma ampla sala de entrada, onde se distribuíam doze camas. Ao centro uma porta de acesso a um estreito corredor que fazia separação a três quartos interiores. O Filipe conduziu-me ao quarto mais próximo da casa de banho e disse-me, “este é o nosso”.
Nosso porque só lá cabia a cama dele e a minha.

O Filipe tinha seguido a velha máxima do quem parte e reparte…
Sentámo-nos frente a frente na beira das camas e eu disse-lhe:
- Ó Filipe, mas isto não é um quartel. Bissorã não tem quartel.
- Pois não, Pires. Isto foi uma terra muito importante, um grande entreposto agrícola. Não sei se viste que todas as casas tem em anexo espaços que ou foram armazéns ou lojas. As casernas dos soldados eram enormes armazéns onde se guardavam as produções de arroz, mancarra e castanha de cajú. Quando começou a guerra, aos poucos, os portugueses foram embora, para Bisssau, ou até mesmo de volta a Portugal. Como o exército precisava de instalações, foi ocupando o que ficou vazio.
- E está cá muita malta?
- Não Pires, só estamos nós e uma companhia operacional, a CCAÇ 2444.
- E também ficam aqui connosco?
- Não, eles têm instalações separadas. Têm casa lá em cima, junto à casa do administrador, e também do outro lado do rio, no destacamento da Outra Banda. Se quiseres, a seguir ao almoço, damos lá um salto.
- Ó Filipe, estou podre de cansado. A seguir ao almoço quero é dormir um bocado.

A modos que a conversa terminava ali, posto que fomos almoçar à D. Maria, mulher do Sr. Maximiano, dois cabo-verdianos que recebiam uma subvenção da companhia para nos dar de comer.

Saímos de casa, e, quando íamos a atravessar a rua, quase fui abalroado por um gajo em grande velocidade numa motorizada que fez duas “chicuelinas” para me evitar, seguindo em frente sem dizer água vai nem água vem.

- Que é isto, ó Filipe?

Com um largo sorriso na cara, responde-me ele, “é pá, é o maluco do Rebola, furriel da 2444”.

Apresentado assim pelo Filipe, a espantação passou-me e pensei para com os meus botões:
- Queres ver que já estou com a minha gente?
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11994: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (9): Um reencontro para agasalhar a idade

Guiné 63/74 - P12022: Parabéns a você (625): Rui Baptista, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3489 (Guiné, 1971/74) e Tony Grilo, ex-Soldado Apontador Obus do BAC-1 (Guiné, 1966/68)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12018: Parabéns a você (624): Filomena Sampaio, amiga Grâ-Tabanqueira e Raul Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 2.ª CART/BART 6522 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12021: (In)citações (54): Revista do Expresso, de 24/8/2013, traz artigo sobre a vida e a obra do nosso camarada João Crisóstomo (Eduardo Jorge Ferreira)... E o nosso blogue gostaria muito de o ver condecorado num próximo 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (Luís Graça)


Vilma Kracun e João Crisóstomo, no dia do seu casamento em Nova, 20/4/2012.  A história de amor de Vilma, cidadã eslovena, e do nosso camarada João Crisóstomo, já tinha sido publicada em The New York Times,de 28/4/2012, e antes disso no nosso blogue. . E chega também agora à imprensa portuguesa (Expresso, 24/8/2013).

O João Crisóstomo, natural de A-dos-Cunhados, Torres Vedras, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/66), vive em Nova Iorque desde 1975 e integra a nossa  Tabanca Grande  desde 26 de julho de 2010.


Foto: LusoAnmericano, 24 de abril de 2013 (Reproduzida com a devida vénia...)



1. Mensagem do Eduardo Jorge Ferreira [, foto à esquerda,] ,ex-alf mil da Polícia Aérea (BA12, Bissalanca, 1973/74), natural de A-dos-Cunhados, Torres Vedras, e amigo pessoal do nosso editor Luís Graça:

Data: 2 de Setembro de 2013 às 16:33

Assunto: Artigo do Expresso sobre o nosso camarigo João Crisóstomo

Caríssimos Luís  Graça e co-editores:

Regressado de umas curtas férias,  só ontem dei uma olhadela ao Expresso, de 24 de agosto,  e em cuja revista  me deparei com uma reportagem sobre o nosso camarada João Crisóstomo.

A par do muito que já se escreveu no Blogue sobre esta personalidade ímpar,  julgo que não seria demais voltar a falar dele a propósito de mais uma notícia na imprensa acerca da sua vida fascinante.

Como já foi descrito trata-se de um Português com P grande, de quem muito nos orgulhamos, pelo seu contributo para a defesa de grandes causas [, Gravuras Rupestres de Foz Coa, Memória de Aristides Sousa Mendes, autodeterminação de Timor Leste e do Sará Ocidental. .], e um ser humano de imenso coração e ao mesmo tempo de uma simplicidade e generosidade cativantes.

Em boa hora o João Crisóstomo começou a fazer parte da nossa Tabanca Grande e já todos conhecemos a sua história que agora vai chegando também ao grande público nacional. Foi um privilégio muito grande para mim tê-lo conhecido e à (agora) sua Vilma Kracun, bem como poder ter confraternizado com ambos, embora por muito pouco tempo, em companhia do nosso comum amigo Luís Graça e esposa.

Eduardo Jorge [Ferreira]

2. Comentário de L.G.:

Eduardo, obrigado pela tua oportuna mensagem. Também li o referido artigo na Revista do Expresso, edição de 24 de agosto último, e tinha intenções de fazer sobre ele um pequeno poste. O João e a  Vilma aparecem fotografados no Central Park, com um brilhozinho nos olhos, sinal de que estão felizes.

Para os seus amigos e camaradas, como nós, é um motivo de orgulho as elogiosas referências ao João Crisóstomo, na imprensa (nacional e internacional). Só agora, acabadas as férias, é que disponho de um pouco mais de tempo para publicar e comentar a tua mensagem. Para já, mando-te um abraço e um xicoração para a tua gentilíssima esposa, que só conheci recentemente, justamente no passado mês de agosto, na casa da Abelheira, Lourinhã, do casal Marteleira, Glória e Laurentino, nossos amigos comuns. (Não está esquecida a promessa de a tua querida esposa nos contar histórias do tempo da sua infância e juventude, em Bissau, ou pelo menos nos mandar fotos do seu álbum).

E o que eu queria dizer e reiterar, a propósito do nosso João, teu conterrâneo e meu vizinho, é que ele é um português da diáspora que nos honra a todos. Já fez por nós e por Portugal provavelmente muito mais do que muitos diplomatas de carreira juntos.

É pena que a casa civil do Presidente da República, a nossa diplomacia, os membros do Governo e os membros das ordens honoríficas portuguesas andem distraídos e ainda ninguém tenha proposto ou referenciado, ao que eu saiba, o nome do João Crisóstomo, como elegível para uma possível (, justissima, quanto a mim!) condecoração no 10 de junho.

Este ano, o 2013,  essa distinção teria sido a cereja no bolo. Que seja ao menos no 10 de junho de 2014. A nossa Tabanca Grande vai fazer força para isso!...  (Como se sabe, "a concessão de qualquer grau das Ordens Honoríficas Portuguesas é da exclusiva competência do Presidente da República como Grão-Mestre das Ordens", segundo leio no sítio oficial da Presidência da República).

As nossas mais calorosas saudações bloguísticas para o casal nova-iorquino João e Vilma, que espero poder rever e abraçar para o ano!
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11825: (In)citações (53): Bem haja quem fundou o blogue, bem haja quem apreciou as crónicas do meu pai, e tu, pai, continua a escrever, peço-te. Da filha que te adora (Paula Ferreira)

Guiné 63/74 - P12020: Convívios (528): 15.º Encontro do pessoal da CCAÇ 4544/73, levado a efeito no passado dia 8 de Setembro de 2013 em Miranda do Corvo (António Agreira)



1. Mensagem do nosso camarada António Agreira (ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 4544/73, Cafal, 1973/74), com data de 9 de Setembro de 2013:

Realizou no dia 8 de Setembro mais um encontro dos militares da Companhia de Caçadores 4544,

O 15º convívio que se realizou no Restaurante O Careca em Casais de S. Clemente, Miranda do Corvo.

Este convívio revestiu se de um significado especial, fez neste dia precisamente 39 anos que estes "jovens" regressaram das terras da Guiné, mais concretamente de Cafal Balanta.

A outra questão que entendo digna de registo é o facto de termos contado com a presença pela primeira vez de mais 5 camaradas de armas entre os quais o Sr. Coronel Carlos Pratas.

Neste convívio não foram esquecidos os que por algum motivo não estavam presentes, tendo-se prestado uma pequena homenagem aos falecidos.

Não posso deixar de ter uma palavra de agradecimento a todos os presentes de um modo geral e em particular aos que marcaram presença pela primeira vez.

Cabe aqui também uma palavra a gerência do restaurante (O Careca) que nos recebeu com muita dignidade e profissionalismo.


A todos o meu muito obrigado

António Agreira
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12003: Convívios (527): III Convívio da CCAÇ 3414, realizado nos passados dias 9; 10; 11 e 12 de Agosto de 2013 na Ilha do Pico (Joaquim Carlos Peixoto)

Guiné 63/74 - P12019: Notas de leitura (518): "Crónica dos Novos Feitos da Guiné", por António Ferra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Este livro é uma agradável surpresa, nele se cruzam culturas e sobretudo é dado em cores muito vivas todo o processo tumultuoso da Guiné em 1991, por ali desfilam portugueses e guineenses, carros avariados, negócios corruptos de peças de automóveis, o Oliveira e o Tomazinho Batota ciranda-se pelo 24 de Setembro, o Sheraton, a Pensão da Dona Berta e o mercado de Bandim.
Parece um livro de apontamentos e a observação mordaz do autor não esconde o seu olhar de antropólogo.
Temos ali a Bissau febril dos expedientes e de gente que quer viajar, sobretudo para Portugal. Não se esconde que é um país em roda livre, sufocado numa miríade de especulações.
De leitura obrigatória para aprofundar a vida daqueles tempos, vistos por um cooperante.

Um abraço do
Mário


Apontamentos curiosos de um cooperante na Guiné, em 1991

Beja Santos

“Crónica dos novos feitos da Guiné” por António Ferra, Europress, 1995, é no mínimo uma obra de consulta obrigatória para se conhecer os sentimentos de um cooperante numa Guiné a passar do partido único para o multipartidarismo. António Ferra é licenciado em filologia germânica e professor do ensino secundário. No seu currículo refere experiências literárias com grande ligação ao teatro infantil e também na área da pedagogia e animação.

O seu livro é escrito como um caderno de apontamentos e os respetivos capítulos têm o sentido de uma crónica, começam assim: em que se fala, de como se pode viajar, em que se mostra, em que se conta, de como os cooperantes vieram para cooperar… regista cheiros, quadros de azáfama, sente-se atraído por mistérios, como o poilão, que ele assim descreve: “O poilão é uma árvore centenária de grande porte, irregular e grossa, sobretudo na base, onde pode atingir dois metros de diâmetro. As raízes começam então a engrossar e, salientes como as veias das mãos de um velho gigantesco, enterram-se no solo, afirmando um suporte sólido e a emanação da força da terra, à maneira de cordame robusto a prender o navio aos pilares do cais. O sagrado e o segredo do poilão parece concentrar-se nessa magia de se ligar tão solidamente à terra e tornear-se pelos ramos, caprichosamente, até ao céu”.

Está atento ao bulício do porto do Pindjiquiti, vai zarpar um barco para a ilhar Bubaque, dá-nos uma água-forte vigorosa e introduz-se uma figura transversal a todos estes relatos, o Oliveira: “Este homem, mais acastanhado, tinha grandes empreendimentos em mão, todo o tipo de construções, e trabalhava para grandes empresas como intermediário de mão-de-obra. O que se tornava nele original era o não trabalhar, o saber negociar e intermediar de uma maneira que o dinheiro em divisas ou em pesos lhe vinha parar às mãos, através das relações que mantinha com os poderes políticos locais e do momento. Com a chamada abertura à liberalização económica, Oliveira estava a realizar o seu sonho, que já fora do pai, agora exilado pelo Governo e partido oficial, vai para alguns anos”. Ficamos a saber que há viaturas avariadas lá para a embaixada portuguesa, o que transtorna muitas vezes já que o jipe é nação portuguesa cooperante na Guiné-Bissau. Ficamos a saber um pouco mais sobre Maurícia, a companheira do Oliveira, a zeladora da casa, somos introduzidos em ambientes de cooperantes e assistimos ao desabar do Oliveira.

É então que percebemos que Oliveira ocupa um lugar charneira entre a colónia e o país independente, teve sucesso nos amores e nos negócios e depois foi levado ao desastre quando se lançou na construção do chamado bairro dos cooperantes portugueses, que foi levantado um pouco acima do Sheraton. “Receberam o dinheiro e não terminaram a construção, está quase pronta, faltando apenas o quase, de há três anos para cá. Lá por dentro tudo já está mudado, porque, com os assaltos, lá vão desaparecendo as torneiras, os autoclismos e o material elétrico que chegou a ser instalado parcialmente. Claro que Oliveira, por seu lado, gastava tudo com o grupo dos acólitos, pagando rodadas na Tropicana e noutras boates que apareceram então em Bissau”. Despromovido, vive agora na tabanca, sobrou uma pequena destilaria mas em pouco tempo deixou de ter posses para pagar aos cortadores de cana, teve que regressar às origens, retomando os antigos hábitos e valores.

A descrição da “chapa” de Bissau é também muito vigorosa, como o Bandim daquele tempo, um sociodrama da Guiné, assim apresentado: “Tudo ali aparece ampliado e distinto. Do lado direito quem sobe, o passeio é estreito e depois, mais para dentro, aparece uma grande vala de cimento que vai até mais acima. Do lado interior da vala estão vendedores de plásticos – bacias, baldes, canecas – e de bacias esmaltadas da Tailândia. E logo começam, então, junto ao passeio, as mesinhas com pacotes de cigarros Marlboro e L&M, fósforos, sabão azul, muito azul, pastilhas elásticas, latinhas de leite evaporado francês a 1500 pesos”.

Descobrimos que o sonho de todo o guineense é viajar, com preferência para Portugal, essa Guiné da transição já se encontra em estado deplorável. Conta-se a história de Paulo da Silva que vive num quarto acanhado, numa zona degradada de São Bento. Nasceu em Cacheu, um tio levou-o para Bissau onde estudou no liceu Kwame NKrumah, aprendeu matemática com Vladimir, professor soviético, e a língua portuguesa com o seu tio, António Jaló Feliz. Paulo veio frequentar um curso de português em Portugal, gostou da comida, da cama limpa, decidiu não voltar à Guiné, ele e todos os outros. “Procuram outros guineenses em Lisboa. O Osvaldo, que também integra a comitiva, tinha um primo que trabalhava na construção civil e vivia ali para os lados da Pontinha. Quanto ganha ele, quanto? Tira 50 contos, o malandro, e ainda manda 5 ou 7 para a família. Quantos pesos são 5 ou 7 contos? Tantos pesos! Maldito câmbio! Porque não são iguais todas as moedas? Porquê esta diferença? Paulo da Silva ficou. Tio António: escrevo a bocê, digo que a minha fica na Lisboa num trabalho bom ca arranjou o tio de camarada Osvaldo numa obra de construssão di prédiu e tanbem pagão bem, em escudo, em peso é manga di peso e pode mandar tanbem ao tio algum, seu sobrinho sempre muito amigo da gente ai, tia e criança Abdul, Paulo da Silva”.

Como uma desgraça nunca vem só, vamos ver Oliveira acidentado, depois a sua filha Odete com febre altíssima, ele corre espavorido à procura do milagre da aspirina, não acreditava nos antibióticos nem nos hospitais, a pequenita Odete de olhos grandes morreu levada pelo impiedoso sarampo.

Muito se falará ainda de cerimónias religiosas, dos armazéns do povo que não têm praticamente nada para vender, dos apartamentos degradados da Ankar e dos usos e costumes dos cooperantes, retratos crus de sonhos e quimeras, de solidariedades e de oportunismos.

Caminhamos para o fim, Oliveira ainda pensa em refazer a vida, comprando um táxi, juntando algum dinheiro da pouca aguardente de cana que ainda vai vivendo. Mas uma fatalidade instalou-se, uma fatalidade ou uma praga que dá pelo nome de corrupção, que se espalha por todas as atividades, incluindo o da educação. Aqui e acolá, fazem-se referências ao bife da Casa Santos e à comida da Pensão da Berta, referindo-se esta por ser instituição a funcionar com o mesmo paladar, quer antes quer depois da independência e mesmo durante os períodos maus em que escasseavam os géneros, antes e depois dos fuzilamentos que o grupo do camarada Nino patrocinara em 1986.

Tecem-se críticas mordazes: o sonho de um guineense em ascensão era ser homólogo (isto é, a outra parte do trabalho do cooperante) com viatura e combustível, de preferência em projetos ricos e conta-se a história exemplar de Tomazinho Batota, um ladino aperfeiçoado em múltiplos expedientes, de óculos Ray Ban e calcinha branca, como se fosse novamente um colono português à boa maneira. E o autor despede-se, desejando sinceramente que tudo corra bem, ainda se encontra com Oliveira na praça Che Guevara e reflete como se sobe e desce tão rapidamente naquele entreposto que dá pelo de Bissau…
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12012: Notas de leitura (517): BCAÇ 1933, História da Unidade (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12018: Parabéns a você (624): Filomena Sampaio, amiga Grâ-Tabanqueira e Raul Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 2.ª CART/BART 6522 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12009: Parabéns a você (623): José Marcelino Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

domingo, 8 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12017: História da CCAÇ 2679 (63): O jogo do Poker (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 5 de Setembro de 2013:

Olá Carlos!
Às vezes tenho saudades tuas e admiro a tua persistência na alimentação do blogue. Mas tenho andado com o inspiramento orientado para a política, sem verter coisa com coisa, terrível situação que os donos do jardim à beira mar plantado aproveitam para incrementar a exploração.
Hoje "naveguei" pelos últimos folhetins da História da 2679, e lancei o repto ao Morais para que desenvolvesse alguma narrativa com manifesto interesse histórico.
Entretanto ocorreu-me esta coisa dos vícios que a malta cultivava, e de que algumas vezes nos machucávamos. Espero que não desagrade.

Um grande abraço para ti e para o tabancal.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

63 - O jogo do Poker

Putos espigadotes, com 18 ou 19 anos, jogávamos durante as noites de sábado umas pokeradas muito bem esgalhadas, sempre em casa dos amigos Santa (um deles foi alferes no Gabú), cuja mãe tinha uma imensa paciência para nos aturar as madurezas. Havia um ritual: enquanto nos encaminhávamos para o "casino", depois da bica e, eventualmente, da amarelinha pretensamente cognacada, ainda fazíamos uma deriva por um quintal onde houvesse capoeira com aves. E já éramos "experts" nessa arte de pilhar galinhas durante as noites, quando o tempo de reacção dos donos era manifestamente lento para nos atingirem com uma hipotética carga de chumbo.

Uma noite invernosa a coisa não correu bem, e apanhámos uma pomba branca, que aconchegada por baixo da gabardine transmitia um calor muito agradável, e por isso era disputada por todos. O Calapez, alarve, já se babava na expectativa da canjinha, enquanto afagava a bicha para lhe manter o moral elevado, importante condição para a perservação da textura das carnes, mas os restantes, principalmente o Chabert, já se inspiravam que era a verdadeira pomba da paz, e remoíam a ideia do abate, em vez de olharem para ela como a inimiga de que nos tínhamos de livrar.

Chegados a casa, deixámos a pomba na cozinha, com um pedaço de miolo de pão para engordar até à hora do juízo final. A malta abancava em torno da mesa, onde os baralhos mereciam a maior contestação com tantas marcas em evidência. Dos bolsos jorravam as moedas de tostão e dois tostões. Quando um gajo tinha um trio, já era coisa para avançar com três tostões; e com um "fullen", era coisa para sete ou oito tostões, porque exibir prata aplicava-se para alta sequência. Pelas manhãs, havia quem perdesse ou ganhasse dois escudos, e era uma festa.

Voltando à noite da pomba, alguém tinha que se incumbir da matança, mas, contristados, os aspirantes a batoteiros não revelavam a decisão necessária para os grandes golpes. Quando o Chabert entrou na cozinha para saciar a sede, logo a malta acorreu fechando e trancando a porta, que a que dava para a rua já estava armadilhada.
- Chapa, só deves dar sinal depois de matares a pombinha!, gritaram-lhe.

Passados longos momentos, alguém se abeirou a perguntar pela situação, e o coitado do Chabert soletrou alguma coisa como "já está!"

Entreaberta a porta, os olhares curiosos verificaram que a pombinha ainda dava às asas. pendurada de uma corta que a asfixiava pelo pescoço. O Chapa, incapaz de a liquidar com a rapidez e eficácia desejadas, acabou por ser cruel ao admitir que assim custaria menos. Pronto, a dona da casa foi acordada, e pela manhã não faltou a canja reconfortante.

Embarquei para o Funchal com o Zé Tito a bordo do paquete Funchal que fazia uma viagem turística. Ao passarmos a barra, no tombadilho, com os olhos postos na orla costeira que se alongava até à nossa terra, confessámo-nos que estávamos tesos. A noite tinha sido de inflação desvairada. Por junto arranjámos cerca de um conto e trezentos, que logo foi decidido reproduzir no poker, que se jogava em várias mesas. O Tito decidiu que eu abancaria com um conto, enquanto ele foi para o bar encher-se de gins e morder as balzakianas.

Os parceiros eram pessoas simpáticas, mas "traiçoeiros" nas jogadas que consumiam as minhas "caves". Esgotava-se o saldo, quando eu começava a compreender os "mecanismos" da cada um, mas surgiu o Tito a informar-se de como decorria o negócio.
- Estou quase teso - respondi.

Surpreendentemente, passou-me outro conto para a mão, e em menos de uma hora ganhei cerca de seis contos. Pedi licença, e retirei-me satisfeito. No intervalo dos gins ele tinha ganho nos jogos de cavalinhos.

Quando desembarcàmos, seria sexta ou sábado, apanhámos um táxi para o Savoy. Na segunda apresentámo-nos e pedimos um abono ao Comandante, pois tivémos que alugar alojamento no Beco de Sta Emília, e fazer face às despesas de instalação e jantares. A vida correra-nos muito mal durante o fim-de-semana, com muita festa e o hotel de luxo para pagar. Estávamos novamente tesos.

Em Piche eu levava uma vida de alta competição, com uma constância quase imparável de patrulhamentos, colunas, operações e emboscadas noturnas metade das noites semanais. Quando dormia na cama, era para levantar cedo e abalar numa qualquer missão.
Uma noite, já eu pegara no sono, bebido, quando fui abanado. Reagi mal, como seria de esperar, e perguntei ao filho da puta o que queria. Já com os olhos abertos, deparei com a simpática carinha do nosso capelão, que me informava estar ali perto uma mesa muito simpática com malta para jogar o poker.
- Desculpe sô padre, não era para ofender. Vamos lá então durante um bocadinho.

Ganhei umas coroas, e voltei para a cama.

A cena repetiu-se por muitas vezes e, francamente, enquanto eu ganhava sempre, dei-me conta do milagre da multiplicação, pois o padre encavava todas as noites algumas notas de cem, sem retorno, e não tinha o ordenado de general. Mas se Deus escreve direito por linhas tortas, provavelmente estava ali para proteger o seu representante na terra, no sentido de não prejudicar a diplomacia necessária ao munus que ele exercia.

A minha última vez, aconteceu depois de eu sempre ter ganho.
Uma ocasião, os parceiros, com excepção do Zé Tito, tinham-se retirado da jogada. Na mesa, em disputa, estariam cerca de cinco contos, um dinheirão. Eu tinha ases por reis. O Zé apostou cem paus, e eu dupliquei. Ainda acrescentámos algumas notas ao monte que estava na mesa, e eu já me deliciava a imaginar o gajo em cuecas, teso como um carapau, esquecido pela alienação da nossa amizade

O Zé pagou para ver. Aí, exuberante e glorioso, atirei com as cartas para que todos vissem o mais mavioso dos "fullen" - full hand.


Quando me preparava para arrebanhar a massa, verifiquei que o Tito confrontava o seu jogo, e por cima dos óculos pousava o olhar nas minhas cartas.
Parecia desconfiado. Timidamente, ele demorava a dizer qualquer coisa, parecia que estava a mastigar alguma frase. E eu ampliava o gozo da minha vitória. Até que, numa posição de coluna curvada e quase prostração, o Tito balbuciou umas palavras que continham "sequência".


- O quê? - gritei ferido de morte.

Tomei consciência da vertigem e fiquei tão envergonhado que nunca mais voltei a jogar.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11798: História da CCAÇ 2679 (62): Invasão em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)